Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


LA INCLUSIÓN DE LA LITERATURA POPULAR EN LA HISTORIOGRAFÍA DE LA LITERATURA BRASILERA: REFLEXIONES DESDE LA OBRA DE PATATIVA DO ASSARÉ

Autores e infomación del artículo

Rafael Hofmeister Aguiar*

Daniel Conte**

Ana Lúcia Liberato Tettamanzy***

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, Brasil

rafael.aguiar@rolante.ifrs.edu.br

Resumen: Este artículo problematiza la cuestión de la inclusión de la literatura popular en la Historiografía de la Literatura Brasilera. Para ello, en primer lugar, se problematiza la definición de la literatura popular y se pone la importancia de aventar una otra epistemología que abra espacio para las producciones populares junto a las historias de la literatura. En segundo lugar, se hace una revisión de la tradición del repente en la literatura brasilera a partir de Silva (2002). En tercer lugar, se demuestran los recursos estilísticos de la obra Patativa como forma de resaltar la calidad estética de la poesía popular.
Palabras clave: Literatura popular, Historiografia da Literatura Brasileira, Poesia, Patativa do Assaré.
THE POPULAR LITERATURE INCLUSION IN THE HISTORIOGRAPHY OF BRAZILIAN LITERATURE: REFLECTIONS FROM THE WORK OF PATATIVA DO ASSARÉ
Abstract: This article discusses the question of including popular literature in Historiography of Brazilian Literature. For this, at first, it discusses the definition of popular literature and it places the importance of venturing into an epistemology that opens space for the popular productions with the History of Literature. Secondly, it makes a review of the suddenly tradition in the Brazilian literature starting from Silva (2000). Thirdly it shows the stylistic features of Patativa’s work as a way to emphasize the aesthetics of popular poetry.
Keywords: Popular Literature - Historiography of Brazilian Literature - Poetry - Patativa do Assaré.


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Rafael Hofmeister Aguiar, Daniel Conte y Ana Lúcia Liberato Tettamanzy (2017): “La inclusión de la literatura popular en la Historiografía de la Literatura Brasilera: reflexiones desde la obra de Patativa do Assaré”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (abril-junio 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2017/02/obra-patativa-assare.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1702obra-patativa-assare


  1. À GUISA DE INTRODUÇÃO

Na condição de leitores atentos à historiografia da literatura brasileira e às materialidades que a organizam didaticamente, percebemos que existe um fosso entre as obras eruditas da literatura brasileira – merecedoras de pertencer ao cânone literário nacional e figurar em nossas histórias literárias – e as obras de caráter popular, que emergem da diversidade de espaços sócio geográficos de nosso país, movendo para o centro das discussões da crítica literária uma rede imagética, na maioria das vezes, ignorada pelo dizer literário. Essa fissura, portanto, é motivadora de movimentos que excluem obras de cunho popular da nossa história, tanto que Sylvie Debs (2000), pesquisadora de origem francesa, ressalta a distância que, axiologicamente, há entre as literaturas erudita e popular. Diz ela que
A denominação “poesia popular” foi muitas vezes associada a um certo número de representações negativas que a situam ao lado da literatura menor, em oposição à Literatura. As conotações mais correntes que lhe são conferidas são aquelas da simplicidade dos temas abordados e das idéias tratadas, facilidade de versificação e banalidade das rimas, ingenuidade dos sentimentos expressos, falta de originalidade e criatividade, pobreza de vocabulário, riqueza estilística limitada, simbólica indigente. (DEBS, 2000: 11)
Nessa ordem, há a necessidade de discutirmos a inclusão da literatura popular no cânone literário sistematizado na historiografia da literatura brasileira. Para realizar tal discussão, é preciso que estabeleçamos algumas perguntas norteadoras que procuraremos responder ao largo deste trabalho. São elas: o que é literatura popular e quais são seus méritos e êxitos? É possível pensarmos a inclusão da literatura popular no cânone literário e, consequentemente, na historiografia da literatura brasileira?
Para chegarmos à resposta desse problema, é preciso seguir um caminho que passa pelo intento de (re)pensar a literatura desde uma visada epistemológica que valorize o popular, ademais, obviamente, de definir o que é a literatura popular. Cândido (1981), Cascudo (1984), Colombres (2007), Debs (2000), Luyten (1983), Sharpe (1992), Zumthor (2010) servirão de base teórico-crítica
1.1 CULTURA E LITERATURA POPULARES: OUTRA VISADA EPISTEMOLÓGICA
É a partir da repensagem de um novo olhar epistemológico que se permitirá a inclusão da literatura popular na historiografia literária. Esse movimento semântico ressignificador do sistema literário, quando pensamos em Antonio Candido (1981), abrange uma postura remodeladora do cânone que se ergue sobre a arbitrariedade e o apriorismo. Apriorismo classista que “eruditiza” as produções advindas de determinado estrato social e as denomina como literatura ao passo que, simultaneamente, lança as manifestações populares nas fissuras daquilo que a crítica denomina e/ou coloca sob o véu do rústico e do folclórico. Nessa funcionalidade polarizada, evidencia-se um encobrimento dos valores das poéticas e artes populares, modelando e sedimentando uma espécie de etnocentrismo denunciado por Colombres (2007). O autor ensina que os preconceitos
[…] metropolitanos de superioridad llevan a la cultura dominante a ver lo diferente como inferior, lo que cierra los ojos a la belleza de los otros, y con ella a lo que la sociedad tiene de particular. Su cacareado universalismo termina así convertido en un provincialismo elitista y necio. Bajo esta óptica, lo que se aparta de sus cánones raramente será considerado una auténtica cultura. (2007, p. 154)
Ao abordar a epistemologia de caráter eurocêntrico e propor uma “pluri-versalidade epistêmica”, Walter Mignolo (2004, p. 668) define um totalitarismo epistêmico, marcado pelo fato de que “[...] os padrões epistêmicos estabelecidos em nome da teologia, da filosofia e da ciência tornaram possível que se fosse negar a racionalidade a todas as outras formas de conhecimento”. Nesse sentido, há de se questionar se o que o autor denomina como “totalitarismo epistêmico” não levou ao estabelecimento de um cânone excludente que insiste em situar as manifestações literárias populares à margem da estética oficial, atribuindo-lhe um lugar subalterno e estigmatizado, em um movimento similar à estigmatização de classes cujas vivências, impasses e esperanças essa poética dá e é voz.
Mignolo (2004, p. 704) edifica sua exposição em torno de uma colonialidade epistemológica e de uma percepção de que o avanço se dá quando “uma história pós-colonial da ciência reconheceria e daria conta das práticas ‘científicas’ nas sociedades não-europeias” e não “na generosidade de reconhecer a prática ‘científica’ noutras histórias locais”, contribuindo, em tal prisma, “para reificar a própria visão moderna e europeia de ciência”. A afirmação, no contexto deste trabalho, permite que pensemos que a viragem epistemológica na historiografia literária estará não no fato de se elaborar uma história específica da literatura popular, mas, sim, na aceitação, no interior do cânone já estabelecido, dos seus representantes mais significativos. É preciso fugir, em tempo, de aventados progressismos, simulacros do criticismo literário, que procuram uma valoração dúbia ao cunhar termos como “oralitura” que, ao desvencilhar as práticas orais e populares da literatura, acabam por colocar a produção poética popular e oral como algo à parte, visto desde uma perspectiva marginal. O desafio, deste artigo, nesse interim, é não só de situar Patativa do Assaré, repentista que foi, em um continuum, uma tradição lusófona do improviso, de que alguns poetas clássicos da língua participam, mas também de mostrar que o poeta sertanejo possui qualidades estéticas e estilísticas equivalentes àquelas que se “exigem” dos eruditos.
Na sequência da exposição, desde uma perspectiva epistemológica orientadora, realiza-se uma breve apreciação acerca da literatura popular. O relato de Luyten (1983) será usado como ponto de partida para que discutamos o que é, para ele, literatura popular – a escolha do autor passa pela pretensão de sua obra, enunciada no título O que é literatura popular. Uma das primeiras afirmações do autor diz respeito à já consagrada concepção de que a literatura de um povo se inicia a partir das manifestações poéticas, uma vez que, por se constituírem como sociedades iletradas, tendo que recorrer à memória para preservar informações, os povos se utilizaram da poesia, uma vez que possui uma potencialidade significativa de ser memorizada. Dessa forma, a poesia (e ressalta-se: a poesia popular) é a matriz de toda literatura nacional.
A “cultura popular abrange todos os setores da vida de um povo”, observa Luyten (1983, p. 8). No entanto, regra geral, ela indica uma oposição à cultura erudita – oposição negada pela compreensão epistemológica, antes referida. Dentro do amplo leque da cultura popular, segundo o autor, as modalidades comunicativas são as que mais oferecem interesse e, entre elas, a poesia está em um lugar privilegiado, o que se deve à “sua dinamicidade e força de expressão” (LUYTEN, 1983, p. 9). Consoante Luyten (1983, p. 16), a literatura popular se origina no Ocidente em duas etapas. A primeira se dá no século XII e se traduz em uma manifestação “leiga independente do sistema de comunicação eclesiástico”. Esta fase da literatura popular “se caracteriza por ser uma linguagem regional, e não em latim, que naquela época era a língua oficial de toda a Europa cristã” (LUYTEN, 1983, p. 16). É interessante notar que, seguindo a periodização literária, a primeira etapa corresponde ao Trovadorismo, o que se liga ao referido continuum. A outra se dá na passagem do século XVIII para o XIX, à época da ascensão burguesa e da sistematização dos valores pleiteados pela Revolução Francesa (1789). Inicialmente, nesse segundo período, ocorre um distanciamento das duas concepções de cultura (popular e erudita), todavia, depois de alguns anos, ocorre uma tendência de aproximação entre as duas, o que se deve, sobretudo, ao ímpeto romântico de definir um espírito nacional. É, nesta fase, consoante Luyten, que surge “a literatura popular, com consciência de si própria” (1983, p. 18), ademais de trazer em si uma elaboração artística que se percebe fundante nas culturas nacionais e que evidencia as noções de marginalização e de condensação simbólica dos estratos sociais.
A literatura popular, faz-se importante a observação, embora pareça óbvio, possui um caráter, eminentemente, oral e, por este motivo, há uma tendência produtiva maior e mais rica na poesia do que na prosa. Por seu caráter rítmico, “contrariamente à prosa popular, a poesia tende a perdurar, independentemente de ter sido registrada e publicada” (LUYTEN, 1983, p. 23). Por esse fato de ser ou não registrada (ou memorizada), pode-se classificar a poesia popular em duas categorias: fixa e móvel. Como a definição classificatória já indica, esta é a de ocasião, tendendo a se perder no tempo, e aquela, a fixa, “é constituída por poemas e versos que são decorados e, assim, passados adiante” (LUYTEN, 1983, p. 23).
Dessa forma, embora Luyten (1983) intitule sua obra como O que é literatura popular e não apresenta uma definição direta da mesma, podemos arriscar a formular tal definição segundo sua percepção. Literatura popular, em suma, é aquela produzida pelo povo, contrapondo-se à literatura erudita pelos modos de expressão e por suas condições de produção. Essa literatura não goza de um prestígio social, porém a compreensão epistemológica que orienta o estudo a pressupõe como integrante de um quadro amplo em que pode a vir desfrutar um lugar junto às manifestações eruditas, rompendo com uma dicotomia redutora que, historicamente, alimenta sua posição descentrada. Definida dessa forma, a literatura popular e a compreensão epistêmica que aqui se busca, passamos a uma exposição sobre o que compreendemos sobre tradição lusófona do improviso, ou seja, daquilo que Joaquim Norberto de Sousa Silva (2002) apresenta como tradição do repente, gênero que Luyten assevera ser uma das formas de poesia popular.
2. A TRADIÇÃO LUSÓFONA DO IMPROVISO POÉTICO: CONTINUUM HISTÓRICO DO REPENTE
Não seria extemporânea a afirmação de que os poetas brasileiros, herdaram a língua camoniana e dela a constituição imaginária do manejo poético do improviso e isso faz com que eles se tornem exímios repentistas, manipuladores do verso que nasce em concomitância com a música.
Descendentes de Cabral, herdeiros de Camões, os brasileiros recebem por legado do céu a harmoniosa língua dos bardos de além-mar, e a natureza fértil e rica do Novo Mundo lhes acende o estro, essa chama sagrada do entusiasmo, e lhes põe nos lábios a linguagem do improviso, que arrebata e que os torna admiráveis como repentistas (SILVA, 2002, p. 365).
Se o crítico nos apresenta essa herança linguística recebida pelos brasileiros da língua portuguesa, é possível cogitar que a tradição poética do improviso participe de toda uma tradição poética da lusofonia. Neste sentido, é notável o que Luís da Câmara Cascudo (1984) afirma, quando diz que os colonizadores do Brasil trouxeram – e procuraram conservar – os usos e costumes presentes na nação portuguesa, o que pode corroborar a ideia de que o improviso se fazia constituinte da poética lusitana.
Soldados, marinheiros, colonos, administradores trouxeram para o Brasil os usos e costumes que sobreviveram parcialmente, desgastados pelo encontro com outros hábitos e elementos vitais de raças também presentes e convergem para a tarefa comum de formar outra gente, a gente da terra com sangue negro e europeu (CASCUDO, 1984, p. 337).
Faz-se imprescindível pensarmos a literatura lusófona em suas bases históricas, desde o Trovadorismo com as suas cantigas até o contemporâneo, inserida no contexto das manifestações poéticas do sertão nordestino. Não é possível, entretanto, no âmbito deste estudo, realizar uma completa recuperação da história literária lusófona, o que seria, sobremaneira, pretensioso. O que se pretende é, a partir de um recorte teórico, projetar a possibilidade do improviso e do repente participarem como elementos ativos da tradição literária em língua portuguesa; elementos vindos de além-mar e ancorando nos portos da cultura brasileira, de onde se evidenciam materialidades significantes.
Na recuperação da poética trovadoresca, é importante notar a ligação entre poesia e música no Trovadorismo; informação significativa quanto à tradição repentista da poética luso-brasileira, uma vez que improvisação na poesia e a música parecem andar de mãos dadas, constituindo uma estética particularizante da produção de raiz popular. Tal pressuposição pode ser embasada pela afirmação de Cascudo (1984, p. 345) que observa que “toda poesia popular é cantada”. Salienta-se, portanto, o caráter popular da poesia lusitana em suas origens. Se pensarmos em Spina (1984), entenderemos que as composições trovadorescas galego-portuguesas, representadas, sobretudo, pelas cantigas de amigo, possuem uma raiz popular, evidenciando uma matriz estética inegável.
Esta ligação entre poética das cantigas de amigo e o caráter popular está registrada na imbricação conteudística com a realidade medieval portuguesa, as cantigas se caracterizam por um tom realístico; a realidade do noroeste da península ibérica é nelas representadas com as suas “reuniões festivas à frente das igrejas, as romarias” que “entram em cheio nessa poesia da terra, que os outros povos irmãos não conservaram” (SPINA, 1984, p.15).
Faz-se necessário ressaltar que há uma vocação da cultura galego-portuguesa para a música. Há uma tendência e uma habilidade bastante antigas dos povos do noroeste da Ibéria na utilização da música. Isso faz com que se possa inferir que tal preponderância para a música, possa ter contribuído para o desenvolvimento de uma poesia com caráter de improvisação nos espaços da Galícia e de Portugal.
Tal ponto de vista deve-se, sobretudo, à seguinte observação de Spina (1985, p. 13).
[...] as virtudes poéticas e musicais destas populações do noroeste da Península Ibérica são de uma ancianidade anterior a todos estes movimentos poéticos da época do feudalismo. Estas qualidades inatas aos galegos e lusitanos do Norte vêm acusadas pelos conhecedores da região: desde antes de Cristo, como Diodoro Sículo; Estrabão, Sílio Itálico, S. Jerônimo, S. Martinho Dumiense, o próprio Santo Agostinho, referem-se às virtudes artísticas destes povos, especialmente para a dança e a poesia. O próprio comentador de Camões, Manuel de Faria e Sousa, no seu Epitome de las Historias Portuguesas, diz que cada fonte de Portugal e cada monte são Hipocrenes e Parnasos.
É evidente no fragmento a preeminência dos galegos e portugueses para a poesia, aliada à música, o que leva a pensar que haja surgido uma poética calcada na improvisação. Possibilidade que se concretiza, se se considerar as tenções registradas em uma Poética do século XIV publicada por Teófilo Braga e registrada por Cascudo (1984) em Literatura Oral no Brasil. Essa forma poética se assemelharia muito ao repente produzido no Nordeste brasileiro, uma vez que as tenções são calcadas no desafio intersubjetivo, o que faz pressupor uma improvisação orgânica e constituinte do gênero. O trecho do Fragmento de uma Poética Provençal do século XIV, citada por Cascudo (1984, p. 346) sem se referir ao possível autor do documento, é tão importante para o que se quer aventar neste trabalho que se faz admissível citar ipsis litteris 1 o trecho.
Outras cantigas fazen os Trobadores, que chamã tenções, porque son feytas per maneiras de rrazon que huu aja contra o outro em quais diga que por bem tever na prima cobra et outro responda-lhe na outra dizendo o contrayro. Estas se podem fazer d’amor ou d’amigo ou d’escanho, ou de mal dizer, pero devem seer de meo. E d’estas podem fazer quantas cobras quizeren, fazendo cada huu a sua parte. Se hy houver d’aver fiida, fazen ambos senhas, ou duas duas, ca non convem de fazer huu mays cobras nen mais fiidas que o outro.
Existem procedimentos estilísticos na lira trovadoresca que, talvez, tenham sido cunhados para facilitar a improvisação, como a glosa2 , o mote 3, o paralelismo 4 e o leixa-pren 5. Tais procedimentos dão margem a que Silvano Peloso (1996), em O canto e a memória, ligue Camões à tradição trovadoresca. Nessa ordem, podemos pensar que, embora o poeta de Os Lusíadas não fora um improvisador, tenha sido, seguramente, herdeiro da estilística cunhada pelos improvisadores do Trovadorismo.
Peloso (1996) ensina que, ao cultivar a medida velha, Camões faz uma recuperação da herança tradicional da lírica trovadoresca. É significativo notar que o autor (p. 61) ressalta a recuperação pelo renascentista português dos recursos estilísticos do Trovadorismo.
Do ponto de vista estilístico, assistimos a uma retomada de todos os artifícios técnicos próprios do paralelismo. Da reiteração do verso com alteração a quiasmo do ritmo, devido à inversão verbal, que é um dos primeiros e mais comuns traços retóricos da cantiga popular [...]6 ao desdobramento do conceito mediante a sua expressão negativa [...] para chegar, por esta estrada, à anáfora, à aliteração e às outras figuras da annominatio nas suas várias ramificações.
Ao apresentar os motes utilizados por Camões, Peloso (1996) fala desse recurso poético como modo de facilitar um sistema móvel poético que, a raiz desta característica, permite construir formas ilimitadas de situações e arranjos. Isto se deve ao fato de o mote fazer com que o poeta, através da memória, construa possibilidades de edificações poética que lhe facilitem a funcionalização de sua performance. Eis outro dado que parece ligar o clássico Camões ao popular e à tradição do improviso; ao se render às redondilhas, o renascentista clássico se rende à tradição poética lusitana do improviso: há o encontro do poeta épico erudito com as práticas poéticas do Trovadorismo, que possui eminente cunho popular.
O mote se funda, com efeito, em um esquema binário, ao mesmo tempo conceitual e rítmico, sobre o qual se insere uma série de técnicas mnemônicas com tendência a realizar um sistema móvel de ecos e paralelismos que, se por um lado, através do deslocamento metafórico, universalizam a afirmação em um número ilimitado de situações, de outro, instituem também uma isotopia em função de um código tradicional, virtual mas incontestável, que constitui um plano de referências insubstituível (PELOSO, 1996, p. 63-64).
Entretanto, não é só na parte técnica que o épico no seu fazer lírico retoma a tradição trovadoresca, mas também nos aspectos conteudísticos. Através de uma ressignificação e reelaboração, Camões vai beber na fonte temática dos trovadores que construíram uma poética calcada na música e quase que, por conseguinte, no improviso. Temas
e esquemas convencionais, herdados da poesia dos trovadores, revivem, assim, como fragmentos de um tecido tradicional mais amplo, agora abolido, e se inserem como material lírico de montagem nas novas construções poéticas (PELOSO, 1996, p. 60).
Para além das constatações de uma retomada por Camões das formas poéticas tradicionais galego-portuguesas, outros poetas do seu tempo também fizeram este caminho. Alguns motes, como expõe Peloso (1996), são recuperados por outros artífices do verso do Humanismo e Renascimento português. Já Teófilo Braga observara
que formas poéticas tradicionais (entre as quais cantares de serranilla, guaiados e formas galegas de tradição oral) são retomadas com frequência  por Camões e Gil Vicente para serem elevadas a nova dignidade literária. Na realidade, o circuito instaurado por estas formas poéticas é muito mais amplo e diz respeito a outros autores do tempo: além de Camões e Gil Vicente, Sá de Miranda, Andrade Caminha e Diogo Bernardes, para estender-se também a mais tardios epígonos como Francisco Rodrigues Lobo. É possível, assim, que poetas diversos retomem um mesmo mote para glosá-lo cada um à sua maneira (PELOSO, 1996, p. 65)
Nesta reconstrução histórica, após ter sido abordada a tradição do improviso na poética galego-portuguesa, é preciso se voltar à experiência brasileira. Neste sentido, faz-se necessário retomar as observações de Silva (2002) sobre o que ele denomina de poetas repentistas.
O autor da primeira história da literatura brasileira afirma que Gregório de Matos, no século XVII, constitui-se em nosso primeiro poeta repentista. A tradição do repente se estende, para o crítico, do sátiro baiano até o Romantismo, momento em que esse autor de referência viveu, por isso ela pode ser compreendida como manifestação que se perpetua em nosso imaginário, constituindo imagens que nos significam.
A poética de Gregório de Matos é calcada no improviso, de acordo com Silva (2002, p. 368), ele “não pensava, nem hesitava, como um relâmpago a sátira lhe caía dos lábios completa, perfeita, ferina e aniquiladora”. É importante mostrar que a composição do Boca do Inferno era, de acordo com seu biógrafo Manuel Pereira Rabelo 7 (1999), acompanhada ao som da viola, traço de identificação com o repente realizado ainda hoje no nordeste brasileiro e herdado de uma acentuada influência ibérica.
Com estas prendas fazia apreço particular de uma viola, que por suas curiosas mãos fizera, frequentado divertimento de seus trabalhos: e nunca sem ela foi visto nas funções, a que seus amigos o convidavam; recreando-se muito com a brandura suave de suas vozes. Por esta viola, a que havia deixado na Madre de Deus, fazia extremos tais, receando que sem ela o embarcassem [para o seu exílio em Angola]; mas o vigário Manuel Rodrigues, a quem feriam n’alma suas desgraças, prontamente lhe mandou com um liberal donativo para as cordas dela (RABELO, 1999, p. 1264).
Esta utilização da viola como acompanhamento dos improvisos poéticos, e servindo de braço interpretacional da cultura, como extensão performática da voz, também está marcada em Lourenço Ribeiro, poeta contemporâneo de Gregório de Matos. Ribeiro, pese a dureza da vida eclesiástica, conservou a verve poética.
Lourenço Ribeiro foi contemporâneo de Gregório de Matos, e como ele era filho da Bahia, e como ele improvisava cantando ao som de uma viola, não obstante a gravidade de sua profissão eclesiástica e os louros de pregador que ambicionava conquistar com as prédicas proferidas de cima do púlpito (SILVA, 2002, p. 370, grifos nossos).
Joaquim Norberto de Sousa Silva (2002), a propósito, afiança que a viola se constituiu na lira dos poetas brasileiros. Isto explica o fato de um século depois de Gregório de Matos e Lourenço Ribeiro, Domingos Caldas Barbosa se tornará conhecido por empunhar a viola e dela se valer de acompanhamento para os seus poemas que eram compostos de improviso.
As suas prendas [de Domingos Caldas Barbosa] o tornaram conhecido de todas as sociedades da nossa antiga metrópole, que o admiravam pela habilidade com que acompanhava com a viola cantando os seus improvisos, que constavam de glosas sobre os assuntos que lhe davam, por mais difíceis que fossem (SILVA, 2002, p. 374).
O autor desenha um panorama da tradição do repente na poesia brasileira, numerando um número considerável de poetas que o cultivaram. Dentre estes, cabe destacar também o nome de Basílio da Gama. Conhecido por escrever o épico O Uraguai, Gama cultivou o improviso poético, herança que Silva (2002) atribui ao repente. Conforme as palavras do investigador, antes “disso tiveram os seus contemporâneos de admirar o seu gênio poético e a inspiração de que se apossava em seus rápidos e deslumbrantes improvisos” (SILVA, 2002, p. 371).
Em Literatura oral no Brasil, Cascudo demonstra que há uma tradição do improviso na poesia de caráter popular por meio do desafio não só no repente cultivado no Nordeste brasileiro, mas também na trova e na payada sul-rio-grandense. Antes de voltarmo-nos ao “fazer poético” de Patativa do Assaré, buscando identificar, através de dados bibliográficos e empíricos – advindos da pesquisa de campo realizada no município cearense de Assaré – a relação do poeta popular com a poesia e perscrutar o modo como ele compunha seus versos.
Em tempo, ainda, há de se dizer que as cantorias calcadas no improviso no Nordeste são distinguidas por Manuel Bandeira. Em Cantadores do Nordeste, o sujeito poético rememora a participação como ouvinte e juiz da performance viva dos violeiros nordestinos.
Anteontem, minha gente,
Fui juiz numa função
De violeiros do Nordeste
Cantando em competição,
Vi cantar Dimas Batista,
Otacílio, seu irmão,
Ouvi um tal de Ferreira,
Ouvi um tal de João.
Um, a quem faltava um braço,
Tocava cuma só mão;
Mas, como ele mesmo disse,
Cantando com perfeição,
Para cantar afinado,
Para cantar com paixão,
A força não está no braço:
Ele está no coração (BANDEIRA, 1993, p. 256).
Acerca desse poema da obra do modernista, Carlos Nogueira (2007, p. 37) afirma que Bandeira “explora a técnica da literatura popular em verso, nomeadamente o ritmo próprio da cantoria”. Na sequência do poema, aliás, o sujeito poético faz referência, inclusive, aos procedimentos estilísticos inerentes às cantigas de desafio.
Ou puxando uma sextilha
Ou uma oitava em quadrão,
Quer a rima fosse em inha,
Quer a rima fosse em ão,
Caíam rimas do céu,
Saltavam rimas no chão!
Tudo muito bem medido
No galope do sertão (BANDEIRA, 1993, p. 256).
Essa voz do poema de Bandeira, uma espécie de espelhamento do próprio poeta, considera as composições improvisadas dos cantadores como mais valiosas que suas composições eruditas. Exala-se, possivelmente, uma consciência de que o improviso é uma marca de uma tradição poética luso-brasileira, sedimentador do lastro edificante de nossa literatura.
Saí dali convencido
Que não sou poeta não;
Que poeta é quem inventa
Em boa improvisação,
Como faz Dimas Batista
E Otacílio, seu irmão;
Como faz qualquer violeiro
Bom cantador do sertão,
A todos os quais, humilde,
Mando a minha saudação (BANDEIRA, 1993, p.  257) (grifo nosso)!
Com a exposição acerca da tradição do improviso na literatura lusófona, pode-se dizer que ela está presente na nossa história literária desde as suas primeiras manifestações. Se assim o é, ou seja, que o repente está na infra-estrutura do fenômeno diacrônico literário brasileiro, não se pode deixar de considerar os poetas e cantadores que perduram esta tradição e incluí-los na historiografia da literatura brasileira8 .
Não lhes basta, entretanto, estarem afinados com ela (a tradição), mas, sim, apresentarem uma obra que manifeste uma elaboração formal, em termos estéticos e estilísticos, que os distingam dos seus pares e os aproximem dos representantes da literatura erudita 9. Em outras palavras, o poeta popular deve representar, com qualidade estética que o distinga, um conteúdo que materialize a realidade em que se insere; deve deixar desvelar um habitar que só seu fazer poético pode descrever, mas que, ao mesmo tempo, todos sentem que poderiam o fazer, porém nunca puderam manejar a palavra de tal modo. Patativa do Assaré, é nossa convicção, concretiza tal critério, por este motivo, na próxima seção deste estudo, faz-se uma avaliação das qualidades estéticas e estilísticas inerentes à obra patativana.
3.  QUALIDADES ESTILÍSTICAS DA POESIA POPULAR: O CASO PATATIVA DO ASSARÉ
Para que se evidencie a qualidade da poesia popular, selecionamos um corpo de dez poemas10 de Patativa do Assaré, totalizando 1.140 versos, distribuídos em 140 estrofes. Em todos esses poemas, pudemos verificar uma extrema elaboração formal. Apresentamos, então, nas linhas que seguem, alguns dados constatados.
Nos 10 poemas do corpus, identificamos, basicamente, dois tipos de metro: os versos de sete sílabas, ou redondilhas maiores, e os versos de onze sílabas, ou endecassílabos. Percebemos, com isso, que os versos utilizados por Patativa do Assaré são regulares.
A redondilha maior ocorre em oito poemas, em 1.072 versos. Isto demonstra a preferência do poeta por essa métrica, ocorrendo nos poemas O vaqueiro, Ao poeta do sertão, A terra é natura, Cabôca da minha terra, O retrato do sertão, Vida sertaneja, Eu e o sertão e Nordestino sim, nordestinado não. Tal preferência está ligada à própria natureza do verso heptassílabo. Como observa Goldstein,
O verso de sete sílabas, heptassílabo ou redondilha maior, é o mais simples, do ponto de vista das leis métricas. (...) Talvez por isso ele seja o verso predominante nas quadrinhas e canções populares. Verso tradicional em língua portuguesa, já era frequente nas cantigas medievais. (2004, p. 27)
Dessa maneira, o poeta popular faz uso de um metro apropriado a esta variedade poética. Aliás, como mostrou a autora no excerto acima, esse tipo de verso é tradicional na língua portuguesa, tendo origem no Trovadorismo, o que faz com que se possa inferir que, pelo caráter oral das cantigas medievais, ele é próprio da oralidade, que visa à memorização que foi a forma de Patativa construir seus poemas. Essa métrica é seguida à risca, pois, como demonstra o poema O vaqueiro, todos os versos são redondilhas maiores .
Eu/ ve/nho/ dêr/ne/ me/nino (7 sílabas)
Der/ne/ mun/to/ pe/que/nino (7 sílabas)
Cum/prin/do o/ be/lo/ des/tino (7 sílabas)
Que/ me/ deu/ No/sso/ Se/nhô (7 sílabas)
Eu/ nas/ci/ pra/ sê/ va/quêro (7 sílabas)
Sou o/ mais/ Fe/liz/ bra/si/lêro (7 sílabas)
Eu/ não/ in/vê/jo/di/nhêro ((7 sílabas)
Nem/di/pro/ma/de/ do/tô (7 sílabas) (ASSARÉ, 2007, p. 57)
O outro tipo de verso utilizado nos poemas em análise é o endecassílabo. Este metro aparece em apenas dois poemas (O poeta da roça e Caboclo roceiro) em um total de 68 versos. Este, o verso endecassílabo, é uma variedade clássica, o que demonstra um alto grau de formalização, pois não é nem o decassílabo nem o alexandrino. Constatamos que ele é seguido na totalidade de versos dos dois poemas, como demonstra as estrofes 4 e 7 do poema O poeta da roça.
Meu/ ver/so/ ras/te/ro/, sin/ge/lo e/ sem/ graça, (11 sílabas)
Não/ en/tra/ na/ pra/ça/, no/ ri/co/ sa/lão, (11 sílabas)
Meu/ ver/so/ só/ en/tra/ no/ cam/po e/ na/ roça (11 sílabas)
Nas/ po/bre/ pai/o/ça,/ da/ ser/ra ao/ ser/tão. (11 sílabas)
(...)
Eu/ can/to o/ va/quê/ro/ vês/ti/do/ de/ côro, (11 sílabas)
Bri/gan/do/ com o/ to/ro/ no/ ma/to/ fe/chado, (11 sílabas)
Que/ pe/ga/ na/ pon/ta/ do/ bra/bo/ no/vio, (11 sílabas)
Ga/nhan/do/ lu/gi/o/ do/ do/no/ do/ gado. (11 sílabas) (ASSARÉ, 2007, p. 21-22)
Se diante do tipo de versos utilizados pelo poeta deparamo-nos com uma preponderância de apenas dois metros, a variedade de estrofes é maior. São quatro as formas de distribuição das 140 estrofes dos poemas: quadras (4 versos), sextilhas (6 versos), oitavas (8 versos) e décimas (10 versos). As quadras estão presentes em três poemas: O poeta da roça, Caboclo roceiro e Eu e o sertão. Nos dois primeiros, todas as estrofes são quadras; no último, somente a décima primeira estrofe em que o eu lírico dá voz a outra pessoa. Essa estrofe é transcrita para exemplificar esse tipo de distribuição dos versos.
– Neste Mês de Alegria,
Tão lindo mês de frô,
Queremo de Maria
Celebrá o seu louvô. – (ASSARÉ, 2007, p. 156)
Esse tipo de estrofação é recorrente à poesia popular, possuindo uma estrutura mais simples, considerando, este fato, é interessante notar que somente 18 estrofes dos dez poemas apresentam esta estrutura. Os poemas Ao poeta do sertão e Nordestino sim, nordestinado não apresentam os seus 186 versos organizados em 31 estrofes de seis versos. Para ilustrar essas sextilhas, transcreve-se abaixo a primeira estrofe do segundo poema acima citado.
Nunca diga nordestino
Que Deus lhe deu um destino
Causador do padecer
Nunca diga que é o pecado
Que lhe deixa fracassado
Sem condições de viver (ASSARÉ, 2007, p. 207)
As oitavas estão presentes nos 112 versos do poema O vaqueiro. Das catorze estrofes que o compõem as duas últimas são exemplo de tal tipo de estrofe em Patativa do Assaré.
Eu não sei tocá viola, 
Mas seu toque me consola, 
Verso de minha cachola 
Nem que eu peleje não sai, 
Nunca cantei um repente 
Mas vivo munto contente, 
Pois herdei perfeitamente 
Um dos dote de meu pai.
O dote de sê vaquêro, 
Resorvido marruêro, 
Querido dos fazendêro 
Do sertão do Ceará. 
Não perciso maió gozo, 
Sou sertanejo ditoso, 
O meu aboio sodoso 
Faz quem tem amô chorá. (ASSARÉ, 2007, p. 61)
Em metade dos poemas, foram encontradas estrofes de 10 versos. Os poemas que possuem tal tipo de estrofação são A terra é natura, Cabôca da minha terra, O retrato do sertão, Vida sertaneja e Eu e o sertão. No total, esses poemas somam 78 estrofes, todavia 77 estrofes são décimas, pois, como já foi disse acima, a décima primeira estrofe de Eu e o sertão é uma quadra. Como exemplo desse tipo de estrofe apresentamos, a seguir, a última de A terra é natura.
Escute o que tou dizendo,
Seu dotô, seu coroné:
De fome tão padecendo
Meus fio e minha muié.
Sem briga, questão, nem guerra,
Meça desta grande terra
Umas tarefa pra eu!
Tenha pena do agregado,
Não me dêxe deserdado
Daquilo que Deus me deu! (ASSARÉ, 2007, p. 83)
Conhecidos os tipos de estrofes que estruturam os poemas, passaremos, a seguir, a ver como se dá a organização distribucional das rimas nas estrofes. A análise se restringiu às rimas externas presentes nos poemas.
A construção que Patativa do Assaré faz com as rimas demonstra um alto grau de formalização e cada tipo de estrofe apresenta um esquema de rima que é seguido rigidamente. Com poemas que chegam a 190 versos, distribuídos em 19 estrofes, como é o caso de O retrato do sertão, impressiona (ou, ao menos, deveria impressionar) a qualquer analista, tendo em vista a passagem insignificante de Antônio Gonçalves da Silva pelo sistema formal de ensino. Inclusive, na maior parte dos poemas, encontramos uma grande variedade de rimas, sendo o seu auge o poema Cabôca da minha terra que apresenta 67 tipos de rimas diferentes.
A opção do poeta pelo verso rimado, em oposição ao verso branco, é demonstrada em um poema que não compõe o nosso corpus. Nas estrofes 9 e 10 de Aos poetas clássicos, fica bem clara a preferência de Patativa do Assaré pela rima. A versificação segue rígidos preceitos em termos de metro; as variações da redondilha maior e do endecassílabo, o que pode ser percebido no tocante às rimas.
Se um dotô me perguntá 
Se o verso sem rima presta, 
 Calado eu não vou ficá, 
 A minha resposta é esta: 
 — Sem a rima, a poesia 
 Perde arguma simpatia 
 E uma parte do primô; 
 Não merece munta parma, 
 É como o corpo sem arma 
 E o coração sem amô. 
 Meu caro amigo poeta, 
 Qui faz poesia branca, 
 Não me chame de pateta 
 Por esta opinião franca. 
 Nasci entre a natureza, 
 Sempre adorando as beleza 
 Das obra do Criadô, 
 Uvindo o vento na serva 
 E vendo no campo a reva 
 Pintadinha de fulô. (ASSARÉ, 2004, p. 19)
Por trás do português mal escrito do poeta popular, advém um conhecimento sobre o procedimento poético, ao que muitos denominam simplesmente de poesia sem rima, Patativa do Assaré dá um passo adiante e chama de poesia branca, aproximação ao termo técnico na teoria da poesia: verso branco.
Após essa breve digressão sobre a importância da rima na obra do e para o autor, voltaremos para a exposição e exemplificação das rimas nos poemas analisados. Iniciamos com as quadras, abordando somente aquelas que aparecem nos poemas que integralmente a utilizam, deixando para ver a que aparece em Eu e o sertão quando falar das décimas. Isto se deve ao fato de a quadra desse poema diferir, em termos de esquema de rimas, das dos outros dois poemas (O poeta da roça e Caboclo roceiro), que se organizam da mesma maneira.
As quadras, se comparadas com os outros três tipos de estrofes empregadas pelo poeta, são as construções mais simples em termos de rima. Essa simplicidade da quadra é observada por Goldstein (2004, p. 40) que afirma que “quando se trata de composição popular, a estrofe de quatro versos tem estrutura menos elaborada (podem rimar apenas os versos pares)”. O que se pode observar nos dois poemas em questão, em que as rimas seguem o esquema ABCB, ocorrendo somente nos versos pares, podendo ser classificadas como rimas interpoladas (versos 2 e 4 de cada estrofe). Tal estrutura de rima pode ser observada na primeira estrofe de O poeta da roça, abaixo reproduzida.
Sou fio das mata, cantô da mão grossa,                   A
Trabáio na roça, de inverno e de estio.                                  B
A minha chupana é tapada de barro,                          C
Só fumo cigarro de páia de mío.                                B 
(ASSARÉ, 2007, p. 21)
As sextilhas apresentam um grau de formalização maior que as quadras. Nos dois poemas que se organizam em estrofes de seis versos, encontrou-se dois grupos de rimas emparelhadas (verso 1 e 2 e versos 4 e 5) e um grupo de rimas interpoladas. Dessa maneira, tem-se um esquema de rimas em AABCCB como pode ser visto na estrofe que segue de Ao poeta do sertão.
Fui em lágrimas desfeito                    A
de viola sobre o peito                                    A
sentar à beira do mar.                                    B
Queria cantando as águas                  C
amenizar minhas máguas                   C
Dar alívio ao meu pensar.                  B
(ASSARÉ, 2007, p. 68)
Nas oitavas, as rimas são emparelhadas e interpoladas. Aquelas se dão em trios entre os versos 1, 2 e 3 (AAA) e entre os versos 5, 6 e 7 (CCC) e estas entre os versos 4 e 8 (BB). É interessante notar que o poeta, em sua elaboração formal, emparelha as rimas em grupos de três versos, o que não é tão recorrente nos poemas.
Sei que o dotô tem riqueza,               A
É tratado com fineza,                        A
Faz figura de grandeza,                     A
Tem carta e tem anelão,                     B
Tem casa branca jeitosa                     C
E ôtas coisa preciosa;                                   C
Mas não goza o quanto goza             C
Um vaquêro do sertão.                      B
(ASSARÉ, 2007, p.  57)
Do ponto de vista da elaboração formal, as décimas apresentam-se de forma mais elaborada. São três os tipos de rimas nos cinco poemas que se organizam em estrofes de dez versos: as cruzadas, as emparelhadas e as interpoladas. As cruzadas acontecem nos versos 1, 2, 3 e 4 (ABCB), as emparelhadas em dois grupos, o primeiro entre os versos 5 e 6 (CC) e o segundo entre os versos 8 e 9 (EE), e as interpoladas nos versos 7 e 10 (DD).  A primeira estrofe de Vida sertaneja serve para exemplificar essa distribuição das rimas externas.
Sou matuto sertanejo,                                    A
Daquele matuto pobre                                   B
Que não tem gado nem quêjo,                       A
Nem ôro, prata, nem cobre.                B
Sou sertanejo rocêro,                         C
Eu trabaio o dia intêro,                       C
Que seja inverno ou verão.                 D
Minhas mão é calejada,                      E
Minha péia é bronzeada                     E
Da quintura do sertão.                                   D
(ASSARÉ, 2007, p. 114)
Resta, antes de seguir adiante, quando se encaminhar para uma tentativa de discussão da necessidade de agendamento da inclusão da literatura popular na historiografia literária brasileira, falar sobre a organização das rimas na quadra de Eu e o sertão. Esta estrofe apresenta as rimas iguais aos primeiros quatro versos das décimas, ou seja, apresenta rimas cruzadas, seguindo o esquema ABAB como se constata abaixo.
– Neste Mês de Alegria,                     A
Tão lindo mês de frô,                         B
Queremo de Maria                             A
Celebrá o seu louvô. –                                   B
(ASSARÉ, 2007, p. 156)
Poderíamos, ainda, nos referir a como a utilização do português não-padrão contribui para a manutenção das rimas e para a construção das rimas, mas não se faz necessário para o objetivo que aqui se propõe.
4. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
A necessidade de agendar a inclusão da literatura popular na historiografia literária brasileira se justifica pelo fato de ocorrer uma revisão dos paradigmas tradicionais da história que propõe que ela seja vista de baixo, revisão paradigmática que não se reflete na historiografia literária (SHARPE, 1992). Sendo assim, seguindo a visão de Sharpe, esta história vista de baixo não deve ficar restrita ao gueto e deve ser utilizada para “redefinir e consolidar a corrente principal da história” (1992, p. 61-62), e a historiografia literária deve se ater a tal pressuposto e, se não incluir de imediato a literatura popular, deve, ao menos, promover a discussão sobre a possibilidade dessa inclusão.
Antes de encerrar este artigo, algumas considerações se fazem necessárias. Uma delas é justiçar o espaço concedido à análise estilística dos poemas de Patativa do Assaré. O grande espaço dado à questão estética e estilística se deve ao fato de considerar que ela é o critério básico para a avaliação de uma obra literária, podendo demonstrar que a literatura popular possui qualidade ao contrário do que muitos afirmam.
Também é possível afirmar que o problema proposto no início deste artigo foi, se não totalmente, mas em parte, respondido, uma vez que procurou se demonstrar que é necessário apontar a necessidade da literatura popular integrar a historiografia literária brasileira. Por fim, como se pretendeu mostrar neste breve estudo, há razões para incluir a literatura popular na historiografia da literatura brasileira. Três motivos, ao menos, podem ser elencados para isso: a) ela se insere em uma tradição; b) ela possui qualidades estéticas comparáveis à poesia erudita; e c) ela preenche os critérios de um novo paradigma historiográfico que pretende ver a História desde a óptica daqueles que a viveram, longe de apologias nacionalistas.
O estudo, desse modo, reabilita uma literatura frequentemente subvalorizada e aventa a possibilidade de estendê-la a audição do sujeito social, colocando a sua contemplação um aspecto significativo da ossatura antropológica que o comporta.
5. REFERÊNCIAS
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CAMÕES, Luís de. Os lusíadas. São Paulo: Nova Cultural, 2002.
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira – momentos decisivos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.
CASCUDO, Luis da Camara. Literatura oral no Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia/ São Paulo: Universidade de São Paulo, 1984.
COLOMBRES, Adolfo. Sobre la cultura y el arte popular. Buenos Aires: Ediciones del Sol, 2007.
DEBS, Sylvie. Patativa do Assaré: uma voz do Nordeste. In: ASSARÉ, Patativa. Patativa do Assaré uma voz do Nordeste. São Paulo: Hedra, 2000. p. 9 – 37.
GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons, ritmos. 13. ed. São Paulo: 2004.
LUYTEN, Joseph M. O que é literatura popular. São Paulo: Brasiliense, 1983.
MIGNOLO, Walter. Os esplendores e misérias da ciência. In: SANTOS, Boaventura de. Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez: 2004. p.121-143.
NOGUEIRA, Carlos. Cantigas ao desafio e estetização da fala: natureza, modalidades e funções. Organon, Porto Alegre, p. 33-56, jan-jun. 2007.
PELOSO, Silvano. O canto e a memória: história e utopia no imaginário popular. São Paulo: Ática, 1996.
RABELO, Manuel Pereira. Vida do excelente poeta lírico o doutor Gregório de Matos Guerra. In: MATOS, Gregório de. Crônica do viver baiano seiscentista. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 1251-1272.
SHARPE, Jim. A história vista de baixo. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. p. 74-99.
SILVA, Joaquim Norberto de Sousa. História da literatura brasileira e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zé Mario editor, 2002.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

* Realiza doutoramento em Literaturas Portuguesa e Luso-Africanas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Processos e Manifestações Culturais - ênfase interdisciplinar em Literatura, História e Comunicação pela Universidade Feevale (2013). Professor e pesquisador do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul - Campus Rolante. rafael.aguiar@rolante.ifrs.edu.br

** Doutor em Literatura Brasileira, Portuguesa e Luso-africana (2008). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, professor permanente e pesquisador da Universidade Feevale, atuando no PPG em Processos e Manifestações Culturais e no Mestrado Profissional em Letras. danielconte@feevale.br

*** Doutora em Letras - Área Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1999). Professor associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordena o Projeto de Pesquisa "A Vida Reinventada: pressupostos teóricos para análise e criação de acervo de narrativas orais". atettamanzy@terra.com.br

1 Inclusive na ortografia da época.

2 Composição poética que desenvolve o sentido de um mote dado ou escolhido, e que termina em cada uma de suas estrofes com um dos versos do mote.

3 Mote é o verso ou conjunto de versos que é utilizado como desafio poético, para criação de uma composição poética.

4 Repetição de uma palavra ou expressão na mesma posição em versos diferentes.

5 Também conhecido como disseminação e recolha, consistindo na repetição dos segundos versos de um par de estrofes como primeiros versos do par seguinte. Tais construções estilísticas são expostas em Spina (1985).

6 Peloso (1996), nestes espaços, traz exemplos oriundos da lírica camoniana.

7 Segundo nota de James Amado, organizador da obra completa de Gregório de Matos, Crônica do viver baiano seiscentista, onde se encontra a biografia de Rabelo, o texto do licenciado data dos meados do século XVIII.

8 Obra significativa que traz aspectos do “transplante da tradição” e do “saldo das influências” é a de Luis Soler, lançada em 1978 pela editora da Universidade Federal de Pernambuco, denominada As Raízes Árabes na Tradição Poético-musical do Sertão Nordestino.

9 Há de se considerar, numa abordagem sociológica, a questão da exclusão da poesia popular da historiografia da nossa literatura advir de um preconceito de classe, pois devemos considerar a afirmação de Bakhtin (2010) quando confere ao signo linguístico o estatuto de arena da luta de classes.

10 O corpus deste exercício de análise formal dos poemas é composto por O poeta da roça, O vaquêro, Ao poeta do sertão, A terra é natura, Cabôca da minha terra, O retrato do sertão, Vida sertaneja, Eu e o sertão e Nordestino sim, nordertinado não.


Recibido: 16/05/2017 Aceptado: 23/05/2017 Publicado: Mayo de 2017

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