Carla da Conceição Mores Gastaldin *
Ivo José Dittrich**
Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, Brasil
carla.gastaldin@unila.edu.brEste artigo pretende abordar a literatura como um meio para falar da falta – no sentido psicanalítico do termo, através do reencontro inventivo que o texto literário possibilita para com o Real. O reencontro acontece com situações que pedem uma nova significação, provocada pelo olhar do escritor. Tanto através das obras de arte quanto da literatura, o autor se reencontra com a sua própria falta, e assim, permite ao público também fazê-lo. No romance “Madame Bovary”, sem saber, Gustave Flaubert faz uma bela descrição do quadro clínico que representa a histeria, através da personagem Emma. A Psicanálise foi criada a partir da escuta clínica das histéricas, e aponta a insatisfação e a queixa como condições estruturais dos seres humanos, o que bem está representado na figura de Madame Bovary. O romance de Flaubert trata da relação da mulher com o próprio desejo e com o amor, bem como do lugar conferido ao homem na fantasia histérica. A obra de Flaubert aborda a questão do adoecimento histérico, o qual é analisado aqui através da personagem desse grande clássico da literatura.
Palavras-chave: Literatura, Falta, >Psicanálise, Histeria, Sintoma
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Carla da Conceição Mores Gastaldin e Ivo José Dittrich (2017): “A literatura e a falta: o caso de Emma Bovary”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (octubre-diciembre 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2017/04/literatura-emma-bovary.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1704literatura-emma-bovary
A Literatura e a Falta: o Caso de Emma Bovary
“Todos os objetos “a” são insuficientes, é certo, para costurar de forma perfeita a fenda do sujeito, mas à deriva da perfeição é possível mover-se na existência, o que significa transitar pelos discursos, quer seja apropriando-se deles, quer seja contestando-os (…) para também se inscrever neles (…) marcas que representam um sujeito perante a Ordem Simbólica” (Agra, 2015)
Assim como a palavra, a literatura alude ao real, mas não é esse real. A palavra é aquilo que substitui o objeto e faz com que ele exista segundo as leis da linguagem. A literatura trabalha com a palavra e está, dessa forma, também assujeitada as mesmas leis.
Para Perrone-Moysés (2006) a literatura existe como parte de um real que pretende dizer, mas que sempre falha em dizer, já que ela está fadada a reconstruir o mundo através das palavras. O fato de as palavras serem uma “perda do real concreto” faz com que a literatura venha a “inventar um outro mundo mais pleno ou evidenciar as lacunas desse em que vivemos [sendo essas] duas maneiras de reclamar da falta” (Perrone-Moysés, 2006). A autora lembra que o mundo em que vivemos é sempre insatisfatório, pois somos seres faltantes.
A falta jamais pode ser suprida, mas pode ser dita. É possível transformar o insuportável da falta através daquilo que as palavras suportam. Perrone-Moysés (2006) diz que uma das grandes vantagens da literatura é justamente poder dizer algo sobre a falta, através de um convite ao seu ultrapassamento.
Para o psicanalista Jorge Forbes (2013), na vida há dois tipos de reencontro com o real: o reencontro do mesmo e o reencontro do diferente. Em seres falantes tudo é um re-encontro, já que “dizer as coisas é aceitar perdê-las” (Perrone-Moysés, 2006) e essa perda ocorre desde que aprendemos a falar. Assim, todo o encontro de um sujeto com o real é um segundo encontro.
Para Forbes (2013), o reencontro do mesmo seria algo pouco criativo, quando se olha para o mundo buscando sempre a repetição do que já foi vivido, onde não há espaço para o desejo e para a invenção. Em contrapartida, nas palavras do psicanalista:
“O reencontro do diferente é buscar na repetição o novo, o não visto, o não vivido. É o impacto que vem das situações não necessariamente novas, posto que reencontro, mas que não se esgotam em sua capacidade de surpreender. São assim, por exemplo, as obras clássicas. Vemos muitas vezes um quadro de Van Gogh e sempre nos surpreendemos. Ouvimos várias vezes uma sinfonia de Beethoven e nos transcendemos. (…) É o reencontro com algo que sempre escapa, é um reencontro que pede novas descrições, onde tudo parecia evidente” (Forbes, 2013).
A literatura, como outras formas de arte, possibilita um reencontro inventivo com o real, com tudo aquilo o que nos falta, e é justamente por faltar que pode ser inventado. Trata-se de um reencontro com o diferente, como descrito acima por Forbes: um reencontro que possibilita um novo olhar e uma outra forma de apreender a realidade, transcendendo-a.
Gustave Flaubert escreveu a obra Madame Bovary, da qual trataremos neste artigo. Ele costumava dizer que “A vida é tão horrível que só se pode suportá-la evitando-a, e podemos fazê-lo quando se vive no mundo da arte” (Perrone-Moysés, 2006). Estranhamente professada pelo principal representante do realismo francês - corrente cujo ideal literário é o da aproximação fiel e descritiva do texto com o mundo concreto - a frase pouco lembra o autor procrastinado que perseguia um ideal de literatura que apagasse a presença do autor em sua obra (Heineberg, 2016). À própria revelia, Flaubert deixa sutilmente transparecer na frase acima a relação estreita entre o criador e sua obra, colocando a arte num lugar privilegiado a partir do qual a vida torna-se possível de ser vivida.
Fulvia M. L. Moretto (2001), tradutora de uma das edições de Madame Bovary, de Flaubert, destaca: “não esqueçamos que a crítica hoje não se mostra mais tão segura e unânime quanto ao realismo de Flaubert. Sua presença nem sempre desaparece completamente sobre sua escritura e a realidade será muitas vezes para ele apenas um trampolim para mais altos vôos”. Assim, ainda que contrariamente à vontade expressa pelo autor, pode-se pensar na inevitável marca impressa por Flaubert em sua obra, que escolheu e desenhou cuidadosamente cada uma de suas personagens.
A presença da subjetividade colocada por um autor em sua obra a torna rica, colorida e inventiva, oferecendo a chance ao leitor de um outro reencontro com a falta, através de um mundo que é um convite ao imaginário de cada um. E isso é o que a literatura, e como lembra Forbes: as obras clássicas, podem nos dar de presente. E é isso que faz Gustave Flaubert ao escrever durante cinco anos sobre um dos personagens mais debatidos da literatura universal, brindando a humanidade com o clássico “Madame Bovary”, que trata, nas palavras de Elisabeth Saporitti (2003) das “desventuras de uma pequena provinciana frustrada, envolvida em adultérios e atolada em dívidas, sempre em busca de algo impossível”.
Antonio Candido (2002) diz que só há um tipo eficaz de personagem, a inventada, mas que ela sempre guarda vínculos com a realidade matriz, que é transformada segundo a concepção do escritor, sua tendência estética e suas possibilidades criadoras. Não só Flaubert denuncia os costumes burgueses de seu tempo, como também identifica-se com a condição faltosa e desejante de sua personagem, ao fazer equivaler Emma a si mesmo (“Madame Bovary sou eu”). São notórias as semelhanças entre todo o enredo da obra e a história vivida pelo próprio autor: Flaubert passou a vida apaixonado por uma mulher mais velha do que ele, casada e mãe. O pai do autor também era cirurgião, como Charles Bovary, e Flaubert teve uma vida aristocrata sem precisar trabalhar, tal qual o fizera o sr Bovary pai.
Ainda em Antonio Candido (2002) encontramos a idéia de que há uma relação estreita entre o autor e sua obra, relação esta materializada na criação de seus personagens. Para Ele, a escrita de um romance está sempre ligada às limitações de seu criador, que toma um modelo na realidade e acrescenta, no plano psicológico, a sua incógnita pessoal. O autor explica que especialmente no romance é o escritor quem estabelece a lógica das personagens, que não são nunca uma cópia do real, mas sua verossimilhança.
Na apresentação de sua tradução de Madame Bovary, Ilana Heineberg cita Proust, para quem Flaubert teria sido o “responsável por uma literatura de ruptura [que ] deu sentido e substância ao romance de análise psicológica” (2016 apud Proust).
Segundo Candido (2002), foi no século XIX que foi desenvolvida por alguns escritores a noção de mistério nos seres humanos, o qual poderia levar uma pessoa a produzir condutas inesperadas. A psicanálise, lembra o autor, deu um aspecto mais sistemático a esse tipo de investigação, revolucionando o conceito de personalidade, ao mostrar que a maior parte da vida emocional é inconsciente.
Gustave Flaubert parece ter sido um desses escritores do século XIX que talhou com esmero a mente e as aflições de sua personagem, fazendo de Madame Bovary a mais alta expressão do romance de análise psicológica. Escolhendo consciente ou inconscientemente uma personagem que grita a condição da insatisfação de seu desejo, Flaubert abordou de forma profunda as fraquezas humanas, o que causou tanto admiração quanto revolta: em 1857 sofreu um processo no Tribunal de Paris por ofensa à moral pública e religiosa (LPM Editores, 2016), do qual mais tarde foi declarado inocente.
Quando questionado durante o processo judicial sobre a inspiração que o levou a construir a personagem Emma, Flaubert proferiu a célebre frase: “Madame Bovary sou eu” (Scotti, 2003). O autor parece expressar nessa fala um saber sobre sua própria condição humana: a insatisfação. Segundo Scotti (2003), a obra faz uma “apologia à falta e à insatisfação a que o homem está condenado a tentar preencher de infinitas maneiras”. Madame Bovary está infinitamente insatisfeita com a própria vida, embora saiba-se que esta é a própria condição de existência de todos os seres humanos.
Mas se Emma Bovary, essa “pequena burguesa frustrada que passa a vida sonhando com as paixões que lê nos folhetins, nada mais é do que uma personagem imensamente humana em suas características - a ponto do autor referir-se a ela como sendo ele mesmo, porque esse romance casou tamanho impacto e revolta?
Flaubert dizia que nunca é o fundo que escandaliza mas a forma (Perrone-Moysés, 2006). E o que o autor fez em Madame Bovary foi trazer à tona de uma forma muito clara e transparente conteúdos que permaneciam, especialmente em relação à sociedade da época, como tabus.
“Ema representa e defende de modo exemplar um lado humano brutalmente negado por quase todas as religiões, filosofias e ideologias, e apresentado por elas como motivo de vergonha para a espécie. [...] A história de Emma é uma cega, teimosa, desesperada rebelião contra toda violência social que sufoca esse direito” (LLOSA, 1979)
A crítica de Vargas Lhosa à obra Madame Bovary mostra que Flaubert foi capaz de abordar em seu romance uma face do ser humano que é rejeitada por este. O autor foi capaz de dizer o “não dito” e de mostrar que a espécie humana não é tão perfeita quanto almeja: ela é faltosa, pois está assujeitada a lei do desejo.
O leitor de Madame Bovary pode facilmente perceber a facilidade com que se pode julgar a “mulherzinha” de Flaubert, como ele mesmo a chamava (Nobre, 2013), pelo seu comportamento tão sonhador que chega a beirar o delírio, pela forma impulsiva com que age sem questionar os próprios posicionamentos, pelo queixume infinito em que ela se perde, e obviamente pela busca incessante por um homem que venha satisfazer os seus desejos secretos e o seu ideal de completude. Contudo, aquele que julga não está a salvo da própria condição humana (como ser desejante), condição esta que ganhou contornos aos olhos do público através da personagem Emma Bovary.
Tão impossível quanto a supressão da falta, é a satisfação dessa personagem de Flaubert, que não tarda em trazer à tona a verdade de todos os seres humanos: a de que o desejo é algo impossível de se satisfazer. Tratando do maior drama existencial de uma pessoa (o enlace dela com o próprio desejo), Flaubert nunca deixou a sociedade esquecer que a problemática central de sua obra não era algo distante da realidade, tendo certa vez emitido o seguinte comentário (Heineberg, 2016): “ (…) Tudo o que se inventa é verdadeiro (…) Minha pobre Bovary, provavelmente nesta mesma hora sofre e chora numas vinte aldeias da França”. Gustave mostrou como a vida emocional intensa de sua personagem, povoada de angústias e sentimentos contraditórios, estava próxima da realidade das pessoas. É difícil para o ser humano suportar a falta, e quando ela apareceu de forma escancarada para leitor do século XIX, este ficou escandalizado.
A psicanalista Elisabeth Saporiti (2003) diz que “a história de uma vida tem sempre a estrutura de uma ficção”. Tal qual no romance ou no cinema, a vida de cada pessoa também é animada por uma imensa gama de personagens, cenários e acontecimentos cômicos ou trágicos. Falar em uma história de vida implica, em psicanálise, em tratar do tema da verdade: a verdade de cada sujeito. Quando se diz da dimensão ficcional da verdade é porque ela é sempre um recorte pessoal, pertencente ao imaginário de cada um. Assim como o autor do romance faz um recorte temporal e estético de seu enredo, cada pessoa enxerga no mundo e nos outros nada além de um semblante: reflexo especular de seu próprio desejo, que expõe a forma com que cada um pode lidar com a própria falta. Lacan chama isso de “verdade mentirosa”, já que para ele “Não há verdade que, ao passar pela atenção, não minta” (LACAN, 1976).
Como todos os conceitos que se utilizam em psicanálise, o conceito de verdade também é atravessado pela noção de inconsciente. Se nunca é possível saber sobre o que o inconsciente comporta, então só resta a cada um interpretar o mundo através da própria consciência. Tudo o que entra na consciência já está submetido a “perda do real concreto”, pois não é nada além do que uma representação do mesmo. Para Lacan, a única verdade que pode ser dita através da palavra é uma verdade ficcional. Uma de suas frases a esse respeito virou jargão psicanalítico: “a verdade só pode ser dita nas malhas da ficção”.
Coube aos poetas, aos romancistas e aos outros artistas o privilégio de conduzir a humanidade através das linhas da ficção, para que através do que foi imaginado por eles cada pessoa possa também buscar uma forma de suportar o real da própria falta, aceitando o convite feito pela arte ao ultrapassamento do real. Freud (1976) sempre ressaltou o privilégio dos artistas em estarem sempre à frente do seu tempo e da ciência, sempre antecipando aquilo que os cientistas demoram muito para descobrir.
Agra (2015) destaca a ironia no fato de que o material sobre o qual Freud viria a se debruçar quarenta anos depois já estava posto na obra de Flaubert, que publicou sua obra no ano de nascimento de Freud. Este cria a psicanálise a partir da escuta de mulheres adoecidas, as quais ele situou dentro da estrutura clínica da histeria.
Para Sérgio Scotti (2003), psicanalista, a personagem Emma Bovary representa uma das mais belas e precisas descrições de um quadro de histeria. Segundo ele, essa obra da literatura inclui o discurso da psicanálise sobre a histeria.
Freud (Agra, 2015) é quem pela primeira leva a sério as histéricas, ouvindo seus discursos queixosos ou quase delirantes. Ele pergunta-se como a mulher está instalada dentro deste discurso e acaba por julgar a psicanálise insuficiente para dar repostas às questões da feminilidade. É dele a conhecida frase para a qual jamais encontrou resposta: “O que quer uma mulher”?
Realmente durante toda a obra de Flaubert o leitor pergunta-se o que quer Emma, sempre insatisfeita e queixosa da vida, infiel a um marido que lhe é dedicado. Ao falar sobre esse romance, o psicanalista Contardo Calligaris compara Emma a outras personagens: "Thérèse Desqueyroux", de François Mauriac e "Anna Karenina", de Tolstói. Calligaris usa as personagens da ficção para falar sobre a descoberta do desejo feminino:
“Para mim, a modernidade poderia (ou deveria) começar, exemplarmente, com essas três histórias de insatisfação feminina, ou seja, com a descoberta de que as mulheres têm sonhos e devaneios que vão além de um marido devoto, de uma família e de uma vida ao abrigo da necessidade - em outras palavras, com a descoberta de que existe um desejo feminino”. (Calligaris, 2013)
Nas palavras de Contardo é possível perceber que o desejo feminino possui uma marca de insatisfação, presente nas personagens das três obras. O autor lembra ainda que nas três histórias a maternidade não faz a felicidade das mulheres, a exemplo de Emma, que não deseja casar-se para se tornar mãe. Ao longo de sua história pessoal, Madame Bovary busca realizar-se através do desejo dos homens, os quais ela acredita terem o poder de transformá-la em uma daquelas heroínas dos romances que gosta de ler (Nobre, 2013).
Para a psicanálise (Rangel, 2008), a mulher tem uma esperança de que o amor venha dar uma sustentação para o seu ser. O amor a identifica como mulher, posição subjetiva diferente da posição histérica. Rangel também afirma que o que diferencia a histeria da feminilidade é aceitação ou recusa de uma mulher em colocar-se no lugar de ser objeto de desejo de um homem.
De que trata a obra Madame Bovary? Trata do desejo de uma mulher, que de forma desmedida a coloca no campo da afetação psicopatológica e a leva a morte (Nobre, 2013). Aparentemente Emma colocava-se como objeto de desejo dos homens, mas não os sustentava nesse lugar, pois no momento em que eles não correspondiam a seus ideais fantasiosos e romanescos, ela os destituía desse lugar.
Pouco tempo após a cerimônia que a uniu à Charles, Madame Bovary começa a decepcionar-se com o casamento:
“Antes de casar ela pensara ter amor, mas como a alegria que deveria ter resultado daquele amor não apareceu, só podia ter se enganado, pensava. E Emma buscava saber o que significavam exatamente as palavras felicidade, paixão e embriaguez, que tão belas lhe pareceram nos livros (…) Depois de tentar pôr fogo no coração [de Charles] sem obter uma só faísca (…) de entender o que não sentia (…) ela se convenceu sem sacrifício que a paixão de Charles não tinha mais nada de exorbitante (…) Ela se perguntava se não haveria um meio (…) de encontrar outro homem (…) afinal não eram todos como aquele”. (Flaubert, 2016)
Aquele homem, em que Emma depositou toda a sua esperança de fazê-la feliz, não conseguiu satisfazê-la. Segundo seu posicionamento histérico, que a leva a destituir e desfazer do “outro”, Emma silenciosamente odeia Charles e em pensamento lhe diz ofensas: acha-o medíocre!
Torna-se notório o fato de que o próprio Flaubert corroborou em criar personagens masculinos muito próximos do que é a visão histérica sobre os homens. Os homens do romance iam sempre “mal das pernas”, não só porque vários deles tiveram problemas reais com esses membos, mas porque, como ressalta Scotti (2003), “quase todos tem pequena estatura moral, intelectual e de sentimentos”.
Na histeria, se a mulher quer provocar o desejo do outro não é para satisfazê-lo (Rangel, 2008), mas sim para ser para ele um objeto precioso que pode lhe causar insatisfação. Entretanto, ao negar-se em ocupar esse lugar de objeto do desejo masculino, não significa que a histérica não tenha curiosidade sobre esse lugar. O que ocorre é que para ela esse lugar de mulher é um mistério que ela procura acessar quando se relaciona com um homem.
Para Nobre (2013), a personagem Emma capta o desejo feminino de estar em constante movimento, mas ela comete excessos, entrando no campo do adoecimento histérico, quando pede ao homem que este lhe dê tudo o que lhe falta e que seja o único responsável pela felicidade dela.
Como em todas as neuroses, a falta ocupa um lugar importante na histeria, ainda que a histérica dela não queira saber. A personagem Emma, como todas as pessoas neuróticas, preenche a própria falta com fantasias, entretanto deixa engolir-se por elas. Emma encontra também nas compras uma forma de preencher o vazio de sua existência, buscando nos objetos a satisfação que não consegue encontrar nos seus relacionamentos. Através do consumismo a personagem mostra novamente o seu lado adoecido, pois será o sintoma do endividamento que irá coroar o destino desta madame, que somente alcançará na morte a resposta para tudo aquilo o que lhe falta.
Sobre a situação financeira da personagem Emma, Nobre (2013) analisa que:
“O reconhecimento da derrocada financeira a colocaria na posição de uma pessoa limitada, que não consegue sustentar o ideal fálico que criou a si mesma, remetendo-a a condição que durante toda a trama tentou escapar. Emma buscou, ao longo de todo o romance, tornar Charles uma figura fracassada e, no entanto, as dívidas fizeram-na deparar-se com o seu próprio fracasso”. (Nobre, 2013).
No momento em que a dívida de Madame Bovary vem à tona, tanto para a sociedade quanto para seu marido, ela entra em desespero. Emma não suporta a angústia de ver a sua falta desmascarada, e não vê outra saída para seu drama do que a morte. Tendo ela se esforçado muito para ter uma vida como nos romances, e para não se deparar com a própria falta, Emma não suporta o sentimento de fracasso advindo de um corte pela via do real.
Falar sobre falta, em psicanálise, significa falar da lei da castração, segundo a qual exite um limite ao nível de satisfação que alguém pode alcançar na vida. A personagem não aceita esse limite (não aceita a castração) buscando no amor a possibilidade de completude. O problema é que devido à posição de recusa que a personagem possui em relação a tudo que impõe limites a sua fantasia, Emma busca o amor de forma patológica. Não é à toa que a histérica possui uma relação perturbadora com o amor, pois o amor tem um quê de fora-da-lei (Scotti, 2013), da lei da castração, pois ele nos empurra para o outro no intuito de buscar o que nos falta, visando a completude.
A personagem de Flaubert possui a paixão como um verdadeiro vício, como uma droga da qual se utilizava para entorpecer sua angústia, sua falta (Scotti, 2003). Ema joga-se de um lado para o outro, de um objeto ao outro, que ao mostrar-se “castrado” logo é substituído. Scotti (2003) lembra que Emma Bovary não é uma histérica dos tempos de Freud e Charcot, mas que tinha desmaios, crises e estados próximos da catalepsia. Tal qual as primeiras, Emma falava através dos sintomas no corpo. As características da personagem de Flaubert em muito coadunam com o funcionamento histérico, cujas características fundamentais são a queixa e a tendência a desvalorizar o outro. Madame Bovary se queixava o tempo todo da sua condição financeira e dos defeitos de seus pares românticos, entrando em crise toda vez que o real lhe impunha um corte, obrigando-a sair da posição imaginária que ocupava tentando parecer-se com as heroínas dos romances que lia.
Na demanda da histérica, tal qual na personagem, o amor nunca é suficiente para preencher a falta, o que faz com que ela derrote desde o início todos os que se propõe a ocupar esse lugar em sua vida. Dessa forma, os parceiros de Emma possuem uma incapacidade estrutural em responder a sua demanda, que é infinita. Emma possuía tanta voracidade no amor e em receber provas deste, que fez com que os amantes se afastassem dela antes que fossem tragados por suas exigências. Para Nobre (2013), o excesso de idealização e exigência depositada no outro levou a cabo os casos amorosos de Emma.
A exigência de Emma era tamanha que Scotti (2003) interpreta que a personagem não foi nem sequer capaz de aceitar o perdão de Charles, pois isto representaria uma “vitória da pequenez, da mediocridade, do comum. Seria a vitória da castração dos sonhos de grandeza, de beleza e felicidade que [Emma] perseguia em suas fantasias, inspiradas pelos romances que lera na juventude”. (Scotti, 2003)
Há um momento na história de Emma, muito tempo após seu casamento, em que ela se enche de esperança de que possa transformar Charles no homem que vai preencher sua falta. Emma (Scotti, 2003), com a ajuda do farmacêutico da cidade, tenta fazer o homem que ela necessita amar: convence o marido a realizar uma cirurgia experimental, que poderia torná-lo rico e um homem de prestígio. Evocando Lacan, Sérgio Scotti (2003) diz que a histérica cria o homem que lhe falta para fazê-la mulher, o que a coloca em uma posição de identificação com ele. Por essa razão Scotti destaca a necessidade de compreender a histérica a partir do desejo masculino.
Emma Bovary é um ser completamente devotado ao outro, desde que este seja exatamente como em seus sonhos e se proponha a tamponar a sua falta. Como isso é impossível, Emma está sempre às voltas com a tarefa de encontrar um personagem (ainda que em seus sonhos) que possa ocupar esse lugar: o lugar da falta.
Madame Bovary (Agra, 2015) elege como discurso a literatura romanesca que, no entanto, se revela insuficiente para dar suporte a sua existência – a sua própria falta. Tampouco Ema conseguiu se “encontrar” no discurso social da época, com o qual não se identificava, bem como com o papel de mãe. A ela faltou o encontro com um discurso (significante) que a representasse, auxiliando na constituição de sua identidade e subjetividade. Pode-se pensar que, ao final e a cabo, foi apenas no discurso da morte que a personagem encontrou, finalmente, a completude que buscava.
Ao criar Emma, uma personagem feminina cheia de conflitos que retratam os costumes burgueses do século XIX, Flaubert provavelmente não sabia que descrevia de maneira tão fiel o quadro da histeria. A história de Madame Bovary representa de forma brilhante o lugar ocupado pela sintomatologia histérica e pela queixa no discurso histérico. Da mesma forma, a obra trouxe à tona uma questão existencial para todos os seres humanos, que é o conflito com o próprio desejo. Situando a personagem principal dentro de um quadro de adoecimento, o romance mostrou a dimensão que pode tomar a angústia do sujeito frente à própria falta.
Madame Bovary cumpre um papel essencial em denunciar um lado humano que a grande maioria das pessoas tenta negar. Se ela contesta os costumes de uma época, se trata do desejo feminino e da falta, se mostra o que todos ainda hoje tentam esconder, ela é então uma obra clássica e de cunho subversivo.
Para Perrone-Moysés (2006), esse é exatamente o papel da literatura: ampliar o conhecimento sobre o real, por um processo que consiste em destruí-lo e reconstruí-lo. A autora defende que a literatura se origina na vivência da falta e na aspiração à completude, o que fica bem representado na própria personagem Emma.
A literatura é extremamente humana, pois não só representa os conflitos e dramas através dos personagens que são criados, como também possibilita ao leitor que entre em contato com esse lado humano: com a própria falta, com suas próprias significações sobre o mundo. Afinal, como lembra Perrone-Moysés (2006): “O mundo deixa a desejar, as palavras estão sempre em falta; a literatura o diz, insistente e plenamente”.
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** Orientador de Mestrado: Ivo José Dittrich 2015ijdittrich@gmail.com
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