Geraldo Magela Daniel Júnior*
Renan Albuquerque Rodrigues**
Francisco Alcicley Vasconcelos Andrade***
Universidade Federal do Amazonas, Brasil
falcicley@gmail.comResumo: O artigo almejou ponderar, com base em estudos dirigidos a dois livros clássicos de Darcy Ribeiro – O processo civilizatório: etapas da evolução sociocultural e O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil –, em que medida a política de ocupação colonialista na Amazônia do século XVI foi pautada por modelos voltados a interesses europeus e concorreu para ressignificar saberes e fazeres locais. Enfatizaram-se desdobramentos, para povos da Amazônia, do descobrimento e da subsequente colonização do Brasil por Portugal.
Palavras-chaves: política de ocupação, colonialismo, Darcy Ribeiro, Amazônia.
Resumen: En este artículo se anhelaba tener en cuenta, en base a estudios dirigidos dos libros clásicos Darcy Ribeiro - El proceso de civilización: etapas de la evolución sociocultural y el pueblo de Brasil: la formación y dirección de Brasil - en qué medida la política de ocupación colonialista en el siglo XVI fue marcado por los modelos de Amazon orientados a los intereses europeos y ha contribuido a replantear conocimientos y prácticas locales. Si-desarrollos estresados, para la gente de la Amazonía, el descubrimiento y la posterior colonización de Brasil por Portugal.
Palabras clave: política de ocupación; el colonialismo; Darcy Ribeiro; Amazonas.
Abstract
The article aimed to consider, based on studies directed to two classic books by Darcy Ribeiro - The civilizatory process: stages of sociocultural evolution and The Brazilian people: the formation and the meaning of Brazil -, to what extent the colonialist occupation policy In the Amazon of the sixteenth century was based on models geared to European interests and competed to re-signify local knowledge and actions. Emphasis was given to the discovery by Brazilians of the discovery and subsequent colonization of Brazil by Portugal.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Geraldo Magela Daniel Júnior, Renan Albuquerque Rodrigues y Francisco Alcicley Vasconcelos Andrade (2017): “O encontro no limiar do século XVI entre portugueses e nativos do Brasil”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (abril-junio 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2017/02/ocupacion-colonista-amazonia.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1702ocupacion-colonista-amazonia
Introdução
O estudo pretendeu descrever primeiramente o encontro no limiar do século XVI entre portugueses e nativos das terras brasileiras, como consequência da desenvolução técnica e econômica da civilização europeia. Utilizou-se como proposta de marco teórico e das categorias norteadoras da análise interpretações sobre os clássicos nacionais O processo civilizatório: etapas da evolução sociocultural e O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil, de Darcy Ribeiro. Seções subsequentes almejaram delinear estruturas econômicas, sociais e ideológicas das formações socioculturais (nativos e europeus) identificadas.
Enfatizaram-se desdobramentos, para povos da Amazônia, do descobrimento e da subsequente colonização do Brasil por Portugal. No tópico de encerramento, argumentou-se que a simultânea apropriação e desqualificação do saber indígena por europeus e descendentes se constituiu em pressuposto para a colonização da Amazônia e a exploração de riquezas pelo núcleo metropolitano do império mercantil salvacionista português.
No âmbito teórico-metodológico, o estudo inferiu que o esquema de desenvolução sociocultural de Ribeiro (1988) influencia com objetividade na proposta de reflexão. O que se objetivou abordar foi a diferença, e não incongruência, entre esse esquema e a visão contemporânea sobre a ocupação na Amazônia.
A discussão versou sobre o defrontar dos mundos, o qual o autor (Ribeiro, 1995) descreve como o primeiro encontro entre civilização mercantil cristã europeia e sociedades de subsistência e indiferenciadas – não clivadas por classes sociais – das terras em colonização, que a partir de então conformariam o Brasil.
Ao longo das praias brasileiras de 1500, se defrontaram, pasmos de se verem uns aos outros tal qual eram, a selvageria e a civilização [...] Os navegantes, barbudos, hirsutos, fedentos de meses de navegação oceânica, escalavrados de feridas do escorbuto, olhavam, em espanto, o que parecia ser a inocência e a beleza encarnadas. Os índios, vestidos da nudez emplumada, esplêndidos de vigor e de beleza, tapando as ventas contra a pestilência, viam, ainda mais pasmos, aqueles seres que saíam do mar (ID., op. cit.: 44).
Almejou-se ponderar a questão na medida em que se refletiu sobre sociedades divergentes, representadas via expressões coetâneas de distintos estágios da evolução sociocultural do homem. A saber: i) os índios, nativos, no estágio da primeira revolução tecnológica agrícola, vivendo como em sociedades cuja força agregadora advinha de parentesco e comunalidade; e ii) os lusitanos, que via revolução tecnológica mercantil, protagonistas (ao lado dos espanhóis) da primeira civilização de base mundial, viviam sob égide política de um Estado monárquico1 em sociedade estruturada por propriedade fundiária e burocracia administrativo-militar (Atlas da história do mundo, 1995; Coe, Snow, Benson, 1997; Ribeiro, 1995, 1998).
O debate suscitou âmbitos referentes a povos que mutuamente se desconheciam, cujo encontro tendeu a não ter acontecido de maneira fortuita. Inferiu-se sobre até que ponto sucessivas revoluções tecnológicas forçaram o desenvolvimento de forças produtivas materiais que lançaram europeus a um mundo então desconhecido.
Sobre o suposto, indicou-se que
o comércio interno da europeu, em intenso crescimento a partir do século XI, havia alcançado um elevado grau de desenvolvimento no século XV, quando as invasões turcas começaram a criar dificuldades crescentes às linhas orientais de abastecimento de produtos de alta qualidade, inclusive manufaturas. O restabelecimento dessa linhas, contornando o obstáculo otomano, constitui sem dúvida alguma a maior realização dos europeus na segunda metade desse século. A descoberta das terras americanas é, basicamente, um episódio dessa obra ingente (Furtado, 1982: 5-6).
O processo civilizatório: categorias fundamentais
Estudando a evolução sociocultural do homem elaborada por Ribeiro em O processo civilizatório (1988) 2 observou-se que a perspectiva foi inventariar o desenvolvimento da humanidade e oferecer esquemas históricos que permitissem situar sociedades do passado e do presente no processo integral do desenvolvimento humano.
Foram explicitadas categorias ontológicas axiais desse desenvolvimento, sem as quais a compreensão da odisseia humana seria abstrata, tal como acontece, por exemplo, na teoria dos três estados – teológico, metafísico e positivo – de Comte (cf. Morais Filho, 1989) ou na teoria da sucessão dos modos de produção (primitivo, escravista, feudal, capitalista e socialista) do marxismo de lineamento positivista (Politzer, Besse, Caveing, s/d).
A primeira edição do texto data de 1968. Percebeu-se, a partir da obra, forte consistência na avaliação das forças responsáveis por aceleramento, retardamento, estagnação ou regressão da dinâmica global. Desde então, na contramão da proposta, pensou-se a crise estrutural do capital – cujos traços proeminentes foram apontados por Santos (2011) – segundo expressões menos efetivas, do tipo “crise dos paradigmas clássicos”, “impotência da razão” e “historicidade constituída por eventos desconectados (historicidade caótica)”, entre outras (Evangelista, 2002; Zaidan Filho, 1989).
Ribeiro (1988) sistematizou categorias tentando apreender “etapas básicas do desenvolvimento tecnológico distinguíveis no continuum da evolução humana”, a partir das quais discriminou “os modos de vida correspondentes [...] em termos de formações econômico-sociais ou socioculturais” (p. 39). Ele identificou “forças dinâmicas responsáveis pela sucessão de etapas e de formações” e, por fim, indicou a determinação de “condições em que essa sucessão se acelera, ou se retarda, ou entra em regressão ou estagnação” (Ib., op. cit.: 39).
O autor sublinhou que a história da humanidade na última dezena de milênios pode ser compreendida como um prosseguimento “de revoluções tecnológicas e de processos civilizatórios”, mediante as quais povos passaram da “condição generalizada de caçadores e coletores para diversos modos, mais uniformes do que diferenciados, de prover a subsistência, de organizar a vida social e de explicar suas próprias experiências” (Id., op. cit.: 39-40).
Os modos sociais de ser se emolduraram segundo três determinações, das quais advêm a uniformidade genérica: o tecnológico (ou sistema adaptativo), o social (ou sistema associativo) e o ideológico (ou sistema ideológico). O primeiro dizia respeito a acumulação de tecnologias disponíveis; o segundo referia-se a reciprocidades que sociedades usavam para se relacionar; o terceiro denotava interação entre determinantes tecnológico, social e cultural, sendo entendidos como acervo simbólico.
A partir das três ordens de imperativos e respectivas conexões, Ribeiro (1988) inferiu sobre etapas da evolução sociocultural, regidas “por princípio orientador assentado no desenvolvimento acumulativo da tecnologia produtiva e militar”, as quais implicam nos modos de organização da sociedade e configuração da cultura (Id., op. cit).
O fato de atribuir-se um poder determinante às inovações tecnológico-produtivas e militares não exclui a possibilidade de atuação de outras forças dinâmicas. Assim é que, dentro de escalas reduzidas de tempo, é igualmente identificável um poder condicionante das formas de ordenação da vida social sobre as potencialidades de exploração do progresso tecnológico, bem como do papel fecundante ou limitativo de certos conteúdos do sistema ideológico – como o saber e a ciência – sobre a tecnologia e, através dela, sobre a estrutura social (Idem.: 47).
Sobre a questão, pontua:
É precisamente a focalização conjunta da interação entre essas diversas ordens de determinação, a global – de base tecnológica [...] – e as particulares – de natureza social ou cultural [...] – que nos pode dar uma compreensão realista da evolução sociocultural. Para tanto será preciso combinar-se uma perspectiva de conjunto da evolução humana com visões parciais, através da utilização de conceitos válidos para distintos âmbitos históricos e para diferentes níveis de abstração (p. 48).
A categoria “processo civilizatório” busca acomodar-se à conjunção entre global e local ao longo do desenvolvimento sociocultural humano, conforme sublinhamento do autor. A “formação sociocultural” é a categoria que denota padrões gerais de enquadramento dentro dos quais se desenvolve a vida dos povos, na visão dele. Portanto é a mesma categoria que Marx (1988, 2011) descreveu pela expressão “formações econômico-sociais”, quando apontou que a formação sociocultural é um padrão de vida fundado na combinação de uma tecnologia produtiva de certo grau de desenvolvimento, com um modo genérico de ordenação de relações humanas com horizonte ideológico.
A categoria “revolução tecnológica” foi orientada para se indicar, sobretudo, a nosso ver, transformações nos aparatos técnicos de uso comum, mediante o qual sociedades realizam ação sobre a natureza visando produzir bens necessários à vida, isto é, transformações em suas forças produtivas materiais. A “revolução tecnológica” representou, em si mesma, implicações subjetivas para a vida dos nativos, tento em sentido individual quanto coletivo. De maneira que no cotidiano foram incorporadas atividades mediadas por técnicas introduzidas a partir do contato com os europeus do além-mar.
Formações socioculturais agrícolas da Amazônia no período do “descobrimento”
A ocupação das margens fluviais da atual região amazônica por povos que viviam de atividades extrativas e coletivas, desenvolvendo sistemas adaptativos à vida na floresta tropical, iniciou-se por volta do ano 5.000 a.C. (Coe, Snow, Benson, 1997; Ribeiro, 1995). Eles realizaram desenvolvimentos tecnológicos relativos ao que Ribeiro (1988) designa de etapa inicial da “revolução agrícola”: agricultura de frutos e tubérculos (especialmente da mandioca), tendo em vista auxiliar atividades de caça, pesca e coleta.
Haviam domesticado diversas plantas, retirando-as da condição selvagem para o mantimento de seus roçados […] Além da mandioca, cultivavam o milho, a batata-doce, o cará, o amendoim, o tabaco, a abóbora, o urucu, o algodão, o carauá, cuias e cabaças, as pimentas, o abacaxi, o mamão, a erva-mate, o guaraná, entre muitas outras plantas. Inclusive dezenas de árvores frutíferas, como o caju, o pequi etc. Faziam, para isso, grandes roçados na mata, derrubando as árvores com seus machados de pedra e limpando o terreno com queimadas (Ribeiro, 1995, p. 31-2).
Em algumas áreas de várzea e em terras com oferta de espécies para a caça e a pesca, “floresceram culturas indígenas de mais alto nível tecnológico, como Marajó e Tapajós, que podiam manter aldeamentos com alguns milhares de habitantes” (Ribeiro, 1995: 307). Eram economias de propriedade comunal que produziam para subsistência e tinham como unidade básica a família. Não existia nessas economias ensejo para a acumulação privada de riquezas e nem para a exploração do trabalho. Excedentes esporádicos, “geralmente produto da dadivosidade da natureza em certas quadras do ano” eram “destinados a gastos supérfluos com atos de fé, ou ao consumo festivo” (Ribeiro, 1998: 88).
Em seus sistemas adaptativos, eram tipificadas como sociedades tribais, cuja estrutura social caracterizava-se pela inexistência de classes e formava-se conforme cada um dos membros possuísse direitos iguais aos demais. A divisão social do trabalho se fazia por sexo e idade – o que significa que sujeitos semelhantes se dedicavam essencialmente a iguais tarefas, exceto guerreiros e líderes xamânicos (pajés, caraíbas, xaboris etc.) (Coe, Snow, Benson, 1997; Ribeiro, 1995, 1988).
No plano ideológico, eram culturas possuidoras de saber adaptado a difíceis condições de habitabilidade: sabiam como cultivar mandioca (sua principal cultura) e outras espécies tropicais; identificavam flora e fauna; conheciam rios e formas de vida neles desenvolvidas; sabiam caçar, pescar e coletar frutas e raízes na mata; navegavam em embarcações resultantes da própria tecnologia; construíam habitações e fabricavam utensílios com matérias-primas extraídas da floresta.
As concepções sobre a vida e a realidade eram de natureza mítica (Coe, Snow, Benson, 1997; Ribeiro, 1995), o que ajudava no estabelecimento de normas para o convívio entre si e com a natureza. O mito constituía-se fundamento de rituais e práticas que conformavam espiritualidades. “Os deuses eram as forças da natureza, controlando a água, o céu, as terras, as montanhas e o mar. Na maior parte das regiões havia um deus criador associado às origens e aos antepassados [...]” (Coe, Snow, Benson, 1997: 158).
Formações socioculturais mercantis salvacionistas
Povos que configuravam a Europa na época da ocupação ao Brasil distavam das formações agrícolas da Amazônia, sobretudo porque já haviam, desde 10.000 a.C., realizado revoluções tecnológicas (revolução agrícola, revolução urbana, revolução do regadio, revolução metalúrgica ou revolução pastoril) desdobradas em processos civilizatórios que ensejaram formações socioculturais distintas.
Na passagem do século XV para o XVI, dois países protagonistas de grandes navegações e descobertas de novas terras, Portugal e Espanha, passavam pela revolução mercantil. O momento engendrou dois processos civilizatórios gerais que culminaram em impérios mercantis salvacionistas e capitalismo de mercado (Ribeiro, 1988).
A revolução mercantil fundava-se em técnicas e instrumentais de orientação para a navegação. Baseava-se, também, em avanços na metalurgia e estava estribada em inovações no aparato e arte da guerra. Empenhava-se na generalização de sistemática para geração energética e transporte de pessoas, fundando-se, por fim, na consolidação de meios de comunicação que serviriam para acelerar o trato com o outro.
Foi essa tecnologia que permitiu a primeira ruptura com a sociedade de tipo feudal prevalecente na Europa desde o declínio do império romano. O aparato tecnológico estava predestinado a transfigurar “as primeiras civilizações de base mundial” (Ribeiro, 1988: 165-6).
A formação sociocultural da qual advinham colonizadores era salvacionista, plasmada a partir de “guerras de reconquistas de territórios dominados por impérios despóticos salvacionistas”, de estrutura ideológica islâmica (Ribeiro, 1988, p. 166). Portugal se lança ao mar ansiando encontrar, ao sul, rota marítima para o oriente, e em busca de novos povos para comercializar e de novas terras para conquistar (Atlas da história do mundo, 1995; Black et al., 1997; Ribeiro, 1995, 1988). Nesse movimento, o Estado lusitano edifica império de base intercontinental.
Descobre sucessivamente o Cabo Verde e a Costa do Ouro, contorna o Cabo da Boa esperança e, afinal, estabelece a rota marítima para a Índia. Subjuga, a seguir, a costa ocidental e parte oriental da Índia e de Malaca. Ocupa Aden e Ormuz, interceptando a antiga via das especiarias. Apodera-se do arquipélago de Sonda, da Indochina e do Brasil (Ribeiro, 1988: 167).
Apesar da revolução mercantil, a reconquista do território português aos mouros implicou retrocesso econômico-social, posto que desbarata um sistema agrário eficiente, de alta tecnologia social, estabelecido sobre o regadio e que alimentou, por séculos, grandes contingentes populacionais.
Assim, na medida em que novos senhores lusitanos vão se apossando de antigas áreas de cultivo agrícola, convertem-nas em pastagens para atividade pecuária, principalmente criação de ovelhas. Por conseguinte, muitos são os camponeses que se retiram das localidades e descendem à condição de pobreza extrema.
Portugal – e igualmente Espanha –, apesar de incorporarem e aplicarem tecnologias da revolução mercantil, configurando-se em matrizes do capitalismo, não conseguindo alcançar a condição de formação sociocultural capitalista mercantil. A consequência disso no contexto socioeconômico de uma Europa em transição do feudalismo para o capitalismo foi que o reino lusitano “passou a perder substância quando entrou em intercâmbio com formações maduramente capitalistas, em virtude do caráter arcaico e defasado de sua estrutura socioeconômica” (Ribeiro, 1988: 169).
Desse modo, Inglaterra, principal aliada política e parceira econômica de Portugal, foi quem mais se beneficiou a partir de relações comerciais que mantinha com o reino ibérico, sobretudo em razão de riquezas sangradas de colônias intercontinentais portuguesas (Furtado, 1982; Ribeiro, 1988).
Parelho ao sistema econômico, a sociedade portuguesa era, ao contrário das aldeias indiferenciadas da Amazônia, “vasta e vetusta civilização urbana e classista” (Ribeiro, 1995: 37). Sua estrutura social se constituía de nobreza proprietária de terras e/ou cortesã, burguesia comercial e financeira, clero católico, funcionários do Estado, intelectuais e advogados humanistas, artesãos, camponeses e lumpemproletariado3 .
No plano ideológico, desenvolveu-se um catolicismo que conduziu a “movimentos messiânicos de extensão da cristandade, como cruzados extemporâneos” e “à erradicação das heresias [...] através da flagelação dos suspeitos de impiedade, das festas públicas de cremação de hereges e da expulsão de centenas de milhares de mouros e judeus” (Ribeiro, 1988: 169-170). Foi impregnado deste elã – evidentemente fazendo par com a aspiração de riquezas com valor no mercado europeu – que aportaram no Brasil os portugueses.
Ao desembarcar, divisaram uma sociedade pagã, sem convicções religiosas pautadas em um Deus judaico-cristão e no pecado como ordenador do mundo. A missão orientava-se por apropriação das riquezas e flagelação da vida do nativo, que deveria se converter e devotar a vida à prosperidade da nação cristã do ultramar. “Eles [portugueses] eram, ou se viam, como novos cruzados destinados a assaltar e saquear túmulos e templos de hereges indianos” (Ribeiro, 1995: 44).
Simultaneamente ao fervor religioso, desenvolvia-se em Portugal o humanismo: movimento intelectual de revalorização e retomada da arte, da literatura e da filosofia clássicas greco-romanas.
O novo ensinamento do humanismo surgiu quando os eruditos começaram a olhar para o mundo antigo, procurando inspiração na filosofia, na literatura e na arte. O centro de preocupação do homem passou do divino para o humano. [...] O novo saber introduziu-se em Espanha e em Portugal a partir da Itália durante o século XIV, e rapidamente se tornou parte do seu fermento cultural (Black et al., 1997: 194).
O processo civilizatório acionado pela revolução tecnológica mercantil, que arremessou lusitanos rumo a mares e engendrou traços sociais e ideológicos anteriormente descritos, fez de Portugal uma formação sociocultural imperial mercantil salvacionista. A ela seria incorporado significativo contingente de aldeias agrícolas indiferenciadas da Amazônia brasileira, na condição de povos subjugados e destinados não apenas a fornecer força de trabalho a empreendimentos, como também a transferir, para o colonizador, conhecimentos acumulados necessários à sobrevivência (Ribeiro, 1995).
Considerações sobre sociedades agrícolas indiferenciadas da Amazônia
A colonização do Brasil por Portugal começa pela costa atlântica após mais de três décadas do “descobrimento”: é que as novas terras, a princípio, não despertaram interesse, visto que nelas o português não encontrava aquilo que fora o propósito da expansão ultramarina, como artigos raros e de valor na Europa, passíveis de comercialização via saque.
A partir de 1530 a ocupação se dá por pressão política exercida por nações europeias cuja revolução produtiva as estava constituindo como formações capitalistas mercantis (Inglaterra, Holanda e França) – todas incitadas pela lenda de riquezas nas Américas à espera de exploradores. Tal fato compele Portugal a defender as posses, sob o risco de vê-las subtraídas por outras nações (Furtado, 1982; Prado Júnior, 1988; Ribeiro, 1995).
De norte a sul da costa atlântica brasileira se instalam núcleos de colonizadores devotados ao monocultivo da cana-de-açúcar para a exportação, utilizando como força de trabalho o negro preado no continente africano, pois a princípio indígenas foram alocados para a faina agrícola, na condição de escravos. Todavia, “não se submeteram com facilidade ao trabalho organizado que deles exigia a colonização […] resistiram ou foram dizimados em pelo desconforto de uma vida tão avessa a seus hábitos” (Prado Júnior, 1988: 12).
A colonização se ajustou à expansão marítima portuguesa considerando a obtenção de mercadorias de valor no comércio europeu. Só que no lugar de traficá-las ou roubá-las, o português põe-se a produzi-las ele mesmo, não com seus braços, é claro, mas com força de trabalho escrava.
No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização [...] toma o aspecto de uma vasta empresa comercial [...] destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu [...] Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros [...] para o comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras (Prado Júnior, 1988: 22-3).
Iniciada a colonização brasileira pelo litoral, a ocupação da região amazônica, de condições ambientais bem mais difíceis à presença humana, teria que esperar um pouco mais. Foi iniciada no final do século XVI e início do XVII, instigada pela necessidade de defender o território contra incursões de ingleses, franceses e holandeses.
A ocupação dos primeiros colonos na região ocasionou baixas a índios que resistiam e escravidão aos que não eram assassinados. Ao adentrar na floresta para o aprisionamento de nativos, colonos descobrem potencialidades econômicas. Em decorrência, no século XVIII, o Pará se constituiu em núcleo de exportação de gêneros: cacau, baunilha, canela, cravo, urucu, resinas aromáticas e madeira, entre outros.
A força de trabalho necessária para levar a cabo a indústria extrativista proveio do índio, mobilizado pelo colonato laico mediante armas e via sedução por quinquilharias da metrópole (espelhos, machados, facões, facas, canivetes, tesouras etc.). Contribuíram missionários jesuítas, carmelitas e franciscanos na adaptação do índio ao serviço demandado pelos colonizadores, em contraste ao sucedido em demais regiões da colônia, onde se recorreu à mão de obra africana.
No vale amazônico os gêneros de atividades se reduzem praticamente a dois: penetrar a floresta ou os rios para colher os produtos ou capturar o peixe; e conduzir as embarcações que fazem todo o transporte e constituem o único meio de locomoção. Para ambos estava o indígena admiravelmente preparado. A colheita, a caça, a pesca já são seus recursos antes da vinda do branco [...] Remador também o índio é exímio [...] Empregado assim em tarefas que lhes são familiares, ao contrário do que se deu na agricultura e na mineração (nesta última, aliás, nunca foi ensaiado), o índio se amoldou com muito mais facilidade à colonização e domínio do branco. Não se precisou do negro” (Prado Júnior, 1988: 70).
O projeto de colonização no bioma, de vertente laica ou sagrada, incluía escravização, transfiguração étnica de índios e, em caso de resistência, o genocídio. A violência redundou em conflitos por causa de religiosos responsáveis por missões católicas e colonos rebeldes e insurgentes.
Para os primeiros [missionários religiosos], os índios, então em declínio e ameaçados de extinção, passaram a ser criaturas de Deus e donos originais da terra, com direito a sobreviver se abandonassem suas heresias para se incorporarem ao rebanho da igreja, na qualidade de operários da empresa colonial recolhidos às missões. Para os colonos, os índios eram um gado humano, cuja natureza, mais próxima de bicho do que de gente, só os recomendava para a escravidão (Ribeiro, 1995, p. 53).
Podem ser apontadas duas consequências da colonização europeia na Amazônia. Primeiro, a incorporação das sociedades nativas (exceto aquelas que se embrenharam em sítios inalcançados) ou de remanescentes mediante a violência física e simbólica. Essa modalidade de processo civilizatório foi qualificada por Ribeiro (1988) como “atualização histórica”.
São “procedimentos pelos quais [...] povos atrasados são engajados compulsoriamente em sistemas mais evoluídos tecnologicamente, com perda de autonomia ou mesmo destruição como entidade étnica” (p. 69). O autor define “atraso histórico” como “o estado de sociedades cujo sistema adaptativo se funda numa tecnologia de mais baixo grau de eficiência produtiva do que o alcançado por sociedades contemporâneas” (IB.).
Segundo, em decorrência da forma como se realizou a atualização histórica dos povos da Amazônia, a qual gerou mortandade biológica e cultural. Além dos índios mortos por caravanas de aprisionamento e extermínio ou exauridos no trabalho escravo, contribuiu para o etnocídio doenças que o branco transportava e transmitia através do seu corpo, já imune, para as indenes populações nativas.
Quando escapavam do extermínio, da escravidão ou do contágio, os índios eram destruídos na alma, em catequizações espirituais. Com efeito, movidos pela intenção de construir repúblicas inspiradas em comunidades cristãs, religiosos católicos impulsionaram domesticações via infusão dos valores cristãos de mansidão, humildade e diligência. Com isso, capacitava-os a servirem àqueles que enxergavam no índio uma pessoa destinada a prover riquezas através de rigorosas labutas.
A desqualificação de saberes tradicionais
Os povos amazônicos se caracterizavam por subsistemas integrados de conhecimento, através dos quais eles interpretavam suas vidas e orientavam suas ações. Dentre esses sistemas, cita-se, primeiro, o conjunto de saberes práticos que os habilitavam a viver nas difíceis condições da floresta tropical, conhecendo-a em detalhes (geografia, plantas, frutos, animais etc.) e dela retirando o que precisavam para a satisfação de necessidades materiais, espirituais e estéticas.
Em segundo lugar, observam-se conjuntos de saberes especulativos (míticos) pelo qual a existência, com traços gerais e particulares, era explicada proporcionando percepção de ordem, sentido e destinação fundamentais ao equilíbrio anímico de seres que, por natureza racional, se sabem mortais, hóspedes transitórios de um enigmático mundo.
O contato com o branco acarretou destino diferenciado para cada um desses sistemas imemoriais. O primeiro, saberes práticos, foi percepcionado como indispensável à adaptação ao habitat. Sobre isso, Ribeiro (1995: 313) destaca que “os índios foram o saber, o nervo e o músculo” do colonizador.
Através da convivência com o índio, esses saberes, indispensáveis à subsistência aos que tivessem propósito de viver na floresta e explorar as riquezas, foram sendo apropriados pelos forâneos, que não apenas se assenhoravam da sabedoria dos desprezados e escravizados, mas também viabilizavam a inserção da economia extrativista no complexo mercantil salvacionista.
O segundo, subsistema de saber especulativo, foi desqualificado pelo colono europeu e seus descendentes neobrasileiros oriundos de uma sociedade cujo sistema ideológico tinha por traço o catolicismo fanático e o movimento renascentista. Colonos e descendentes viam com superioridade as crenças míticas, qualificando-as como pueris, bizarras, insanas ou demoníacas.
Desse modo, os deuses dos índios foram declarados inexistentes; suas razões, menoscabadas; seus líderes religiosos proclamados hereges e agentes do diabo. Não só o ser físico e o mundo social, mas também aquilo que, subjetivamente, outorgava sentido e beleza à existência foi esboroado, desfeito sob imposição da coroa, dos exércitos e padres do além-mar.
A apropriação do saber prático nativo, simultaneamente à recusa e desqualificação de sua contrapartida mítica, foi pressuposto para a colonização da floresta tropical na medida em que se ensejava, além da extração de riquezas, atribuir estatuto inumano aos índios. Quanto muito, era considerado como ser em estado de humanidade inferiorizada, atrasada em sua tecnologia, medonha em seus modos de ser e demente em suas formas de conceber a existência.
Assim, a empresa etnocida e de índole bárbara podia sacralizar-se pelo manto missionário de atos de redenção, voltados a povos desumanizados por selvageria e ausência de uma piedosa religião. A meta desse trabalho deveria ser a inserção dos primitivos dentro de costumes ocidentais, cuja ressignificação se dava por força externa aos saberes nativos.
Considerações finais
A política de ocupação europeia na Amazônia do século XVI e seu modelo colonialista foi direcionada à expansão da Coroa Lusitana, com enriquecimento da monarquia e avassalamento político de socioculturas no bioma encontradas. O Estado concebido nos moldes de Portugal na fase da pré-modernidade foi o mesmo implementado como modelo único nas novas províncias brasileiras, gerando insatisfações em diferentes graus.
Complexidades amazônicas, com suas redes e processos, conferiram grau diferenciado até mesmo ao sistema de inserção de europeus em ambientes locais, onde parentesco, compadrio e cosmologia tinham significado próprio e bem delineado. A espiritualidade, de viés politeísta e com base no tratamento da terra como provedora essencial e não Deus em si mesmo, divergia da constituição judaico-cristã.
Um padrão unitário de desenvolvimento não era possível de ser empenhado na região, de dimensões continentais, principalmente em áreas de bioma onde a diversidade sociolinguística e territorial era notada. O exótico, o pitoresco e o surreal ascendiam ao imaginário de viajantes e floresciam enquanto mítica referente à nova terra descoberta. A consequência disso foi que uma segregação iniciada com preconceitos étnicos e econômicos, fortaleceu-se mediante meandros geográficos e por fim sociais.
Referências
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Evangelista, João. 2002. Crise do marxismo e irracionalismo pós-moderno. São Paulo: Cortez.
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* Doutorando em Sociedade e Cultura na Amazônia pela UFAM.
** Doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA) da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Lidera o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ambientes Amazônicos (Nepam/CNPq). Suas áreas de interesse são i) comunicação social e ii) sociedade-ambiente na Amazônia (subárea interdisciplinar). Pós-doutorado em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
*** Doutorando em Ambiente e Sociedade pela UNICAMP. Mestre em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia - PPGCASA/ UFAM. Possui graduação em ADMINISTRAÇÃO pela Universidade Federal do Amazonas (2011), graduação em GEOGRAFIA pela Universidade do Estado do Amazonas (2010), Especialização em Turismo e Desenvolvimento Local pela Universidade do Estado do Amazonas (2011) e Pós-Graduado em MBA em Gestão em Logística e Operações Globais pela Universidade Estácio de Sá. Foi professor de Geografia, Ecoturismo e Ecologia Básica do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas/ Campus Parintins e professor assistente do Curso de Tecnologia em Gestão Pública da Universidade do Estado do Amazonas/ Núcleo de Estudos Superiores de Borba. Atualmente é professor de carreira do curso de Administração no Instituto de Ciências Sociais, Educação e Zootecnia – ICSEZ/ UFAM. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ambientes Amazônicos (Nepam/CNPq).
1 Portugal foi uma das primeiras regiões da Europa a furtar-se da fragmentação política que caracterizava as sociedades do medievo.
2 Obra cujo objetivo, prontamente declarado por seu autor no primeiro parágrafo do prefácio à primeira edição, “é proceder a uma revisão crítica das teorias da evolução sociocultural e propor um novo esquema de desenvolvimento humano” (RIBEIRO, 1988, p. 07).
3 Categoria do pensamento marxista que indica um grupo social totalmente despossuído, que pode ser descrito como “uma massa desintegrada”, constituída por “indivíduos arruinados e aventureiros egressos da burguesia, vagabundos, soldados desmobilizados, malfeitores recém-saídos da cadeia (...) batedores de carteira, rufiões, mendigos” etc. (MARX apud BOTTOMORE, 1983, P. 223).
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