Tiago Lins de Lima*
Josué da Costa Silva**
Universidade Federal de Rondônia, Brasil
tiago.lins@ifro.edu.brRESUMO: O trabalho tem por escopo analisar as relações entre Geografia e Música, com o suporte dos métodos fenomenológico, da história oral de vida e da semiótica musical, considerando as experiências construídas com base no projeto “Lugar e Memória: uma análise das composições de Ernesto Melo e a Fina Flor do Samba”, em desenvolvimento no Mestrado em Geografia da Universidade Federal de Rondônia. Ernesto Melo e a Fina Flor do Samba é um grupo musical conhecido da cena urbana de Porto Velho/RO, que possui obra própria extensa e marcada pelo gênero samba, além de atuar como intérprete dos principais sambistas nacionais.
Palavras-Chaves: Geografia – lugar – memória – samba – semiótica.
GEOGRAPHY AND MUSIC: SAMBA INTRODUCTORY NOTES ON PORTO VELHO - RO
ABSTRACT: This research focus on the analysis of the connections between Geography and Music, with the support of the phenomenological method, life oral history and music semiotics, considering the experiences that were built based on the project "Lugar e Memória: uma análise das composições de Ernesto Melo e a Fina Flor do Samba" ("Place and Memory: an analysis of Ernesto Melo and Fina Flor do Samba's compositions"). This project is being developed in the Master's Course in Geography in the Federal University of Rondônia. Ernesto Melo and Fina Flor do Samba is a music band well known in the urban zone of Porto Velho/RO. It has its own large line-up which is marked by the samba genre, besides acting as an interpreter of the main national samba composers.
Key words: Geography – place – memory – samba – semiotics
GEOGRAFÍA Y MÚSICA: NOTAS INTRODUCTORIAS DEL SAMBA EN PORTO VELHO - RO
El trabajo tiene por objeto analizar las relaciones entre Geografía y Música, con el soporte de los métodos fenomenológico, de la historia oral de vida y de la semiótica musical, considerando las experiencias construidas con base en el proyecto "Lugar y Memoria: un análisis de las composiciones de Ernesto Melo Y la Fina Flor del Samba ", en desarrollo en el Máster en Geografía de la Universidad Federal de Rondônia. Ernesto Melo y la Fina Flor del Samba es un grupo musical conocido de la escena urbana de Porto Velho / RO, que posee una obra propia extensa y marcada por el género samba, además de actuar como intérprete de los principales sambistas nacionales.
Palabras claves: geografia – lugar – Memoria – samba – semiótica.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Tiago Lins de Lima y Josué da Costa Silva (2017): “Geografia e música: notas introdutórias do Samba em Porto Velho - RO”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (julio-septiembre 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2017/03/samba-portovelho.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1703samba-portovelho
INTRODUÇÃO
A Geografia da música, segundo Panitz (2012), iniciou com Ratzel e Frobenius, que ainda no século XIX desenvolveram estudos geográficos acerca das similaridades de artefatos da cultura material da África Ocidental e da Melanésia. Esses estudos possibilitaram o desenvolvimento da noção de Círculos Culturais (Kulturkreis), conceito etnológico que se referiu, inicialmente, à difusão espacial de instrumentos musicais, evidenciando as influências de determinadas etnias sobre outras dispersas por espaços contíguos ou distantes.
Se pensarmos o samba elaborado no Brasil a partir da noção de Círculos Culturais, podemos imaginar que, a partir do litoral, essa cultura musical se expandiu em círculos diversos pelo território brasileiro.
Sgarioni (2007) faz relevantes observações sobre o samba, ao destacar um precedente de contribuição dos indígenas do nordeste que dançavam o ‘semba’ em situações de celebração. Em certo momento houve o contato com os negros que inseriram o ritmo através das palmas, danças e instrumentos de percussão como atabaque, cuíca e bongo. Apesar da reconhecida contribuição dos negros para o gênero samba, para a autora, este deve ser reconhecido além da definição de um gênero musical, mas como um “caldeirão de cultura” que traduz a miscigenação brasileira.
Embora presente em todo o território nacional e reconhecido como patrimônio cultural brasileiro (IPHAN, 2007), somente após as primeiras décadas do século XX, especialmente os anos 1930, o samba passou a ser reconhecido como elemento relevante da cultura brasileira e utilizado para a construção da brasilidade. Durante a Ditadura do Estado Novo (1937-1945), o samba era nosso principal produto de exportação cultural, tendo Carmen Miranda como seu grande ícone.
Atualmente, apesar de ter sido registrado como patrimônio cultural brasileiro, o samba sofre com a carência de políticas públicas específicas para o setor e essa ausência do Estado é sentida de modo dramático em Porto Velho, onde o grupo Ernesto Melo e a Fina Flor do Samba tenta, por meio da música, reverter o caráter segregacionista que foi dado a certos espaços públicos de Porto Velho, espaços hoje tomados por interesses privados, que tolhem a liberdade de uso por parte dos moradores mais idosos, como os integrantes do próprio grupo em análise.
Tal estudo, desenvolvido na esteira da Geografia Cultural, corresponde a um movimento crescente no pensamento geográfico brasileiro que, após o fim da ditadura militar, viu-se em condições favoráveis para investigar os diversos temas e problemas que perpassam o espaço social do Brasil. A cultura, como objeto de análise, e em particular a música, implica em uma escolha teórica e política com a pesquisa de temas e atores negligenciados, pouco valorizados pela Academia e pelo Poder Público. Trata-se, ainda, de uma escolha que não deslegitima os demais temas e problemas tradicionalmente explorados pela Geografia, mas expressa o desejo de ampliação de objetos e renovação metodológica, contribuindo, dessa forma, para o avanço do conhecimento científico, traçado a partir de fontes culturais diversas, em especial as perpassadas pela oralidade.
Este trabalho tem como objetivo apresentar as análises iniciais elaboradas acerca da relação entre lugar e memória, com base na musicografia de Ernesto Melo e a Fina Flor do Samba, tecendoconsiderações sobre a relação música e geografia, evidenciando sua viabilidade para os estudos geográficos sobre cultura.
Os objetivos específicos aos quais perseguimos são: mapear os lugares cantados por Ernesto Melo e a Fina Flor do Samba, referentes a Porto Velho; Verificar, por meio de entrevistas, se a música é interpretada pelos artistas como forma de construção de lugares da memória ou luta pela manutenção/restauração desses espaços; Promover estudo sobre memória individual e coletiva e sua relação com o espaço vivido.
A pesquisa opera com a análise da musicografia e entrevistas, de história oral de vida que favorecem a compreensão da obra musical do grupo. Nestas eles expressam uma cartografia dos lugares vividos e cantados e ao articular presente e passado, comentam as transformações espaciais da cidade ao longo do tempo, expressando críticas, nostalgia e valorações. Estima-se construir um painel sobre a geografia do samba em Porto Velho/RO e colaborar para uma poética da cidade, a partir da semiótica musical.
O corpus documental é constituído (1) pela musicografia do grupo, da qual selecionamos 11 canções de autoria própria, que abordam a questão da memória, do lugar e das transformações do espaço urbano de Porto Velho e (2) pelas histórias de vida dos integrantes da banda, registradas por meio de entrevistas de História Oral.
A categoria de análise geográfica adotada para este estudo é a categoria de “lugar”, presente desde os primórdios da Geografia. Essa categoria ganhou um caráter singular com Tuan (2012) que, em seus estudos, trouxe à baila a discussão acerca do conceito de topofilia, como sendo a ligação, o sentimento afetivo que o sujeito sente em relação a um lugar. Discussões como a apresentada por Tuan impulsionaram geógrafos a navegarem nos rios das teorias e métodos filosóficos, no campo da fenomenologia.
O acesso à musicografia do grupo se deu através da aquisição do CD junto ao próprio Ernesto Melo, contendo suas composições mais conhecidas, além das letras dessas e de outras composições. Outras canções, que não constam em mídia, foram conhecidas quando da observação em campo, sendo relevante destacar que nesse processo surgiram também canções até então inéditas.
1.1 A fenomenologia
O estudo está sendo desenvolvido com o suporte do método Fenomenológico (HUSSERL, 1990, BONOMI, 2009) e os recursos e procedimentos da Moderna História Oral (MEIHY, 2005).
O método fenomenológico busca analisar o fenômeno da forma como ele se apresenta, evitando a produção de um conhecimento apartado da experiência. O pensamento de Bachelard (s/d), introduz a preocupação sobreaconstrução do pensamento filosófico da forma racionalista da ciência contemporânea, propõe romper com a prática e estudar problemas colocados pela imaginação poética. Para ele, “o esforço em apenas interligar e construir pensamentos é ineficaz, sendo necessário presenciar a imagem no minuto da imagem, pois havendo uma filosofia poética, esta deve nascer e renascer no momento em que surgir um verso dominante” (BACHELARD, op.cit, p.5).
O método fenomenológicoprocura apartar as definições apriorísticas acerca do ser humano, sendo essa ação para Bonomi sem conotação ontológica,
[...] mas se propõe imediatamente como uma simulação metodológica, com a condição de se entender, por esta expressão não apenas a simples purificação do que se revelaria prejudicial para a própria investigação (isto é, apenas um momento, poderíamos dizer óbvio, da redução: uma atitude implícita em todo conhecimento científico, ou mesmo natural, sempre que se tratar de isolar um certo âmbito de pesquisa, de recusar certas teorias, etc., tendo em vista precisamente aquele interesse particular), mas mais precisamente a constituição da gênese constitutiva das objetividades investigadas (BONOMI, 2009, p. 25).
O método fenomenológico vai de encontro com o fazer ciência baseado apenas em definições expostas nas prateleiras no conhecimento vigente, colide com as limitações do empirismo e a falta de criticidade e reflexão, ao acatar certos pontos de um estudo como estáticos, verdades incontestes. Husserl (1990) orienta para observações sem a pressão de fabricar uma verdade positivista que, como uma peça de um quebra-cabeça, substitua a antecessora danificada.
Heidegger (2012) endossa esse sistema de pensamento ao propor uma desconstrução crítica dos conceitos tradicionais, com vistas a favorecer o processo criativo:
Uma desconstrução crítica dos conceitos tradicionais que precisam ser de início necessariamente empregados, com vistas às fontes das quais eles são hauridos. É só por meio da destruição que a ontologia pode se segurar plenamente de maneira fenomenológica da autenticidade de seus conceitos (HEIDEGGER, 2012, p. 39).
O exercício fenomenológico desenvolvido no presente estudo consiste na oitiva das canções, no registro das entrevistas, em tom dialógico e descontraído, e no acompanhamento do grupo musical em seus shows. Buscamos, acima de tudo, ouvir a música e apreciar as performances, apartando as ideias pré-concebidas, as rotulações e expectativas pessoais e acadêmicas.
1.2 A História Oral de Vida
A utilização da história oral como ferramenta, foi desenvolvida na modalidade “história oral de vida” de (MEIHY, 2005),como captadoradas experiências de vida dos integrantes do grupo musical, e em segundo lugar, como meio de acesso a informações específicas, capazes de elucidar pontos nebulosos da obra dos artistas, e de orientar para o entendimento da memória, da identidade e do mundo vivido.
As histórias de vida dos músicos foram registradas a partir de entrevistas filmadas e gravadas em gravador digital, mediante observância dos passos orientados por Meihy (2005), a saber: pré-entrevista (agendamento e esclarecimentos acerca do projeto), entrevista, transcrição, textualização e conferência. As histórias de vida registradas revelaram-se material rico em informações sobre a memória, os lugares, as experiências e as transformações observadas pelos entrevistados em relação ao espaço urbano de Porto Velho.
Os documentos foram analisados e os pontos mais sobressalentes de cada um foram anotados com vistas a serem trabalhados nas análises.As análises vêm sendo procedidas com base em Cassirer (1994) e na teoria da Semiótica musical de Tatit(2001, 2010) e Tatit e Lopes (2008). A semiótica musical é campo de análise que possibilita o estudo do caráter representativo dos signos e suas manifestações como índice, ícone ou símbolo.
1.3 Linguagem, Sinais e Símbolo
O pensamento de Cassirer (1994) fortalece a estrutura metodológica do trabalho na medida em que discute o processo de desenvolvimento da linguagem humana, considerando as principais teorias concernentes à fala e à gramática. Para o autor, essa filosofia da linguagem implica em reconhecer, primeiramente, que a Língua é processo que se desenvolve em tempo e espaço, apresentando-se, portanto, de forma diferenciada conforme a cultura de cada grupo, e em segundo lugar, que opera com uma estrutura simbólica de ampla aderência mediante sinais e símbolos. Estes, segundo o autor,
Pertencem a dois universos bem diferentes de discurso: um sinal faz parte do mundo físico do ser; um símbolo faz parte do mundo humano do significado. Os sinais são operadores e os símbolos são designadores. Os sinais mesmo quando entendidos e usados como tais têm mesmo assim uma espécie de ser físico e substancial; os símbolos têm apenas um valor funcional (CASSIRER, 1994, p. 58).
O estudo deixa patente a importância dos sistemas simbólicos para a compreensão das complexidades culturais. A imersão nesses sistemas é um passo elementar para maior clareza em relação aos objetos e para a construção de relações menos verticalizadas, dispostas a conhecer e se reconhecer no outro.
1.4 A Semiótica Musical
Nesse sentido, considera-se a semiótica musical um recurso pertinente e adequado para o estudo da linguagem expressa e que perpassa a obra de Ernesto Melo e a Fina Flor do Samba. O samba é a linguagem predominante desse grupo, e como tal, consideramos a letra e a melodia, a palavra e a entonação, que ganha reforço com os instrumentos utilizados.
Para Tatit (2010), a musicalização da semiótica representa um reingresso do tempo na epistemologia contemporânea.O estudo da semiótica musical produzido peloautoré o que se mostrou mais adequado ao tipo de análise que propomos realizar.
Na obra “Musicando a Semiótica”,Tatit (2010) elenca os elementos para análise da canção popular, tratando da apreensão empírica do ouvinte; a atuação da fala na canção e melodia e letra. Para o autor, esses elementos, analisados de modo conjunto e interdependente, concorrem para a compreensão global de uma “gramática melódica” quepossibilita, por exemplo, a identificação de gêneros musicais, estilo e mesmo de gestos personalistas no interior da canção.
Em Análise Semiótica Através das Letras, Tatit (2001) define o olhar semiótico como aquele que:
[...] detecta, detrás das grandezas expressas no texto, valores de ordem actancial, modal, aspectual, espacial, temporal, numa palavra, valores de ordem tensiva, mantendo – ou esboçando – entre si interações sintáxicas. Essas grandezas constituem um micro universo semântico, uma espécie de ponto de partida para as descrições, cujo objetivo último é a revelação de uma forma semiótica [...] imanente ao texto ou, se preferirmos, a exposição das operações conceituais que atuam implicitamente no instante de sua compreensão (TATIT, 2001, p. 15).
Entende-se, com isso, que o significado que atribuímos a um texto (letra de música), não é algo que se faça de modo simples e direto, como se dele emanasse o resultado de um “sistema complexo de funções sintáxicas que sustenta esses efeitos de sentido terminais” (TATIT 2001, p. 15). A complexidade desse tipo de análise reside, sobretudo, no fato de que mesmo que nos limitemos ao núcleo mínimo de identificação de uma canção (a letra cantada e a melodia), esses elementos melódicos e linguísticos podem sugerir informações variadas ao ouvinte/intérprete (TATIT; LOPES, 2008). Trata-se, portanto, de um método que se pauta no rigor e na sistematicidade, sem abdicar da subjetividade na interpretação dos conteúdos.
2 Resultados e Discussão
A obra do grupo despertou nosso interesse de pesquisa em função de suas características estéticas, em especial por compor uma poética do lugar. O grupo, formado em sua maioria por idosos ou músicos “mais experientes”, registra por meio de seu samba memórias afetivas de lugares que, ao longo do tempo, foram vivenciados em Porto Velho e Rondônia. Lugares nos quais os integrantes do grupo se formaram ou viveram experiências importantes, a ponto de serem recriados pela memória e expressas musicalmente. Estima-se que essas canções sejam monumentos à memória de tempos passados, nas quais se exaltam lugares de memória que apontam para a insustentabilidade do passado, a descontinuidade, o esfacelamento da memória, mas ainda com força para materializá-lo (NORA, 1993). Também uma estratégia subjetiva de dar permanência e valorizar experiências significativas.
Esses lugares exaltados e essas experiências vocalizadas, ritmadas, poetizadas constituem um corpus documental valioso para o estudo das transformações espaciais de Porto Velho e Rondônia, nas suas últimas décadas. A musicografia favorece, sobretudo, a compreensão histórica de acontecimentos do cotidiano de Porto Velho nos idos de 1960 a 2000 e de fatos da vida política das várias escalas que incidiram - frequentemente de modo interpretado como negativo – sobre esses lugares, transformando-os de modo irreversível e causando desconforto nos que testemunharam essas transformações.
Ponto de destaque é que a obra revela como espaços públicos foram apropriados de modo subjetivo, passando a ser valorizados de modo especial. Nela, praças, bares, bairros e ruas ganham contornos enlevados de emoção, aos quais se sobrepõem uma crítica contemporânea ao descaso do poder público frente a eles e as interdições que este faz em relação a seus usos sociais. Emblemática e recorrente é a exploração do tema do Mercado Central, hoje conhecido como Mercado Cultural, espaço de apresentações culturais. Esse lugar marcou a história de vida de Ernesto Melo e outros integrantes do grupo, assim como a de seus antepassados, que já participavam de rodas de samba nas suas calçadas. Novos usos sociais e políticos, assim como transformações arquitetônicas têm limitado e mesmo interditado, em alguns momentos, a participação do grupo musical nele. Paradoxalmente, esse é um espaço público, que deveria estar aberto a todos, mas que em certos momentos dificulta a acolhida de um dos seus grupos mais assíduos e renomados e que dispõem de verdadeiras odes em relação a ele.
O samba de Ernesto Melo e a Fina Flor do Samba é biográfico, e ao mesmo tempo, um monumento à memória de tempos em que eram tratados com o mínimo de deferência e respeito, acolhidos no espaço urbano com a beleza de suas experiências e de sua arte. Samba de resistência. Embora de perfil biográfico, essas composições retratam experiências coletivas, como pode ser exemplificado nas análises esboçadas a seguir.
3.1 Análise da música “Mercado Central, o Clipe”
Mercado Central, o Clipe
(Ernesto Melo, baião em Bm)
Ontem passando à toa no Bar do Zizi
Como se fosse um filme do velho mercado
vi a Casa Colombo
como se eu viesse do Mourão & Irmãos
do Mário alfaiate, do Saleh Morheb
depois do Bichara pela contra-mão (sic)
Vi o Ponto Caçula
do Pedro Pacheco, depois o João,
O Velho Curica, a Maria suja,
Molhei a palavra no Bar do Simão;
Como é bom ver o tempo da boemia
Passo na barbearia do velho Firmino,
Normando e Oziel,
Zé alfaiate, Wilson da “A motorista”,
quase que eu perco de vista
o Pão do Raposo e o bar do Manel.
Onde era o cabo?
– lá no Mercado Central!
e o Zé Camacho ?
– lá no Mercado Central!
Passando por fora pegava a saltenha
do Bar Bacurau;
Onde era o Degas?
– lá no Mercado Central!
E o Tufic Matny ?
– em frente ao Mercado Central!
Mas veio o fogo e foi queimando tudo ali
Veio a ganância e fez um prédio grande ali
Não ligou prá ninguém, não perguntou prá ninguém.
Nem quis saber da história (bis)
o valor da memória que o mercado tem
Foi derrubando um bar aqui e outro ali
Mas a história do povo renasce de novo
No bar do Zizi (bis)
A composição retoma um acontecimento da história da cidade, o incêndio que destruiu o Mercado Central: (“Mas veio o fogo e foi queimando tudo ali”), antigo ponto de comércio popular e encontro da boemia local. O incêndio, até hoje não esclarecido, ocorreu em 1964, logo após a chegada dos militares ao poder (tanto no governo federal quanto no municipal). Critica ainda a perda de área para empresários da cidade, que, movidos por interesses privados teriam se apropriado de parte de um espaço que, em sua concepção, deveria ser público (“Veio a ganância e fez um prédio grande ali”), desconsiderando o valor histórico do referido espaço para a população local.
O tema do Mercado Central também aparece na entrevista gravada com Ernesto Melo, sobre o qual esclarece:
Sobre o Mercado Cultural, que era o Mercado Municipal e que eu canto como Mercado Central na minha canção - foi inaugurado em 1950 e pegou fogo em 1964. Presenciei esse incêndio e só há cinco anos que nos deram esse novo prédio. Até então ele ficou com tapumes, porque a família Tourinho estava em litígio, tanto que eles pegaram a parte de trás, o edifício atrás do Mercado Cultural. Todo aquele quadrado era o Mercado Municipal que eu chamo de Mercado Central... (Ernesto Melo, entrevista concedida a Tiago Lins de Lima, 2015).
O Mercado Central aparece na canção como lugar que catalisa memórias acerca de pessoas conhecidas, com quem o compositor teve a oportunidade de conviver. Ao cantar e narrar sobre esse espaço de uso genuinamente público, constrói uma atmosfera de cores, sons, sabores e odores que alimentam a nostalgia e a criação musical.
O pão do Raposo, a salteña do Bar do Bacurau e a cachaça do Bar do Simão, consumida para “molhar a palavra” animavam um cotidiano popular, alegre, boêmio e funcional. É a cidade apresentada em sua forma mais vívida e democrática.
Embora os processos geográficos desenrolados em Porto Velho durante a Ditadura Militar tenham ocasionado radical transformação na paisagem urbana, tornando estranhos espaços antes apreciados como lugares, e apagando marcas da cultura que a precedeu, a reconstrução do bar do Zizi, no novo prédio do Mercado, é assinalada como símbolo de resistência popular e de renascimento dessa história pública, que está nas ruas, bares, praças e mercados (“Mas a história do povo renasce de novo no Bar o Zizi”).
Ao analisar melodia e letra, constatamos que: (1) a entonação em ritmo mais lento, compassado, sugere uma narrativa prosaica, cotidiana, como de quem se lembra de algo quando passeava tranquilamente por dado caminho; (2) uma integração baseada num processo geral de celebração (celebra-se o passado da cidade, simbolizado pelo Mercado Central), a partir da qual se desdobram referências sobre pessoas comuns e o comércio diversificado, mas de perfil próximo ao cliente, no qual compradores e vendedores se conheciam pelo nome e tinham, supostamente alguma relação de confiança que transcende à lógica do capital; (3) uma integração baseada no restabelecimento de antigos elos perdidos: o bar do Zizi como elo que possibilita a conexão entre presente e passado, a retomada da vida boêmia e, mais do que isso, a reconstrução de um tipo de experiência históricaque foi interditada pelos militares e pela aristocracia local – coincidentemente os redatores da história oficial nesta cidade. O renascer dessa história torna-se estribilho, é cantado com força, significando a resistência da cultura popular.
O movimento da memória expresso na composição sugere um videoclipe que se passa na mente do compositor. Nesse videoclipe mental o Bar do Zizi é o lugar de memória que possibilita o desdobramento para o passado, que é um reencontro do compositor com a história e a geografia de sua cidade.
3.2 Análise da música “Porto Velho”
Porto Velho, meu dengo
desde que eu me entendo,
tu és o meu caso de amor,
o teu céu, o teu sol, o teu ar, teu perfume,
tuas meninas em flor,
O teu verde
é o mais verde dos verdes,
Teu luar,
o mais belo luar,
Quando se faz serenata
tua lua de prata
é um convite pra amar.
Teu rio, o belo Madeira,
me traz o alimento na palma da mão,
Tuas matas guardando tuas caças
que alimentou a minha geração,
Teu solo, teu rico minério,
A tua fartura, teus frutos, teus grãos,
por isso meu peito te encerra
Eu amo esta terra
com toda paixão,
Se eu for cantar Porto Velho,
te juro meu velho
não paro hoje não.
A música expressa uma relação de topofilia, apego sentimental ao lugar (“Porto Velho meu dengo [...] tu és o meu caso de amor”), onde a cidade e todos os seus atributos, como o céu, o sol, o ar, o rio compõe um cenário de grande harmonia que possibilita uma vida feliz ao seu habitante-poeta.
A performance é composta por uma declamação da letra da música, acompanhada, por um único instrumento, o violão. Após esse primeiro momento um conjunto de instrumentos (violão, cavaquinho, pandeiro, saxofone, rebolo, tamtam, banjo, reco-reco) introduz o ritmo do samba, no qual a música “Porto Velho” será apresentada.
A música, em tom ufanista é um elogio à cidade de Porto Velho, capital do estado de Rondônia. É exaltado seu principal rio, “o velho Madeira”, que devido a grande quantidade de peixes, pode em um passado não muito distante alimentar muitos de seus habitantes, sejam os residentes do espaço urbano, sejam os ribeirinhos. A ideia de fartura e de uma terra generosa, provedora de todos os recursos é reafirmada na canção, na terceira estrofe: “Teu rio, o belo Madeira, me traz o alimento na palma da mão/Tuas matas guardando tuas caçasque alimentou a minha geração/Teu solo, teu rico minério/A tua fartura, teus frutos, teus grãos [...]”.
Enquanto na primeira estrofe são apresentados elementos paisagísticos de valor estético e sentimental, na terceira aparecem elementos de valor utilitário, como os alimentos e os minérios (estanho e ouro), que foram importantes elementos da economia local, especialmente até o final da década de 1980. A mineração funcionou como atrativo de migrantes das mais diversas partes do Brasil e de imigrantes de países vizinhos, como a Bolívia e o Peru.
A primeira e a segunda estrofe ao destacarem elementos naturais, concorrem para a composição de uma paisagem sonora de Porto Velho, em tudo romântica: o ar é perfumado, a lua que ilumina as serenatas é convite para amar, o frescor jovial de seu verde combina com suas meninas a desabrochar, belas como flores.
A música “Porto Velho”, ao expressar-se nesse tom ufanista funciona em seus receptores como uma espécie de hino da cidade, sendo a mais pedida nos shows de Ernesto Melo e a Fina Flor do Samba. O compositor sugere, em sua entrevista, que essa foi a composição mais rápida que elaborou, como se letra e melodia tivessem vindo juntas, e explica que isso é uma exceção. Suas composições, em geral, demandam muito trabalho e dedicação.
O meu primo Mávilo Melo faz composições duma leva só, duas músicas, três músicas e eu não consigo fazer isso. Eu levo uma semana, levo uns quinze dias para fazer uma composição, há apenas uma música que fiz de uma só vez, só mudei uma palavra depois. Eu fui levar uma neta no médico pediatra, no Hospital Regina Pacis, e enquanto minha esposa subia ao consultório com minha neta, eu fiquei em baixo, e ai surgiu “Porto Velho, meu dengo”, a única palavra que eu mudei é onde eu encerro, que falo Porto Velho: ‘se eu for cantar Porto Velho, te juro meu velho não paro hoje não’. Era assim: “se eu for cantar Porto Velho, que é o meu evangelho, não paro hoje não”. Só tirei “o evangelho” e botei o “meu velho”. Foi a única música que saiu de uma vez, já o resto, eu tenho que suar atrás delas. (Ernesto Melo, entrevista concedida a Tiago Lins de Lima, 2015).
O que quer que tenha acontecido, a população de Porto Velho foi brindada com essa linda música, que é hoje seu “hino”, equivalente a “Trem das Onze”, para paulistanos.
Do ponto de vista semiótico, notamos na referida canção um PN – Programa Narrativo que articula os níveis temporal (anterioridade) e espacial (horizontalidades), em que elementos geográficos naturais e construídos se articulam na composição do lugar. Há um observador actante, expresso em primeira pessoa: “Desde que me entendo” e “Se eu for cantar Porto Velho”, e um sujeito actante em terceira Pessoa (Porto Velho, que fornece recursos para prover a vida física e simbólica de seus habitantes).
A instauração do enunciador (actante-observador) por meio de debreagem enunciativa funciona não apenas como um fio condutor que põe em processo as transformações dos PNs, mas também como elemento de integração entre o texto e uma determinada axiologia subjacente (TATIT, 2001, p. 63).
Analisando melodia e letra da música Porto Velho com base na semiótica musical de Tatit (2008), constatamos que: (1) a música possui duas entonações: inicia com uma entonação em ritmo lento, com voz e violão 7 cordas, em que ela é declamada por inteiro, uma vez, em seguida surge em um novo momento, ritmada pela introdução completa dos demais instrumentos e a mudança da entonação do intérprete, introduzindo um samba mais alegre, um samba de raiz como gosta de definir; (2) uma integração baseada num processo geral de celebração das riquezas naturais do município: rios, florestas, caças, solo, minérios, sem esquecer da riqueza produzida pelo trabalho humano: a agricultura (“teus frutos, teus grãos”) e da beleza social presente no lugar, destacada pelo compositor ao aludir à beleza feminina e jovem (“tuas meninas em flor”).
O exercício analítico das músicas “Mercado Central” e “Porto Velho” possibilitou-nos compreender que elas são produtos culturais ricos em significados sociais e capazes de fomentar reflexões pertinentes à seara da Geografia. As insurgências de letra e melodia perfazem um corpus documental ativo, que expressa tensão entre a memória, a nostalgia e o desejo de uma cidade mais acolhedora, revelando, deste modo, complexo e desafiador embate político.
O significado social do grupo musical “Ernesto Melo e a Fina Flor do samba” e de sua obra, em geral, aponta para uma Geografia viva, em que pessoas, lugares e tempos variados se cruzam, se penetram, ou ao contrário, se repelem, revelando a insustentável leveza da vida nessa cidade amazônica. Faz-nos pensar em como a retórica da ordem e do progresso investiram contra as formas materiais e simbólicas da cultura popular e em como, apesar da destruição desses referentes, permanece a topofilia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ernesto Melo e a Fina Flor do Samba apresentam-se como grupo musical maduro, que articula de maneira sofisticada e magistral o popular e o erudito, a letra e a melodia, o ritmo e a harmonia na edificação, metaforicamente falando, de “lugares da memória” (NORA, 1993). Sua obra é essencialmente memorialista e expressa os lugares vividos no espaço urbano de Porto Velho, uma Porto Velho que tem passado por intensos processos de modificação de suas formas e relações humanas, modificações essas que são percebidas e avaliadas pelo grupo, tanto em sua musicografia quanto nas entrevistas de história oral de vida que nos concederam.
O diálogo com o grupo e a análise de sua obra, ainda que em fase inicial, já se revelam pertinentes para um conhecimento sensível acerca do mundo vivido e de suas interpretações geográficas sobre as dinâmicas urbanas. Essa perspectiva desde a fenomenologia pode contribuir para a ampliação do conhecimento geográfico e incentivar novas oportunidades de pesquisa, considerando temas e problemas na maioria das vezes marginais na seara da Geografia.
O estudo deixa como contribuição a informação de que a música, e em particular o samba pode ser fonte para o estudo de Geografia – seja no que diz respeito à difusão geográfica desse gênero musical, seja na capacidade que possui de expressar uma leitura geográfica do mundo ou dos vários mundos vividos; as memórias, os sonhos, os ideais de cidade, as representações de lugar, dentre outros elementos.
Como se trata ainda de estudo em fase intermediária, os autores reconhecem a necessidade de ampliar as análises – o que será feito para a conclusão do Mestrado, e recomendam ao leitor o prosseguimento de leituras e investigações geográficas a partir de elementos da cultura brasileira, como forma de ampliar o diálogo entre esse campo do conhecimento e o saber e as práticas populares.
REFERÊNCIAS
BACHELARD, G. (s/d): A poética do espaço. Eldorado, Rio de Janeiro.
BONOMI, A. (2009): Fenomenologia e estruturalismo. Perspectiva, São Paulo.
CASSIRER, E. (1994): Ensaio sobre o homem. Martins Fontes, São Paulo.
COURTÉS, J.; GREIMAS, A. J. (2008): Dicionário de semiótica. Contexto, São Paulo.
HEIDEGGER, M. (2012): Os Problemas Fundamentais da Fenomenologia. Vozes, Petrópolis.
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** Doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo. Professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Geografia PPGG/UNIR. Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas Modos de Vidas e Culturas Amazônicas – GEPCULTURA/UNIR. E-mail: jcosta1709@gmail.com.
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