Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


A INCONSTITUCIONALIDADE DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE

Autores e infomación del artículo

Marco Eduardo Souza Andrade Pacifico*

Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil

marco-pacifcio@hotmail.com

RESUMO

O presente trabalho possui como objetivo principal demonstrar a inconstitucionalidade da execução provisória da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Tal prática vem sendo utilizada amplamente na jurisprudência pátria, em diversos graus de jurisdição. Para tanto, apresentar-se-á primeiramente o conceito de princípio juntamente com a evolução histórica do princípio da presunção de inocência. Posteriormente, analisar-se-á os votos, de maneira sintética, expressos no julgamento dos habeas corpus nº 84.078/MG e nº 126.292/SP e Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 43 e nª 44, todas no Supremo Tribunal Federal. Por fim, demonstrar-se-á inconstitucionalidade da tese da execução provisória da pena privativa de liberdade e a impossibilidade de continuar com espaço na jurisprudência brasileira, com base na lei da ponderação de Robert Alexy e na doutrina contemporânea.
Palavras-chave: Presunção de Inocência, Lei da ponderação, Supremo Tribunal Federal, Inconstitucionalidade, Jurisprudência.

ABSTRACT

The main purpose of this study is to demonstrate the unconstitutionality of the provisional execution of the custodial sentence before the final sentence of the condemnatory criminal sentence at Brazilian jurisprudence. For this purpose, the concept of principle will be presented first, together with the historical evolution of the principle of the presumption of innocence. Subsequently, the votes, in summary form, will be analyzed in the judgment of habeas corpus nº 84.078 / MG and nº 126.292 / SP and Declaratory Actions of Constitutionality nº 43 and nº 44, all of the Federal Supreme Court. Finally, it will be demonstrated the unconstitutionality of the thesis of the provisional execution of the custodial sentence that still rules in Brazilian jurisprudence, based on Robert Alexy's law of weighting and contemporaneous doctrine.

KEYWORDS: Principle of the presumption of innocence. Law of weighting. Federal Supreme Court. Unconstitutionality. Jurisprudence.



Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Marco Eduardo Souza Andrade Pacifico (2017): “A inconstitucionalidade da execução provisória da pena privativa de liberdade”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (abril-junio 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2017/02/inocencia.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1702inocencia


1 INTRODUÇÃO

            A execução provisória da pena privativa de liberdade foi o tema que mais intrigou a comunidade jurídica no ano de 2016.
Do ano de 2009, com o julgamento do habeas corpus nº 84.078/MG, até o julgamento do habeas corpus nº 126.292/SP, em 2016, estava consolidado na jurisprudência brasileira que executar de maneira provisória a pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória violaria de maneira categórica o princípio da presunção de inocência, previsto no art. 5º, LVII, da Constituição Federal.
Todavia, no ano de 2016, devido ao julgamento de três ações basilares para o presente trabalho – habeas corpus nº 126.292/SP e Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 43 e nº 44 –, tal posicionamento foi alterado, permitindo-se que sentenciados com condenações confirmadas em segundo grau de jurisdição pudessem imediatamente serem recolhidos ao cárcere sem que houvesse o trânsito em julgado da condenação criminal. Isso, desde já, fere o princípio da presunção de inocência insculpido no art. 5º, LVII da Constituição Federal de 1988.
Diante de tal cenário, tendo em vista o grande impacto social causado pelas decisões em comento, é imperioso verificar se os fundamentos que as sustentam possuem substrato mínimo na doutrina contemporânea.
Assim, remetendo-se aos fundamentos do conceito de princípio e às origens históricas do princípio da presunção de inocência, busca-se responder se a execução provisória da pena privativa de liberdade é acertada com base na doutrina contemporânea e na lei da ponderação de Robert Alexy.
Entender as motivações por trás da mudança de paradigma que o Supremo Tribunal Federal (STF) inaugurou com o habeas corpus nº 126.292/SP é significativo, visto que dia após dia observa-se uma desconstrução nos tribunais superiores de princípios fundamentais ao cidadão, que, em tese, deveriam ser protegidos e ampliados, posto que, conforme leciona Mauricio Zanoide de Moraes, são inerentes à coletividade e benéficos a todos (Moraes, 2010: 234).
Além disso, tal assunto necessita ser discutido amplamente pois influenciará o direito processual penal, direito penal e execução penal ao redor do território nacional, remodelando os requisitos para o cumprimento da pena, dado que o recurso especial ou extraordinário interposto perante os tribunais superiores pode vir a absolver o acusado.
Dessa forma, o presente estudo é embasado na utilização do método dedutivo, pois pressupõe a busca do conhecimento partindo-se do geral, pelo levantamento de dados, de leis, doutrinas, jurisprudências e princípios constitucionais, para se chegar à solução do problema proposto nesta pesquisa.
Assim, no capítulo primeiro, é feito um breve estudo do conceito de norma, princípio e regra, além de um apanhado histórico com vistas a explicar o surgimento e evolução do postulado da inocência ao longo das eras, desde o direito romano até a atualidade.
Já no segundo capítulo, são expostos e analisados parte dos votos utilizados no julgamento do habeas corpus nº 84.078/MG, habeas corpus nº 126.292/SP e Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 43 e nº 44, que mudaram sensivelmente a jurisprudência pátria no tocante à execução provisória da pena. 
Por fim, no terceiro capítulo, é apresentado estudo analítico alicerçado na lei da ponderação de Alexy, introduzida no capítulo primeiro e retomada no capítulo terceiro, e em bases doutrinárias que verificam a validade dos principais argumentos invocados nas ações supracitadas, visando, com isso, demonstrar a inconstitucionalidade da execução provisória da pena nos tribunais brasileiros.

2 FUNDAMENTOS DA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS ENTRE PRINCÍPIOS E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

Na jurisprudência brasileira do século XXI, quer seja na corte suprema ou nos mais variados tribunais de justiça e tribunais regionais federais espalhados pelo território nacional, de acordo com José Miguel Garcia Medina, nunca se viu o uso tão exacerbado de princípios para a solução das mais variadas pretensões, não importando seu nível de complexidade ou os atores envolvidos (Medina, 2016: s/p).
            Porém, verifica-se também banalização do termo “princípio”. Tome-se, por exemplo, o princípio da dignidade da pessoa humana. Insculpido no art. 1º, inciso III da Constituição Federal, o fato é que, em nome desse princípio, os tribunais vêm decidindo sobre os mais variados temas, e em qualquer sentido possível (Medina, 2016: s/p).
            Nessa senda, a dignidade da pessoa humana é invocada para se justificar qualquer tomada de posição, como se tal argumento pudesse ser utilizado como licença para se decidir livremente (Medina, 2016: s/p).
            Dessa forma, faz-se imprescindível, para balizar o presente trabalho, definir o que são princípios segundo a doutrina e explicar como proceder nas hipóteses de colisão entre eles, conforme observado a seguir.

2.1 DA DEFINIÇÃO PRINCIPIOLÓGICA E FORMAS DE RESOLUÇÃO DE EMBATES ENTRE PRINCÍPIOS

            De acordo com a doutrina clássica, de Robert Alexy, a definição de princípio a ser utilizada no presente trabalho propõe que tanto as regras quanto os princípios são duas espécies integrantes da estrutura da norma (Alexy, 2010: 140)
            Para Alexy, o marco diferenciador entre as regras e os princípios é aplicar-se ou não o “modo-tudo-ou-nada”, introduzido por Ronald Doworkin e analisado por Alexy (Alexy, 2010: 140) Assim, abrem-se somente duas possibilidades: (i) ou a regra é considerada válida e a consequência jurídica é aceita, ou (ii) ela não é valida e não se aproveita em nada para a prolação de uma decisão (Alexy, 2010: 140). Os princípios, por sua vez, têm dimensão que as regras não possuem, qual seja, a do peso (Alexy, 2010: 141).
Dessa forma, aludido autor explica que: “[...] quando dois princípios colidem, o princípio com o peso relativamente maior decide, sem que o princípio com o peso relativamente menor, com isso, fique inválido.” (Alexy, 2010: 141)
            José Joaquim Gomes Canotilho possui entendimento que vai ao encontro daquele que Alexy possui. Segundo Canotilho, regras são “[...] normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proíbem) que é ou não é cumprida.” (Canotilho, 1998: 1035).
            Já os princípios, para Canotilho, são: “[...] normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fácticos e jurídicos.” (Canotilho, 1998: 1035).
            Saber essa distinção é importante porque indica, ao intérprete do direito, quando este se encontra em situação na qual deve realizar uma escolha: qual norma deve prevalecer? (Canotilho, 1998: 1035).
            Canotilho preceitua que:

Em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objeto de ponderação, harmonização, pois eles contêm apenas exigências ou standards, que, em primeira linha, devem ser realizados; as regras contêm fixações normativas definitivas, sendo insustentável a validade simultânea de regras contraditórias. (Canotilho, 1998: 1036).

            Ademais, um modelo ou sistema constituído exclusivamente por regras:

[...] conduzir-nos-ia a um sistema jurídico de limitada racionalidade prática. Exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e completa – legalismo – do mundo e da vida, fixando, em termos definitivos, as premissas e os resultados das regras jurídicas. Conseguir-se-ia um sistema de segurança, mas não haveria qualquer espaço livre para a complementação e desenvolvimento de um sistema, como o constitucional, que é necessariamente um sistema aberto. Por outro lado, um legalismo estrito de regras não permitiria a introdução de conflitos, das concordâncias, do balanceamento de valores e interesses, de uma sociedade pluralista e aberta. (Canotilho, 1998: 1036).

            Por sua vez, um ordenamento jurídico baseado exclusivamente em princípios conduziria o intérprete a um sistema falho de segurança jurídica, visto que inexistiriam regras precisas, balizadoras de condutas, e coexistiriam princípios conflitantes (Canotilho, 1998: 1036-1037).
Com base na ponderação citada por Canotilho, Alexy, seu idealizador, explica que há, na doutrina, críticas a essa técnica de aplicação do direito, visto que o possível grau de discricionariedade, que incumbe ao julgador na hora de se realizar a ponderação, pode deslegitimá-la (Alexy, 2011: 131).
Alexy explica tal controvérsia da seguinte forma:

[...] caso sua análise mostre que ponderar não pode ser outra coisa senão decidir arbitrário, então estaria com a racionalidade da ponderação posto em dúvida, simultaneamente, a sua legitimidade na aplicação do direito, especialmente na jurisprudência constitucional. (Alexy, 2011: 131).

Assim, Alexy propõe uma forma racional de se aplicar o instituto da ponderação de princípios, por meio da lei da ponderação, que é exposta em sua obra: “Quanto mais alto é o grau do não cumprimento ou prejuízo de um princípio, tanto maior deve ser a importância do cumprimento de outro.” (Alexy, 2011: 133).
Em suma, isso significa que a importância dada a um princípio em detrimento de outro é avaliada segundo o possível impacto caso o outro princípio não seja cumprido. De forma exemplificativa, se o princípio “a” possui um alto grau de importância tal que, se não for cumprido, causará grandes sequelas, este seria mais importante que o princípio “b”, devendo, assim, prevalecer na análise do caso concreto.
Para melhor compreensão do capitulo três, qual seja, a aplicação da lei da ponderação de Alexy e a questão do entendimento doutrinário moderno no caso de sopesamento principiológico, será necessário retomar alguns aspectos abordados nesse tópico.
Estabelecidos os conceitos que guiarão o presente estudo, proceder-se-á à exposição da evolução histórica e origem de um dos princípios mais importantes do direito penal brasileiro: a presunção de inocência.

2.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PRINCÍPIO DE PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA: DO IMPÉRIO ROMANO À CONSTITUIÇÃO DE 1988.

Antes de partir para a análise da origem do princípio da presunção de inocência, é imprescindível a análise etimológica e semântica dos pressupostos constitutivos da expressão “presunção de inocência”.
O vocábulo “presunção” vem do latim praesumptio, significando antecipar, prever, imaginar antes. Possui como origem a combinação do verbo sum – cujo significado, em tradução livre, é, acontecer, valer – com o prefixo prae, que indica anterioridade (Moraes, 2010: 83).
Sua origem latina, portanto, indica ser a presunção forma de se tornar, antecipadamente, algo que ainda não aconteceu ou que se prevê provável de acontecer. Há, em juízo antecipado, a preconcepção de que algo deve ser tratado ou concebido de determinada maneira.
Já o dicionário jurídico brasileiro dispõe que o termo “presunção” é juris tantum, ou seja, “de direito até que se prove o contrário” (Santos, 2001: 294), sendo forma de presunção legal condicionada a prova em contrário (Santos, 2001: 197).
O verbete “inocência”, de outra forma, adveio do termo latino innocentia, cujos significados também podem ser múltiplos, sendo sua imensa maioria com concepções vulgares ou religiosas de aplicação. Nesse viés, segundo Maurício Zanoide de Moraes:

[...] inocência pode ser, em sentido vulgar: inteireza ou simplicidade de costumes; candidez, virgindade, ausência de malícia, pureza, desinteresse ou ingenuidade. No campo religioso, é qualidade de quem nunca pecou e ignora o mal. (Moraes, 2010: 87-88).

Apresentada a origem semântica dos verbetes, percebe-se que ambos possuem origem comum: o latim, língua amplamente falada no império romano. No direito romano, há pequenos indícios do surgimento do princípio da presunção de inocência como se conhece hoje. Porém, o que é bastante presente é a sua faceta diametralmente oposta: a presunção de culpabilidade. Os primeiros traços do surgimento de um processo penal, mesmo que insipiente, ocorreram a partir da fase da cognitio, no período régio do império romano. Tal fase, que se estendeu de 754 a.C a 510 a.C, ficou marcada pela forma de governo monárquica, patriarcal onde o rex (rei, em latim) era o “magistrado único, vitalício, irresponsável” (Moraes, 2010: 3). Na cognitio que surgiu o ensaio de uma inquisição primitiva, que aconteceria séculos depois (Moraes, 2010: 4-7).
            Em tal sistemática, o direito de defesa era exercido somente até o ponto em que o magistrado achasse conveniente. O infrator, quase que na totalidade dos casos, era tido como traidor ou pecador e era levado a um julgamento já realizado antes mesmo de sua apresentação ao magistrado. Assim, tal ato era mera formalidade para a aplicação da pena prevista ao delito abstratamente imputado (Moraes, 2010: 8).
            Com o fim do império romano e início da alta idade média, houve retrocesso estatal, pois toda a estrutura de estado trazida pelos romanos foi perdida pelos povos ditos “bárbaros”, que possuíam normas basicamente consuetudinárias para a solução de conflitos (Moraes, 2010: 40).
Foi somente na baixa idade média, com a ascensão da igreja católica, que houve o retorno do procedimental inquisitorial primitivo que era realizado ainda no império romano (Moraes, 2010: 47-48). Esse arcaico procedimento se manteve praticamente integral no período medieval da baixa idade média, por meio das inquisições para a expiação dos pecados do indivíduo, no qual bastava única e exclusivamente mera suspeita do cometimento de fato típico para o código criminal da época para que o cidadão fosse tratado já como culpado, sem ao menos existir julgamento para tanto.
            O procedimento inquisicional da idade média é apresentado por Ricardo Alves Bento, que explica aquele período possuía como traço marcante o fato de o juiz possuir o poder de instrutor, acusador e julgador concentrado em sua pessoa (Bento, 2007: 31-33).
            Dessa forma, a paridade de armas tal qual conhecemos hoje era completamente desconhecida, o que criava a superioridade do Estado no seu poder punitivo em face do cidadão acusado (Bento, 2007: 31-33).
            Outrossim, no procedimento inquisicional, havia uma acusação secreta, e a mais simples suspeita poderia ser motivo para iniciar um processo crime contra o acusado que desde o início teria a presunção de culpabilidade, tanto quanto às provas e ao próprio tratamento dispensado ao longo do processo, submetido ao exacerbado poder estatal da pretensão punitiva (Bento, 2007: 31-33).
Essas características denotam a violação considerável do princípio da igualdade, considerando o réu como simples objeto das investigações e acusações, com o dever de provar a sua inocência evitando a sua condenação, predominando o abuso no tratamento do suspeito (Bento, 2007: 31-33).
Pouco a pouco, o sistema inquisitivo desgastou-se devido às suas diversas falhas. Os reformadores posteriormente, no curso do século XVIII, diagnosticaram que o sistema criminal da inquisição era a principal fonte de abusos e desmandos estatais da época (Moraes, 2010: 70).
Então, no final do século XVIII, sob influência do período iluminista na Europa, foi constatada a real necessidade de se reagir contra o processo penal inquisitório.
Com a ascensão da burguesia da Revolução Francesa de 1789, esta percebeu a necessidade de tratar todos de forma igual perante a lei, justamente porque não possuía os mesmos benefícios da nobreza da época (Moraes, 2010: 70). Esse movimento inicial de igualdade formal é o que alguns autores, como Karel Vasak e Flávia Piovesan, costumam definir como direitos humanos de segunda geração, qual seja: igualdade (Piovesan, 2015: 221).
Em um primeiro momento, a mudança do paradigma de análise do comportamento humano foi realizada quando se passou a atribuir com força de lei, a todos os integrantes de uma dada sociedade, a condição de “inocentes”. Tal alteração ocorreu em função de escolhas político-ideológicas por parte do julgador, conforme leciona Moraes (Moraes, 2010: 90). Uma escolha desse porte feita e exercida diariamente pelos ocupantes do poder (ou apenas de fração dele), influenciou a concepção, elaboração, aplicação, interpretação e finalidade de todo sistema jurídico, notadamente em sua porção criminal (Moraes, 2010: 90).
Assim, diferente do período recentemente rompido (feudalismo, com o uso da inquisição), para que determinada conduta fosse criminalizada houve a necessidade de provas contundentes que demonstrassem, racionalmente, a culpa de alguém. Com isso, não se poderia mais tomar, a priori, alguém como autor certo de um crime sem que antes existisse certeza de seu cometimento (Moraes, 2010: 88).
            Essa guinada comportamental exigiu que o observador:

[...] não tomasse apenas uma posição sobre quem ele examina (o “outro”), mas, principalmente, sobre si mesmo em relação ao outro. Essa posição comparativa entre o “eu” e o “outro”, mais do que necessária, revela as razões pelas quais se aceita, ou não, que todos “são” (potencialmente) culpados ou, ao contrário, que todos “somos” inocentes. (Moraes, 2010: 90).

No Brasil, tais controvérsias estiveram presentes na composição do atual Código de Processo Penal – CPP – (Decreto-Lei nº 3.689/41), que entrou em vigor no dia 3 de outubro de 1941.
Dentre os diversos temas que o decreto previa, constava a pena de morte, o fim do direito de greve e o desaparecimento da figura do juiz natural, garantias sociais conseguidas pelos cidadãos ao longo das eras (Moraes, 2010: 157). Por isso, com essa supressão de direitos, revelou-se um tom autoritário para o regime da época, segundo Moraes (Moraes, 2010: 156).
Como a política do momento possuía viés autoritário e era amplamente baseada no sistema italiano nazi-fascista, a inspiração teórica para o CPP não foi diversa. Assim, com base na produção doutrinária oriunda da Escola Positiva italiana e desenvolvida pela Escola Técnico-positivista de Manzini, o Decreto-Lei surgiu sem qualquer menção à presunção de inocência (Moraes, 2010: 158).
Da mesma forma que no regime italiano da época, o positivismo brasileiro aceitou de forma muito restrita, o in dubio pro reo. Limitou a sua incidência às situações em que o juiz permanecesse na dúvida sobre a culpa do acusado mesmo após exaurir o exercício de seu amplíssimo poder instrutório e exercer seu ilimitado livre convencimento (Moraes, 2010: 90).
Até os dias atuais, o CPP não permitiu ou criou formas de se aplicar o preceito pro reo em decisões sobre prisão provisória ou para início de fases persecutórias, como o oferecimento de denúncia ou de pronúncia (Moraes, 2010: 159). Há, no núcleo estruturante do diploma legislativo a constante ideia de presunção de culpa e a existência constante de um inimigo a ser constantemente perseguido e punido (Moraes, 2010: 159).
O caráter autoritário do decreto é nitidamente observado no seguinte excerto da sua exposição de motivos:

II – (...) é restringida a aplicação do in dubio pro reo (...). Tratando-se de crime inafiançável, a falta de exibição do mandado não obstará a prisão, desde que  o preso seja imediatamente apresentado ao juiz que fez expedir o mandado. (...). Não é consagrada a irrestrita proibição do julgamento ultra petitum. (...) VII – (...). Enquanto não estiver averiguada a matéria da acusação ou da defesa e houver uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar o ‘in dubio pro reo’ ou o ‘non liquet’. (Vanzolini, 2016: 358-361).

Do trecho, observa-se que a aplicabilidade do atual princípio constitucional in dubio pro reo foi reduzida e utilizada como inspiração legislativa na década de 1940 para a elaboração do CPP.
O princípio da presunção de inocência somente ingressou no sistema jurídico brasileiro a partir de 1988, com a edição da atual constituição, em seu artigo 5º, inciso LVII determina que: “ninguém será considerado culpado até o transito em julgado da sentença penal condenatória” (Brasil, Constituição Federal de 1988: art. 5º, LVII).
Mais do que norma literal, o postulado da presunção de inocência significa, de acordo com Ricardo Alves Bento: “uma norma de comportamento diante do acusado, segundo o qual são ilegítimos quaisquer efeitos negativos que possam decorrer exclusivamente da imputação” (Bento, 2007: 64). Assim, o tratamento proferido ao acusado, em toda fase instrutória, não pode revelar presunção de culpabilidade, ainda que lhe imputado crimes gravíssimos.
Dentre os efeitos negativos da imputação, um que causou reviravolta jurisprudencial no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) foi a possibilidade, definida por este Tribunal, de que o acusado possa iniciar o cumprimento da pena antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Tal decisão afronta de forma direta o postulado da inocência, que demorou séculos para conseguir ser construído, consoante já explanado no decorrer do presente tópico.
Dessa forma, no capítulo seguinte, serão estudados os fundamentos que levaram o STF a firmar tal posicionamento.

3 ANÁLISE DO POSICIONAMENTO DA SUPREMA CORTE BRASILEIRA QUANTO À POSSIBILIDADE OU NÃO DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE ANTES DO TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA

Desde a data da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, em 05 de outubro de 1988, até 05 de fevereiro de 2009, o STF possuía entendimento pacificado quanto à possibilidade da antecipação da execução da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado definitivo.
Nessa toada, era plenamente aceitável após a decisão confirmatória da condenação em 2º grau o imediato cumprimento da medida, independentemente da existência ou não de recurso pendente de julgamento nas instâncias superiores. Somente em referida data, com o julgamento do habeas corpus nº 84.078-7/MG, tal posicionamento foi alterado pelo STF por 7 votos a 4.
Contudo, em 2016, o STF, no julgamento do emblemático habeas corpus nº 126.292/SP e, depois, na apreciação das Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 43 e nº 44, mudou de posicionamento e passou a permitir tal prática.
Diante desse breve histórico, passe-se à análise dos fatos que originaram o habeas corpus no STF nº 84.078/MG.

3.1 SÍNTESE DOS FATOS DO HABEAS CORPUS Nº84.078/MG

            O habeas corpus nº 84.078/MG atuou como um divisor de águas na jurisprudência pátria pois realizou estudo aprofundado de diversos pontos sensíveis na matéria penal, que não haviam sido debatidos de forma tão contundente como no julgado em estudo.
            Esse remédio constitucional foi impetrado perante o STF como substitutivo de recurso ordinário após sua denegação prévia no STJ.
            O paciente do habeas corpus foi denunciado pela prática do crime previsto no artigo 121, parágrafo 2º, incisos I e IV, c/c artigo 14, II, todos do Código Penal e condenado pelo plenário do Tribunal do Júri por homicídio privilegiado, fixando-se a pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de reclusão.
            Posteriormente, após ser levado a novo júri em virtude do recurso de apelação apresentado pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais, o paciente foi condenado a 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de reclusão em regime integralmente fechado, corrigido, após, para o inicialmente fechado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, no julgamento da apelação da defesa.
            O Ministério Público requereu a prisão preventiva antes da admissão do recurso especial interposto pela defesa, o que foi decretada.
            Assim a defesa impetrou habeas corpus no STF com o objetivo de sustar os efeitos da prisão preventiva, colocando em liberdade o réu com recurso, à época, pendente de julgamento.

3.2 SÍNTESE DOS FATOS DO HABEAS CORPUS Nº126.292/SP

O habeas corpus em estudo foi impetrado contra decisão do ministro Francisco Falcão, presidente do STJ, que indeferiu o pedido de liminar no habeas corpus nº 313.021/SP.
O paciente, em resumo, foi condenado à pena de 5 anos e 4 meses de reclusão,  em  regime  inicial  fechado,  pela  prática  do  crime  de  roubo majorado (art. 157, 2º, I e II do CP), com direito de recorrer em liberdade.
Inconformada com tal decisão, somente a defesa apelou para o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que negou provimento ao recurso e determinou a expedição de mandado de prisão contra o paciente.
Contra a ordem de prisão, a defesa impetrou habeas corpus no STJ, ocasião em que o ministro presidente indeferiu o pedido de liminar.
Dessa forma, no habeas corpus nº 126.292/SP, o impetrante alegou: (a) a ocorrência de flagrante constrangimento ilegal a ensejar a superação da Súmula 691/STF; (b) que o Tribunal de Justiça local determinou a imediata segregação do paciente, sem qualquer motivação acerca da necessidade de decretação da prisão preventiva; (c) que a prisão foi determinada “após um ano e meio da prolação da sentença condenatória e mais de três anos após o paciente ter sido posto em liberdade, sem que se verificasse qualquer fato novo” e, ainda, “sem que a decisão condenatória tenha transitado em julgado”; (d) a prisão do paciente não prescinde, nos termos da jurisprudência do STF, do trânsito em julgado da condenação.
Em virtude da exposição sucinta dos fatos que originaram os habeas corpus nº 84.078/MG e nº 126.292/SP, serão agora exibidos os argumentos favoráveis à execução provisória da pena, utilizados nesses dois vereditos.

3.3 PRINCIPAIS ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA

            Em que pese a grande diversidade argumentativa dos ministros ao expressarem seus votos nos Habeas Corpus nº 84.078/MG e nº 126.292/SP aqui analisados, cinco foram as mais importantes ideias trazidas para defender a execução provisória da pena.
            O primeiro eixo argumentativo, defendido pelos ministros Menezes Direito e Ellen Gracie no habeas corpus nº 84.078/MG e pelos ministros Teori Zavascki e Luiz Fux no habeas corpus nº 126.292/SP aduz que o julgamento pelo 2º grau (Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal) no momento da apelação criminal exaure a análise dos fatos da causa. Assim, como os recursos especial e extraordinário se restringem apenas à matéria de direito, exclusivamente, e como já houve apreciação exaustiva dos fatos pelas instâncias inferiores, é justificável a inversão ou até mesmo a relativização do princípio da presunção de inocência.
            Conforme elucida a ministra Ellen Gracie no seu voto, raríssimas são as hipóteses de reanálise da matéria fática dos autos, in verbis:

[...] chego à conclusão de que raras, raríssimas serão as hipóteses em que esta Corte concederá qualquer valia, seja à sentença de primeiro grau, onde extensamente foi examinada prova e fato, ou à sua eventual confirmação pelo segundo grau de jurisdição que, como todos sabemos, tem ampla liberdade para revisar produção dessas provas e definir a certeza sobre os fatos (Brasil, 2010: 121).

            Outro eixo argumentativo trazido à tona, tendo por defensores os ministros Menezes Direito e Ellen Gracie no habeas corpus nº 84.078/MG e Teori Zavascki, Luiz Fux e Gilmar Mendes no habeas corpus nº 126.292/SP, afirma que a execução da pena privativa de liberdade na pendência de recursos de natureza extraordinária não compromete o núcleo essencial do pressuposto da não culpabilidade, pois o acusado foi tratado como inocente no curso de todo processo ordinário criminal, observados os direitos e as garantias a ele inerentes, bem como respeitadas as regras probatórias e o modelo acusatório.
            O ministro Gilmar Mendes explica esse raciocínio expondo que, embora a presunção de não culpabilidade seja um direito fundamental que impõe o ônus da prova à acusação e impede o tratamento do réu como culpado até o trânsito em julgado da sentença, não obriga que o réu seja tratado da mesma forma durante todo o processo (Brasil, 2016: 72). Para esse ministro:

[...] se porventura houver a caracterização – que sempre pode ocorrer  – de abuso na decisão condenatória, certamente estarão à disposição do eventual condenado todos os remédios, além do eventual  recurso   extraordinário,  com  pedido  de  efeito  suspensivo, cautelar, também o habeas corpus. E os tribunais disporão de meios para sustar essa execução antecipada. E a mim parece que, se porventura houver a caracterização – que sempre pode ocorrer  – de abuso na decisão condenatória, certamente
estarão à disposição do eventual condenado todos os remédios, além do eventual  recurso   extraordinário,  com  pedido  de  efeito  suspensivo, cautelar, também o habeas corpus. E os tribunais disporão de meios para sustar essa execução antecipada.
Logo, não estamos aqui a fazer tábula rasa e a determinar que se aplique, sem qualquer juízo crítico, a condenação emitida pelo juízo de segundo grau. Haverá sempre remédios, e o bom e forte  habeas corpus estará à disposição  dos eventuais condenados, como acontece de resto com os vários recursos extraordinários para os quais nós acabamos por conceder efeito suspensivo. Poderemos fazê-lo também em sede de habeas corpus. (Brasil, 2016: 72).

A terceira linha argumentativa apresentada diz respeito à hermenêutica de resolução de conflitos em caso de embate entre princípios. Utilizando a fórmula de que não há um princípio que se sobreponha a todos os outros abstratamente, o ministro Menezes Direito no habeas corpus nº 84.078/MG e os ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Gilmar Mendes e Teori Zavascki no habeas corpus nº 126.292/SP decidem que o princípio da presunção de inocência não é absoluto. Isso acontece porque este princípio colide frontalmente com o princípio da duração razoável do processo em prol dos inúmeros casos de recursos interpostos pela defesa. (Brasil, 2016: 22).
Como exemplo, o ministro Edson Fachin cita os vereditos do tribunal do júri, que:

[...] só adquirem eficácia após o julgamento dos segundos embargos de declaração, tirados de um agravo regimental, interposto contra uma decisão monocrática proferida no âmbito de um agravo em recurso extraordinário, interposto contra uma apelação a que se negou provimento. Tudo, desconsiderados eventuais embargos infringentes e embargos de declaração opostos nas instâncias ordinárias, ou eventual recurso especial, com todos os incidentes que lhes são próprios. (Brasil, 2016: 22)

            Com o intuito de justificar a prevalência da duração razoável do processo, surge o quarto eixo argumentativo, pautado no fato de que a mudança de entendimento em 2009, no habeas corpus nº 84.078/MG, funcionou como incentivo à infindável interposição de recursos protelatórios, que reforçou a seletividade penal 1 e que tal fato contribuiu significativamente para agravar o descrédito e a impunidade do sistema de justiça penal perante a sociedade (Brasil, 2010: 96).
            O ministro Joaquim Barbosa, no habeas corpus nº 84.07/MG de 2009, previu tal realidade ao afirmar que:

[...] adotar a tese de que somente com o trânsito em julgado da condenação poderia haver execução penal causará verdadeiro estado de impunidade – considerando a sobrecarga já consolidada do Poder Judiciário, e em especial dessa Suprema corte -, especialmente para aquele sentenciado que disponha a seu favor de defensor cujo fim precípuo seja utilizar-se do maior número possível e imaginável de recursos (e nisto o nosso ordenamento é rico), de molde a estender eternamente o trânsito em julgado do provimento condenatório, situação que em não poucos casos acaba por impor o reconhecimento da prescrição da pretensão executória, frustrando o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, o respeito à vítima e também à própria atuação e trabalho do Poder Judiciário, que findaria por ser nula no fim das contas. (Brasil, 2010: 96)

De outra forma, para justificar a antecipação da medida executória da pena, a ministra Ellen Gracie, no habeas corpus nº 84.078/MG e o ministro Roberto Barroso, no habeas corpus nº 126.292/SP, entendem que o sacrifício do princípio da não culpabilidade (a prisão do acusado antes do trânsito em julgado) é superado pelo ganho em proteção da efetividade e da credibilidade da justiça, sobretudo diante da mínima probabilidade de reforma da condenação, como comprovaria algumas estatísticas trazidas aos autos (Brasil, 2016: 47-49).
Dessa forma, o princípio da proporcionalidade como proibição de proteção deficiente impede que o Estado tutele de forma insuficiente os direitos fundamentais protegidos pelo Direito Penal.
            Analisando os malefícios de se continuar não executando a pena provisoriamente, o ministro Roberto Barroso expõe que ao se perder a confiança no poder punitivo estatal:

[...] o acusado passa a crer que não há reprovação de sua conduta, o que frustra a função de prevenção especial do Direito Penal. Já a sociedade interpreta a situação de duas maneiras: (i) de um lado, os que pensam em cometer algum crime não têm fazê-lo, já que entendem que há grande chances de o ato manter-se impune – frustrando-se a função de prevenção geral do direito penal; (ii) de outro, os que não pensam em cometer crimes tornam-se incrédulos quanto à capacidade do Estado de proteger os bens jurídicos fundamentais tutelados por este ramo do direito. (Brasil, 2016: 47-49.)

            Com base nesses argumentos, a tese da constitucionalidade quanto à execução provisória da pena privativa de liberdade ganhou assento na jurisprudência pátria a partir do julgamento do habeas corpus nº 126.292/SP.
            Há, no entanto, teses jurídicas suscitadas no julgamento que vão de encontro à decisão dos ministros. Assim, passa a expor os principais argumentos contrários à execução provisória da pena.

3.4 PRINCIPAIS ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA

Em que pese a vitória por ampla maioria do entendimento jurisprudencial, na suprema corte brasileira, que possibilita o imediato cumprimento da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, parte dos ministros resolveu dar pleno cumprimento ao que dispõe o art. 5º, LVII da Constituição da República Federativa do Brasil: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. (Brasil, Constituição Federal de 1988: art. 5º, LVII).
Para tanto, referidos ministros utilizaram-se principalmente de cinco argumentos incisivos, que serão analisados a seguir.
O primeiro arcabouço argumentativo engloba o voto dos ministros Rosa Weber, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski no habeas corpus nº 126.292/SP. Nesses quatro votos, os magistrados expuseram que tanto o texto literal da Constituição quanto regras infraconstitucionais proíbem a execução provisória da pena. Seguindo o brocardo jurídico in claris cessat interpretatio (em tradução livre, “na clareza, cessa a interpretação”), quando o texto é claro e preciso, cessa a interpretação, sob pena de se reescrever a norma jurídica ou preceito constitucional (Brasil, 2016: 97).
Nesse sentido, votou o ministro Ricardo Lewandowski, o qual afirmou estar perplexo com o novo entendimento que iria a ser adotado pela Corte Suprema, in verbis:

Assim como fiz, ao proferir um longo voto no HC 84.078, relatado pelo eminente Ministro Eros Grau, eu quero reafirmar que não consigo, assim como expressou o Ministro Marco Aurélio, ultrapassar  a taxatividade desse dispositivo constitucional, que diz que a presunção de inocência se mantém até o trânsito em julgado. Isso é absolutamente taxativo, categórico; não vejo como se possa interpretar esse dispositivo. Voltando a, talvez, um ultrapassadíssimo preceito da antiga escola da exegese, eu diria que in claris cessat  interpretatio. E aqui nós estamos, evidentemente, in claris, e aí não podemos interpretar, data venia. (Brasil, 2016: 97).

O segundo argumento foi aquele exposto pelo ministro Marco Aurélio no habeas corpus nº 126.292/SP e pelo ministro Carlos Britto no habeas corpus nº 84.078/MG diz respeito ao dano sofrido pelo cidadão que, posteriormente, tem seu título condenatório alterado para uma decisão que o absolva. Isso porque os danos causados ao condenado não cessam com a absolvição. O período passado no cárcere, privado do contato com seus familiares e amigos não lhe retornará ou será devolvido. (Brasil, 2010: 106-107)
Em complemento a tal posicionamento, o ministro Carlos Britto explica a gravidade de se colocar aprisionado um inocente, in verbis:

[...] de fato, é um dano que projeta os seus efeitos numa dimensão quádrupla contra o preso. Primeiro, com sua ordem de prisão, o indivíduo sofre um abalo psíquico. A sua autoestima fica ao rés do chão.  Segundo, é um desprestígio familiar, é um fato que causa uma comoção doméstica, inclusive com repercussão no trabalho, na obtenção do ganho da família. Terceiro, é um fator de desqualificação profissional. O fato em si da prisão circula, chega ao conhecimento de outras pessoas, de outras esferas sociais e o indivíduo, que é preso vê reduzidas as suas oportunidades de emprego. E, finalmente, o desprestígio social, o conceito social, que também fica abalado. É tão grave quanto irreparável o dano da prisão nessa quádrupla projeção. (Brasil, 2010: 106-107).

            O ministro Celso de Mello, no habeas corpus nº 126.292/SP, em posicionamento diverso com o argumento de que a execução provisória da pena é algo plenamente utilizado em diversos países democráticos, como França e Estados Unidos da América, aduz que as constituições desses países não impõem a necessária observância do trânsito em julgado da condenação criminal para que possa ser aplicada a pena, deixando para a legislação infraconstitucional essa regulamentação (Brasil, 2016: 90).
Assim, segundo ele, tais ordenamentos jurídicos estrangeiros não poderiam ser invocados para justificar o caso brasileiro. Em seu voto, cita tratados internacionais que o Brasil é signatário para justificar a impossibilidade da execução provisória da pena:

Não custa rememorar que essa prerrogativa básica – a de que todos se presumem inocentes até que sobrevenha condenação penal transitada em julgado – está consagrada não só nas Constituições democráticas de inúmeros países (como o Brasil), mas, também, como anteriormente assinalado, em importantes declarações internacionais de direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana(1948), a Convenção  Europeia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (1950), a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000), a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (1981), a Declaração Islâmica sobre Direitos Humanos (1990), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969). (Brasil, 2016: 90).

O quarto núcleo argumentativo, sustentado pelo ministro Celso de Mello no habeas corpus nº 84.078/MG, diz respeito à natureza jurídica da prisão cautelar no direito brasileiro. Segundo o magistrado, a prisão cautelar não se confunde com a prisão penal porque aquela não objetiva infligir punição à pessoa que sofre a sua decretação, constituindo-se tão somente como um instrumento destinado a atuar em benefício da atividade desenvolvida no processo penal (Brasil, 2010: 61).
            Para este julgador, executar-se de forma antecipada a pena equivale a decretar uma prisão cautelar de forma desvirtuada. Com base nisso, ele apresenta sua tese de que o instituto da prisão cautelar:

[...] não pode ser utilizado com o objetivo de promover a antecipação satisfativa da pretensão punitiva do estado, pois, se assim fosse lícito entender, subverter-se-ia a finalidade da prisão preventiva, daí resultando grave comprometimento ao princípio da liberdade. (Brasil, 2010: 61).

            De forma derradeira, o ministro Gilmar Mendes no habeas corpus nº 84.078/MG trouxe em seu voto estudo doutrinário acerca do limite teleológico que a prisão provisória (ou cautelar) possui. Para o ministro, a presunção de não-culpabilidade é o limite teleológico da prisão provisória, sendo, por isso, possível concluir pela impossibilidade desta ser adotada com a finalidade de pena antecipada (Brasil, 2016: 61). Há, dessa maneira, contradição material que se consiste em impor pena antes que se condene o processado (Brasil, 2010: 61).
Sanguiné, citado por Gilmar Mendes, ainda explica que:

[...] a aporia pode ser resolvida somente se lograrmos estabelecer o ponto de equilíbrio entre exigências opostas, e verificar a base da ratio em que a restrição da liberdade pessoal do imputado pode conciliar-se com o princípio da presunção de inocência, que exclui qualquer identificação entre imputado e culpável antes da sentença de condenação definitiva. Mas afirmada a compatibilidade entre a prisão provisória e a presunção de inocência, não se pode perder de vista aquele direito fundamental, que sempre resultará vulnerado quando a media de privação de liberdade não responder a exigências cautelares, convertendo-se em uma pena antecipada. (Brasil, 2010: 61).

            Apesar dos argumentos utilizados contra a antecipação da execução provisória da pena, este entendimento restou consolidado, sob a tese de que o princípio da presunção de inocência não é absoluto e deve ser flexibilizado em prol dos possíveis benefícios trazidos pela efetividade e credibilidade da justiça.
            Justificando esse posicionamento, argumentou-se que a execução provisória não comprometeria o núcleo essencial do pressuposto da não-culpabilidade pois o acusado teria sido tratado como inocente em todo curso do processo penal e que o julgamento pelo segundo grau exaure a análise da matéria de fato, sendo, assim, desnecessário protelar a aplicação da prisão se há apenas supostas matérias de direito a serem analisadas pelas Cortes superiores.
Poucos meses após o julgamento do habeas corpus nº 126.292/SP, foram propostas duas ações constitucionais com temática semelhante, a ADC nº 43 e ADC nº 44. Ambas buscaram declaração de inconstitucionalidade da tese que possibilita a prisão provisória. A seguir, será exposta a síntese dos fatos que as originaram.

3.5 SÍNTESE DOS FATOS DAS AÇÕES DECLARATÓRIAS DE CONSTITUCIONALIDADE Nº 43 E Nº 44

            A Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 43 foi proposta no dia 19 de maio de 2016 pelo Partido Ecológico Nacional (PEN) com o intuito de que fosse assentada a harmonia do art. 283 (Brasil, Código de processo Penal 1941: art. 283) do CPP com a Constituição Federal.
Na inicial, discorreu-se sobre a existência de controvérsia constitucional relevante, qual seja, sobre a validade do preceito (art. 283 do CPP), ocorrida após o julgamento do habeas corpus nº 126.292/SP. Invocou-se, no documento, a necessidade do Supremo pronunciar-se sobre a constitucionalidade da norma, pois a decisão proferida no referido habeas corpus não possui efeito vinculantes nem firma regra geral sobre o tema, mas repercute no sistema judicial brasileiro.
            Ao final, foi requerido, liminarmente, que não fossem deflagradas novas execuções provisórias de sanção de prisão até o final do processo, bem que fossem suspensas as execuções provisórias já em curso. Pretendia-se, assim, libertar os cidadãos recolhidos sem a preclusão maior do ato condenatório. Sucessivamente, foi pugnada, mediante interpretação conforme a Constituição Federal, a aplicação analógica de medidas alternativas à segregação de acusados com o pronunciamento condenatório não transitado em julgado, aludindo ao artigo 319 do CPP. Postulou, em definitivo, a declaração de constitucionalidade do artigo 283 do CPP.
            O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, porém, no dia seguinte à propositura da ADC pelo PEN, propôs a ADC nº 44, buscando igualmente que fosse assentada a constitucionalidade do artigo 283 do CPP, sob fundamento de que o preceito invocado não apenas é compatível com a Constituição, mas que replica seu texto.
            A ação, em 23 de maio de 2016, foi apensa à ADC 44 e no dia 05 de outubro, ambas foram julgadas em conjunto. Dessa maneira, no tópico seguinte, serão expostos os votos da ADC nº 43.

3.6 EXPOSIÇÃO DOS VOTOS NO JULGAMENTO DA ADC Nº 43 E Nº 44

            O STF, até a data de fechamento do presente trabalho, não disponibilizou, de forma integral, o voto de todos os ministros. Dessa forma, serão aqui analisados somente os argumentos dos ministros Marco Aurélio, Luis Roberto Barroso, Celso de Mello, Dias Toffoli, Edson Fachin e Teori Zavascki.
A análise do caso começou em 1º de setembro de 2016, quando o relator das duas ações constitucionais, ministro Marco Aurélio, votou no sentido da constitucionalidade do art. 283, com a concessão da cautelar pleiteada pela parte requerente.
O julgador naquele momento alegou que o abandono do sentido claro e unívoco do texto constitucional gera perplexidades, como a situação em tela: uma declaração de constitucionalidade de um dispositivo que reproduziria o mesmo da Constituição da República (Brasil, 2016: 9). Assim, reafirmou sua tese trazida no julgamento do habeas corpus nº 126.292/SP, de que o preceito não permite muitas interpretações e que há o perigo de dano irreparável ao cidadão caso seja preso injustamente após o segundo grau e, posteriormente, seja absolvido.
No dia 05 de outubro de 2016, o Plenário do STF começou a votação.
O primeiro a votar naquele dia foi o ministro Edson Fachin que votou pelo indeferimento da medida cautelar, dando ao art. 283 do CPP interpretação conforme a Constituição. Dessa maneira, afastou a interpretação segundo a qual a norma impediria o início da execução da pena senão quando esgotadas as instâncias ordinárias (Brasil, 2016: 08).
O ministro Edson Fachin defendeu que o início da execução criminal é coerente com a Constituição Federal quando houver condenação confirmada em segundo grau, salvo quando for conferido efeito suspensivo a eventual recurso a cortes superiores (Brasil, 2016: 08).
Citando o ministro Gilmar Mendes em uma entrevista à Folha de São Paulo e 27 de junho de 2013, Fachin destacou não ser necessária Proposta de Emenda à Constituição para que a prisão após decisão de segundo grau se concretize:

[...] Podemos tanto dizer que a partir do 2º Grau já pode ocorrer a prisão se o juiz assim avaliar, se o Tribunal assim avaliar. Vamos estar consoantes com todas as declarações de direito, inclusive com a Convenção Interamericana de Direito. Portanto, não acredito que haja aqui tantos problemas Mas não é necessário fazer uma emenda constitucional para... Não. Não é necessário fazer uma emenda. (Brasil, 2016: 08).

Edson Fachin, repetindo seu voto utilizado no habeas corpus nº 126.292/SP, afirmou que a Constituição não tem a finalidade de outorgar uma terceira ou quarta chance para a revisão de uma decisão com a qual o réu não se conforma e considera injusta. Para ele, o acesso individual às instâncias extraordinárias visa a propiciar ao STF e ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) exercer seus papéis de uniformizadores da interpretação das normas constitucionais e do direito infraconstitucional (Brasil, 2016: 08).
            O ministro Luis Roberto Barroso estruturou seu voto de forma favorável à execução provisória da pena e, portanto, contrário à pretensão do PEN na ADC nº 43, e o fez com base em 03 (três) fundamentos.
            Primeiro, para o julgador, a interpretação que possibilita a prisão quando já há condenação em segundo grau confere proteção deficiente a bens jurídicos tutelados pelo direito penal muito caros à ordem constitucional de 1988, como a vida, a segurança e a integridade física e moral das pessoas. (Brasil, 2016: 06). O distanciamento entre a data do fato e a condenação efetiva do autor impediria que o direito penal tenha a credibilidade que deveria ter (Brasil, 2016: 06). Segundo, para o ministro, o reconhecimento da legitimidade da prisão após a decisão condenatória de segundo grau não violaria o princípio da reserva legal uma vez que não se trata de criação, pelo STF, de nova modalidade de prisão sem previsão em lei, mas de modalidade extraída do art. 637 do CPP: a prisão como efeito da condenação enquanto pendentes os recursos especial e extraordinário. (Brasil, 2016: 06).
            O último argumento invocado por Barrroso foi o baixo índice de provimento de recursos de natureza extraordinária em favor do réu, que para o ministro, seria inferior a 1,5% no STF e a 10,3% no STJ. Tais fatos tornariam mais evidentes uma possível afronta à efetividade da justiça criminal e à ordem pública decorrente da necessidade de se aguardar o julgamento de Recurso Extraordinário ou de Recurso Especial. (Brasil, 2016: 06).
Já o ministro Teori Zavascki, reafirmou entendimento já manifestado no julgamento do habeas corpus nº 126.292/SP, de sua relatoria, afirmando que o princípio da presunção da inocência não impede o cumprimento da pena, ressaltando que esta era a jurisprudência do Supremo até 2009. (Brasil, 2016: 06).
            De acordo com o referido julgador, é necessário ocorrer um equilíbrio entre os valores fundamentais existentes na nação, pois “a dignidade defensiva dos acusados deve ser calibrada, em termos de processo, a partir das expectativas mínimas de justiça depositadas no sistema criminal do país” (Brasil, 2016: 06). Continuou afirmando que:
                                              
[...] se de um lado a presunção da inocência e as demais garantias devem proporcionar meios para que o acusado possa exercer seu direito de defesa, de outro elas não podem esvaziar o sentido público de justiça. O processo penal deve ser minimamente capaz de garantir a sua finalidade última de pacificação social. (Brasil, 2016: 06).

Outro argumento citado pelo ministro foi o de que o julgamento da apelação encerra o exame de fatos e provas, pois “É ali que se concretiza, em seu sentido genuíno, o duplo grau de jurisdição”. (Brasil, 2016: 11).
O ministro Dias Toffoli alterou radicalmente seu posicionamento daquele trazido no habeas corpus nº 126.292/SP. Inicialmente, realizou uma verdadeira digressão doutrinária para 03 (três) concepções normativas do princípio da presunção de inocência.
Na primeira concepção, a presunção de inocência é vista como norma probatória, significando que o ônus da prova recai inteiramente sobre o órgão acusador, a quem incumbe demonstrar, de forma suficiente, a existência dos fatos em que se lastreia a hipótese acusatória. (Brasil, 2016: 06). A segunda concepção, por sua vez, apresenta a presunção de inocência como norma de juízo, a partir do momento em que orienta e conforma o momento decisório, no qual o juiz analisa a suficiência ou a aptidão da prova da materialidade e da autoria da infração para formar seu convencimento (Brasil, 2016: 06). A concepção derradeira expõe a presunção de inocência como norma de tratamento, devido ao fato de que, diante do estado de inocência que lhe é assegurado por esse princípio, o imputado, no curso da persecução penal não pode ser tratado como culpado nem a esse equiparado. (Brasil, 2016: 06).
Tal análise fez-se importante pois, na concepção de Dias Toffoli, a execução provisória da pena, ao “[...] tratar o imputado como culpado e configurar punição antecipada, violaria a presunção de inocência como ‘norma de tratamento’, bem como a expressa disposição do artigo 283 do Código de Processo Penal” (Brasil, 2016: 10).
O último voto foi do ministro Celso de Mello, que defendeu a incompatibilidade da execução provisória da pena com o direito fundamental do réu de ser presumido inocente, garantido pela Constituição Federal e pela lei penal (Brasil, 2016: 02).
Segundo o ministro, a eventual inefetividade da jurisdição penal, tão citada pelos outros ministros em seus votos, não pode ser solucionada com a desconsideração dos direitos fundamentais a que fazem jus os cidadãos da República, como é o que se propõe fazer ao antecipar a execução da pena (Brasil, 2016: 04).
Para o decano do STF, a tese fixada no habeas corpus nº 126.292/SP é tão grave que ela não possui guarida nem no Código de Processo Penal Militar (CPPM), pois este, ao tratar da execução da sentença penal condenatória, expressamente determina, em seu art. 592, que “somente depois de passada em julgado será exequível a sentença”. (Brasil, 2016: 23).
            O julgamento das ações em tela terminou com 6 votos a 5, no sentido de improcedência dos pleitos dos requerentes, entendendo que o art. 283 do CPP não impede o início da execução da pena após condenação em segunda instância, indeferindo, assim, as liminares pleiteadas e assentando o entendimento que possibilita a execução provisória da pena.
            Esses foram os argumentos invocados pelos ministros do STF para justificar e combater a tese da execução provisória da pena, tanto no julgamento das ações de habeas corpus quanto nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade.
            No capítulo a seguir, será feita a análise da impossibilidade de existência da execução provisória da pena privativa de liberdade, com base na lei da ponderação de Robert Alexy, introduzida no capítulo primeiro, e na doutrina contemporânea.

4 ANÁLISE QUANTO À IMPOSSIBILIDADE DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA À LUZ DA LEI DA PONDERAÇÃO DE ROBERT ALEXY E DA DOUTRINA CONTEMPORÂNEA

Explicar o que é e como funciona a “lei da ponderação” proposta por Robert Alexy necessita, de maneira primaz, a reconstrução dos passos que levaram o autor ao seu desenvolvimento.
Para tanto, preliminarmente, será retomado o sentido de norma anteriormente estudado no capítulo um para, só então, aplicar a lei da ponderação no caso concreto.

4.1 BASE TEÓRICO-NORMATIVA DA LEI DA PONDERAÇÃO E NOÇÕES GERAIS

Alexy define que a norma é composta tanto pelas regras quanto pelos princípios, que estariam englobados em seu conceito, visto que ambos, independente do seu grau, dizem o que deve ser. (Alexy, 2015: 87). Para o autor, “[...] ambos podem ser formulados por meio de expressões deônticas básicas do dever, da permissão e da proibição. Princípios são [...] razões para juízos concretos de dever-ser” (Alexy, 2015: 87).
Com base nessa definição, o doutrinador diferencia regras de princípios segundo bases axiológicas. Mais que diferenciação de generalidade ou de grau entre ambos os conceitos, tal distinção eleva-se a um nível qualitativo, visto que:

O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes. (Alexy, 2015: 90).

As regras, por sua vez, seriam normas que “[...] são sempre satisfeitas ou não satisfeitas” (Alexy, 2015: 91) e que  “[...] ordenam algo definitivamente” (Alexy, 2011: 131). A forma pela qual se aplica tal norma denomina-se subsunção (Alexy, 2015: 185). Dessa forma, quando a regra determina um comando, deve-se fazer exatamente aquilo que ela exige (Alexy, 2015: 185).
Contudo, no caso em concreto, por vezes, embates entre princípios ou regras a serem aplicados acabam surgindo (Alexy, 2015: 90-91).
Alexy explica que um conflito de regras só pode ser solucionado “[...] se se introduz, em uma das regras, uma cláusula de exceção que elimine o conflito, ou se pelo menos uma das regras for declarada inválida” (Alexy, 2015: 92). Dessa forma, uma das regras obrigatoriamente deve ser reconhecida como inválida já que não pode existir no mesmo ordenamento jurídico dois mandamentos de “dever ser” contraditórios.
No caso de colisão de princípios, Robert Alexy faz a seguinte análise:

As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma completamente diversa. Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com outro, permitido -, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. (...) Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com o maior peso tem precedência. (Alexy, 2015: 93-94).

A solução a ser encontrada, portanto, é diametralmente oposta àquela das regras, visto que se muda o plano de análise: sai-se do plano da validade para o plano dos pesos, onde ocorre a ponderação de bens, consoante afirmado anteriormente (Andrea, 2013: 43). Ali, devem-se considerar as circunstâncias do caso para depois se reconhecer qual dos princípios colidentes terá prevalência (Andrea, 2013: 43).
A ponderação, antes de tudo, é “[...] parte daquilo que é exigido por um princípio mais amplo. Esse princípio mais amplo é o princípio da proporcionalidade” (Alexy, 2011: 110). A ponderação, segundo Alexy, é forma específica de aplicação dos princípios (Alexy, 2014: 17). Nesse sentido, o autor explica o funcionamento da ponderação no âmago do princípio da proporcionalidade:

Colisões de princípios são solucionadas pela máxima da proporcionalidade, através de suas três máximas parciais, a saber, a máxima parcial da adequação, a máxima parcial da necessidade e a máxima parcial da proporcionalidade em sentido estrito. As duas primeiras exigem que algo seja realizado na máxima medida possível relativamente às circunstâncias fáticas, enquanto a terceira exige que algo seja realizado na máxima medida possível relativamente às circunstâncias jurídicas. (Alexy, 2015: 37).

Do excerto, percebe-se que o autor decompõe o princípio da proporcionalidade em três elementos integradores: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.
Alexy explica que tanto a adequação quanto a necessidade se referem à: “otimização em relação àquilo que é possível do ponto de vista prático” (Alexy, 2015: 406). Já a necessidade, explicada de forma individual em relação à adequação, se refere ao meio menos gravoso para que determinado fim seja atingido (Alexy, 2015: 117). A proporcionalidade em sentido estrito, alude ao sopesamento de valores intrínsecos a si mesmo (Alexy, 2015: 87).
Canotilho, por sua vez, expandindo o estudo da proporcionalidade trazido por Robet Alexy, entende que para se analisar tal princípio, deve-se seguir a seguinte lógica: primeiro, na adequação, deve ser analisado se a medida adotada para a realização de determinado objetivo é apropriada para aquele fim (Canotilho, 1998: 406). Somente após esse estudo inicial, parte-se para o segundo requisito, o da necessidade. Na análise da necessidade, é observado se do ato a ser realizado, ocasionará a menor desvantagem possível ao cidadão, ou seja, se é possível atingir ou objetivo almejado de outra forma (Canotilho, 1998: 406). Depois de superado o exame dos elementos citados, chega-se ao último, a proporcionalidade em sentido estrito, que é a investigação “se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à carga coactiva da mesma” (Canotilho, 1998: 406). Como somente nesse estágio o julgador decide qual ato/princípio deve prevalecer, aqui é realizada pelo julgador a lei da ponderação.
O mecanismo da ponderação, no entanto, segundo Alexy, é amplamente criticado pela doutrina, pois esta seria uma operação que fica amplamente a critério da discricionariedade do julgador, que não teria a seu dispor procedimentos racionais para a escolha de um bem jurídico em detrimento de outro (Alexy, 2011: 131).
Como contraponto, o autor explica que o ato de ponderar não é irracional ou subjetivo. A lei da ponderação, criada por Alexy, preceitua que “quanto mais alto é o grau do não cumprimento ou prejuízo de um princípio, tanto maior deve ser a importância do cumprimento do outro” (Alexy, 2011: 133).
Tal lei deve ser aplicada através do seguinte procedimento: primeiro, “deve ser comprovado o grau do não cumprimento ou prejuízo de um princípio” (Alexy, 2011: 133). Em segundo lugar, estuda-se a importância do cumprimento do princípio em sentido contrário (Alexy, 2011: 133). Por derradeiro, deve ser comprovado se a importância do princípio “em sentido contrário justifica ou não o prejuízo do cumprimento do outro” (Alexy, 2011: 133).
Assim, segundo o que Alexy propõe, os três critérios que compõem a lei da ponderação, a despeito do que afirma a doutrina (Alexy, 2011: 131) quanto à total discricionariedade da ponderação, pode ser analisada2 e examinada racionalmente, o que será feito, no caso concreto, a seguir.

4.2 A APLICAÇÃO DA LEI DA PONDERAÇÃO DE ROBERT ALEXY E O ENTENDIMENTO DOUTRINÁRIO MODERNO NO TOCANTE À IMPOSSIBILIDADE DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE

            A sociedade brasileira, em razão do recente julgado do habeas corpus nº 126.292/SP pelo STF, viu o conflito de dois princípios de alta importância: o princípio da presunção de inocência do indivíduo, proibindo, prima facie, qualquer medida que possibilite a execução provisória da pena, e o princípio da efetividade da prestação jurisdicional, visto que o processo, além de respeitar as garantias individuais, deve respeitar os fins a que se deve.
            Diante disso, por ampla maioria, o STF decidiu que a justiça brasileira estava sendo amplamente desrespeitada devido à grande demora em iniciar do cumprimento da pena imposta ao indivíduo ocasionado pela infinidade de recursos, muitas vezes protelatórios, interpostos pela defesa.
Destarte, suprimiu parte do direito constitucional previsto no art. 5º, LVII, o de que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória em prol do clamor popular por celeridade processual e efetividade da jurisdição.
Agora, desconsiderando argumentos e motivações políticas e analisando de forma estritamente jurídica, tal decisão não pode ser considerada acertada.
Partindo do procedimento de análise principiológica proposto por Alexy para se verificar qual norma deve prevalecer, conforme lei da ponderação já exposta anteriormente, verifica-se que três etapas devem ser percorridas para se definir qual princípio prevalecerá na análise da possibilidade jurídica da execução provisória da pena: o princípio da efetividade da justiça ou o princípio da presunção de inocência.
Na primeira etapa, no qual “[...] deve ser comprovado o grau do não cumprimento ou prejuízo de um princípio” (Canotilho, 1998: 406), temos a análise do não cumprimento do princípio da presunção de inocência em face do principio da efetividade da justiça.
Se não houvesse o cumprimento daquele princípio, de acordo com o entendimento do ministro Ricardo Lewandoski, em aproximadamente 75% (setenta e cinco) por cento dos casos a pessoa seria condenada e o sistema carcerário entraria em um colapso generalizado devido ao grande número de presos provisórios que a execução provisória da pena traria (Brasil, 2016: 101-103). Assim, faz-se crucial proteger o princípio da presunção de inocência face ao dano irreparável se passar a não ser utilizado.
Na segunda etapa, ao se estudar a importância do cumprimento do princípio em sentido contrário (Canotilho, 1998: 406), de nada adiantaria um sistema que resguardasse a plenitude do postulado da inocência se não houve uma efetividade mínima da justiça para retribuir ao indivíduo o mal que ele causou para a sociedade, conforme explica o ministro Joaquim Barbosa (Brasil, 2010:  96). Assim, para evitar situação anárquica no âmago social, tanto a efetividade da justiça quanto o postulado da inocência devem ser protegidos de forma semelhante.
 No terceiro e último passo, ao ser comprovado se a importância do princípio “[...] em sentido contrário justifica ou não o prejuízo do cumprimento do outro” (Canotilho, 1998: 406), não se pode olvidar que a efetividade de um sistema fictício, que é a justiça penal, não deve se sobrepor à garantia mínima que o individuo possui, que é ser tratado como inocente no curso processual, pois de outra forma, voltaríamos à época inquisicional, onde havia alta de taxa de efetividade dos processos de então, visto que na maioria dos casos era ceifada a vida do condenado.
Isso posto, é possível verificar que, com uma análise aprofundada da ponderação de Alexy ao caso da execução provisória da pena, o princípio da presunção de inocência não pode ceder face à efetividade da justiça penal.
De forma semelhante entende a doutrina contemporânea, visto que os três principais argumentos utilizados nas ações analisadas nesse trabalho são amplamente rebatidos pela doutrina.
O primeiro deles, trazido pelo ministro Menezes Direito no habeas corpus nº 84.078/MG, e pelo ministro Roberto Barroso, no habeas corpus nº 126.292/SP diz respeito à inexistência de um princípio que se sobreponha a todos abstratamente e que, por isso, a presunção de inocência poderia ceder em face da efetividade da justiça.
No entanto, Norberto Bobbio, ao realizar um estudo aprofundo do que é o direito e quanto à origem e fundamento da norma jurídica, define que uma norma prescreve o que “deve ser” no plano abstrato das ideias (Bobbio, 2012: 152). Se uma ação real, um ato, não corresponder à ação exata prevista na norma, pode-se afirmar que esta foi violada (Bobbio, 2012: 152).
A presunção de inocência é comando expresso previsto no inciso LVII da Constituição da República que determina um “dever ser” abstrato para todos os cidadãos brasileiros. Reduzir a abrangência constitucional desse termo é, segundo a teoria de Bobbio, verdadeira violação à norma, visto que esta não foi cumprida em sua totalidade.
Dessa forma, em que pese realmente não existir um princípio que se sobreponha a todos os outros, abstratamente, no caso concreto, não é possível relativizar o postulado da inocência, visto que, fazendo isso, afrontar-se-ia também diretamente outro princípio, o da dignidade da pessoa humana.
Insculpido no art. 1º, III 3, da Constituição da Federal, (Brasil, Constituição de 1988: art. 1º, III) o princípio da dignidade da pessoa humana é a garantia que todo cidadão tem de que será respeitado em sua identidade como pessoa, tanto nos seus direitos de liberdade quanto em seus direitos sociais mínimos (Ferrajoli, 2011: 105).
Isso significa que a vida humana, nas palavras de Luis Roberto Barroso, possui “um valor que não tem preço” (Barroso, 2010: s/p). Dois postulados decorrem desse elemento essencial da dignidade da pessoa humana, na visão de Barroso:

O primeiro se manifesta no imperativo categórico kantiano do homem como um fim em si mesmo, e não como um meio para a realização de metas coletivas ou de projetos sociais de outros; o segundo, na ideia de que o Estado existe para o indivíduo, e não o contrário. É por ter o valor intrínseco da pessoa humana como conteúdo essencial que a dignidade não depende de concessão, não pode ser retirada e não é perdida mesmo diante da conduta individual indigna do seu titular. (Barroso, 2010: s/p).

Os dois postulados apresentados pelo autor colidem frontalmente com o seu próprio voto apresentado anos depois no plenário do STF. Como Barroso explica em sua obra, o homem não pode ser utilizado como meio para realização de metas coletivas.
Contudo, o homem, que o autor defendia com tanto afinco, é usado, com a execução da provisória da pena, para a consecução da meta coletiva de eficiência máxima da máquina judiciária, tendo, assim sua dignidade e inocência mitigada. Portanto, este argumento não merece prevalecer.
            A segunda linha argumentativa trazida, agora pelo ministro Joaquim Barbosa no habeas corpus nº 84.078/MG, suscita que é necessário relativizar a presunção de inocência para o processo adquirir uma duração razoável pois, de outra forma, a impunidade tomaria proporções alarmantes no seio social.
Aury Lopes Júnior, ao analisar o equilíbrio que deve existir entre o tempo para a prestação jurisdicional em contraponto com o resguardo das garantias do cidadão, entende que:

“[...] não existe nada mais demonstrativo da arbitrariedade de um procedimento que os juízos sumários ou sumaríssimos em matéria penal, pois eles impedem que o imputado possa exercer todas as faculdades próprias a um processo penal adequado à constituição democrática.” (Lopes Júnior, 2006: 135).

Do excerto, percebe-se que não se pode exigir um procedimento penal mais célere quando problemas intrínsecos ao próprio processo não são solucionados, sob pena de se omitir garantias do cidadão.
O que o STF procurou com a mudança de entendimento trazida no habeas corpus nº 126.292/SP foi solucionar um problema institucional em detrimento da supressão de direitos consagrados na carta magna. Não é assim que um magistrado deve agir.
Ronald Dworkin analisa qual o papel do magistrado diante da análise de um caso de alta complexidade. Para ele, o juiz continuaria tendo o dever “de descobrir quais são os direitos das partes, e não de inventar novos direitos retroativamente” (Dworkin, 2007: 127). Esse procedimento no momento da lavratura da sentença atribui segurança jurídica às relações sociais, pois:

[...] em determinadas ocasiões excepcionais, os juízes devem repudiar ou ignorar a lei naquilo que fazem, mas devemos contar com uma expectativa permanente de que não agirão desse modo, de que decidirão de acordo com o que consideram que as proposições verdadeiras de direito exigem ou permitem. (Dworkin, 2010: 29).

            Em vista disso, indaga-se: afastar a interpretação do texto claro da lei máxima de nosso País, realizando mutação constitucional em princípio expresso que levou séculos para ser construído, sem um argumento sólido o suficiente, é uma forma responsável de se agir?
            Dworkin responde que não, pois só deve ocorrer uma interpretação diferente daquela expressa pelo texto literal e pela vontade legislativa quando o texto legal for de obscura compreensão (Dworkin, 2014: 417-419). O autor explica que o termo “obscuro” é atribuído quando encontram-se bons argumentos para cada uma das interpretações em confronto (Dworkin, 2014: 421).
Nos votos analisados no capítulo anterior, observou-se que inexistem argumentos fortes o suficientes para atribuir nova interpretação à norma constitucional, mas tão somente justificativas para que um problema institucional seja solucionado às custas de toda a sociedade. Assim, a linha argumentativa do ministro Joaquim Barbosa não encontra assento na doutrina pátria.
O terceiro eixo argumentativo, e o mais incisivo de todos os previstos nos julgados expostos no capítulo anterior, foi trazido pelos ministros Teori Zavascki e Luiz Fux no habeas corpus 126.292/SP, tendo por sustentáculo a premissa de que no julgamento do recurso de apelação criminal pelo segundo grau de jurisdição, é exaurida a análise dos fatos, e como em sede de recurso especial ou extraordinário só serão analisadas matérias de direito, seria justificável a relativização do princípio da presunção de inocência e, assim, a execução provisória da pena privativa de liberdade.
O raciocínio da efetividade máxima da justiça alicerçada no argumento acima é temerário. Francesco Carnelutti expõe que: “[...] infelizmente, a justiça, se for segura não será rápida, e se for rápida não será segura” (Carnelutti, 2004: 38). Tal posicionamento foi utilizado pelo autor para explicar, em seu livro, inúmeros questionamentos que vinha recebendo sobre uma possível solução para morosidade nos procedimentos penais.
Do excerto, denota-se que o exame da rapidez da prestação jurisdicional deve ser observado em consonância intrínseca aos preceitos constitucionais vigentes, sob pena dessa “rapidez” não ser “segura”, conforme os termos empregados por Carnelutti acima.
O terceiro eixo argumentativo em análise é o que Eugenio Raúl Zaffaroni explica como sendo uma mudança de paradigma no direito penal contemporâneo, no qual houve transformação na política criminal global:

Nas últimas décadas produziu-se uma notória transformação regressiva no campo da chamada política criminal ou, mais precisamente, da política penal, pois do embate entre políticas abolicionistas e reducionistas passou-se, quase sem solução de continuidade, ao debate da expansão do poder punitivo. Nele, o tema do inimigo da sociedade ganhou o primeiro plano da discussão. (Zaffaroni, 2007: 13).

            A expansão do poder punitivo, citada no fragmento acima e nitidamente presente na jurisprudência contemporânea do STF, é manifesta por meio do inimigo citado por Zaffaroni e apresentado para a sociedade como aquele mal que deve ser eliminado a todo custo para que haja paz social (Zaffaroni, 2007: 21).
            Essa busca incansável por um culpado, por uma figura que se possa atribuir todos os males sociais, acaba por justificar o recrudescimento de nosso sistema penal com vistas a punir indiscriminadamente o maior número possível de indivíduos para aplacar os clamores populares.
            Na atualidade, o Brasil possui um inimigo bem claro e delimitado pelo STF: a baixa efetividade da prestação jurisdicional. Esse adversário é combatido com o recrudescimento da garantia básica do indivíduo, a presunção de inocência, com o fito justificador de uma nova política criminal de encarceramento em massa para atender aos anseios populares por condenação.
            Para batalhar contra esse inimigo, todas as armas são válidas (Zaffaroni, 2007: 144). Todas as conquistas históricas do cidadão, descartáveis, em prol sempre do famigerado “bem comum de toda sociedade”, manifesto na efetividade máxima da prestação jurisdicional.
            Portanto, o descumprimento do postulado da inocência, núcleo autorizador da medida vigente de 2016 até os dias de hoje, não pode ser aceito pela população ou pela doutrina brasileira.
            Conforme demonstrado, tanto pela lei da ponderação de Alexy quanto pela doutrina contemporânea, há substrato teórico suficiente para que haja a rejeição imediata de qualquer decisão autorizadora da execução provisória da pena privativa de liberdade e para a reforma do entendimento reinante na suprema corte brasileira.

5 CONCLUSÃO

O princípio da presunção de inocência, desde o período romano até os dias atuais, passou por um lento e gradativo processo de amadurecimento, de forma a garantir um tratamento minimamente digno ao cidadão.
Conforme foi analisado, no período romano o direito de defesa era exercido até o instante em que o achasse conveniente. Tal sistemática se manteve quase na integralidade até o período medieval, com as inquisições, só vindo a se alterar no final do século XVIII, com a influência do iluminismo na Europa.
Em 1789, com a Revolução Francesa e a ascensão da burguesia ao poder, verificou-se uma mudança comportamental, com todos sendo tratados de forma igual perante a lei. Com isso, ocorreram evoluções gradativas na forma de tratamento dispensada ao cidadão, chegando-se até o ano de 1988, no Brasil.
A Constituição Republicana de 1988 foi a primeira a trazer expressamente, insculpido no corpo de seu texto, o princípio da presunção de inocência, na forma do art. 5º, inciso LVII. Todavia, a sociedade de 1988 é completamente diferente daquela de 2017.
Em 1988, o Brasil vivia um período de redemocratização, um período imediatamente posterior a intensos traumas devidos às atrocidades cometidas tanto pelo governo brasileiro quanto por terroristas que lutavam pela bandeira de suposta democracia. Abusos foram de ambos os lados, e os direitos individuais do cidadão, foram suprimidos em prol da segurança nacional.
Hoje, a ampla oferta de direitos e garantias individuais trazidas pela nossa Carta Magna criou uma situação na qual se fez necessário um amadurecimento das instituições democráticas para atender os anseios da sociedade civil. Nesse contexto, o STF começou a proferir decisões que restringem os direitos conquistados pela população em prol de uma suposta eficiência institucional.
            Dessas decisões, quatro se destacam e foram o escopo da pesquisa no presente trabalho: habeas corpus nº 84.078/MG, habeas corpus nº 126.292/SP e ADC nº 43 e nº 44. Em todas elas, foi-se debatido quanto à possibilidade dos condenados em segunda instância cumprirem suas penas privativas de liberdade antes mesmo do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Cinco eixos argumentativos a favor e cinco contra embasaram a decisão dos ministros.
Os ministros a favor da execução provisória da pena argumentaram que: (i) como não é analisada matéria de fato nas instâncias superiores (STF e STJ), houve ali um trânsito em julgado da matéria fática, autorizando dessa forma a execução provisória da pena; (ii) a execução antecipada da pena privativa de liberdade não compromete o núcleo essencial do postulado da inocência pois o acusado foi tratado como inocente em todo curso do processo, sendo respeitadas, assim, as regras do sistema acusatório; (iii) não há um princípio que se sobreponha a todos os demais abstratamente e, dessa forma, o princípio da presunção de inocência poderia ser flexibilizado em prol da efetividade da justiça, autorizando dessa maneira a execução provisória da pena privativa de liberdade; (iv) a não adoção da tese autorizadora da execução provisória iria agravar o descrédito da justiça penal e a impunidade perante toda a sociedade; e que (v) o sacrifício do princípio da não culpabilidade é superado pelo ganho em proteção da efetividade e da credibilidade da justiça.
            Já os ministros desfavoráveis à execução provisória da pena argumentaram que: (i) tanto o texto literal da constituição quanto regras infraconstitucionais proíbem a execução provisória da pena; (ii) os danos causados ao cidadão caso ele inicie o cumprimento antecipado de sua pena e, após, seja absolvido em sede de recurso especial ou extraordinário, jamais poderá lhe ser reparado, nem mesmo com indenizações pecuniárias; (iii) as constituições dos países citados em plenário que autorizam o mecanismo da execução provisória da pena não impõe a necessária observância do trânsito em julgado da condenação criminal para que possa ser aplicada a pena, deixando para a legislação infraconstitucional essa regulamentação, diferente do caso brasileiro, que o é expresso em seu texto magno; (iv) a execução provisória da pena é espécie de prisão cautelar e, assim, não pode ser utilizada para infligir punição à pessoa, pois esta constitui-se tão somente como instrumento destinado a atuar em benefício da atividade jurisdicional; e que (v) a presunção de não-culpabilidade é limite teleológico da prisão provisória, sendo, por isso, impossível ser adotada com finalidade de pena antecipada.
            Para realizar a análise do posicionamento adotado pelos magistrados, buscou-se amparo na doutrina com o intuito de balizar critérios mais racionais a fim de ponderar racionalmente a escolha feita pelos ministros.
De acordo com o pesquisado, chegou-se à lei da ponderação proposta por Robert Alexy. Aplicando seus ensinamentos aos votos em epígrafe, concluiu-se que o princípio da presunção de inocência não pode ceder face ao princípio da efetividade da justiça penal, impossibilitando, dessa feita, a aplicação da execução provisória da pena.
Tal análise foi corroborada também pela doutrina contemporânea que, após análise dos três principais votos (que autorizavam a execução provisória da pena) trazidos a julgamento, chegou à conclusão semelhante.
Ora, ao longo do presente trabalho, ficou comprovado por meio de autores de peso e de jurisprudência consolidada, que a tese firmada pelo STF no sentido de autorizar a execução provisória da pena nada mais é do que um verdadeiro retrocesso social, pois, além de afrontar diretamente o texto constitucional, retorna a execução penal brasileira a um status quo similar àquele encontrado no momento anterior a 1988.
            Por conseguinte, não é possível colocar em um patamar de constitucionalidade a tese autorizadora da execução provisória da pena, tendo em vista que tal prática assola diretamente uma importante garantia individual conquistada pelos cidadãos ao longo da história: ser considerado inocente até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, com fulcro no princípio da presunção de inocência.

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* Graduado em Direito pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, campus de Foz do Iguaçu/PR, Brasil. E-mail: marco-pacifcio@hotmail.com.

1 O ministro utiliza o termo “seletividade penal” no sentido de que somente os mais pobres eram punidos em detrimento dos mais abastados economicamente que, por possuírem um corpo jurídico à disposição e extremamente competente, protelavam os autos.

2 Os três critérios que Alexy usa para analisar a ponderação são os seguintes: (i) intensidade da interferência de um princípio sobre outro; (ii) o grau de importância da razão que justifica a interferência; e (iii) a relação de interferência de um princípio em outro.

3 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania;  II - a cidadania;  III - a dignidade da pessoa humana (...).


Recibido: 29/03/2017 Aceptado: 06/04/2017 Publicado: Abril de 2017

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