Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


A BARRAGEM NÃO SERVE PARA NÓS”: O INCONFORMISMO DOS VAZANTEIROS PESCADORES COM AS INDENIZAÇÕES NA REGIÃO DO MÉDIO RIO TOCANTINS

Autores e infomación del artículo

Vonínio Brito de Castro *

Flávio Bezerra Barros **

Universidade Federal do Pará - UFPA

flaviobb@ufpa.br

RESUMO                         
Neste estudo buscou-se analisar, a partir da retórica dos vazanteiros-pescadores, o modo como o Consórcio Estreito Energia (CESTE) tem procedido as compensações, mais especificamente, as indenizações aos bens (casa e vazantes) afetados pelo reservatório e pela Área de Proteção Permanente (APP). Os dados foram coletados desde 2007 sob a orientação da “Observação participante” e entrevistas. Os resultados evidenciam que as estratégias usadas pelo consórcio no procedimento das indenizações só aumentaram o inconformismo e a rejeição local ao empreendimento e, consequentemente, os conflitos socioambientais. Tanto as medições como o inventário e os valores indenizatórios aferidos são alvos de desconfiança e contestação pelos vazanteiros-pescadores que, nesse jogo, não são passivos, reagem por meio de estratégias individuais e coletivas. Enquanto a concessionária tenta desvalorizar e anular a qualidade da terra; convencer o atingido a receber o valor estipulado como indenização, alegando que o processo na justiça embaraça-se por mais de dez anos, não compensando, portanto, esperar seu desfecho; também, profere discursos coercitivos que silenciam o indenizado, os camponeses que, apesar da pouca experiência, reagem às tais imposições. Usam seus instrumentos para remedir a área já medida pelos técnicos; continuam o cultivo dentro da reserva; fazem reivindicações e manifestações públicas; confrontam, de forma verbal, os fiscais que fazem a inspeção ao longo do lago, dentre outros. Os artifícios usados por ambos atores em questão podem ser associados à “resistência simbólica” ou “defecções silenciosas”. Se o setor elétrico busca esgotar as forças locais e esvaziar os significados aferidos aos territórios, em contrapartida, os camponeses tentam driblar o império do opressor e as tentativas do apagamento de sua história e cultura que marcam sua existência enquanto categoria.

Palavras-chave: Barragens, resistência, conflitos socioambientais, Tocantins

“THE DAM IS NOT GOOD FOR US”: THE NONCONFORMITY OF THE VAZANTEIROS PESCADORES WITH THE INDEMNITIES IN THE MEDIUM TOCANTINS RIVER

ABSTRACT
This study has pursued an analysis, from the rhetoric of the Vazanteiros Pescadores (flood plain farmers), the way in which Consórcio Estreito Energia (CESTE) has proceeded with the compensations, more specifically, the indemnities to properties (house and “Vazantes” –flood plain farmland) affected by the reservoir and the APP. Data were collected from 2007 under the guidance of “Participant observation” and interviews. The results show that strategies used by the dam consortium in the indemnity procedure have only increased the nonconformity and the local rejection to the enterprise and, consequently, socioenvironmental conflicts. Not only the Área de Proteção Permanente (APP) measurements, but also the inventory and the indemnified values ​​are targets of mistrust and contestation by the Vazanteiros Pescadores who, in this situation, are not passive, they react through individual and collective strategies. while the dam concessionaire tries to devalue and void the quality of the land; convince the affected people to receive the amount stipulated as indemnity, on the argument that the judicial process may be embarrassed for more than ten years, not compensating, therefore, to wait for its outcome; it also states coercive speeches that can silence who has been indemnified. Despite their little experience, the Vazanteiros Pescadores react to such impositions. These people use their instruments to remedy the area already, measured by technicians; they continue cultivation within the ecological reserve; they make claims and public manifestations; they confront verbally, the inspectors that make the inspection along the reservoir, among others. The artifices used by both actors in question may be associated with "symbolic resistance" or "silent defections." If the electric sector seeks to exhaust the local forces and empty the meanings given to the territories, in contrast, the vazanteiros pescadores try to avoid the empire of the oppressor and attempts to erase its history and culture that mark its existence as a category.
Key words: Dams, resistance, socioenvironmental conflicts, Tocantins.


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Vonínio Brito de Castro y Flávio Bezerra Barros (2017): “A barragem não serve para nós”: o inconformismo dos vazanteiros pescadores com as indenizações na região do Médio Rio Tocantins”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (julio-septiembre 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2017/03/inconformismo-pescadores-tocantins.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1703inconformismo-pescadores-tocantins


  1. INTRODUÇÃO

Que as hidrelétricas se apropriam do meio ambiente de forma utilitarista transformando ela e as pessoas em mercadorias (Carvalho, 2011), gerando prejuízos irreversíveis aos universos ecológico, social e cultural, não é nada novo. O suplicante é que a legislação atual, como as resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, a partir de 1986, a Constituição Nacional de 1988, o Novo Código Florestal e as recomendações do World Commission on Dams, não frearam a continuidade dos danos ambientais e sociais e o descaso aos coletivos humanos alvos desses empreendimentos. Como evidenciado no relato em epígrafe, as perdas materiais e imateriais geradas pela barragem de Estreito – TO/MA aumentam no médio Tocantins, à medida que a concessionária responsável não conclui as compensações por ela devidas. Suas medidas estratégicas planejadas para tal fim têm sido ineficientes denunciando sua incapacidade em solucionar questões sociais envolvendo o reservatório (Filippin, 2012).
Para a aceitação local ao empreendimento, concessionárias se apoiam em discursos repetitivos, tais como, a crescente demanda por energia elétrica; o alto potencial hidráulico disponível no país (EIA/RIMA); idealização do empreendimento face aos benefícios econômicos à população afetada – a valorização das terras, aumento dos recursos pesqueiros, dentre outros– e; o discurso sustentado na necessidade ecológica da implantação da Área de Preservação Permanente – APP.
Tais retóricas situam o reservatório e a APP como dois pontos conflitantes, primeiro, o lago, indispensável no funcionamento das turbinas geradoras de energia elétrica, é justificado por razões de cunho muito mais econômico que social. Segundo, a APP, conforme sentido dado pelo Novo Código Florestal, Art. 3º Inciso II, visa “(...) preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas” (Brasil, Lei 12.651 de 25 de maio de 2012). Essa justificativa, baseando-se no caso aqui analisado, só ratifica, conforme Henri Acselrad (2004) nos ajuda entender, que o discurso ecológico supera o da dimensão social.
A perda das margens do rio para o barramento e para a reserva tem feito muita diferença na produção agrícola local interferindo significativamente no “modo de viver” (Neves, 2009:69) dos vazanteiros pescadores. Além de não poderem continuar o cultivo remoto nas margens do rio, a pesca artesanal ficou comprometida. O mais agravante é somadas às indenizações inconclusas, muitas compensações prometidas pela concessionária, como mostramos ao longo do texto, não se concretizaram.
Como se percebe, a dimensão dos prejuízos proporcionados por barragens, conforme expõe Phillip Fearnside (2015), extrapolam as vantagens fundadas na ideia de um “desenvolvimento” cujos custos e benefícios ainda não estão claramente medidos (Coelho, 1991; Filippin, 2012). O pior é que as consequências do sistema repressivo protagonizado pelo setor elétrico atingem, sobretudo, os coletivos humanos mais vulneráveis, principais alvos das arbitrariedades do setor elétrico. As diversas categorias (vazanteiros, pescadores, vargeiros, ribeirinhos dentre outros), terminam por entregar seus bens sem nada receberem como contrapartida ou mesmo compensação. Esta, Filippin (2012) reitera que é usada quando medidas preventivas e mitigatórias são ignoradas ainda no planejamento de toda a obra.
Vemos que as compensações enquanto substituição, nos termos usados por Sánchez (2006); Roquetti e Moretto (2012), são mais uma compensação ambiental porém, atrelada à materialidade, não ao ponto de vista cultural. No caso aqui analisado, elas são uma grande inverdade e utopia, pois não substituem os bens tomados pelo barramento. As vazantes, por exemplo, são espaços carregados de significados simbólicos, ou como se convencionou a ser chamado por alguns autores, como Arturo Escobar (2005), João Pacheco de Oliveira Filho (1988), Paul Little (2002), dentre outros, de “território”. As vazantes, enquanto espaços de cultivo, são consideradas espaços da família, uma extensão da casa, onde os filhos e os pais se relacionavam entre si e com a terra por meio do cultivo e, consequentemente, da troca de energias e de afetividades. Até o barramento do rio, essas práticas concretizadas nas vazantes faziam parte do modo de viver (Neves, 2009) desse coletivo social.
Como os vazanteiros pescadores, outras categorias–povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, dentre outras – têm sofrido as consequências do barramento no médio Tocantins. Sobre isto, Filippin (2012:33) descreve que, entre 2001 e 2012, os povos tradicionais foram “submetidos a situações de omissões ilegais que lhes causaram prejuízos”. Muitas dessas categorias foram impelidas a entregar suas terras cultiváveis, sem sequer serem indenizados. O abandono de muitas da práxis local e do lugar ocorre face às controvérsias do barramento, poucas informações, receio de sanções, sentimento de desprezo e má expectativas sobre o futuro. Tais atrocidades, interpreta Carlos B. Vainer (2007), são resultados das omissões do poder público no Brasil aos coletivos humanos, alvos dos impactos de empreendimentos hidrelétricos.
Partindo desses pressupostos, o objeto central deste estudo é o modo como o CESTE procedeu as compensações aos vazanteiros pescadores, pelas perdas e danos patrimoniais em consequência da barragem de Estreito – TO/MA, mais especificamente, o processo de avaliação e indenização dos bens e espaços tomados pelo reservatório e pela APP. A obscuridade desses procedimentos para efeito de indenização, ignorando responsabilidades determinadas pela legislação nacional que também corrobora para tanto, justifica este estudo.
Em suma, o nosso escopo é analisar, a partir da retórica dos Vazanteiros pescadores, o modo como o CESTE tem procedido as compensações, mais especificamente, as indenizações aos bens (casa e vazantes) afetados pelo reservatório e pela APP. Parte-se da hipótese de que a forma como as compensações estão sendo procedidas só aumenta o inconformismo local e os conflitos ambientais, como implícito no depoimento em epígrafe.

  1. CONTEXTO GEOPOLÍTICO DA ÁREA DE ESTUDO

Os vazanteiros pescadores supracitados vivem nas margens do rio Tocantins, em áreas pertencentes aos municípios de Palmeirante/TO, à esquerda e, Itapiratins/TO, à direita, microrregião classificada como médio rio Tocantins, dentro do complexo amazônico (ver figura 1). Sob a forma de um ecótono, a região é composta de mata de transição entre características típicas do Cerrado e matas de galeria. A mesma é decorada e banhada pelo rio Tocantins e por muitos igarapés e lagos.

A vegetação nativa do Cerrado (bioma predominante da região), abrangendo os dois municípios é composta por árvores de baixo porte e pouquíssimas áreas de matas pouco densas que ainda existem nos ambientes úmidos, principalmente às margens dos rios Pau Seco, Cajueiro e Santana, todos tributários do rio Tocantins (Castro e Barros, 2015). Até o final da década de 1990, essas terras pertenciam aos vazanteiros pescadores.
À montante dessa região, a barragem Luís Eduardo Magalhães ou Lajeado/TO funciona desde 2001, no entanto, essa mesma região está inserida na Área de Influência Direta – AID do reservatório da barragem de Estreito – TO/MA situada à jusante, na divisa dos Estados do Tocantins e Maranhão e, funcionando desde dezembro de 2010.
Como parte da tese de doutoramento do primeiro autor, evidenciamos neste texto, alguns resultados da pesquisa em andamento através do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará. O estudo envolve 20 famílias que se autodenominam de vazanteiras pescadoras, por praticar a pesca artesanal e a agricultura de vazante como principais fontes de renda na subsistência local. Elas são remanescentes dos primeiros povos não indígenas que se estabeleceram nessa região ainda no século XVIII (Castro e Barros, 2015). Todo o estudo está sendo conduzido por meio da observação participante (Malinowski, 1978) e entrevistas não estruturadas, dentre outras abordagens.

  1. AS CONSEQUÊNCIAS DO BARRAMENTO AOS VAZANTEIROS-PESCADORES

Os dois barramentos supracitados interferiram significativamente na dinâmica do rio, da ictiofauna, consequentemente da práxis e do cotidiano local. A barragem de Lajeado/TO e o controle hidrológico do rio representaram o fim do ciclo da cheia e vazante, fenômeno indispensável para a continuidade da produção agrícola local. As margens do rio deixaram de receber o húmus responsável pela fertilização do solo, onde se cultivava a agricultura necessária para a subsistência local. Posteriormente, em 2010 com a operação da segunda usina esse cultivo foi completamente comprometido, já que a maior parte das planícies baixas foi coberta pela água e a planície alta foi destinada à reserva ambiental.
As alterações se estenderam à pesca artesanal, pois a redução das águas do rio após o primeiro barramento, como previsto no seu EIA (THEMAG/CELTINS, 1996), as variações na quantidade e qualidade das águas à jusante e outros fatores biológicos causaram mortandade de milhares de peixes migratórios, a vulnerabilidade da maioria das espécies atraiu para essa parte do rio, pescadores de vários Estados (Pará, Maranhão, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso, etc.) que tinham como alvo os peixes migratórios. A pressão sobre os recursos pesqueiros aumentou após o reservatório do segundo barramento e, pela migração anual de cardumes de curimatá nos anos seguintes. Para a captura dos cardumes, os pescadores externos usam traias/instrumentos de pesca modernos e barcos de grande porte, incluindo redes de até 1000 metros de comprimento e, caminhões baús que mesmo sem a permissão dos vazanteiros-pescadores, estacionam nas margens do rio, dentro de suas propriedades para armazenamento dos peixes capturados.
Desta forma, o barramento do rio interferiu nas demarcações no território de pesca e em todas as práticas econômicas, sociais e culturais. Isto só reifica o entendimento com base em Acselrad (2004) e Paul Little (2006) de que os conflitos ambientais resultam das disputas dos usos distintos que diversos atores sociais fazem dos recursos naturais. Enquanto o meio ambiente serve de veículo de transmissão dos excessos praticados na exploração da natureza (Acselrad, 2013), sobretudo, dos efeitos por eles gerados, admitimos que os conflitos ambientais sinalizam a existência de violação de direitos coletivos e individuais. No contexto analisado, os conflitos ambientais partiram do barramento e ampliaram-se envolvendo outros atores sociais (sojeiros, colinenses) que migram para a região colocando em cheque os recursos naturais, a saber, o rio, a terra e a composição faunística. O resultado disso é o inconformismo com o barramento, sobretudo ao tratamento dado pela concessionária às indenizações e com o poder público pela pouca ou nenhuma atenção dada às reivindicações locais. Tudo começou com o paradoxo levantado pelos técnicos com a metragem da área tomada pela reserva, como analisado a seguir.

  1. “TRINTA E DEPOIS SETENTA”: CONTROVÉRSIAS NAS DELIMITAÇÕES DAS ÁREAS DESTINADAS À APP
As primeiras medições topográficas iniciaram em 2007 culminando com o inventário dos bens, o cálculo e o pagamento das indenizações entre 2009 e meados de 2010. Todo o processo que envolve os procedimentos topográficos até as indenizações não é compreendido até hoje pelos vazanteiros-pescadores, seis anos após o reservatório de Estreito- TO/MA. O paradoxo se intensifica com as dúvidas e interrogações sobre quem seria indenizado, a extensão da área de cada propriedade e os bens que seriam passíveis de indenização. As informações e as próprias ações da concessionária são alvos de críticas e interrogações intermináveis. O próprio Banco Mundial (2008b) reconhece a existência de falhas no gerenciamento de informações das ações executadas pelas concessionárias. Carlos Locatelli (2015:18) expõe que (...) “o fluxo de informações e acesso público ao licenciamento é extremamente confuso e desordenado”.
Não se trata de que essas pessoas sejam contra a APP, já que ela é legitimada pelo Novo Código Florestal em seu Art. 5º. Elas até compreendem a importância da recomposição da mata ciliar ao longo do reservatório para a conservação do rio e dos recursos faunísticos. A questão é que exigem clareza no tocante dos critérios usados pela concessionária para determinar a metragem das áreas destinadas à APP e os cálculos que deram origem aos valores pagos como indenizações. A área tomada pelo reservatório oscila entre cinco e vinte metros, dependendo do nível de declinação do terreno que varia ao longo das margens do rio. Contudo, a partir do ponto da maré do reservatório, entre 30 e 100 metros passaram a constituir a APP. A maioria das propriedades perdeu trinta metros, sendo que algumas posteriormente perderam mais 70, completando 100 metros. Só que as medições dos técnicos consideraram apenas a partir da maré após a formação do reservatório, excluindo dos cálculos das indenizações a área tomada pela água, que também era usada no cultivo. O Sr. Pedro (73 anos) relata tal como ocorreu com ele:

Eles veio aqui e eu disse que aquela medição tava errada. Eles disseram que não. Daí eu medi na frente deles e pedi que observasse pra provar, ai eles foram embora dizendo que ia voltar. Quando voltou outro dia, disseram que eu tava certo. Eu vou te dizer outra coisa moço, o que ninguém tá vendo aqui, é que eles mediram depois do lago e não antes. E o terreno que a água cobriu? Não é? Olha ai, o tanto que estamos perdendo. A água pegou uns dez metros. Eles tinha que medir lá de onde a água tava antes do lago. Mas não, eles mediu de onde a água parou depois do lago pronto. Tá vendo, é só prejuízo pra nós.(Sr. Pedro, 73 anos).

Contrários a esse modo autoritário da concessionária, alguns dos vazanteiros-pescadores, como evidenciado no depoimento do Sr. Pedro, remediram a área tomada pelo lago e pela reserva usando seus próprios instrumentos e métodos. Não se sabe ao exato o porquê das disparidades concernentes ao tamanho da área destinada ao reservatório e à APP, o que para eles, interfere nos cálculos dos valores da indenização paga.
Essas polêmicas tinham outro fator motivador, a saber, a alternação das equipes técnicas. Segundo Raul Reis, as equipes nunca eram as mesmas, – era muita gente, uns vinha, outros vinha num é, a gente não tinha como saber (Raul Reis). Tal situação pode ser entendida como sendo uma estratégia do consórcio, não só de confundi-los, mas também de coibir qualquer tentativa de manifestações contrárias ao consórcio. Embora alguns dos vazanteiros-pescadores tenham se mostrado indignados imediatamente à medição, optaram por não contestar. O Sr. José Carlos explica:
“Quando eles vieram para tirar os 30 metros já vinha tudo pronto, eles só fazia dizer que ia tirar os 30 metros e que não adiantava, porque já tinham aceito a barragem e as consequências. A gente não sabia que ia ser daquele jeito, que se atingisse a vazante nós ia ser prejudicado e ia ser indenizado aquela parte da água que prejudicasse. Mas eles não chegou e disse: você vai perder a vazante, você vai perder a terra naqueles tantos metros, ou que a barragem atinge ou não atinge. Eles só falaram quando foi pra tirar”. “Trinta metros já era suficiente pra subir a ladeira e perder tudo, ai foi que quando eles vieram, não adiantava se ia querer ou não, acabou tudo. Eles vieram só pra tirar, vamos fazer isso, vamos fazer aquilo”. (Sr. Carlos).

A obscuridade e contraditoriedade em todo nesse processo ignora uma das determinações da Resolução 279/2007 da ANEEL, concernente à obrigatoriedade do empreendimento de informar amplamente os critérios indenizatórios e negociar com os atingidos. Conforme o Art. 10º dessa resolução, a concessionária deve:
II - promover ampla divulgação e esclarecimentos acerca da implantação do empreendimento, junto à comunidade e aos proprietários ou possuidores das áreas a serem atingidas, mediante reunião pública ou outras ações específicas de comunicação, tratando inclusive de aspectos relacionados à delimitação das áreas afetadas e aos critérios para indenização;

Logo adiante, vemos que essa mesma lei corrobora para a existência dessas disparidades. No “§ 1º, vemos que a simples comprovação da realização das audiências públicas supre a obrigatoriedade implícita naquele inciso, o que ameniza se não anula, de certa forma, o teor da exigência, já que as audiências foram ineficientes no seu papel e na resolução dos impasses envolvendo o empreendedor e as categorias atingidas.
A forma autoritária da concessionária é unanimemente expressada e com tristeza pelos vazanteiros-pescadores. Além de não terem sido informados sobre os procedimentos, usados, não foram ouvidos sobre os valores das indenizações referentes aos espaços de cultivo, às agriculturas e às casas que se encontravam no perímetro da reserva. Tais atitudes são vistas como ofensa aos direitos individuais e coletivos. Na Ata de uma das reuniões da única entidade local, os vazanteiros-pescadores exigiam respeito no trato das negociações e reconhecimento dos serviços turísticos prestados por eles, bem como seu reconhecimento como categoria atingida. – Exigimos que todos sejam respeitados e que seus direitos sejam assegurados especificamente porque nenhum de nós se manifestou pedindo a construção desta barragem. Fomos pegos de surpresa e desprezados (Ata da reunião da Associação de Barraqueiros realizada em 22/09/2009). No mesmo documento, a entidade exigiu ao IBAMA que não concedesse a licença de funcionamento-LP e, ao Ministério Público Federal, que multasse e suspendesse a obra por não atender as reivindicações locais.
A associação conclui que as reuniões tinham um único propósito, “(...) ratificar e consolidar a liberação da licença necessária para a elaboração de estudos que são indispensáveis à aquisição da licença que dá direito a instalar o canteiro das obras, a Licença de Instalação (L.I.). Um verdadeiro jogo de cartas marcadas!”
Observa-se que mais que a declividade das margens do rio, a ausência de critérios e o modo autoritário na condução desse processo são o pivô das críticas e do inconformismo local. Vale mencionar que situação análoga já havia ocorrido aos impactados da UHE de Tucuruí. Sônia Magalhães (2007) descreve que em 1982, dois anos da inauguração da barragem, não se sabia quem seria deslocado ou não. A autora evidencia que a discussão inconformada sobre o número de famílias que seriam deslocadas continuou mesmo após o enchimento do reservatório ocorrido em 1984.
Nota-se, portanto, que as situações se repetem à cada barragem, independente do contexto espacial ou temporal, porém, no caso de Tucuruí, não existia a legislação voltada para o setor elétrico como hoje, a exemplo do CONAMA. Observamos que mesmo com todo o aparato legislativo acerca dos empreendimentos hidrelétricos, as situações de descaso aos atingidos por barragem continuam acontecendo.

  1. O LIMITE DIVISOR DA APP E REEDIFICAÇÃO DAS CASAS: CONTESTAÇÕES

As casas localizadas dentro da reserva foram demolidas e, em seguida, reconstruídas observando o limite exato da reserva. Ao vazanteiro proprietário era dada a opção de receber o valor estipulado pelo consórcio e ele próprio construir a casa ou aceitar que ela fosse construída pelo consórcio. A primeira opção foi acatada imaginando que o dinheiro era suficiente, porém, não sabiam informações reais dos custos de uma casa feita com materiais modernos. Também, a maioria das casas antigas foi construída há mais de 50 anos. Devido sua importância simbólica, nem todos aceitaram os valores ofertados, com isto não tiveram suas casas reconstruídas, o que obrigou as famílias a abandonarem o lugar.
O valor recebido pela indenização das casas é, considerado por eles, irrisório. O mesmo não paga os custos para se construir outra casa no comprimento e número de cômodos da antiga, incluindo a força de trabalho empregada na construção e manutenção, já que as palhas, a madeira e o barro usados são coletados em suas propriedades. Como implícito na epígrafe inicial, as indenizações às casas são insuficientes como acrescenta o Sr. Raul Reis – Se eu fosse construir essa casa só com o dinheiro da indenização não construía nem a metade dela. O dinherin que eles dão, não dá, não dá nunca, tive que tirar de outro lugar pra dá conta. O sentimento atribuído às casas e ao lugar onde vivem não é considerado nos cálculos, nem assegurado nos termos jurídicos. Em uma reunião realizada entre os técnicos da concessionária e representantes dos vazanteiros-pescadores, o consórcio mostrou-se claramente que edificações cujas paredes são compostas de taipas, piso de chão e cobertura de palhas realizadas com recursos da vegetação local, têm baixo valor nas avaliações dos técnicos.
A edificação da nova casa no limite da reserva foi motivada por alguns fatores, a saber: primeiro, a razão de que morar nas margens do rio favorece a utilização dos recursos hídricos usados para todos os fins do cotidiano. Além de facilitar a irrigação e manejo das agriculturas cultivadas nas vazantes; uma forma de resistir ao deslocamento e ao abandono do lugar e; a relação afetiva construída histórica e remotamente com o rio. Tal afetividade se concretiza no modo como lidam com o solo úmido das vazantes através do plantio agrícola, mas também com a pesca artesanal e a ictiofauna. Outro fator é que esses espaços são como uma extensão da casa, já que neles a família se reúne, compartilham experiências e afetividades (Brandão, 1995) entre eles, com a terra, com a água e com as agriculturas.
A casa de palha tem a preferência dos vazanteiros-pescadores, tanto que até hoje elas são maioria. Por várias razões, em algumas famílias, membros se recusaram a princípio mudar para a nova casa. Em termos de segurança, qualidade e o clima do ambiente em seu interior, a casa de palha é muito melhor, foi o que Pedro Ferreira (73 anos) enfatizou ao afirmar que não troca sua casa de palha por uma de telha. Isto revela seu sentimento, resultado das experiências de vida e das historicidades que marcam simbolicamente o antigo lar, associadas, sobretudo, aos mais de quarenta anos que nela vive e aos significados que cada ambiente representa à família. A casa tem um significado que supera o valor monetário posto pelo consórcio, no entanto, esses valores subjetivos estão além da compreensão dos técnicos na avaliação dos bens materiais e imateriais. Para essas pessoas, a casa e as vazantes são espaços humanizados, repletos de subjetividades. Tais significados não podem ser compreendidos pelo homem urbanizado.
Lembramos que Yi-fu Tuan (1983) concebe o espaço socializado como lugar, tal concepção é também defendida por Arturo Escobar (2005) ao reiterar que o espaço habitado é mais que o espaço geológico, ele tem múltiplos significados. Todas essas concepções têm o espaço humanamente habitado como simbólico. Isto explica a razão do antagonismo local sustentado pelo inconformismo com os valores estipulados às casas e às vazantes, aliás, estas não foram consideradas, exceto aquelas que apresentavam agriculturas já em formação no momento da visita do técnico. Isto significa que toda a historicidade e importância dos espaços de vazantes foram ignorados na avaliação.
Após receber a indenização a pessoa era orientada a não espraiar os detalhes da indenização como o valor e a área indenizada. Esse fato pode ser melhor entendido pelo que Lygia Sigaud (1996: 377), na análise das atuações dos sindicatos no engenho de açúcar em Pernambuco chama de “coerção moral”. Ela faz a analogia do termo a um “antídoto” que inibe os trabalhadores de recorrer à Justiça do Trabalho exercendo a coerção jurídica contra o patrão. Indiferentemente, no caso aqui analisado, o concessionário além inserir desconfianças entre os vazanteiros pescadores, criava no indenizado uma impressão de que sua propriedade foi bem indenizada, mais ainda, que foi melhor valorada que as demais. Tal atitude teve como consequência, primeiro, provocar o esfacelamento do sentimento de coletividade; segundo, proporcionar divisão dos Vazanteiros pescadores e, terceiro, introduzir elementos sociais, até então raramente existentes entre eles, tais como, desconfianças e indignações, entre os mesmos, perdurando até os dias atuais.
A disseminação dessas circunstâncias “negativas” têm aumentado ainda mais o inconformismo local com a barragem e o consórcio, a ponto de alguns desses sujeitos, desmotivados e com suas energias esgotadas, terem migrados para a cidade e desistindo de lutar por seus territórios.
Os vazanteiros-pescadores sentem que estão pagando pela existência do reservatório e da APP, porém, entendem que não devem ficar com o ônus econômico de sua implementação engessado pelas consequências socioambientais que afetam “negativamente as vidas humanas que ocupam as margens e usufruem-se do reservatório para seu sustento (Filippin, 2012).Tal situação contraria os princípios legais que asseguram que os custos de desapropriação não devem ser direcionados aos impactados (Filippin, 2012), já que não ofereceram seus bens ao concessionário. Além do Art. 3º da Constituição de 1988 que ordena “(...) ninguém será privado de seus bens para finalidades públicas sem ser indenizado previamente e em dinheiro” (Filippin, 2012:29). Apesar de todo o aparato legal como o Código Florestal, a Lei de Política Agrícola e o amplo debate no Conselho Nacional do Meio Ambiente, atingidos por hidrelétricas são expropriados, desapossados sem qualquer indenização.

  1. TUDO COMEÇOU NAS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS, OS COMITÊS DE COGESTÃO E A PARTICIPAÇÃO LOCAL

O processo indenizatório enquanto medida compensatória aqui analisado pode ser melhor compreendido se voltarmos os olhos à interação dessas pessoas com a concessionária. As audiências públicas, conforme resoluções nº 1/86 e 09/87 do CONAMA são uma das condicionantes na emissão das licenças os empreendimentos hidrelétricos. O artigo 1º dessa última descreve que a finalidade da Audiência Pública é “expor aos interessados o conteúdo do produto em análise e do seu referido RIMA, dirimindo dúvidas e recolhendo dos presentes as críticas e sugestões a respeito”.
Conforme mostram os vazanteiros-pescadores e o MAB, as reuniões não respondiam questões de maior interesse da coletividade, como, quais seriam os possíveis prejuízos que teriam e, se a água do lago atingiria as áreas de vazante e, ainda, caso não atingisse, se poderiam continuar o cultivo de agriculturas nessas áreas. Isto mostra que as decisões sobre o barramento do rio foram tomadas sem terem sanadas as dúvidas quanto às consequências para o cotidiano local. Sobre isto, Célio Bermann (2007:143) aponta que “As informações apenas chegam para ser acatadas” e o envolvimento da sociedade é limitado, se não completamente inexistente. Isto, para ele, torna-se um dos agravantes na implantação de grandes projetos hidrelétricos. Não só isso, no caso aqui analisado, somam-se, a falta de transparência, as limitações impostas pela concessionária, a tardia avaliação dos impactos, apontados pela Comissão Mundial de Barragens - CMB em 1997 e, a barreira linguística. O relatório do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana CDDPH (2011:25) atesta que o “acesso à informação qualificada e relevante constitui condição indispensável à efetividade do processo de participação social”. Consequentemente, a comunicação ineficiente entre os atores sociais só contribuem para o aumento dos conflitos (Locatelli, 2015).
As descontinuidades na comunicação entre a concessionária e os vazanteiros-pescadores eram corroboradas pela ausência de entidades representativas; pouca ou nenhuma experiência com impactos de empreendimentos hidrelétricos e; dificuldade na compreensão da linguagem técnica usada pelo concessionário. Este, ciente dessa realidade local, antecipou e criou em junho de 2007, uma entidade oficial denominada de “Comitê de Cogestão” para representar as categorias nas relações comunicativas. Essa iniciativa foi aprovada pelo IBAMA em 30 de junho. Então, em cada município atingido foi criado o Comitê de Cogestão, constituído por representantes das categorias atingidas. Tais comitês, 
representam um dos instrumentos de comunicação e interação entre a Usina de Estreito e as comunidades dos municípios abrangidos pelo empreendimento.  (...) possuem caráter consultivo, sendo constituídos por lideranças das comunidades (CESTE, 2009).
 
Em fevereiro do mesmo ano, os vazanteiros-pescadores haviam criado a primeira entidade social representativa, a saber, a Associação de Barraqueiros da Praia da Ilha do Cará, com fins de organizar os serviços turísticos na Ilha do Cará localizada em frente às propriedades de algumas dessas pessoas. Por meio da associação, eles conseguiram toda a infraestrutura necessária para atrair banhistas das regiões circunvizinhas, e assim, passaram a proporcionar serviços de restaurantes, estacionamento e bares. A mesma passou a representar a coletividade na comunicação com o consórcio, visto que, para elas, também teriam direito a indenizações, caso a praia fosse interditada, como diziam os boatos. Em 2012, quase dois anos após a formação do reservatório, duas outras entidades representativas, a saber, a Associação de Vazanteiros e a Associação de pescadores, foram criadas. Juntas passaram a compor o conjunto de entidades que constituem o Comitê de Cogestão desse município. Esse comitê e os dos municípios de Babaçulândia/TO, Itapiratins/TO e Tupiratins/TO se reuniam a cada três meses em locais distintos decididos pelos presentes para debater a pauta de reivindicações.
Críticas aos comitês de cogestão partiram de todas as categorias. O Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB publicou em seu blog uma nota afirmando que os comitês e as reuniões realizadas trimestralmente não atendiam aos interesses das categorias. Estas não foram ouvidas pela Camargo Corrêa, a CNEC, uma das empresas do grupo CESTE e que elaborou o estatuto. Os Comitês de Cogestão foram criados para ser um portal de apresentação das “ações desenvolvidas pelo empreendimento e sanar as principais dúvidas da comunidade”. O MAB reitera que os Comitês “(...) têm a função de legitimar as ações do CESTE e não de defender os interesses dos atingidos”.
Contrários aos comitês, outras reuniões, paralelas àquelas, envolvendo diversas entidades como o MAB, Comissão Pastoral da Terra – CPT, Ministério Público e o CESTE se consolidaram como espaços de denúncias e reivindicações apresentadas pelos atingidos. Desses encontros resultou a elaboração de um termo de compromisso que foi assinado por diversas entidades, incluindo o INCRA, a Advocacia Geral da União, sendo que o CESTE se posicionou contra o termo.
Em Itá-SC, conforme descreve Raquel de Matos Viana (2003:129) sobre a UHE de Itá em operação desde 2000, a criação da Comissão Regional de Atingidos por Barragens - CRAB teve um resultado diferente do Comitê de Cogestão, pois surgiu do protagonismo dos movimentos sociais junto à ELETROSUL. A comissão mista conduziu pesquisas sobre valores das áreas e dos bens afetados pelo barramento, resultando em números monetários mais altos que os apresentados pela concessionária anteriormente. O CRAB foi reconhecido pela concessionária depois de pressões dos movimentos sociais articuladas junto ao Banco Mundial (Sigaud 1989). O acordo, conforme expõe a autora, incluiu como atingido “não apenas os ‘proprietários’, mas os ‘sem terra’ e os filhos dos ‘agricultores’, classificados como jovens definidos como sem terra pertencentes as famílias dos atingidos (Sigaud, 1989:10).
Diferente do CRAB, os Comitês de Cogestão no médio Tocantins representam o poder autoritário da concessionária sobre as categorias, uma vez que não as consultaram na criação do mesmo. A inciativa de criar mecanismos de comunicação cabe à própria concessionária e a mesma não deve ser exógena aos programas listados no Plano Básico Ambiental – PBA, pelo contrário, a eles deve estar interligada, pois dela depende “o êxito dos programas nos moldes em que foram concebidos pelo empreendedor e referendados pelo Estado” (Locatelli,  2015:17). A falha e a confusão nesses mecanismos, sobretudo no Brasil, parece ser corroborada pela própria legislação, já que “não especifica quais as estratégias, planos, processos e produtos de comunicação devem ser adotados, nem o caráter público dessa comunicação(...)” (idem: 17). Locatelli acrescenta, “Se as exigências legais garantem a existência da comunicação nos empreendimentos com grande impacto socioambiental, elas não garantem per se a qualidade, nem o cumprimento das finalidades dessa comunicação (Idem: 17)”
No caso aqui analisado, muitas assembleias foram realizadas pelos Comitês de Cogestão, porém, sem avanços favoráveis às categorias. Os discursos da concessionária não convenciam, não só isso, as desmotivavam a ponto de alguns membros decidirem não mais comparecer às reuniões porque não eram ouvidos pela concessionária.
Com efeito, nas poucas oportunidades de contato com a concessionária se prevalecia o silêncio de alguns vazanteiros-pescadores, tanto nas audiências como nas visitas. José Carlos admite que a pouca expressão verbal deles devia-se à pouca informação e entendimento sobre as consequências de barramentos. Ele acrescenta – A gente não sabia se ia ser atingido e se fosse atingido o que ia acontecer. Mas também nós queria saber se a vazante não fosse atingida, se podia continuar né, como até hoje num foi atingida. Para Valdomiro, presidente da Associação dos Vazanteiros, o medo das consequências da barragem, a limitação do poder de fala aos representantes, a barreira linguística, dentre outros fatores, os intimidavam, permitindo que prevalecesse a decisão do concessionário. A barreira linguística coexistia, apesar deles compartilharem o mesmo código (Português), porém, o uso de vocábulos/termos técnicos tornam-se “ruídos” que impedem sua compreensão, consequentemente, a comunicação é interrompida. Somam-se ainda, a omissão de informações detalhadas sobre o empreendimento e suas ações, tanto pelo concessionário como pelo Estado, que, detêm todas as informações de posse dos diversos atores envolvidos, incluindo as elaboradas pelas organizações sociais envolvidas. Informações que podem, sobretudo, contribuir na resolução dos conflitos (Locatelli, 2015). Assim, a pouca e ineficiente comunicação resultam em vantagem ao consórcio, mas desvantagem aos vazanteiros-pescadores.
Diante do exposto, associamos o silêncio local frente ao concessionário, a três entendimentos, a saber: primeiro, ele significa mais que um gesto de aceitação ou passividade; segundo, essas manifestações “silenciosas” ou discursos ocultos, tal como menciona James Scott (2003), têm o mesmo valor das manifestações públicas e; terceiro, é uma maneira de definitiva de dizer não à barragem. Scott parte do princípio de que o discurso das minorias, ou seja, o discurso marginal é vazio, pior ainda, substitui a verdadeira resistência. Mostra que a resistência material e a resistência simbólica pertencem ao mesmo conjunto de práticas coerentes.
Como visto, o discurso de idealização da barragem, sustentado nos protótipos do desenvolvimento local (empregos, terras valorizadas) e da fartura de peixe devido ao aumento das espécies ícticas, em consequência do reservatório, é repetitivo e pouco aceito. Tais circunstâncias reforçam a contestação de Zhouri et al (2005) reiterada por Bermann (2007) de que o pensamento reducionista hegemônico sustentado por uma visão mercantilista tenta impedir ou retardar o reconhecimento dos povos atingidos enquanto “sujeitos ativos”, dotados de direitos.

  1.  “COMO JÁ IMAGINAVA, O LAGO NÃO COBRIU AS VAZANTES”: RESISTÊNCIA LOCAL

Os vazanteiros-pescadores cujas propriedades margeiam o rio através de altos barrancos, embora não foram informados pelo CESTE, previam que suas vazantes não seriam cobertas pelo reservatório. De fato, a alta declividade desses terrenos impediu a inundação integral dos espaços de cultivo. Por essa razão, alegam que não haveria necessidade de impedi-los de continuar cultivando nesses espaços.
O casal Raimundo Bedia e Helena argumenta que desde seus antepassados o sustento da família era tirado do único espaço hoje tomado, não pelo reservatório, mas pela APP. Depois de pouco mais de cinco anos de interditada, o casal e os filhos resolveram retomar o cultivo de agriculturas, plantando abóbora, melancia, mandioca, feijão e milho (ver Figura 2).

Segundo o casal, a necessidade de manter a subsistência da família o obrigou retomar o cultivo no único espaço disponível para tal fim, em sua propriedade de dois alqueires. Raimundo Bedia alega que a inexistência de um piquete indicando o limite entre sua terra e a reserva contribuiu para tal atitude. – Eles só me indenizaram 30 metros, mas num colocaram o piquete como devia, né. Eu disse pra eles esses dias que tiveram aqui, eles subiram a ladeira foi ficar lá em casa. Eu disse: vocês num disseram onde termina os 30, então eu planto mesmo (Raimundo Bedia).
A não delimitação da reserva com um piquete é vista como uma falha do consórcio, no entanto, os vazanteiros-pescadores utilizam-se dessa lacuna como subterfúgio para resistir as imposições do empreendedor, retomando o uso da área de vazante interditada. A fiscalização contínua e as ameaças de penalizações não inibiram essa família. Eles insistem que enquanto a concessionária não colocar um marco indicando a área da reserva, continuará plantando. O mesmo interlocutor acrescenta:
Só que agora nós tem outro problema, pois eles tão medindo o rio, mas eles num tão medindo lá da beira do rio. Eles tão botando o aparelho lá, onde dá trinta metros. Eles tão engolindo 40 metros e nós não recebemo quarenta metro, recebemo trinta. Agora vou medir e onde dé vou colocar um piquete, ai eu quero ver eles vir aqui”.(Sr. Raimundo Bedia).

Essa situação tem sua gênese no momento da indenização, pois o casal, a princípio, não aceitou o valor indenizatório imposto pela concessionária. O mesmo confessa que o aceite só ocorreu mediante a intercessão de seus irmãos também herdeiros do pequeno terreno, após serem contatados pelo consórcio. Também, aceitou após a afirmação reiterada pela técnica do consórcio no escritório da empresa de que ele poderia continuar plantando sua vazante, desde que não desmatasse além do espaço já utilizado por ele. Esse entendimento está em consonância com o Artigo 4º do Código Florestal que em seu parágrafo 5º (Brasil, 2012) descreve:
§ 5o É admitido, para a pequena propriedade ou posse rural familiar, de que trata o inciso V do art. 3o desta Lei, o plantio de culturas temporárias e sazonais de vazante de ciclo curto na faixa de terra que fica exposta no período de vazante dos rios ou lagos, desde que não implique supressão de novas áreas de vegetação nativa, seja conservada a qualidade da água e do solo e seja protegida a fauna silvestre.

Todos os demais vazanteiros-pescadores também receberam essa orientação. À Sra. Terezinha orientaram que não desmatasse o mato da beira do rio, assim, a fiscalização não veria a plantação da vazante, porém ela descreve:

Nós num pudia ter vendido a vazante não, ai entrou tudo. Uns dizia assim: não Raul, tu pode plantar tua vazante. Tu num limpa a beira do rio. Tu deixa esse mato alto ai, pois eles passa e não enxerga tua vazante. Mas eles passa lá por cima no aviãozin, num é? Mas a gente é bobo, porque eu pudia ter pensado antes, e num ter vendido aquele pedaço né, aquela vazante, porque a vazante é a coisa mais importante pra nós, porque a gente planta o milho, a gente planta o feijão, a gente planta a melancia. E ai a pessoa tá num lugar que num poder plantar essas coisas, tá sem arte né? Ai nós plantemo ela e cercamo de tela mode as capivara. Ai eles viram, vieram dizer que era pra nós tirar a cerca por tudo. Compremo aquela tela tão cara, e ai foi preciso nóis tirar a tela. (Terezinha, 74 anos).

Como exposto, a garantia de continuidade do cultivo nas vazantes corroborou para que maior parte dos vazanteiros-pescadores aceitasse a indenização, porém, vemos que na prática ela não se consolidou, pois eles foram surpreendidos com a presença da fiscalização os proibindo. Essa atitude é interpretada por eles como estratégia da concessionária, no entanto, em vez de reduzir a visão negativa associada ao consórcio, só aumentou o inconformismo e a desconfiança por entender que foram enganados em troca do seu aceite à indenização da área tomada pelo lago e a reserva. Essas pessoas são ignoradas enquanto proprietárias da terra onde vivem, por isso, sentem-se lesadas pela concessionária. Raul explica:
 A beirada que pegou aqui é da barra do Cajueiro até a barra do Santana, ei eu perguntei se aquele trem era meu ou era deles, porque eles já chegaram com o preço feito, eles é quem iam vender né, eles já chegaram com tudo feito. Eu num tô entendendo, e também não posso pegar essa proposta de vocês, porque eu acho que o dono daqui é eu, não é? Vocês têm que saber o que é que o meu vale, não tenho isso pra vender não, mas como vocês tão precisando, nós negoceia, mas vocês já chegam ai e diz que vale isso, eu acho que não tem cabimento. (Sr. Raul).

Ao buscar orientação a terceiros, um amigo médico repetiu o argumento dos técnicos, aconselhando Raul Reis que aceitasse o valor proposto pelo consórcio, sob pena do processo se prolongar muito nas instâncias jurídicas. – Ele (o médico) sabe mais que eu, eu sou do campo, não sei de nada, eu sabia que tinha o documento da terra, pagava os impostos, pensava que tinha direito num é? Mas eles é quem tavam vendendo. O que ofereceram, a gente foi obrigado a pegar. Essa atitude se soma ao que Lygia Sigaud (1996) chamou de coerção moral, como mostramos nas páginas anteriores.
As compensações já realizadas revelam que essas pessoas têm pago compulsoriamente o custeio caro da recomposição da mata ciliar. Ônus econômico que legalmente é responsabilidade da concessionária, como rege o Art. 5º do código florestal e o Artigo 31 alínea VI da lei de concessões n. 8.987.
A barragem entendida como parte de uma operação de ocupação, juridicamente é um serviço de utilidade pública. Ao consórcio é cedido o poder legítimo de criar os mecanismos legais de instalação em determinada área (Vainer, 2007). Assim, cabe a ela a decisão de envolver ou não a participação do atingido em suas decisões, “(...) à margem de qualquer negociação, o valor das indenizações; mesmo porque, se algum proprietário, renitente, decidir submeter o preço a arbitragem em juízo deverá pagar seu tributo à morosidade da Justiça” (Vainer 2007: 124). Vainer entende a transferência desses poderes às concessionárias como um ato violento, considerando que o objetivo único delas é maximizar seus lucros em detrimento dos recursos naturais e das coletividades humanas alvos dos empreendimentos. O próprio Banco Mundial (1994) reconhece a insuficiência das compensações financeiras, uma vez que, elas são insatisfatórias considerando as perdas patrimoniais.
O desapossamento compulsório fere os direitos dos cidadãos garantidos na lei maior, a Constituição Federal de 1988 em seu art. 5º, de que nenhum cidadão deve ser desapropriado sem justa e prévia indenização em dinheiro. Nesse sentido, uma sugestão seria o atrelamento da Declaração de Utilidade Pública - DUP ao cumprimento das indenizações, isto é, condicioná-la à emissão de documentos comprobatórios das indenizações devidamente negociadas com a parte interessada como determina o Art. 42º da Lei 9.985 (Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC). Caso contrário, abre-se possibilidade aos consórcios de hidrelétricas postergarem e até mesmo não cumprirem com as determinações da ANEEL.
A não negociação e a posição ditatorial em não ouvir os interessados só reifica a omissão do poder público em defesa das coletividades vulnerabilizadas. A criação da Comissão Especial de Acompanhamento pela Resolução 31/2006 e sua recomendação à observação aos direitos dos povos atingidos pelos reservatórios e a preservação do caráter e direito individual dessas pessoas, também não impediu dessas atitudes continuarem. Embora a legislação determina que o cálculo das indenizações seja feito juntamente com os atingidos, a concessionária supracitada simplesmente não seguiu tais determinações.
As estratégias usadas pelos vazanteiros-pescadores, descritas nas páginas anteriores, a saber, a reconstrução das casas obedecendo apenas o limite divisório entre a APP e a propriedade; a contestação da medição feita pelos técnicos e remedição realizada pelo próprio vazanteiro pescador, o silêncio nas audiências públicas e; ainda o replantio nas áreas de vazante, mesmo proibidos, por terem sido indenizados, são análogas ao que James Scott (2011) chama de resistência simbólica ou “defecções silenciosas”. São as manifestações não declaradas, mas que têm como objetivo resistir ordens e dizer não à barragem.
Enquanto o Setor Elétrico representado pelo consórcio busca a todo custo esvaziar os sentidos diversos dados aos territórios, produzindo então a desterritorialização, os vazanteiros pescadores utilizam-se desses discursos ocultos (Scott 2011), estratégias próprias para defender seus estatutos simbólicos. Grande parte dos processos de territorialização (Almeida, 2009) correntes, segundo Raquel Oliveira e Andréa Zhouri (2010: 445), “são processos de luta pelo significado e pela apropriação do meio ambiente contra a apropriação global pelo capital, que transforma territórios sociais (Little, 2002) em espaços abstratos, ou seja, lugares em espaços que contém recursos naturais para a exploração capitalista”.
As mesmas autoras atestam que diante das tentativas de desterritorialização por parte do capital, os coletivos sociais impactados “não são vítimas passivas, pois eles buscam expressar outras formas de existência nos lugares. Reivindicam o direito à memória e a sua reprodução social. E são eles que dizem que nem tudo é fadado a virar espaço de apropriação abstrata pelo capital” (Zhouri e Oliveira, 2010:445).
A insistência em driblar as imposições dos técnicos somam-se à luta pela autodeterminação, ou seja, buscam, como bem descrevem as mesmas autoras, “a reapropriação da capacidade de definir seu próprio destino” (idem). Lutam, não para garantir a fixidez dos territórios, mas pelo poder de promover suas próprias mudanças e vontades coletivas, sobretudo em defesa de seus territórios e autonomia sobre eles.
As resistências locais são mais individualizadas que coletivas, nem por isso, menos politicamente intencionais e, podemos entendê-las por meio do que James Scott denomina de “Infrapolítica” ou seja, uma forma econômica de expressar discretamente o conflito político. Para Scott, a infrapolítica tem os fundamentos culturais e estruturais da ação política, ela está sempre ativa por meio de discursos ocultos. Quando o dominador relaxa suas formas de dominação, a infrapolítica por meio de seus elementos (contos populares) atua, ameaçando-a de agressão. Como mostra esse autor, a infrapolítica mostra-se ativa ainda que lentamente, pois, os vazanteiros-pescadores sempre estão duvidando e superando os limites do permissível, os direitos de propriedade, dentre outras imposições. Se o consórcio tem a organização formal, o poder econômico, os vazanteiros-pescadores (as não elites) têm a infrapolítica.
Os interesses econômicos vinculados às construções dos empreendimentos hidrelétricos e os próprios barramentos têm como consequências mais que as alterações ambientais (contaminação da água, destruição ou fragmentação de “habitats” naturais, da vegetação, e espécies aquáticas), eles interferem negativamente nas práticas sociais e culturais concretizadas no trabalho por meio do cultivo agrícola e da pesca local, além de romper com os laços afetivos com o lugar.  Hoje os vazanteiros-pescadores estão sem as vazantes, sem a renda da praia e com a pesca artesanal reduzida. A postergação da solução das indenizações não reduz a indignação, pelo contrário, aumenta a desmotivação e as perspectivas sobre o futuro, sobretudo o antagonismo local.

  1. “A BARRAGEM NÃO SERVE PARA NÓS”: REDUNDÂNCIAS NOS DISCURSOS COMO ESTRATÉGIA USADA PELA CONCESSIONÁRIA

Como exposto, por mais que prevaleçam as decisões emanadas do setor elétrico, os vazanteiros pescadores preferem o ativismo à passividade diante de tais decisões. A barragem, contrariamente ao “desenvolvimento”, como apresentado no EIA/RIMA da UHE de Estreito - TO/MA, para esse coletivo social significa retrocesso. O “desenvolvimento”, para eles, não poderia excluí-los das políticas sociais. Por isso, insistem na pergunta: Para quem serve a barragem? Também afirmam, “A barragem não serve pra nós” (Raul Reis). Essa frase tão repetida entre eles, mostra que não compreendem as razões da existência de tantas barragens. O aumento dos recursos pesqueiros pouco os favoreceu devido a pressão sobre os mesmos. Da pesca intensiva resultou a escassez desses recursos sobretudo para os vazanteiros-pescadores que usufruem-se da pesca como fonte de subsistência. Com efeito, os conflitos socioambientais são inevitáveis e, os mesmos são corroborados pelas agências ambientais que por pressão política emitem, sem ainda identificado todos os atingidos, as licenças requeridas, mas também pelas empresas contratadas pela concessionária para realização de etapas como o EIA/RIMA. Estes documentos confeccionados pelas empresas de consultoria contratadas, segundo Carlos Vainer (2008:13) “constituem em documentos de propaganda do empreendimento, afastando-se de seu objetivo de ser um levantamento dos impactos a fim de que os mesmos possam ser mitigados, ressarcidos, compensados ou reparados”.  
A barragem é vista por essas pessoas como vetor da escassez dos recursos naturais, das mudanças no contexto ambiental, social e cultural e dos conflitos. Por razões como essas, Célio Bermann (2001) em seu instigante texto sobre energia no Brasil levanta questões que Henri Acselrad (2012), mais tarde, numa entrevista sobre a Rio +20 ratificou, enfatizando que os questionamentos que se deve fazer diante do aumento de barragens: “Que desenvolvimento queremos?” “Para quê e para quem servem as hidrelétricas?” (Acselrad, 2012). Tais interrogações se redundam nas expressões de inconformismo com a concessionária, – nasci e me criei aqui, nunca precisamos, a barragem não serve pra nós, se ela é boa, não é pra nós, então deve ser para os investidores dela e pro Estado né (Raul, 78 anos).
Os artifícios usados pela concessionária, aqui discutidos, só reforçam a necessidade de rever o processo de barramento no país. Eles evidenciam a incapacidade das concessionárias de lidar com questões e impactos sociais gerados pelo barramento, mais ainda, o descaso do poder público junto aos povos vulnerabilizados atingidos. “Os consórcios privados que concorrem para obter concessões, raramente têm experiência ou qualificação no tratamento das questões sociais e ambientais” (Vainer, 2007:121). Assim criam mecanismos antidemocráticos para driblar e desestabilizar a coletividade local que, inconformada, se utiliza de suas próprias forças e criatividades na resistência às imposições do consórcio e a passividade do poder público. O peso das forças é desproporcional (Acselrad, 2012), diante de todo o aparato do setor elétrico sustentado pela legislação.
Vimos que o consórcio utilizou-se de artifícios também usados em barragens instaladas em contextos espaciais e temporais distintos. Além daqueles analisados aqui, havia o convencimento que ocorria de duas formas, a saber: por meio de visitas surpresas aos proprietários e/ou por agendamento de encontros/reuniões individualizadas em escritórios da empresa. Outra estratégia era a de não avisar sobre as datas das visitas. Por vezes os vazanteiros-pescadores eram surpreendidos com a presença de técnicos em suas propriedades. Na ocasião, eles eram convencidos de que a terra ou a parte da terra atingida tinha pouco valor econômico e, que o valor estipulado era o suficiente para compensa-lo pela perda daquela área atingida. Além da estratégia de desvalorização ou anulação da qualidade da terra, os técnicos convenciam o morador de que o recebimento daquele valor era mais viável que ir à justiça, com a alegação de que poderiam ter o processo na justiça por mais de dez anos, não compensando, portanto, esperar o desfecho da decisão judicial. Contudo, o atingido se via incapaz de lutar pelo direito de uma indenização a qual acreditava ser justa.
Fato é que hoje é unânime a decepção e/ou arrependimento daqueles que optaram por receber a indenização. Sentem-se lesados e derrotados na queda de braço com o consórcio, também sem forças e pouco confiantes em reverter a situação. Tal concepção se intensifica à medida que têm suas lutas e reivindicações não atendidas, mas retraídas com o tempo.

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscamos mostrar que as estratégias de gestão dos impactos sociais usadas pelas concessionárias de barragens se repetem a cada empreendimento hidrelétrico instalado no país. No médio Tocantins não tem sido diferente, os impactos da barragem de Estreito – TO/MA e o modo como a concessionária tem conduzido as compensações às perdas patrimoniais para o reservatório e a Área de Preservação Permanente. 
Os resultados evidenciam que as estratégias/medidas usadas pelo consórcio no procedimento das indenizações só aumentaram o inconformismo e a rejeição local ao empreendimento e, consequentemente, os conflitos socioambientais. Estes se acirraram logo que as medições das áreas destinadas à reserva foram iniciadas e mais ainda após a conclusão e o recenseamento dos bens e benfeitorias para efeito de indenização. Tanto as medições como o inventário e os valores aferidos pelo consórcio são alvos de desconfiança e contestação por parte dos atingidos que nesse jogo não são passivos, reagem por meio de estratégias individuais e coletivas. O que parece claro é o entendimento de que não há um planejamento participativo, nem qualquer acompanhamento social, além da pouca ou nenhuma informações e esclarecimentos aos vazanteiros pescadores sobre os empreendimentos hidrelétricos.
Atualmente, observa-se a existência de um estágio temporal de silêncio, prevalecendo a “pausa do conflito” que continua latente. Esse momento é marcado por arrependimento daqueles que concordaram em receber tais compensações e que grande parte dos que não evadiram, não tem onde plantar, obrigando-os a perscrutar, criar outras fontes de subsistência na continuidade de seus modos de vida. O sentimento local é de abandono e desprezo tanto pela concessionária, como pelo poder público. Os vazanteiros do Médio Tocantins, em sua maioria, não passivos às atrocidades da concessionária, ainda lutam tanto pelas indenizações de suas fontes de subsistências que coexistiam antes do barramento e pelo direito de permanecer no lugar onde seus antepassados construíram suas tradições e seus modos de vida.
Sugerimos que seja revisto o processo de barramento no país e o descaso do poder público aos atingidos por barragens. Para isso, além das várias recomendações feitas pela ANEEL e demais entidades de defesa dos direitos do cidadão citadas neste trabalho, faz-se necessário que não só negociações individuais e coletivas sejam garantidas, mas que também sejam publicizados nos meios acessíveis aos povos tradicionais atingidos pelo empreendimento, os critérios e parâmetros indenizatórios. Além do acompanhamento do Ministério Público, sugerimos atrelar à Declaração de Utilidade Pública, relatórios e documentos comprobatórios das indenizações devidamente negociadas com a parte interessada.

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* Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará (PPGA/UFPA) e professor do Instituto Federal do Tocantins (IFTO). E-mail: voninio@ifto.edu.br.

** Professor dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) e Agriculturas Amazônicas (PPGAA) da UFPA, e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais da Universidade do Estado de Mato Grosso (PPGCA/UNEMAT). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq-Nível 2. E-mail: flaviobb@ufpa.br.


Recibido: 04/05/2017 Aceptado: 08/08/2017 Publicado: Agosto de 2017

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