Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


FILOSOFIA JURÍDICA E REALIDADE SOCIAL: A IMPORTÂNCIA DE UM SABER JURÍDICO CRÍTICO-REFLEXIVO E ANTIFORMALISTA NA FORMAÇÃO JURÍDICA

Autores e infomación del artículo

Leandro Henrique de Morais Bento*

Centro Universitário de Bauru – Instituição Toledo de Ensino, Brasil

leandro_lhmb_jus@yahoo.com.br

RESUMO
Aborda-se a questão da importância da Filosofia Jurídica na produção de um saber jurídico crítico-reflexivo e antiformalista na formação jurídica, ressaltando-se que com o advento do Estado Democrático de Direito do segundo pós-guerra o Direito passa a ter uma função transformadora, que exige do jurista uma postura diferenciada, voltada para um conhecimento aprofundado e socialmente adequado.

PALAVRAS-CHAVE
Filosofia jurídica, saber jurídico, crítica, reflexão, formalismo.

ABSTRACT
The question of the importance of legal philosophy in the production of a critical-reflexive and anti-formalist juridical knowledge in juridical formation is discussed, emphasizing that with the advent of the Democratic State of the second post-war the law happens to have a transforming function, which requires of the jurist a differentiated position, aimed at an deepened and socially adequate knowledge.

KEYWORDS
Legal philosophy; legal knowledge; critique; reflection; formalism.


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Leandro Henrique de Morais Bento (2017): “Filosofia jurídica e realidade social: a importância de um saber jurídico crítico-reflexivo e antiformalista na formação jurídica”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (abril-junio 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2017/02/filosofia-juridica.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1702filosofia-juridica


O novo constitucionalismo do Segundo Pós-Guerra possibilitou o surgimento de um ‘novo Direito’, fruto do paradigma do Estado Democrático de Direito, que tem por fundamentos a dignidade da pessoa humana e a cidadania e cuja função deixou de ser meramente ordenadora, de viés positivista. Trata-se de um Direito que possui um potencial transformador, pois busca concretizar os direitos e garantias fundamentais, promovendo a justiça social, a liberdade e a igualdade entre os seres humanos, a partir da aplicação direta e indireta das normas constitucionais (STRECK, 2007).
Assim, no paradigma do “Estado Democrático de Direito”, a ordem jurídica tem, acima de tudo, uma função transformadora, ao lado das já clássicas funções ordenadora e limitadora do poder estatal (Estado Liberal), bem como das relevantes funções dirigente, promovedora e interventiva nas ordens econômica e social (Estado Social), colocando-se de modo mais acentuado na perspectiva da concretização dos direitos sociais, econômicos e culturais (STRECK, 2007, pp. 27-28).
A partir da instituição do Estado Democrático de Direito no Brasil em 1988, uma série de demandas sociais antes negligenciadas pelos poderes estatais ou então postas em segundo plano passaram a ser colocadas na ‘ordem do dia’, a fim de reverter, por meio de políticas públicas e políticas sociais, um quadro social de extremas injustiças. Vale anotar que à época da promulgação da Constituição Federal de 1988 dezenas de milhões de cidadãos brasileiros se encontravam em situação de miséria e fome, sendo que o Estado pouco tinha feito até então no sentido de reversão deste triste quadro de negligência social.
Todavia, os dispositivos constitucionais essenciais sobre justiça social e redução das desigualdades permanecem sem efetiva aplicação, havendo, no momento, pelo contrário, uma movimentação política e ideológica no sentido de desconstruir as normas constitucionais sobre direitos sociais, econômicos e culturais, e enfraquecer o papel interventivo-configurador do Estado Democrático de Direito.
Num momento em que o país encontra-se em crise, tornando-se o Direito quase inoperante frente à política e à economia, uma reflexão sobre o papel do jurista e da produção e função do conhecimento jurídico revela-se como sendo de fundamental importância. Deveras, apesar dos vastos estudos existentes apontando para o problema, a formação jurídica permanece professando um modelo de dogmática jurídica acrítico, que apenas faz “reproduzir um ensino jurídico estandardizado, que contribui para a ineficácia da Constituição” (STRECK, 2007, p. 27).
Na verdade, há um déficit de Filosofia Jurídica (pressupostos do conhecimento) e de realidade social (a realidade concreta que o Direito busca ora conservar, ora transformar) no ensino jurídico. A importância da construção de um novo modelo pedagógico é, assim, fulcral, tendo relação direta com a problemática da eficácia do Direito concebido pelo Estado Democrático de Direito.
Com efeito, o ensino jurídico é ainda predominantemente formalista e marcado pela ausência de uma abordagem crítico-reflexiva e teoricamente aprofundada, cujos efeitos são sentidos de maneira intensa não apenas na estrita ‘prática jurídico-profissional’, mas também no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil e nos concursos públicos para as carreiras jurídicas. Resultado disso é a manutenção de uma hermenêutica jurídica pouco aprofundada e que se mostra insuficiente em face das demandas sociais cada vez mais complexas e multifacetadas.
Reconhecendo isto, o jusfilósofo Tércio Sampaio Ferraz Jr. (2014, p. 27) define a formação jurídica como “arcaica” e incompatível com as exigências da sociedade contemporânea. Preparado na universidade quase que exclusivamente para a perpetuação de uma ‘cultura dos códigos’, na qual o Direito é tomado como um ‘fato simplesmente dado’ a ser identificado, para depois ser interpretado e aplicado, o jurista brasileiro contemporâneo acaba tendo pouca proximidade em relação às demandas complexas do mundo atual. No modelo de ensino jurídico vigente, mesmo as disciplinas dogmáticas acabam não recebendo o devido aprofundamento teórico.
Ferraz Jr. (2014) observa que no mundo atual se exige uma postura do jurista que o modelo de ensino tradicional não pode oferecer. Há uma complexidade e uma velocidade difíceis de abarcar, fatores que o ensino jurídico arcaico não consegue acompanhar, gerando uma simplificação de fenômenos complexos e de difícil trato. Assim,
“O que se observa, afinal, é uma espécie de alienação do estudante, incapaz de se dar conta da situação imprópria do ensino oferecido, prevalecendo um silêncio e mesmo indiferença, que significa uma acomodação a um ensino tido pelos professores como atividade secundária em suas vidas, no qual as modificações em qualquer estrutura tradicional encontram nessa apatia um enorme e relevante obstáculo. Com isso as faculdades de direito, na proporção inversa ao número expressivo de alunos que formam, entregam “profissionais” incapazes sequer de ocupar espaços nas carreiras tradicionais” (FERRAZ JR, 2014, p. 34).

A respeito desse modelo formalista de ensino jurídico, produtor de uma hermenêutica jurídica que opera de forma descontextualizada dos paradigmas da filosofia, Streck (2007, p. 36) salienta:
“Não é desarrazoado afirmar, destarte, que a hermenêutica praticada nas salas de aula continua absolutamente refratária ao giro lingüístico-ontológico (ontologische Wendung); em regra, continua-se a estudar os métodos tradicionais de interpretação (gramatical, teleológico etc.), como se o processo de interpretação pudesse ser feito em partes ou em fatias. A teoria do Estado, condição de possibilidade para o estudo do Direito Constitucional (para ficar nesta disciplina fundamental, que, aliás, não ocupa, na maioria dos cursos jurídicos, mais do que dois semestres), não vem acompanhada da necessária interdisciplinaridade”.

A questão é deveras relevante. A preocupação com a transformação do ensino jurídico converge, no presente quadrante histórico-social, com a preocupação em relação às carências do país no que tange à mudança social e à função transformadora do Direito. A superação do formalismo jurídico depende de uma compreensão adequada quanto ao modo de pensar soluções para os problemas que o país atravessa.
Não obstante, a produção de um saber jurídico crítico-reflexivo constitui importante instrumento para a democratização (formal e material) do país, especialmente se se considerar o protagonismo a que foi alçado o Poder Judiciário nas últimas décadas e a ênfase que se tem dado à questão do Direito.
Na realidade, trata-se de reafirmar um velho diagnóstico, já conhecido de todos os que se dedicam ao estudo da questão da formação jurídica: o modelo de ensino jurídico formalista vigente, de uma maneira geral, ressalvadas as raras exceções, não tem sido suficiente para formar um jurista capacitado ao enfrentamento das questões sociais que deve solucionar no exercício de suas incumbências profissionais.
Portanto, diante dos complexos problemas que a sociedade contemporânea atravessa, que ultrapassam a abordagem dogmático-jurídica, não há como negar a importância da Filosofia Jurídica para a formação e a autocompreensão do jurista. As crises com que o Direito se depara hoje exigem uma postura diferenciada do jurista, sendo que a Filosofia Jurídica possibilita uma adequada aproximação a esses problemas (CALSAMIGLIA, 1984).
O Direito contemporâneo precisa enfrentar questões que antes, na vigência do paradigma positivista clássico (legalismo), sequer existiam, como no caso das questões relativas aos direitos fundamentais de terceira geração, os chamados direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, cuja importância é hoje inconteste.
Nesse sentido, importante ressaltar a relevância da interdisciplinaridade. A Filosofia Jurídica possui como marca dialogar com as outras ciências, tendo em vista a compreensão mais englobante possível dos fenômenos sobre os quais se debruça. Ademais, a Filosofia Jurídica, como intepretação abrangente e crítica da realidade, deve visar sua aplicação prática, afirmar propósitos. Uma Filosofia Jurídica que sirva apenas para fins ‘estéticos’, para mera demonstração de erudição perderá sua relevância frente à complexidade social que deve ser disciplinada pelo fenômeno jurídico. Nas palavras de Albert Calsamiglia (1984, p. 46):
“Para analizar y justificar la solución de los problemas que plantea la actual efervescencia social e y la crisis de los stándares tradicionales, la filosofía jurídica puede buscar fuente de inspiración em los planteaminentos y análisis de la filosofia moral y de la ética normativa.
Pero ese acercaminento no debe ser a nivel puramente retórico. Los problemas que se planteam los juristas son prácticos y de una indudable transcendencia social. Uma filosofía jurídica que no afronte, que no intente das respuesta a los problemas de la actualidad continuará siendo un saber esotérico que sólo tendrá com destinatario a su proprio gremio. Uma filosofía jurídica que sea buena em la teoría pero que no sirva para la práctica, no es uma buena filosofía jurídica”.

Um ponto de partida necessário, ou melhor, imprescindível para que haja uma verdadeira transformação do ensino jurídico é a construção, na formação em Direito, de uma cultura literária mais densa e aprofundada.
Para adquirir uma formação sólida e relevante para a sua compreensão de mundo e mesmo para o aprofundamento de sua atividade profissional, o jurista deve estar sempre às voltas com leituras exigentes do ponto de vista crítico-reflexivo. A leitura das obras clássicas do pensamento filosófico-jurídico constitui a base essencial de uma formação verdadeiramente preocupada com a autocompreensão do jurista acerca de seu papel numa sociedade marcada por tantas desigualdades e injustiças sociais.
Com efeito, a ênfase em pesquisa não pode ficar restrita aos cursos de pós-graduação, devendo ter presença também nos cursos de graduação. Na realidade, a pesquisa em Direito se revela como adequado meio para a difusão de um conhecimento jurídico de viés crítico-reflexivo.
Não se desconhece que hoje as universidades, incluídos os cursos de Direito, têm buscado estimular a pesquisa, promovendo, por exemplo, jornadas científicas, congressos e programas de iniciação científica para a produção e apresentação de trabalhos de alunos de graduação sob a orientação dos professores. Todavia, como bem registra Ferraz Jr. (2014), na graduação, a pesquisa não tem sido feita a partir de diretrizes bem definidas nem de programas de continuidade, estimulando, no mais das vezes, quando ocorre, a pesquisa individual, fator certamente prejudica o desenvolvimento dessa atividade.
Portanto, tem-se por necessário enfatizar a pesquisa e estimular a criação de programas científicos que tenham continuidade e que sejam levados a efeito sobre bases planejadas e diretrizes bem definidas, de modo a possibilitar um aprofundamento.
Outrossim, isso implica no fato de que não se pode continuar a fazer da doutrina jurídica uma mera reunião de comentários prosaicos e socialmente descontextualizados. Em realidade, grande parte da ‘doutrina jurídica’ utilizada nos cursos de graduação em Direito e de preparação para o Exame da Ordem dos Advogados do Brasil e os concursos públicos das carreiras jurídicas não passa de compilações de ementários jurisprudenciais e de comentários repetitivos e maçantes sobre a lei (STRECK, 2007) – por vezes, tais textos apenas dizem com outras palavras o texto da legislação! –, por sua vez extraídos de outros textos semelhantes, quando não idênticos.
No mais das vezes isso se dá em virtude da forma objetivista como são transmitidos os conhecimentos jurídicos. De fato, “A dogmática jurídica trabalhada nas salas de aula (e reproduzida em boa parte dos manuais) considera o direito como sendo uma mera racionalidade instrumental” (STRECK, 2007, p. 35).
É evidente que para o desenvolvimento de sua capacidade de pensamento, o jurista deverá ler principalmente aquelas obras que os professores lhe indicaram no início da faculdade, nos primeiros estágios de sua formação. Certamente não são obras para ‘decorar’, aprender por ‘osmose’, mas são textos que trazem a lume os questionamentos mais essenciais acerca dos fundamentos da ordem jurídica, da convivência em sociedade e da justiça. Nada obstante, o jurista em formação também deverá conhecer boas obras de dogmática jurídica, cuja importância para a operacionalidade do Direito não pode ser desconsiderada (FERRAZ JR., 2014).
Assim sendo, a Filosofia Jurídica não pode ser entendida a partir do velho e simplista rótulo de ‘disciplina introdutória’ ao lado de outras disciplinas ditas ‘mais importantes’ – no caso, as disciplinas dogmáticas, que, no entanto, também não têm sido estudadas em profundidade (FERRAZ JR., 2014) –, como se representasse uma simples ciência generalista, distante da realidade, apta apenas a confundir e levar a divagações sobre o fenômeno jurídico e a justiça.
Na verdade, os paradigmas da Filosofia estão fundamente enraizados na própria ciência jurídica, ainda que no mais das vezes sejam facilmente imperceptíveis; esses paradigmas estabelecem os fundamentos do conhecimento e os princípios a partir dos quais o homem se orienta em face da realidade. Assim, cabe ao jurista compreender adequadamente esses nexos inafastáveis existentes entre a Filosofia e o Direito. O estudo da Filosofia Jurídica é, então, o mais fundamental de todos, porquanto desvela o sentido do Direito e a razão de ser de sua existência.
Por isso a pertinente observação de Willis Santiago Guerra Filho, que a propósito da necessidade de ampliação da abrangência da Filosofia nas grades curriculares dos cursos de Direito do país, salientou em entrevista:
“Por que ela não poderia ter uma sequência como têm as matérias dogmáticas? Por que não uma filosofia do direito I, II, III e IV? Já que temos um direito civil I, II, III e IV! Processual, enfim... Eu penso que a importância da filosofia para o direito, costumo dizer, é tão grande quanto a importância da matemática para o engenharia. Então, um curso de direito com pouca filosofia, a meu ver, é o equivalente a um curso de engenharia com pouca matemática! Ou seja, é o caminho certo para o desastre” (PATTO, 2010, p. 174).

Deveras, desastre é a palavra adequada para referir o ensino jurídico que entende a atividade jurídica de maneira descontextualizada dos paradigmas filosóficos fundamentais e que insiste em não adotar um saber crítico-reflexivo.
O jurista autômato é uma contradição total. Simplesmente não faz sentido que o profissional cuja função é solucionar controvérsias sociais complexas pelo Direito seja um sujeito indiferente ou então negligente quanto ao significado profundo do fenômeno com o qual está às voltas, isto é, alguém descomprometido com as causas sociais relevantes e, como no mais das vezes tem ocorrido, inconsciente quanto à importância de seu papel na sociedade contemporânea.
À guisa de conclusão e para resumir: o aprofundamento teórico do ensino jurídico é fundamental, sendo que a Filosofia Jurídica permite esse aprofundamento. Ademais, o aprofundamento do estudo da Filosofia Jurídica na formação jurídica seria relevante ao menos para possibilitar ao jurista em formação uma melhor reflexão sobre quais rumos tomar no período imediatamente posterior à conclusão da graduação em Direito, é dizer, na escolha da carreira jurídica a seguir.

REFERÊNCIAS

BARRETO, Tobias. Estudos de Direito. Rio de Janeiro: Laemmert & C. Editores proprietários, 1892.

CALSAMIGLIA, Albert. Problemas abiertos em la filosofía del derecho. In: Doxa. Cuadernos de Filosofia del Derecho, Alicante, n. 1, 1984, 43-47.

FERRAZ JR, Tércio Sampaio. O Arcaísmo na Formação Jurídica Brasileira. In: Revista USP. São Paulo, V. 1, N. 101, 2014, pp. 27-36.

PATTO, Belmiro Jorge. Entrevista com Willis Santiago Guerra Filho. In: Revista de Direito. Vol. 13, N. 18, Ano 2010, 171-185.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e Ensino Jurídico em Terrae Brasilis. In: Revista da Faculdade de Direito UFPR. Curitiba, V. 46, N. 0, 2007, 27-50.

* Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Bauru, mantido pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Advogado. E-mail: leandro_lhmb_jus@yahoo.com.br.

Recibido: 17/02/2017 Aceptado: 16/05/2017 Publicado: Mayo de 2017

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