Eliane Davila dos Santos *
Universidade Feevale, Brasil
elianedavila@yahoo.comResumo: A literatura é considerada ficção, porém apresenta a realidade por meio da representação. É nessa relação com a realidade, que o leitor é convidado a desvendar as lacunas da obra literária. A literatura é a expressão do ser humano e das ações que instaura com a sociedade e com seu espaço no mundo. A literatura, então, possibilita ao leitor uma aproximação com o espaço ficcional, exigindo envolvimento, porém, na mesma medida, estabelece um distanciamento para poder compreender a elaboração do processo literário. Assim, o leitor aprende e recebe como prêmio dessa aprendizagem, a capacidade de refletir sobre si mesma e (texto literário) e sobre sua própria realidade.
Palavras chaves: Literatura. Conto. Mimese. Representação.
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Eliane Davila dos Santos (2017): “Uma Vela para Dario”: reflexões sobre mimese e representação a partir do conto de Daltron Trevisam”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (octubre-diciembre 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2017/04/reflexoes-conto-daltrom.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1704reflexoes-conto-daltrom
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este estudo tem como finalidade de analisar o conto literário de nome Uma vela para Dario, do escritor Dalton Trevisan, correlacionando os conceitos de Mimese 1 (ARISTÓTELES, 1966) e de representação (HALL, 1997). A possibilidade de relacionar os conceitos permite, ao leitor, compreender com maior detalhamento, que a literatura pode ser constituída como uma forma de revelação do seu próprio contexto e das circunstâncias sociais em que está inserido. Elege-se, por questões metodológicas do estudo, aproximar, primeiramente, o conceito de mimese (ARISTÓTELES, 1966) e, logo após, tratar o conceito de representação (HALL, 1997).
2. A LITERATURA: AS TRILHAS DO CONTO
Ao dar sequência ao diálogo a partir dos conceitos citados, procura-se contextualizar o conto. Pode-se asseverar que se trata de um texto narrado em terceira pessoa, com uma linguagem jornalística, com estilo breve, com sentenças curtas e com um caráter de incerteza quanto ao rumo do desfecho do conto. A narrativa apresenta a fatalidade vivida por Dario, um homem que transita pela cidade, que, em virtude de um ataque epilético ou cardíaco, fica desprotegido na rua, à indiscrição, ao descuido e ao desprezo de todos que ali transitam. A imagem que o narrador constrói evidencia as poucas iniciativas para auxiliar Dario; falta caridade, porém o que se vê é a ductilidade, já que, durante a narrativa, todos os pertences (relógio, aliança, sapatos, etc) que Dario trazia desaparecem. As pessoas circulavam até que alguém grita que Dario morreu. Na sequência, todos se dispersam e o defunto fica deitado na rua até a vinda do IML. O conto termina com um menino de cor e descalço, com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Depois de três horas, a vela já havia queimado até a metade, apagando-se com a chuva.
Segundo Aristóteles (1966), na Poética, a mimese é algo pertinente ao homem e é o que o diferencia dos animais porque, desde criança, compartilha da mimese e adquire com ela a aprendizagem. Pode-se atestar que o conto Uma vela para Dario partilha com o leitor um fato que já aconteceu, isto, é, a narrativa representa e traduz uma imagem de um homem, que em seus últimos instantes de vida, conforme as marcas enunciativas: Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminui o passo até parar, encostando-se á parede da casa. O autor, não caracteriza a identidade do personagem de forma discursiva, mas as informações vão sendo construídas pelas ações do próprio protagonista e pelas ações das pessoas que com ele interagem a partir das marcas o senhor gordo, de branco; rapaz de bigode; moradores da rua; as crianças; velhinha de cabeça grisalha; o motoristaum senhor piedoso; guarda; pessoas que roubaram seus objetos e um menino de cor e descalço. Esses caracteres 2 que vão dando a grandeza3 e a ordem à narrativa poética. A forma de narrar de Trevisan conta com uma composição estilística que favorece o distanciamento do autor da narrativa. O conto narra não apenas o fato dos últimos momentos de vida de Dario, mas todas as ações dos personagens que participam da história. O foco narrativo traz o entorno do fato, isto é, por meio das ações dos personagens, o leitor vai compreendendo e vivenciando a experiência dos últimos momentos de vida de Dario.
Nota-se que o critério de verossimilhança, um dos conceitos relevantes para construção da mimese4 ficam evidentes no conto Uma vela para Dario. O leitor tem a sensação de que é a testemunha do acontecimento que representa a fatalidade da morte de Dario. Existe uma coerência entre os fatos narrados e as situações representadas. O fato de um homem estar precisando de ajuda, caído na rua, estar sofrendo e ainda ter seus objetos saqueados, remete ao que se vivencia nas cidades urbanas em nosso contexto social contemporâneo. O sentimento de sofrimento de Dario e o descaso das pessoas que com ele interagem. As marcas discursivas a velhinha de cabeça grisalha gritou que estava quase morrendo evoca no leitor a espera de uma conduta de auxilio a Dario por parte dos personagens, mas isso não acontece durante toda a narrativa. O sentimento de solidariedade e respeito a um ser humano que necessita de cuidados ainda é agravado pelo saque de seus pertences como mostra a o trecho: o guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo - os bolsos vazios. A mimese provoca a catarse, uma forma de depuração ou libertação dos ser e, onde o leitor coloca-se no lugar de Dario e, compreende o seu sofrimento e o desprezo que recebe. A catarse aristotélica possibilita ainda que o leitor do conto consiga transportar o fato narrado para o contexto atual, aproximando-se e distanciando-se do fato para poder compreender os problemas da desumanização do ser humano. A imagem que o texto nos expõe transcende o fato narrado e causa um sentimento de indignação frente à sociedade e aos pré-conceitos e modelos mentais que estão cristalizados no imaginário das pessoas sobre ajudar as pessoas que vivem nas ruas. A ação dos personagens contribui para que a poesia5 crie sua imitação e esse processo criativo não é cópia. Assim, o conto, permite compreender que a narrativa não é uma simples reprodução da realidade, pois a intenção, as escolhas das palavras, a organização estilística e a forma de dizer do autor, deixam evidente a presença da ação do homem na literatura.
A mimese (ARISTÓTELES, 1966) ajusta-se a um encadeamento realizado pelos meios, objetos e modos6 . É preciso classificar a poesia, pois ela vai variar de acordo com os meios empregados para sua formulação; de acordo com o objeto que ela irá representar e de acordo com o modo (tipo de discurso) que ela vai realizar. No conto Uma vela para Dario, percebe-se que o meio utilizado para imitar é a palavra, visto que por meio da linguagem, o autor representa todos os atores e todo o espaço da narrativa: a cidade urbana, mais especificamente a rua. O objeto, no conto de Trevisan, representa as pessoas iguais a nós, caracterizando o drama vivido por Dario frente a uma sociedade que está distante do Outro7 . A frieza e a falta de solidariedade transcende o conto e provoca revolta em quem lê a narrativa. O próprio autor assume a narrativa em terceira pessoa, o que já evidencia uma tentativa de distanciamento em relação ao Dario. Embora o texto seja um discurso indireto, percebe-se que o modo narrativo do autor pode ser considerado como um personagem posto em ação (ARISTÓTELES, 1966).
Os estudos aristotélicos direcionam a posicionamentos que abarcam a literatura (arte) como inerente ao ser humano. O homem tem prazer em apreciar um bom texto e aprende com a literatura. O processo de aprendizagem acontece com a leitura do conto Uma vela para Dario, uma vez que desperta o senso crítico, por questionar e refletir sobre o tema das sociedades contemporâneas e os comportamentos de natureza egoísta, individualista e de exploração, além de compreender melhor a solidão de Dario e a falta de assistência pelas pessoas que passam pela rua.
Seguindo a metodologia desse comentário crítico sobre o conto Uma vela para Dario, relaciona-se os postulados de Hall (1997) que conduzem a representação como uma linguagem de significação sobre o que é o mundo e como o sujeito se expressa diante do mundo. Pela materialidade da linguagem literária é possível dar significação ao mundo pelos sistemas de representação, conceitos e signos compartilhados em uma cultura. O que deve ser destacado é que o processo de significação só acontece em parceria com o leitor, que interpreta o que está sendo narrado. Identifica-se no conto de Trevisam que o autor representa, por meio da linguagem, um posicionamento de crítica à sociedade urbana individualista que não demonstra manifestações de solidariedade e assistência aos indivíduos que estão nas ruas a sofrer. A dignidade do ser humano é deixada de lado. O que se constrói pela linguagem é uma representação da frieza e indiferença ao ser humano, além de revelar a ganância das pessoas ao tirar proveito da situação e sacar os pertences do homem. As marcas discursivas várias pessoas tropeçavam no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes e Dario conduzido de volta e recostando é parece - não tinha sapatos nem os alfinetes de pérola na gravata mostram a degradação do ser humano, visto que Dario é pisoteado e saqueado enquanto sofria na rua. O autor utiliza a ênfase ao tratamento da linguagem, recorre à palavra dezessete, que, embora, seja apenas uma suposição, parece apresentar a morte ou algo ruim. A marca enunciativo-discursiva enxame de moscas sugere uma associação às pessoas que transitam pela rua. É possível compreender que, talvez, a utilização da expressão enxame de moscas também contribua para representar o aspecto da própria degradação de Dario, que no conto, é representado como um ser sujo, depreciado e abandonado onde as moscas são atraídas.
O conto ainda levanta uma questão que se relaciona a exclusão social que é outro problema da contemporaneidade. Dario representa o sujeito que não faz parte daquele ambiente, por isso é excluído. Apenas um menino de cor e um senhor piedoso, provavelmente na mesma situação de abandono social, demonstraram caridade.
A linguagem sendo constituída de signos8 , ganha significação pelas convenções que se estabelecem pela significação de cada cultura. O que se quer afirmar é que a representação é um processo dinâmico, mas ao mesmo tempo é estático, pois já estão definidas as regras que devem ser seguidas para que se estabeleça uma comunicação. No conto de Dario, as pistas discursivas um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver, contribuem para representar, por meio do signo verbal, a vela, uma possibilidade de rompimento do status quo, ou seja, a possibilidade de ver na sociedade urbana um olhar para o diferente, para o excluído, para aquele que não faz parte do meio. A chama da vela, simbolicamente, sugere a representação da esperança em uma mudança de posicionamento do ser humano em relação aos excluídos e à sociedade individualista e gananciosa.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A literatura possibilita a representação o mundo e o testemunho do mundo. A significação dada pelos signos acontece na interpretação do leitor a partir da representação, dos conceitos e dos signos utilizados. A leitura do conto Uma vela para Dario, pela significação das palavras, pelo seu caráter simbólico, ficcional e ideológico, a narrativa percebe-se a intencionalidade do autor, representando a cultura da sociedade contemporânea, onde o que não faz parte do grupo9 sofre e não recebe a mesma atenção da sociedade.
Após as reflexões feitas a partir do corpus literário Uma vela para Dario, acredita-se que foi possível atingir o objetivo desse comentário crítico que correlacionou os conceitos de Mimese10 (ARISTÓTELES, 1966) e de representação (HALL, 1997). A possibilidade de associar os conceitos permitiu, ao leitor, compreender com maior profundidade o posicionamento do autor e a maneira que ele representou o contexto contemporâneo da sociedade individualista e gananciosa de hoje, por meio de um conto literário. A literatura estabelece relações com a realidade. Embora um caráter ficcional, está representando o real. Ao aproximar o olhar sobre o texto literário, deve-se atentar não apenas ao que o texto diz, mas como o texto diz. O leitor, nesse caso, não é um sujeito passivo, que apenas recebe as informações, mas é aquele que interage com o texto e preenche as lacunas da narrativa, e, pela catarse, adquire senso crítico, sendo capaz de compreender melhor os personagens e a sua vida.
*Doutoranda e Mestra em Processos e Manifestações Culturais. Universidade Feevale. Email: elianedavila@yahoo.com. ERS-239, 2755 | Novo Hamburgo, RS - CEP 93525-075.
2 A mimese na poesia (arte literária) é imitação, representação . A mimese não é considerada como uma cópia do objeto. O homem tem a capacidade de criar algo novo, tendo como base o que já existe. Assim, a mimese não é uma cópia (ARISTÓTELES, 1966).
3 Personagens.
4 Aristóteles (1966) define a grandeza como a capacidade que a narrativa tem de se apresentar, de forma organizada, permitindo que o leitor compreenda o todo da obra. A narrativa apresenta fatos poderiam acontecer, dando a poesia um caráter universal, visto que dentro dos fatos particulares (históricos) a narrativa poética versa sobre o que é humano e não necessita ser fiel ao fato narrado.
5 Conceito aristotélico.
6 Termo utilizado para designar a literatura e a arte como um todo (ARISTÓTELES, 1966).
7 A palavra Outro refere-se ao indivíduo que encara a morte de um sujeito na rua de forma fria e como se fosse um acontecimento usual e banal. No conto em análise, trata-se de do personagem principal, Dario.
8 Signo pode ser definido como algo que significa alguma coisa para alguém. Os signos podem ser indiciais icônicos e verbais. Também pode concluir que o signo é arbitrário e ideológico (HALL, 1997).
9 Referência à representação do personagem principal, que em nossa cultura, aquele que é deixado de fora do grupo.
10 A mimese na poesia (arte literária) é imitação, representação . A mimese não é considerada como uma cópia do objeto. O homem tem a capacidade de criar algo novo, tendo como base o que já existe. Assim, a mimese não é uma cópia (ARISTÓTELES, 1966).
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Antônio Carvalho. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1966.
HALL, Stuart. Representation. Cultural Representations and Signifying Practises. London, Thousand Oaks, New Delhi: Sage/Open University, 1997.
TREVISAN, Dalton. Uma vela para Dario. In: MORICONI, Itálo (org). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de janeiro: Objetiva, 2001, p.279-280.
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