Luiz Paulo do Amaral Cardoso *
Rosana Gomes da Rosa**
Universidade Federal de Rio Grandee, Brasil
rosana.rosa@gmail.comRESUMO
A situação atual da população carcerária existente no Brasil vem chamando a atenção. De um lado governos com sérias dificuldades financeiras, o que faz com que recaiam na dificuldade que é a definição de prioridades para destinação das verbas públicas; e de outro casas e institutos prisionais com necessidades básicas deixando de ser atendidas, com comunidades encarceradas para as quais sequer direitos mínimos de saneamento básico estão atendidos. No entanto, a legislação brasileira prevê desde 1984, através da Lei nº 7.210, a existência dos Conselhos da Comunidade como órgão auxiliar para a execução penal. Sua importância, nas comarcas em que está devidamente instituída, é indiscutível. O tema aqui debatido demonstra que algo precisa ser feito na busca por diminuir os diversos problemas, difusos e descentralizados, que vivencias as casas prisionais brasileiras, em todos os estados, grandes centros e interior. A participação dos Conselhos da Comunidade para amenizar tais problemas é circunstancial, com diversas frentes de atuação. A atuação dos Conselhos da Comunidade não deve ser vista somente como um bem àqueles que se encontram segregados. Busca-se, acima de tudo, dar segurança à sociedade em geral, visando que aqueles que hoje estão segregados possam retornar ao convívio social efetivamente ressocializados. Os conselhos da comunidade são essenciais para a identificação, elaboração e execução de políticas públicas para atender à população carcerária. Assim, como obter financiamento para que os Conselhos da Comunidade coloquem em prática as políticas de garantia para os direitos sociais, dignidade e ressocialização dos encarcerados? O presente artigo busca dar respostas a esses questionamentos, demonstrando como tais financiamentos podem ser obtidos através da legislação pátria vigente. Para a análise proposta foi realizada pesquisa bibliográfica em fontes secundárias – utilizando-se bases normativas brasileiras e interpretações e doutrinárias, com uma abordagem dedutiva, evidenciando as relações entre os instrumentos normativos vigentes e que possuem aplicabilidade para subsidiar e efetivamente financiar a realização de políticas públicas através da atuação dos Conselhos da Comunidade. De se ressaltar ainda que a pertinência do artigo apresentado está justificada ante o atual contexto social, com frequentes rebeliões que exigem maiores garantias aos direitos sociais das comunidades carcerárias. Evidencia o presente artigo que existem diversos caminhos a trilhar para a obtenção de recursos e financiamento para projetos dos Conselhos da Comunidade. O fato de governos estarem, ou não, em crise financeira não impede ou exime a responsabilidade pela garantia de direitos sociais à população carcerária. Demonstra a importância do tema aqui abordado, demonstrando tanto aos gestores públicos quanto aos Conselheiros (dos Conselhos da Comunidade) que há formas legalmente precisas para a obtenção de recursos. É importante identificar onde e como buscar recursos para que a sociedade pode se organizar, a fim de efetivar os direitos de toda a sociedade. Os instrumentos são variados, e a busca por recursos e manutenção dos Conselhos da Comunidade em prol das garantias da população carcerária deve ser observado. Resta evidente que tratar com dignidade o encarcerado é um benefício que retorna à sociedade, e deve refletir em redução da reincidência e melhoria da segurança local.
Palavras-chave: Conselhos da Comunidade; Direitos Sociais; Execução Penal; Financiamento; Políticas Públicas.
ABSTRACT
The current situation of the prison population in Brazil has been drawing attention. On the one hand governments with serious financial difficulties, which makes them fall back on the difficulty of setting priorities for the allocation of public funds; and other prison houses and institutes with basic needs that are no longer met, with incarcerated communities for which even minimal basic sanitation rights are met. However, the Brazilian law foresees since 1984, through the Law nº 7.210, the existence of the councils of the Community as auxiliary organ for the implementation of criminal law. Its importance in the counties in which is properly established, it is indisputable. The theme discussed here demonstrates that something must be done in the quest to reduce the various diffuse and decentralized problems experienced by Brazilian prison houses in all states, major centers and interiors. The participation of the Councils of the Community to soften such problems is circumstantial, with several fronts of action. The action of the Councils of the Community should not be seen only as a good to those who are segregated. It seeks, above all, to give security to society in general, aiming that those who are now segregated can return to social interaction effectively re-socialized. The advice from the community are essential for the identification, formulation and implementation of public policies to meet the prison population. So, how to obtain financing for the councils of the Community place in practice the policies to guarantee social rights, dignity and social rehabilitation of prisoners? This article seeks to provide answers to these questions, demonstrating how such financing can be obtained through the legislation existing homeland. For the proposed analysis, a bibliographic research was carried out in secondary sources - using Brazilian normative bases and interpretations and doctrines, with a deductive approach, evidencing the relations between the normative instruments in force and that have applicability to subsidize and effectively finance the accomplishment of public policies through the activities of the Community Councils. It should be noted that the relevance of the article presented is justified in the current social context, with frequent rebellions that demand greater guarantees for the social rights of prison communities. This article evidences that there are several paths to be taken to obtain resources and funding for projects of the Community Councils. The fact that governments are or are not in financial crisis does not prevent or exempt the responsibility for guaranteeing social rights to the prison population. It demonstrates the importance of the subject here, showing both public managers and Councilors (of the Community Councils) that there are legally precise ways to obtain resources. It is important to identify where and how to seek resources so that society can organize in order to realize the rights of the whole society. The instruments are varied and the search for resources and maintenance of the Community Councils in support of the guarantees of the prison population must be observed. It is clear that treating the incarcerated with dignity is a benefit that returns to society, and should reflect in reducing recidivism and improving local security.
Keywords: Community Councils; Financing; Penal execution; Public policy; Social rights.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Luiz Paulo do Amaral Cardoso y Rosana Gomes da Rosa (2017): “O financiamento dos conselhos da comunidade para atuação em políticas públicas destinadas à população carcerária”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (julio-septiembre 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2017/03/financiamento-comunidade.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1703financiamento-comunidade
INTRODUÇÃO
A realização de políticas públicas possui uma demanda por investimentos financeiros que nem sempre é prioridade para os governantes. Logo, atender às demandas da população carcerária está longe de ser vista como necessidade, tanto pela sociedade em geral como pelos próprios gestores. Na defesa dos interesses e direitos dessa parcela da sociedade que muitas vezes é esquecida, surgem os Conselhos da Comunidade.
A realidade atual demonstra que a situação população carcerária brasileira demanda dedicação e atenção. De um lado governos com sérias dificuldades financeiras, que muitas vezes têm que escolher prioridades para destinação das verbas públicas; e de outro casas e institutos prisionais com necessidades básicas deixando de ser atendidas, com comunidades encarceradas para as quais sequer direitos mínimos de saneamento básico estão atendidos.
A legislação brasileira prevê desde 1984, através da Lei nº 7.210, a existência dos Conselhos da Comunidade como órgão auxiliar para a execução penal. Sua importância, nas comarcas em que está devidamente instituída, é indiscutível. Os conselhos da comunidade são essenciais para a identificação, elaboração e execução de políticas públicas para atender à população carcerária.
Nesse contexto é que desenvolve-se o presente artigo, visando analisar o tema através de três partes: o primeiro destinado à análise das origens e importância social dos Conselhos da Comunidade; o segundo aborda a atuação dos Conselhos da Comunidade na buscar por elaborar e concretizar políticas públicas para a população carcerária; e o terceiro destinado à análise das formas para que os Conselhos da Comunidade possam financiar a realização de políticas públicas em benefício da população carcerária.
Para a análise proposta foi realizada pesquisa bibliográfica em fontes secundárias – utilizando-se bases normativas brasileiras e interpretações e doutrinárias, com uma abordagem dedutiva, evidenciando as relações entre os instrumentos normativos vigentes e que possuem aplicabilidade para subsidiar e efetivamente financiar a realização de políticas públicas através da atuação dos Conselhos da Comunidade. De se ressaltar ainda que a pertinência do artigo apresentado está justificada ante o atual contexto social, com frequentes rebeliões que exigem maiores garantias aos direitos sociais das comunidades carcerárias.
1 OS CONSELHOS DA COMUNIDADE: ORIGENS E IMPORTÂNCIA SOCIAL
Abordar a realidade prisional brasileira não é tarefa tranquila, são frequentes os relatos de ofensa a direitos humanos e garantias sociais aos presos. É necessário constantemente lembrar que apesar de estarem segregados da sociedade e em privação de liberdade para o cumprimento de pena provisória ou definitiva, a população encarcerada conserva sua cidadania – embora limitada – e consequentemente tais presos são sujeitos de direitos.
Os Conselhos da Comunidade foram introduzidos na legislação brasileira através do Art. 61, inciso VII da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, que instituiu a Lei de Execução Penal. De acordo com referida norma o Conselho da Comunidade figura ao lado do Conselho Nacional da Política Criminal e Penitenciária, Juízo da Execução, Ministério Público, Departamentos Penitenciários, Patronato e Defensoria Pública como órgãos da execução penal.
Em 2014 a população de presos no Brasil estava representada por um número total de 711.463 presos, entre encarcerados (condenados e presos provisórios) e aqueles cumprindo prisão domiciliar (CNJ, 2014, p. 04). Somente em estabelecimentos penais o Brasil conta com mais de 622 mil pessoas privadas de liberdade. Tal situação indica uma taxa de mais de 300 presos para cada 100 mil habitantes, evidenciando quão distante o país está da média internacional, que é de 144 presos por 100.000 habitantes. Com base nesses números o Brasil é o quarto país com maior número de presos, em um ranking encabeçado por Estados Unidos, China e Rússia (MJ/INFOPEN, 2016, p. 06).
O elevado número de pessoas encarceradas é agravado por uma situação alarmante: o gigante déficit de vagas em unidades prisionais, conforme representado no Gráfico 01:
Os dados apontados demonstram uma taxa de ocupação de 167%, fator que tem constantemente sido apontado como causa de rebeliões nas unidades prisionais de todo o país. Não há dúvida que algo precisa ser feito na busca por diminuir os diversos problemas, difusos e descentralizados, que vivencias as casas prisionais brasileiras, em todos os estados, grandes centros e interior. A participação dos Conselhos da Comunidade para amenizar tais problemas é circunstancial, com diversas frentes de atuação.
A atuação dos Conselhos da Comunidade não deve ser vista somente como um bem àqueles que se encontram segregados. Busca-se, acima de tudo, dar segurança à sociedade em geral, visando que aqueles que hoje estão segregados possam retornar ao convívio social efetivamente ressocializados. Trata-se de unir a comunidade em busca da minimização dos riscos manufaturados, os quais são considerados por Giddens da seguinte forma:
O risco manufaturado é resultado da intervenção humana na natureza e nas condições da vida social. As incertezas (e as oportunidades) que ele cria são amplamente novas. Elas não podem ser tratadas como remédios antigos; mas tampouco respondem à receita do Iluminismo: mais conhecimento, mais controle. (1994, p. 38).
Buscam, portanto, os Conselhos da Comunidade, ter e fazer a representatividade dos anseios da sociedade em que está inserido. Para tanto o Artigo 80 da Lei nº 7.210/ 1984, com redação dada pela Lei nº 12.313, de 2010, prevê que sua composição far-se-á mediante diferentes representantes (no mínimo): um representante de associação comercial ou industrial, um advogado indicado pela Seção da Ordem dos Advogados do Brasil, um Defensor Público indicado pelo Defensor Público Geral e um assistente social escolhido pela Delegacia Seccional do Conselho Nacional de Assistentes Sociais.
O que se verifica é que ao inserir a sociedade na execução penal há um duplo viés, que busca de um lado garantir direitos dos encarcerados e de outro instrumentalizar a segurança – ou ao menos minimizar os riscos de e impactos de que os indivíduos presos voltem a delinquir após o cumprimento da pena ou quando em regime semiaberto, aberto ou liberdade provisória. Nesse sentido ressalta Daufemback:
A segurança pública adquiriu, na sociedade moderna, status de política pública, tornou-se um tema amplamente discutido, motivo de preocupação da população e justificativa para um conjunto de medidas nacionais e internacionais de controle dos indivíduos. No entanto, é possível verificar que ela foi configurada em determinado momento da história da sociedade, fazendo parte do cenário de ambiguidades da modernidade (2013, p. 09).
É certo que abordar os Conselhos da Comunidade, bem como a própria atuação desses órgãos, não exclui a gravidade e o repúdio aos atos de muitos condenados. Relata Araújo que “não se pretende desviar o enfoque para esconder a violência dos atos praticados pelos condenados [...] e sim para enfatizar que a “recuperação” ou “ressocialização” do infrator só será de fato alcançada quando este se integrar no sistema social” (1997, p. 31).
No entanto, embora a segurança seja um interesse social, não é diretamente um objetivo dos Conselhos da Comunidade. Suas atribuições estão sintetizadas no art. 81 da citada norma, em uma ralação bastante simplificada que resume a atuação 4 tópicos com aparentemente pouca efetividade ou impacto na sociedade:
Art. 81. Incumbe ao Conselho da Comunidade:
I - visitar, pelo menos mensalmente, os estabelecimentos penais existentes na comarca;
II - entrevistar presos;
III - apresentar relatórios mensais ao Juiz da execução e ao Conselho Penitenciário;
IV - diligenciar a obtenção de recursos materiais e humanos para melhor assistência ao preso ou internado, em harmonia com a direção do estabelecimento.
A atuação dos Conselhos da Comunidade será abordada no item seguinte, mas para o que interessa no presente artigo destaca-se a importância do Art. 81, inciso IV, uma vez que trata justamente do objeto deste debate: a obtenção de recursos materiais e humanos para assistência ao preso. Como fazer isso? Como conseguir financiar as necessidades de um sistema penitenciário que parece estar há anos falido?
Não há como negar que os Conselhos da Comunidade, ao atuar para obtenção de recursos materiais e humanos, acabar por substituir o Estado na elaboração e gestão de políticas que deveriam ser de atribuição única e exclusiva estatal. Mas se a obtenção ou destinação de verbas do Estado para políticas voltadas à população carcerária estão escassas, os Conselhos da Comunidade surgem como efetiva possibilidade de obtenção de financiamento para atender essa parcela importante da sociedade, conforme restará demonstrado abaixo.
2 A ATUAÇÃO DOS CONSELHOS DA COMUNIDADE NA EFETIVAÇÃO DE POLÍTICAS PUBLICAS PARA A POPULAÇÃO CARCERÁRIA
O trabalho realizado pelos Conselhos da Comunidade ainda não possui divulgação ampla. Em geral, somente é possível obter informações locais sobre essa atuação, o que certamente esbarra no direito de acesso à informação previsto no Art. 5º, inciso XXXIII da Constituição Federal de 1988, devidamente regulamentado enquanto dever de disponibilização de dados pela Lei nº 12.527/2011.
Desta forma, a análise aqui proposta, por ter abordagem ampla, não está focada em analisar a atuação específica de qualquer conselho, mas verificar a importância e o foco da atuação dos Conselhos da Comunidade na execução de políticas públicas em benefício da população carcerária, conforme expõe Caldeira:
No entanto, é indispensável salientar que o trabalho do Conselho da Comunidade é de fiscalização da aplicação da Lei de Execuções Penais. Portanto, a atuação do Conselho visa muito mais zelar pela integridade física e moral do preso, melhorar as condições carcerárias e de trabalho dos agentes penitenciários e assegurar o cumprimento da LEP como um elemento fundamental da ordem pública, do que eventualmente mediar em incidentes prisionais. (2004, p. 98)
Além das atribuições relacionadas no Art. 81 da Lei. 7.210/1984, uma importante resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária - CNPCP dispõe sobre a atuação dos Conselhos da Comunidade. Trata-se da Resolução CNPCP nº 10 de 2004, que “estabelece regras para a organização dos Conselhos da Comunidade nas Comarcas dos Estados, nas Circunscrições Judiciárias do Distrito Federal e nas Seções Judiciárias da Justiça Federal”.
Em seu Artigo 5º a Res. CNPCP nº 10/2004 estabelece que “ao Conselho da Comunidade incumbirá”:
I - visitar, pelo menos mensalmente, os estabelecimentos e os serviços penais existentes na Comarca, Circunscrição Judiciária ou Seção Judiciária, propondo à autoridade competente a adoção das medidas adequadas, na hipótese de eventuais irregularidades;
II - entrevistar presos;
III - apresentar relatórios mensais ao Juízo da Execução e ao Conselho Penitenciário;
IV - diligenciar a obtenção de recursos materiais e humanos para melhor assistência ao preso ou internado, em harmonia com a direção do estabelecimento;
V - colaborar com os órgãos encarregados da formulação da política penitenciária e da execução das atividades inerentes ao sistema penitenciário;
VI - realizar audiências com a participação de técnicos ou especialistas e representantes de entidades públicas e privadas.
VII - contribuir para a fiscalização do cumprimento das condições especificadas na sentença concessiva do livramento condicional; bem como no caso de suspensão condicional da execução da pena e fixação de regime aberto;
VIII - proteger, orientar e auxiliar o beneficiário de livramento
condicional;
IX - orientar e apoiar o egresso com o fim de reintegrá-lo à vida em liberdade;
X - fomentar a participação da comunidade na execução das penas e medidas alternativas;
XI - diligenciar a prestação de assistência material ao egresso, como alimentação e alojamento, se necessária;
XII - representar à autoridade competente em caso de constatação de violação das normas referentes à execução penal e obstrução das atividades do Conselho.
A atuação dos Conselhos da Comunidade ganha relevância quando conseguem garantir diversos direitos sociais à população carcerária, em exemplos de atuação diversificada que surgem de todo o país, conforme relata Araújo (1997, p. 30):
As experiências de instalação dos Conselhos da Comunidade, sinalizam uma ampla e positiva participação da sociedade civil organizada que, quando convocada (sem objetivos políticos partidários), se motivam e apresentam soluções viáveis para uma proposta de parceria com os poderes Judiciário e Executivo na questão penal
A participação da sociedade civil na garantia dos direitos sociais da comunidade encarcerada é uma realidade que começa a ganhar força. Trata-se de reforçar o entendimento, para a sociedade civil como um todo, de que o encarceramento possui não somente a função prioritária de proteger a sociedade contra a criminalidade e prevenir a reincidência, mas assegurar a reintegração dos indivíduos à sociedade, levando “uma vida autossuficiente, com respeito às leis” (CNJ, 2016, p. 21). Nesse mesmo sentido destaca Losekann:
Dar a conhecer o que se passa no interior dos cárceres envolve não apenas uma questão de “humanidade”, mas um complexo jogo de poder que vai desde a possibilidade de questionar o preparo e a atuação concreta de agentes penitenciários e autoridades públicas (aí incluindo o juiz), chegando aos mais altos escalões governamentais, que não têm ou não aplicam políticas públicas tendentes a, pelo menos, dar uma faceta um pouco mais humana ao cumprimento das penas, notadamente as privativas de liberdade (2010, p. 48).
Desta forma, estimular a participação da sociedade nos processos de gestão, administração e fiscalização do cumprimento dos direitos sociais àqueles que estão encarcerados é garantir meios possíveis para uma sociedade mais justa dentre e fora do cárcere. Através da elaboração de políticas públicas que atendam às necessidades da população encarcerada busca-se que os reflexos de um tratamento justo e igualitário venham refletir em egressos do sistema prisional efetivamente ressocializados e aptos à continuidade de todos os atos da vida civil no cumprimento das normas morais e legais de convívio.
Em decorrência, a atuação dos Conselhos da Comunidade na elaboração de políticas públicas para a população carcerária deve ser entendida como conjuntos de programas, ações e atividades desenvolvidas direta ou indiretamente pelo estado, e que tenham objetivo de assegurar direitos de cidadania (PEREIRA, 2009, p. 131). As políticas públicas no Brasil estão materializadas principalmente nas áreas de saúde, educação, economia, justiça e cidadania, ambiente e sustentabilidade. Por constituírem políticas, é necessário que sejam concebidas com vistas a atender tanto o conteúdo concreto como o conteúdo simbólico das decisões políticas, em seu processo de construção e na atuação dessas decisões (SECCHI, 2013, p. 28).
No entanto, para a formulação de políticas públicas é necessário ainda considerar as contradições e conflitos nos interesses das diversas classes que compõem o Estado (PEREIRA, 2009, p. 10). Para dirimir os conflitos de interesses sociais, ressalta Dagnino (2002, p. 300) a importância em resgatar o “caráter propriamente público que devem ter as políticas públicas”, reconhecendo a constituição do interesse público que deve ser observado ao conceber uma política, a fim de que efetivamente tenha o retorno esperado na sociedade.
Não há dúvida que a democracia é o único meio para tornar possível a autonomia do indivíduo-ator em vista de um governo da soberania popular, que tenha por finalidade reprimir privilégios e desigualdades para favorecer o contrato social. No entanto, ainda na análise de políticas públicas, não se deve afastar a noção de que democracia é “o direito de cada um conservar ou adquirir o controle sobre a própria existência” (TOURAINE, 2007, p. 48).
A relevância da atuação dos Conselhos da Comunidade acaba modificando-se de unidade para unidade. Algumas comunidades estão bem melhor organizadas e conseguem efetivar um trabalho com maior significância na elaboração de políticas públicas para a população carcerária. Outras tiveram fôlego e apoio inicial para o começo de suas atividades mas parece ter perdido a motivação para o trabalho. E há ainda aquele grupo que têm interesse e força de ação, mas não encontra subsídios financeiros para colocar em prática diversos de seus projetos. As formas e possibilidades de obtenção de recursos e financiamentos para os Conselhos da Comunidade serão abordadas na parte 3 desse artigo.
3 O FINANCIAMENTO DOS CONSELHOS DA COMUNIDADE NA CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS DA POPULAÇÃO CARCERÁRIA
Os debates relacionando tributação e finanças à dignidade da pessoa humana não pode ser considerada recente. A única forma para que o Estado atinja o bem comum é através da arrecadação, conforme destaca Buffon (2020, p. 556):
A razão pela qual o Estado arrecada tributos decorre da necessidade de recursos para que possa atingir os seus fi ns. Isto é, mediante a arrecadação de tributos, o Estado tem meios para garantir o seu custeio e buscar a concretização do bem comum, sendo que essa busca constitui, em última análise, a razão de existir do próprio Estado.
Ainda assim, em que pese a tributação seja frequentemente o primeiro alvo de ajustes e reajustes em tempos de crise, não é suficiente para o financiamento da crescente demanda por políticas públicas. Essa insuficiência se caracteriza principalmente quando identificado que uma “crise de financiamento inviabiliza as perspectivas de crescimento econômico” e em decorrência reduz “a capacidade de implementação das políticas públicas sociais” (RODRIGUES, 1998, p. 31).
Para sobreviver à essa crise sem abandonar a necessária elaboração e execução de políticas públicas torna-se essencial a participação do terceiro setor, definido por Rodrigues como “a sociedade civil que se organizar e busca soluções próprias para suas necessidades e problemas” (1998, p. 31). Essa reação da sociedade civil nada mais é que a expressão da solidariedade, a partir da qual os cidadãos buscam dar sua contribuição para efetivar o financiamento ao “Estado Social e Tributário de Direito”, defendido por Yamashita (2005, p. 60).
Não há dúvida que a administração e o controle das políticas sociais é dever estatal, e em âmbito local os Conselhos são importantes intercessores entre os anseios sociais e a concretização das políticas. O mesmo acontece quando se fala dos direitos da população carcerária, de modo que:
“Os Conselhos devem estar articulados com outras áreas que, em âmbito local, são responsáveis pela gestão das políticas sociais. Áreas como saúde, trabalho, educação, assistência, destinadas à população em geral, devem ter como alvo, igualmente, a população encarcerada” (CGR-RS, [s.d], p. 09)
Bem mais recente que a previsão inicial acerca da instituição dos Conselhos da Comunidade (Lei 7.210/1984), o Conselho Nacional de Justiça buscou regulamentar formas e procedimentos que amparam a atuação desse importante órgão na execução penal e garantia de direitos da população carcerária. Merecem destaque duas Resoluções: a Res. nº 96/2009, que dispõe sobre o Projeto Começar de Novo e institui o Portal de Oportunidades; e a Res. nº 154/2012, que regulamenta a utilização de recursos oriundos das penas de prestação pecuniária.
No artigo 2º da Res. CNJ nº 154/2012, é prevista a destinação dos valores decorrentes de depósitos judiciais originados em execução da pena de prestação pecuniária:
Art. 2º Os valores depositados, referidos no art. 1º, quando não destinados à vitima ou aos seus dependentes, serão, preferencialmente, destinados à entidade pública ou privada com finalidade social, previamente conveniada, ou para atividades de caráter essencial à segurança pública, educação e saúde, desde que estas atendam às áreas vitais de relevante cunho social, a critério da unidade gestora.
§ 1º A receita da conta vinculada irá financiar projetos apresentados pelos beneficiários citados no caput deste artigo, priorizando-se o repasse desses valores aos beneficiários que:
I - mantenham, por maior tempo, número expressivo de cumpridores de prestação de serviços à comunidade ou entidade pública;
II - atuem diretamente na execução penal, assistência à ressocialização de apenados, assistência às vítimas de crimes e prevenção da criminalidade, incluídos os conselhos da comunidade;
Os conselhos da Comunidade são listados como prioritários no recebimento dos valores, e essa tem sido importante fonte para o financiamento das políticas elaboradas e geridas por tais instituições, conforme demonstra o Gráfico 02:
Ferreira ressalta que o fato de os conselhos estarem estabelecidos juridicamente como pessoas de direito privado é um fato que contribui para a obtenção de recursos. Destaca ainda que o volume de recursos pode ser expressivo “talvez até maior do que se recebessem os Conselhos uma fatia mínima (por vezes irrisória) do orçamento público”, se estabelecidas como pessoa de direito público (2015, p. 228).
Para ter acessos aos recursos é importante que os Conselheiros mantenham a elaboração e proposição constante de projetos, tendo inscrição ativa e atualizada junto aos órgãos públicos e/ou privados. A busca por recursos e verbas para a execução de políticas para a população carcerária pode ser realizada junto a entidades Internacionais de Direitos Humanos, Ministério da Justiça (DEPEN), Ministério da Saúde, Secretaria Estadual do Trabalho e Assistência Social, entre outros. É importante ainda a participação em programas e ações realizados pelos governos federais, estaduais e municipais, tais como “A Nota é Minha”, “Nota Solidária”, “Portal da Social” (CGR-RS, 2005, p. 03).
Recentemente, no ano de 2014, houve ainda a promulgação da Lei nº 13.019/2014, o denominado Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil - MROSC. O MROSC é destinado a regulamentar as “parcerias entre a administração pública e organizações da sociedade civil, em regime de mútua cooperação, para a consecução de finalidades de interesse público e recíproco” (Art. 1º). O MROS entrou em vigor em 23 de janeiro de 2016 para as entidades em geral; para os municípios sua vigência somente se deu recentemente, a contar de 01º de janeiro de 2017.
As Organizações da Sociedade Civil (OSCs) são “entidades privadas sem fins lucrativos, ou seja, que desenvolvem ações de interesse público e não têm o lucro como objetivo”. Possuem ampla atuação na promoção e defesa de direitos humanos, saúde, educação, cultura, ciência e tecnologia, desenvolvimento agrário, assistência social, moradia, entre outras. Na elaboração de políticas públicas as OSCs têm importante participação, sendo que sua presença deve ser observada desde a formulação da política, por meio da participação em conselhos, comissões, comitês, conferências até a fiscalização de sua execução (BRASIL, 2016, p. 15).
Ressalta Silva a reinvenção atual do cenário democrático, em decorrência da “variedade de atores sociais e as diversas bandeiras, mas também as demandas específicas e as novas formas de interação entre sociedade civil e administração pública" (2013, p.54). Assim, a presença das OSC’s é uma forma de garantir a democracia no processo de decisão também quando se fala em direito sociais à população carcerária.
Os Conselhos da Comunidade, com ampla atuação perante os institutos e casas carcerárias brasileiras, estão amplamente amparadas pelo MOSC. Através de tais Conselhos, a Sociedade Civil atua de forma democrática no auxílio ao Judiciário para levantar contribuições financeiras para subsidiar reformas estruturais, possibilitar educação e formação profissional aos detentos e suprir demandas relacionadas à garantia dos direitos sociais de todos. A instrumentalização da participação social está pronta, embora ainda demande alguns ajustes para que funcione plenamente na prática. Trata-se de colocar em prática tais mecanismos, e dar efetiva voz à sociedade e às populações carcerárias na garantia de seus direitos.
CONCLUSÃO
A doutrina jurídica brasileira parece ter se especializado em argumentar o excesso de normas em nosso sistema legal vigente. No entanto, o que se verifica é que até mesmo quando se trata de um órgão diretamente vinculado ao judiciário – como é o caso dos Conselhos da Comunidade – há perda de direitos, falta de acesso a recursos e financiamentos, por puro desconhecimento da lei e de seus meandros.
No presente artigo restou claro que existem diversos caminhos a trilhar para a obtenção de recursos e financiamento para projetos dos Conselhos da Comunidade. O fato de governos estarem, ou não, em crise financeira não impede ou exime a responsabilidade pela garantia de direitos sociais à população carcerária. Tal situação evidencia a importância do tema aqui abordado, demonstrando tanto aos gestores públicos quanto aos Conselheiros (dos Conselhos da Comunidade) que há formas legalmente precisas para a obtenção de recursos.
Sabendo onde e como buscar tais recursos a sociedade pode se organizar, a fim de efetivar os direitos de toda a sociedade. Os instrumentos são variados, e a busca por recursos e manutenção dos Conselhos da Comunidade em prol das garantias da população carcerária deve ser observado. Conforme já exposto acima, tratar com dignidade o encarcerado é um benefício que retorna à sociedade, e deve refletir em redução da reincidência e melhoria da segurança local.
REFERÊNCIAS
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** Mestre em Direito e Justiça Social (Universidade Federal de Rio Grande). Especialista em Direito em Administração Pública (Fundação Trompowski). Advogada Publicista OAB/RS 60.077. E-mail: rosana.rosa@gmail.com.
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