Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


O ESTADO DE DIREITO COMO LEGADO E A IMPORTÂNCIA DO ENFRENTAMENTO À AMEAÇA AUTORITÁRIA

Autores e infomación del artículo

Leandro Henrique de Morais Bento*

Centro Universitário de Bauru – Instituição Toledo de Ensino, Brasil

leandro_lhmb_jus@yahoo.com.br

RESUMO
Este texto aborda brevemente o conceito de Estado de Direito e seus desdobramentos históricos mais relevantes, objetivando demonstrar a importância de seu legado frente à ameaça autoritária sempre presente no interior da sociedade. Ressaltam-se, ligeiramente, as passagens do Estado de Direito Clássico para o Estado Social de Direito e deste para o Estado Democrático de Direito, enfatizando-se que na vigência deste paradigma o Poder Judiciário é alçado à condição de intérprete último do Direito, desempenhando um papel fundamental no enfrentamento à ameaça autoritária. Destaca-se que o Estado de Direito deve ser entendido como um legado da modernidade, cuja função essencial continua sendo impedir o arbítrio, submetendo-se o poder ao império da lei.

PALAVRAS-CHAVE
Estado de direito, legado, constituição, democracia, autoritarismo.

ABSTRACT: This text briefly discusses the concept of the rule of law and its most relevant historical developments, aiming to demonstrate the importance of its legacy in the face of the authoritarian threat that is always present within society. The passage from the classical rule of law to the welfare state and from that to the Democratic State is analyzed, emphasizing that in the validity of this paradigm the Judicial Power is elevated to the status of the last interpreter of Law, Playing a key role in coping with the authoritarian threat. It should be noted that the rule of law must be understood as a legacy of modernity, whose essential function remains to prevent arbitration by subjecting power to the rule of law.

KEYWORDS
Rule of law; legacy; constitution; democracy; authoritarianism


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Leandro Henrique de Morais Bento (2017): “O estado de direito como legado e a importância do enfrentamento à ameaça autoritária”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (abril-junio 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2017/02/estado-direito.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1702estado-direito


Dentre os grandes legados da modernidade, além das realizações científicas e artísticas que modificaram as estruturas fundamentais de toda uma época, está o legado do Estado de Direito, cujas bases essenciais remontam ao contexto revolucionário que possibilitou, pelo esclarecimento teórico-filosófico e pela luta política, a superação do absolutismo, da intolerância religiosa e da organização socioeconômica estamental que até então prevaleciam sobre os demais modos de vida possíveis.
A abertura econômica capitalista que se esboçava, juntamente com as rupturas no campo do conhecimento – isto é, a superação dos dogmas da metafísica clássica e consequente secularização –, culminou na luta contra o poder despótico de minorias empenhadas em assegurar a manutenção do status quo, que até então lhes favorecia contra a plebe, proporcionando as condições para o desenvolvimento de novas ideias acerca dos modos de organizar a sociedade por meio da ordem jurídica (DÍAZ, 1963).
Sob a bandeira do jusnaturalismo racionalista e dos princípios do liberalismo político, as classes subjugadas de antanho buscaram fazer frente ao poder do Estado, especialmente a burguesia ascendente, que se insurgia contra a opressão do monarca e os odiosos privilégios da nobreza e do clero. Na perspectiva do jusnaturalismo racionalista, os direitos naturais do ser humano tinham fundamento na própria razão humana, servindo como base para as Constituições e as leis que viessem porventura a compor o conjunto de normas reguladoras da vida em sociedade (FERRAZ JR, 1989).
Destarte, o direito natural racional liga-se a própria práxis, funcionando como ponto de sustentação básico para os fins revolucionários. A ideia de um pacto social oriundo unicamente da racionalidade humana garante a legitimidade da autoridade estatal. Neste espeque, “Pode-se dizer, a nosso ver, que ao findar do século XVIII, as categorias máximas do Direito Natural Racional, o pactum e a majestas, uniam-se para fundar a obrigatoriedade da obediência” (FERRAZ JR, 1989, p. 6).
Na verdade, o Estado de Direito surge como realidade concreta justamente em decorrência do sucesso do engajamento da burguesia em impor limites ao poder do soberano pela legalidade, pela separação dos poderes e pela laicização estatal. De que outro modo, a não ser pela efetivação do princípio da legalidade, seria possível a contenção do arbítrio e do império das vontades e idiossincrasias do detentor do poder político máximo na sociedade politicamente organizada?
De fato, o jusnaturalismo racionalista, que esteve na base do processo revolucionário, vai aos poucos perdendo sua força, cedendo espaço a um novo tipo de abordagem da questão do Direito, que passa a enfatizar sobremaneira o direito positivo, estabelecendo-o como o único Direito válido; daí o nascedouro do positivismo jurídico (BOBBIO, 1995).
Na verdade, com o advento da Revolução Francesa do Século XVIII, os postulados fundamentais que haviam guiado o processo revolucionário passaram a estar estabelecidos na Constituição e nas leis escritas. Daí a importância jurídico-política do jusnaturalismo racionalista e da concepção liberal de democracia, que redundaram na construção de um novo modo de reger a vida social, diferente de todas as formas jurídico-políticas experimentadas anteriormente (DÍAZ, 1963).
Nesse sentido, vale anotar que a rica história do constitucionalista tem seu apogeu precisamente no Século XVIII, momento em que efetivamente se consagram as aspirações ao Estado de Direito. No ensinamento de Elias Díaz (1963, p. 36):
“Planteando históricamente el tema del reconocimiento jurídico de los derechos fundamentales del hombre se llega también como origen a la Revolución francesa, punto de arranque de la institucionalización del Estado de derecho, y en especial, a la Declaración de los Derechos del Hombre y del
Ciudadano del 26 de agosto de 1789. Se resumía aquí una larga tradición de declaraciones de derechos, que se hace remontar hasta la Carta Magna del Rey Juan II de Inglaterra (Juan Sin Tierra) en 1215, y que tiene como escalas importantes el «Bill of Rights» inglés de 1689, la «Declaration of Rights» de Virginia de 12 de junio de 1776 y la propia Constitución de los Estados Unidos de 1787. En estos últimos textos, así como en el francês de 1789, está presente el influjo directo y principal del yusnaturalismo racionalista de los siglos XVII y XVIII y su afirmación de los derechos naturales del hombre, derechos innatos, inalienables y sagrados; derechos, sobre todo, a la vida, a la libertad y a la propiedad, que constituyen el núcleo de los garantizados por el Estado de derecho, que reserva, en mayor o menor grado, estas materias a la competencia única de la ley formal emanada del órgano legislativo de representación popular”.

O Estado de Direito, portanto, permite a superação do despotismo que caracterizava o Estado Absolutista. Tem-se assim a instauração de uma ordenação racional que visa o asseguramento dos direitos do ser humano, entendido como cidadão e não apenas como súdito, em face do poder do Estado. Sobre este assunto, ensina o filósofo italiano Norberto Bobbio (1992, p. 61):
“É com o nascimento do Estado de direito que ocorre a passagem final do ponto de vista do príncipe para o ponto de vista dos cidadãos. No Estado despótico, os indivíduos singulares só têm deveres e não direitos. No Estado absoluto, os indivíduos Possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado de direito, o indivíduo tem, em face do Estado, não só direitos privados, mas também direitos públicos. O Estado de direito é o Estado dos cidadãos”.

Posteriormente à Revolução Francesa, entre o fim do Século XVIII e o início do Século XIX, dá-se o advento do Movimento Codificador Europeu, cuja pretensão era basicamente a de reunir num corpo fixo de doutrinas todas as normas jurídicas vigentes, entendida com fonte primeira e essencial do Direito a lei escrita promulgada, expressão da vontade geral e da defesa dos interesses do cidadão contra o Estado. De outra face, o Estado passa a ser o único produtor do Direito, monopolizando até mesmo as normas consuetudinárias (costumeiras), antes socialmente aceitas (BOBBIO, 1995).
Portanto, a ideia de Estado de Direito tem raízes na busca pela limitação do poder estatal a partir da lei escrita e também na busca da imposição de limites à ação dos particulares, que devem conformar seus comportamentos, expectativas e interesses às normas jurídicas vigentes.
No Século XX, o Estado de Direito, antes concebido na faceta demo-liberal, sofre importantes transformações, primeiramente com o surgimento do ‘Estado Social de Direito’ (Welfare State) e, após a Segunda Guerra Mundial, com o surgimento do ‘Estado Democrático de Direito’ (AFONSO DA SILVA, 1993).
O Estado Social de Direito é o modelo que enfatiza a necessidade de intervenção estatal nas ordens econômica e social, na busca de regular o modo de produção capitalista.  Igualmente, tal modelo pretende efetivar os direitos sociais, econômicos e culturais, visando garantir as condições mínimas de vida aos cidadãos menos favorecidos, por meio de sistemas de seguridade social. O exemplo mais referido pela doutrina no que se refere a este modelo estatal são o da Constituição Mexicana de 1917 e o da Constituição de Weimar de 1919 (DÍAZ, 1963).
Já o Estado Democrático de Direito é o paradigma que se estabelece no Segundo Pós-Guerra e que aprofunda a fórmula do Estado Social, reconhecendo as insuficiências deste no enfretamento às desigualdades e injustiças sociais. Busca-se a transformação da realidade social por intermédio do Direito, ou seja, procura-se modificar as estruturas sociais, políticas e econômicas que geram injustiças sociais e inequidades, sem recair em modelos estatais coletivistas e totalitários.
Deveras, indo além do Estado Social de Direito, o Estado Democrático de Direito é um modelo que pressupõe a criação e implementação de políticas públicas e políticas sociais, bem como a difusão de uma cultura democrática e de respeito às diferenças, à pluralidade política e ideológica. É o modelo adotado, por exemplo, pela ‘Constituição Portuguesa de 1976’, pela ‘Constituição espanhola de 1978’ e pela ‘Constituição da República Federativa do Brasil de 1988’.
Deste modo, o Estado Democrático de Direito aparece como “Estado de legitimidade justa (ou Estado de Justiça material), fundante de uma sociedade democrática”, entendida esta como a ordem que “instaure um processo de efetiva incorporação de todo o povo nos mecanismos de controle das decisões, e de sua real participação nos rendimentos da produção” (AFONSO DA SILVA, 1993, p. 108).
Justamente, o Estado Democrático de Direito converge com a tendência global de valorização dos direitos humanos fundamentais, podendo ser destacados como paradigmas principais do novo direito internacional as aprovações, pela Organização das Nações Unidas, da ‘Declaração Universal dos Direitos Humanos’ em 1948, o ‘Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos’ e do ‘Pacto Internacional sobre os Direitos Sociais, Econômicos e Culturais’, ambos estes em 1966. Na mesma toada, têm-se inúmeros outros tratados internacionais sobre direitos humanos, que consagram direitos de há muito reivindicados.
Pode-se dizer, destarte, que a ordem jurídico-constitucional (âmbito nacional) hoje tutela amplamente os direitos de liberdade, que compreendem, dentre os mais importantes, os direitos à liberdade de locomoção, de expressão do pensamento e de manifestação política. Sempre, a violação ou ameaça de violação dos direitos de liberdade poderá ser remediada pela aplicação da garantia fundamental ao habeas corpus.
No ponto, vale anotar que se por um lado os direitos de liberdade ainda não são plenamente tutelados na vida civil, sendo sua violação bastante recorrente no cotidiano, por outro lado eles constituem o núcleo mais básico na proteção à dignidade da pessoa humana, não podendo ser relativizada sua importância. Assim, há uma fundamentalidade da garantia da liberdade, que não pode ser posta em questão, nem ser negligenciada em favor de pautas utilitaristas.
No plano do direito à igualdade, as conquistas da humanidade são bem mais tímidas, bastando para constatar isso, verificar o profundo déficit de direitos sociais, econômicos e culturais na atualidade, sendo que o mal da desigualdade recai sobre a maior parte da população, especialmente os mais pobres, que pouco ou nada tem, embora haja, por contraponto, uma imensa concentração de riquezas e de renda nas mãos de uns poucos privilegiados aos quais praticamente tudo é permitido, havendo nesse sentido imensa negligência estatal.
O princípio da igualdade, que não se restringe à igualdade perante a lei, exige que se busque, por via da constitucionalidade e da legalidade adequada à Constituição, a construção de uma sociedade mais igualitária e sem discriminações injustificadas do ponto de vista da dignidade intrínseca do ser humano. De fato, as Constituições contemporâneas, sobretudo aquelas surgidas a partir do Segundo Pós-Guerra, estabelecem diretrizes essenciais para que o Estado promova o bem-estar e a justiça sociais, visando exatamente promover maior igualdade entre os cidadãos.
Nesse sentido, os trabalhadores e, especialmente, os cidadãos pobres passam a contar com direitos sociais, econômicos e culturais, que podem ser exigidos perante o Estado independentemente de quaisquer outras condições jurídicas. De acordo com este novo modelo de democracia, há que se assegurar um mínimo de condições de vida para todos os cidadãos, o que se traduz pela efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais, que não poderão ser barganhados por razões políticas e nem suprimidos por via de reformas constitucionais e legislativas ocasionais.
Enfim, na acertada expressão de Norberto Bobbio (1992, p. 49), vive-se “A Era dos Direitos”; ou seja, importa atualmente buscar a eficácia dos direitos e garantias fundamentais já amplamente previstos nos textos normativos.
Na realidade, tendo em vista a experiência histórica, notadamente as tragédias do Século XX, o tema dos direitos humanos fundamentais passou a envolver todos os povos, no sentido de sua busca de concretização (BOBBIO, 1992). Aquilo que antes era buscado pelas doutrinas jusnaturalistas, passa a estar consubstanciado no direito positivo, dando origem a uma nova problematização teórica, de cunho sociológico, que procura alcançar a efetividade dos direitos e garantias fundamentais. Todavia, o Direito hoje possui uma autonomia sem precedentes históricos, não dependendo, grosso modo, da ética, da moral e da teologia, que passam a possuir relações diferentes com o fenômeno jurídico.
A propósito desta questão, é importante observar:
“Finalmente, descendo do plano ideal ao plano real, uma coisa é falar dos direitos do homem, direitos sempre novos e cada vez mais extensos, e justificá-los com argumentos convincentes; outra coisa é garantir-lhes uma proteção efetiva. Sobre isso, é oportuna ainda a seguinte consideração: à medida que as pretensões aumentam, a satisfação delas torna-se cada vez mais difícil. Os direitos sociais, como se sabe, são mais difíceis de proteger do que os direitos de liberdade. Mas sabemos todos, igualmente, que a proteção internacional é mais difícil do que a proteção no interior de um Estado, particularmente no interior de um Estado de direito. Poder-se-iam multiplicar os exemplos de contraste entre as declarações solenes e sua consecução, entre a grandiosidade das promessas e a miséria das realizações. Já que interpretei a amplitude que assumiu atualmente o debate sobre os direitos do homem como um sinal do progresso moral da humanidade, não será inoportuno repetir que esse crescimento moral não se mensura pelas palavras, mas pelos fatos. De boas intenções, o inferno está cheio” (BOBBIO, 1992, pp. 63-64).

A eficácia dos direitos e garantias fundamentais depende, então, de compromisso e de planejamento, bem assim de adequação dos programas políticos aos preceitos normativos que regem a vida social e pautam a atuação estatal.
No entanto, a ameaça autoritária e antidemocrática sempre paira sobre a sociedade civil. Igualmente os fantasmas do totalitarismo e da ditadura rondam a convivência social democrática, pondo em risco toda forma de manifestação da vida livre e criativa, havendo inúmeras manifestações sociais e políticas no sentido de destruir as conquistas do povo plasmadas nos textos jurídicos.
A tendência ao fascismo, ao ódio classista e racista, à violência contra os mais frágeis social e economicamente e ao uso abrupto e ilegítimo do poder do Estado tem ganhado força nos dias de hoje. Esse problema se mostra bastante evidente, mormente quando se verifica as publicações predominantes nas redes sociais e demais meios de comunicação de massa. Esse problema acarreta, de um modo ou de outro, direta ou indiretamente, consequências radicais nos direitos e garantais fundamentais de milhões de pessoas.
Com efeito, o Estado de Direito, tal qual concebido desde a modernidade e aperfeiçoado ao longo de todo o Século XX, segue profundamente ameaçado atualmente, em que pesem os esforços dispendidos pelos setores democráticos da sociedade, pelos movimentos sociais e pelos juristas comprometidos com a efetividade da Constituição. Na verdade, há na sociedade certa sensação de mal-estar com a situação sociopolítica em geral. Outrossim, constata-se a existência de profunda instabilidade das instituições necessárias ao asseguramento dos direitos e da própria democracia.
Não obstante, essa questão se reflete no Poder Judiciário.
Nos regimes democráticos contemporâneos, surgidos no Segundo Pós-Guerra, o Poder Judiciário passa a desempenhar um papel de protagonista na efetivação dos direitos e garantias fundamentais, complexificando-se ainda mais a relação entre Direito e política. O Judiciário, no exercício de uso de suas incumbências constitucionais, delimita o âmbito de ação dos entes estatais e dos particulares, submetendo-os ao crivo da constitucionalidade e da legalidade constitucional. Trata-se de um processo de judicialização da política, tema que tem recebido atenção especial da doutrina.
Sobre a judicialização, afirma Luís Roberto Barroso (2014, pp. 4-5):
“Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo. Essa expansão da jurisdição e do discurso jurídico constitui uma mudança drástica no modo de se pensar e de se praticar o Direito no mundo romano-germânico. Fruto da conjugação de circunstâncias diversas, o fenômeno é mundial, alcançando até mesmo países que tradicionalmente seguiram o modelo inglês – a chamada democracia ao estilo de Westminster –, com soberania parlamentar e ausência de controle de constitucionalidade. Exemplos numerosos e inequívocos de judicialização ilustram a fluidez da fronteira entre política e justiça no mundo contemporâneo, documentando que nem sempre é nítida a linha que divide a criação e a interpretação do Direito”.

Nesta linha, o Judiciário tem por missão institucional garantir, em instância última de decisão, a obediência à Constituição e às leis, embora esteja também a elas submetido, não podendo ultrapassá-las. Assim, a preservação do Direito democrático cabe a todos, mas especialmente ao Judiciário, posto ser este o ente que possui a palavra última acerca da intepretação das normas constitucionais (BARROSO, 2014).
Despiciendo registrar que a ênfase dada ao Judiciário não significa a desconsideração do Legislativo e do Executivo, devendo haver equilíbrio entre os três poderes: “Cabe aos três Poderes interpretar a Constituição e pautar sua atuação com base nela. Mas, em caso de divergência, a palavra final é do Judiciário. Essa primazia não significa, porém, que toda e qualquer matéria deva ser decidida em um tribunal” (BARROSO, 2014, p. 11).
Esta questão conduz ao problema que representa para as democracias contemporâneas a crise do Direito. Esta crise se caracteriza, basicamente, pela dificuldade de estabelecer interpretações do Direito que sejam constitucionalmente adequadas. Isso se deve em grande parte ao decisionismo positivista, de viés kelseniano (que conceitua a decisão jurídica como ‘ato de vontade’), ainda hoje predominante.
Por um lado, o Direito encontra-se hoje marcado pela diversidade crescente e pela complexidade, fator que impossibilita firmar, a priori, interpretações que sejam universalmente válidas, aplicáveis a casos jurídicos semelhantes independentemente de suas peculiaridades. A ideia de generalidade, predominante na cultura jurídica romanística, perde grande parte de sua força. Por outro lado, a discricionariedade judicial positivista tem relegado o Direito a uma espécie de ‘vontade de poder’ do intérprete, confundindo-se, não raramente, arbitrariedade e senso de justiça.
Logicamente, se o Judiciário não logra chegar a um acordo substancial quanto aos limites interpretativos do ordenamento jurídico-constitucional e ao sentido essencial do exercício do poder de julgar, a crise do Direito torna-se iminente, e se reflete sobre os demais campos da vida social sobre os quais pende de um modo ou de outro o significado do jurídico. Com efeito, na base de todas as grandes crises do Direito, desde a Revolução Francesa do Século XVIII até os dias atuais, estiveram as discordâncias quanto aos limites da interpretação e aplicação do Direito.
Conquanto se possa alegar que é da ‘essência’ do fenômeno jurídico o signo da controvérsia – o que em última análise se revela pela divergência interpretativa nos caos difíceis –, isso não implica na possibilidade de impor ao Direito a pecha do relativismo. Na realidade, o relativismo que se abateu sobre o Direito na contemporaneidade é fruto da incompreensão acerca da importância das transformações democráticas ocorridas ao longo do Século XX e de uma deficiência no trato com a Teoria do Direito.
No âmbito da Teoria do Direito encontram-se as grandes leituras que dão conta de demonstrar o quanto o Direito se transformou, sobretudo, após a Segunda Guerra Mundial. Trata-se de um Direito profundamente ético, cujas normas positivas consubstanciam conquistas históricas imensamente importantes do ponto de vista da efetivação da democracia. Essas conquistas são frutos das grandes lutas pela emancipação do ser humano do jugo da tirania, da arbitrariedade e do ódio político.
No âmbito teórico da Ciência Política devem ser buscadas as raízes do fenômeno do Estado Moderno, cujo legado permanece vivo e sob a responsabilidade de todos aqueles que se dedicam à prática da política e do Direito.
Obstar o arbítrio: esta é a chave para a garantia do regime democrático e para a preservação dos direitos e garantias fundamentais conquistados a duras penas ao longo da História. Certamente, o enfrentamento à ameaça autoritária principia com a preservação da autonomia do Direito frente à política e à economia. Embora a política e a economia tenham sempre a tendência de minar as garantias estabelecidas pela juridicidade, visando a interesses nem sempre compatíveis às necessidades reais da sociedade, o Direito possui em seu favor a marca da estabilidade teórica e prática, fator que lhe permite conservar direitos conquistados e, ao mesmo tempo, fazer progredir, no sentido da democratização, a vida social como um todo.
Com efeito, o Estado de Direito é um legado da modernidade. Deve assim ser entendido, para levar a cabo o ‘império da lei’ sobre o assim chamado ‘governo de homens’. Conquanto possa ser atacada, predada pela má política e pelos interesses escusos que fazem pouco do ‘contrato social’, a ideia de Estado de Direito continua sendo a mais altaneira conquista da humanidade até o presente momento. A partir de seu enraizamento na cultura, tornamo-nos mais conscientes da liberdade, da igualdade, da dignidade do ser humano e do papel da Constituição e das leis na preservação e efetividade dos direitos e garantias fundamentais.

REFERÊNCIAS

AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional. 9ª Ed. São Paulo: Malheiros, 1993.

BARROSO, Luís Roberto. Jurisdição Constitucional: a tênue fronteira entre o Direito e a política. In: Migalhas. Fevereiro de 2014. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/arquivos/2014/2/art20140204-06.pdf. Acesso em: 23/01/2017.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

______. O Positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. Trad. Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.

DÍAZ, Elias. Teoría General del Estado de Derecho. In: Revista de Estudios políticos. Nº 131, 1963, pp. 21-48.

FERRAZ JR, Tércio Sampaio. O Legado da Revolução. In: Síntese Nova Fase. Belo Horizonte, V. 16, N. 47, 1989, pp. 5-11.

* Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Bauru, mantido pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Advogado. E-mail: leandro_lhmb_jus@yahoo.com.br.

Recibido: 18/02/2017 Aceptado: 16/05/2017 Publicado: Mayo de 2017

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