Antonio Henrique Maia Lima*
Diego Borges Cordeiro**
Universidade Potiguar, Brasil
henrick_maia@hotmail.comRESUMO
O presente texto é uma análise construída com base em argumentos de autores clássicos e contemporâneos, no âmbito das ciências sociais, que abordam ou estabelecem relações teóricas com o assunto das políticas públicas, em especial sobre o fenômeno considerado motor dessas relações políticas: os conflitos. O objetivo desta análise é mostrar que a partir do conflito, enquanto fenômeno público, é possível identificar as necessidades que ocorrem na arena das políticas públicas, o que nos autoriza entender o conflito como indicador de necessidades ou, melhor dizendo, o “indicador de políticas públicas”.
Palavras-chave: Políticas públicas, conflitos, necessidades.
SOCIOLOGICAL APPROACH ON PUBLIC POLICY AND ITS CONFLICT ZONE
ABSTRACT
This paper is an analysis based on arguments of classical authors and contemporary, in the social sciences that address or formulate theoretical relationships with the subject of public policies, especially about the phenomenon considered "propellant" of these political relations: conflicts. The objective of this analysis is to show that starting the conflict, as a public phenomenon, it is possible to identify the needs that arise in the arena of public policy, which allows us to understand the conflict as necessities indicator or, in other words, an "indicator of public policies".
Keywords: Public policies. Conflict. Needs.
UNA MIRADA SOCIOLÓGICA SOBRE POLÍTICA PÚBLICA EN SU ESPACIO DE CONFLICTOS
RESUMEN
Este texto es un análisis fundamentado en argumentos de autores clásicos y contemporáneos de las ciencias sociales, que tratan o establecen relaciones teóricas con el tema "política pública". En particular, los autores abordan lo fenómeno considerado el "motor" de estas relaciones políticas: conflictos. El objetivo de este análisis es demostrar que a partir del conflicto, como un fenómeno público, es posible identificar las necesidades que se produzcan en el ámbito de las políticas públicas, lo que nos permite entender el conflicto como indicador de necesidades, o más bien un "indicador de política pública ".
Palabras-clave: Políticas públicas. Necesidades. Conflictos.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Antonio Henrique Maia Lima, Diego Borges Cordeiro (2017): “Um olhar sociológico sobre politicas públicas a partir de sua arena de conflitos”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (enero-marzo 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2017/01/conflitos.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1701conflitos
1 INTRODUÇÃO
Com o propósito de falarmos de políticas públicas para entender sua verdadeira essência, logo, nos comprometemos a identificar o fenômeno que estimula suas relações políticas, seja durante a montagem da agenda, na sua formulação política, na tomada de decisão, e na implementação e avaliação da política 1, iniciativa esta que torna necessário ir além dos estudos de “revisão de literatura” do campo de conhecimento proposto por Souza (2006) para compreender o que realmente rege (e o que são) as políticas públicas.
O esforço da identificação desse fenômeno e a compreensão do mesmo exige que esse texto não vá ao encontro de definições2 (ou conceitos) extremamente fatigantes de políticas públicas. Trata-se, em outras palavras, de definições minimalistas que muitas vezes se expressa como algo de aparência “neutra” e “consensual, supostamente voltada ao “bem público” e ao “bem-estar social” (FONSECA, 2013, p. 403), sustentando aquela mesma ideia de que a política pública se move por “intencionalidade pública” em prol de responder a um “problema público”.
Essa imagem – “dotada de caráter” e “sentimentos nobres” – que promoveu a ideia do “welfare state”, garantindo bem-estar social, harmonia entre as classes, lealdade e produtividade (ESPING-ANDERSEN, 1991, p. 87), que de fato é um merchandising sob uma visão romantizada, e que parece ser ainda determinante para se adicionar o adjetivo “público” (na expressão “políticas públicas”), pode começar a sofrer fraturas quando perceber que a política pública se move (em constância) na contramão do consenso e em direção ao fenômeno denominado “conflito”, uma vez que se torna motor de suas relações políticas, um instrumento de importância para reconhecermos os envolvidos e, a partir dele, identificarmos as necessidades que ocorrem na arena da política pública.
Todos esses argumentos e análises se desenvolvem com o olhar crítico apoiado nas teorias e reflexões de autores clássicos e contemporâneos das ciências sociais, acreditando que a partir dessa abordagem o conteúdo apresentado aqui abra uma nova aparência aos estudos das políticas públicas.
2 O QUE É POLÍTICA PÚBLICA
A partir da hipótese que a política pública se apresenta como uma diretriz de “utilidade pública” na finalidade de atingir um “bem-estar social”, e que está para atender as necessidades e aspirações de um problema público, isto é, em outras palavras, para Castoriadis (1982): “a busca da necessidade em satisfazer outras necessidades”. Mas, até que ponto as políticas públicas atendem às reais necessidade dos seus destinatários?
A “necessidade” é algo que vem sendo analisado por autores clássicos e modernos (assim como os contemporâneos) em diversos contextos como, por exemplo, Aristóteles: “Não se pode viver bem, ou mesmo viver, a menos que atenda às próprias necessidades” (ARISTÓTELES: 1999 p. 148). Para complementar outro exemplo, Marx afirma:
O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e a verdade é que esse é um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, tal como há milhares de anos, tem de ser realizado dia a dia, hora a hora, para ao menos manter os homens vivos. O segundo ponto é este: a própria primeira necessidade satisfeita, a ação da satisfação e o instrumento já adquirido da satisfação, conduz a novas necessidades – e esta produção de novas necessidades é o primeiro ato histórico (MARX, 2009, p. 41-42).
Portanto, falar sobre “necessidade” nos autoriza a uma análise não circunscrita de política pública setorial específica e nem exaurirmos na análise de apenas um dos seus processos cíclicos da política pública pelos quais tanto os atores estatais como os societários estão inseridos ou monitoram os resultados da política. O que queremos dizer que, independente das “necessidades” serem de naturezas variadas, poder encontrar em várias formas e em diversas instâncias, a tal da política pública se movimenta por uma combinação de “necessidades” de seus condutores e beneficiários. Estamos falando de “necessidades” que precedem até mesmo o seu público destinatário para a qual ela foi pensada. Certamente uma heterogeneidade e pluralidade de interesses (não consensuais) que acontecem durante e ao longo do processo.
De antemão, se vê estruturada uma lógica de “necessidades” e “interesses” que envolvem muitos fatores externos e internos nos processos da política pública. Nesse momento desenha-se regras que regem suas decisões, elaboração e implementação, fatores estes que também influenciam os resultados da política pública (SOUZA, 2006, p. 21). Cada etapa pode ter intervenções distintas dos grupos que se sentem atingidos, implicando a adoção de “vetos”, que se dão de formas distintas dependendo da correlação de forças e dos recursos de poder dos atores em disputa (FONSECA, 2013 p. 404).
Essas intervenções (no que se diz respeito as disputas e vetos) expressam-se como “formas de necessidades” nas mais diversas características, é algo que lhe confere uma “identidade” e que se torna uma análise bastante desafiadora por não permitir ficarmos aprisionados a uma lógica (de tempo e de espaço) pelo fato de pressupor que a evolução dessas “necessidades” acontecem em “movimentos deslocados”.
Em outras palavras, no mundo real da política, “políticas públicas” expressa uma infindável teia de interesses, que congrega desde a capacidade técnica de elaborar e implementar um dado programa, as contendas orçamentárias, e as combinações e recombinações de interesses em cada etapa do ciclo. A imagem e a percepção do cidadão comum sobre um determinado projeto e mesmo sobre um determinado governo são, dessa forma, resultado desse complexo processo (FONSECA, 2013, p. 404)
Suas combinações, sem dúvida, ganham um perfil característico, resultam numa determinada intencionalidade, e o tipo de destino que terá a política pública. Não estamos aqui para avaliar em que qualidade atinge essa política, mas, de fato, mostrar a existência de uma arena de vetos e disputas de acordo com cada “necessidade” e “interesses” de seus atores diante da “mercadoria”. A palavra “mercadoria” ganha sentido enquanto estado de “espírito de caráter privado” no meio de um considerado cenário público. Aquilo que é útil e vantajoso materialmente para cada “necessidade endógena” de seus proponentes, preservada por privilégios e “protecionismos mercantilistas”, inevitavelmente corrobora para que a política pública perda o seu “status” de “qualidade pública”, ou seja, uma arena pública montada e acobertada de produtos suscetíveis à compra e venda, como um verdadeiro comércio realizado entre mercadores e clientes.
O “espírito de caráter privado” é uma cultura no meio de tantas outras no cenário das políticas públicas, que se conduz ao longo do tempo e se altera dialeticamente, gerando suas contradições 3 em nível econômico, político, ideológico etc. Se define pelos movimentos contínuos de algo que segue em curso, em renovação, (re)criação e transformação, numa sucessão de fluxos difusos, alternados, contrastantes e contraditórios, e que não apresenta limites precisos, se tratando, portanto, de processos de “evolução”, característica importante da palavra “dialética” (LEFEBVRE, 1995, p. 43).
Analisar a lógica dialética replica-se numa intensidade que é ou parece ser de ordem ou grandeza incalculável, que passa a transformar o simples no complexo, que se faz presente constantemente e ininterrupto. Contudo, na dialética deriva-se uma inquietude de sua identidade que Hegel denomina o “devir”: essa identidade estremece em si (ADORNO, 2009, p. 137). É justamente assim que a dialética da não-identidade e da identidade se torna ilusória (ADORNO, 2009, p. 150). Uma crítica no que diz respeito ao fato de que a dialética não tem, em si, uma identidade e, como ela está sempre em movimento, vive em busca de encontrar a não-identidade.
A importância de explicarmos sobre a não-identidade é para compreendermos o real cenário das políticas públicas, que as mesmas estão sempre em curso e em movimento contínuo: desde o momento em que identifica-se o problema público, as suas relações de interesses (no eixo público e privado-mercantilista), nas constantes “soluções político-administrativas” de cada processo (formulação, implementação e avaliação) etc. Contudo, configura-se numa “lógica perversa” por se tornar uma arena do “sempre desconhecido” e da “não-identidade”, àquilo que está sob um incessante processo de transição, que nos permite também dizer que qualquer definição de políticas públicas é arbitrária.
Mas, o que pode-se considerar positivo é que a não-identidade das políticas públicas abre espaço para infinitas intervenções e práticas de controles que possam (re)configurar e (re)combinar constantemente a sua arena política. Em outras palavras, da mesma forma que a política pública se configura sob uma lógica de inquietação, muitas vezes perversa, de “interesses” e “necessidades” dos atores envolvidos, ao mesmo tempo, positivamente, ganha um cenário democrático4 que deve ser fortemente “institucionalizado” na arena das políticas públicas, sendo reconhecida enquanto sistema político que contempla participações abrangentes de atores. Essa relação de participação ganha o conceito de “interface socioestatal”, entendendo como base provedora de maior capacidade, em termos de alcance e precisão, na compreensão e explicação tanto da complexidade quanto da variedade dos canais de interlocução existentes 5 (PIRES, 2012, p. 08).
(...) a participação deve ser encorajada, não apenas para melhor refletir necessidades e aspirações do território, como para estimular a coprodução e, portanto, a maior efetividade social da política pública (KERSTENETZKY, 2012, p. 274).
Maior abrangência de atores no campo da política instiga pressões assimétricas, correspondente aos interesses, expectativas e aspirações de atores envolvidos, valendo como “regra do jogo”, conquanto uns inclinam-se a favor da democracia, por ser uma abertura para diversas participações e opiniões na política, a “democracia torna-se o calcanhar de Aquiles de muitos liberais, e concluem que a democracia usurparia ou destruiria o mercado” (ESPING-ANDERSEN, 1991, p. 87).
3 IDENTIFICANDO O FENÔMENO DAS POLITICAS PÚBLICAS
Estar numa arena democrática, em que pressupõe um “pluralismo de valores”, não é vivenciar um “mar de rosas”, pois alimenta-se de premissas contraditórias, mutuamente excludentes pelo fato de ocorrem necessidades de escolhas entre alternativas opostas, que resultará em uma conclusão ou consequência. O exemplo claro que Abranches (1988, p. 07) traz o dilema institucional brasileiro, que se define pela necessidade de se encontrar um ordenamento institucional suficientemente eficiente para agregar e processar as pressões derivadas desse quadro heterogêneo.
A teoria empírica das coalizões, embora excessivamente descritiva e assentada na lógica das preferências individuais, permite identificar algumas questões que ajudam a compreensão da intrincada dinâmica política e institucional associada a governos de aliança. Em geral, a análise de estruturas políticas e sociais mais homogêneas e estáveis induz a uma ênfase maior de coalizões que minimizem o número de parceiros e maximizem as proximidades ideológicas entre eles. Esta estratégia teria por objetivo reduzir os riscos e contrariedades associados a alianças mais amplas e diversificadas (ABRANCHES, 1988, p. 27)
A busca de um mecanismo político eficiente de ordenamento frente as pressões heterogêneas, em que se refira à “pluralidade” de demandas e expectativas, aos interesses e objetivos, aponta já de imediato ao enfraquecimento (ou desafio) da capacidade de governar essas demandas que se encontram numa relação múltipla e fracionada, muitas vezes, de insatisfações e frustrações. De fato, tanto a política de ordenamento quanto as demandas acumuladas de insatisfações que se direcionam na contramão são pressões que tendemos a entender que se transmutam numa lógica que desenha “uma linha de força geral” 6, compreendendo a tal “força geral” como o “todo” que serpenteia por meio das relações de força, numa variedade e multiplicidade de ações locais singulares e “integradas” de convulsões. Segundo Abranches,
(...) a capacidade de formar maiorias estáveis e a necessidade de recorrer a coalizões não são exclusivamente determinadas pela regra de representação, nem pelo número de partidos, mas também pelo perfil social dos interesses, pelo grau de heterogeneidade e pluralidade na sociedade e por fatores culturais, regionais e linguísticos, entre outros, que são passíveis de anulação pela via do regime de representação (ABRANCHES, 1988, p. 13-14)
Essas pressões nos permitem entender de maneira mais prática que é uma agenda inflacionada de demandas, no sentido talvez de resolver problemas, onde se requer uma medida de planejamento e complexas negociações no campo das políticas públicas, e que essas negociações se dão numa recorrente arena de conflitos. Afinal de tudo, durante a arena, os “interesses”, “vetos” e “disputas” (independentemente de sua natureza), se resumem e se traduzem em “um só”, essencialmente em “conflitos”.
Os conflitos podendo ser entendido como dispositivos de caráter político, são frequentemente caracterizado por Marx como “conflito de classes”, o que torna o conflito, além de uma “luta”7 , um verdadeiro corpo político, um conjunto de princípios e opiniões políticas como esforço de superação de algo, que nos faz perceber como uma “expressão” e capacidade de reconhecimento de cada necessidade.
Os conflitos assumem a importância pública 8 como reconhecimento de um “bem comum”. A habilidade no relacionar-se “com os outros”, fazendo parte do método de um corpo político, se materializa como exercícios de “influência administrativa” enquanto procedimento de organização dos assuntos e negócios “públicos”.
“O conflito vai se formando a partir das narrativas mais abertas ou mais sussurrantes, dos ditos e dos não-ditos e dos silêncios, formando um xadrez comunicativo” (MARQUES, 2007, p. 37), que, no entanto, assemelha-se a um jogo passível de movimento entre as relações do privado com o público, ponto determinante para “disputarem entre si” por meio de um “intenso raciocínio lógico e estratégico”, parte do processo interativo e modo de o “outro” se comunicar por intermédio do conflito.
A análise estratégica suscita as questões mais complexas, pois devemos trabalhar num nível prático-operacional com os conceitos de poder, motivação para atuar usando o poder, força aplicada ou pressão de um jogador sobre uma jogada etc. Devemos saber, ademais, distinguir entre viabilidade para decidir uma jogada e viabilidade para alterar estavelmente a situação do jogo depois da jogada. Uma coisa não leva, necessariamente, à outra. Em um e outro caso, é preciso avaliar os resultados sobre o poder acumulado pelos jogadores e suas motivações. Por fim, é preciso propor estratégias de jogo em que se combinam a autoridade, cooptação, a negociação, o confronto e a discussão (MATUS, 1991, p. 37-38)
É certo que a tal comunicação das partes auxilia no processo recíproco das organizações de ideias, no seu modo e método de se operar e na sua “estrutura espontânea”. São tipos de expressão e organização que compõem a essência do conflito, mas a real comunicação deste fenômeno nos força a entender como disparos de “reações mutuamente excludentes” entre as partes, momento de “separação” (de valores, por exemplo) para que cada uma das partes possa enunciar suas concepções, crenças, expectativas etc. que uma nutre em relação a outra, o que evidencia que esse acontecimento não deixa de se tornar um encontro coletivo (e público) das intimidades e privacidades, uma vez que pressupõe a existência do olhar do outro.
Pressupor o olhar ou participação do outro é princípio sociológico, é algo que não está sendo construído sozinho. Da mesma forma é o conflito, um fenômeno desenvolvido por cumplicidade, e uma das maneiras em que passamos a reconhecê-lo como o fenômeno que se relaciona com os outros é exatamente no encontro de suas “reações excludentes”: momento em que constrói a agitação, tumulto por motivo político, mistura de coisas e exibição com ostentação, formando uma arena que propicia tornar a tal situação ou assunto “conhecido por todos” 9. O conflito apresenta potencial de “desprivatizar” a intimidade na finalidade de compartilhar experiências, contribuindo para uma “nova realidade” 10 e “aparência”. A aparência – aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos – constitui, por consequência, a realidade (ARENDT, 2014, p. 61): realidade esta que atinge a abstração (incerta e obscura) ou uma leniente “razão” (síntese).
De fato, uma aparência construída com caráter público (“de todos” e “para todos”), é especificamente uma “sociologia pública”, que é a capacidade do conflito de reconhecer as partes pelo fato do mesmo não ser calado ou ter um “caráter secreto”. Sua intenção é deixar situações manifestas, transparentes e públicas. Por outro lado, qualquer situação íntima, particular e privada, “invisível”, que atinge uma relação conflituosa, automaticamente, passa a ter “visibilidade”, e aquilo que é reconhecido como “problema” atinge um reconhecimento público, ou seja, “relevante para a coletividade”. Salientamos não restringirmos o “problema” no sentido de negatividade, mas algo importante que reconhecemos como relevante para um determinado público, enquanto processo de (re)construção e desconstrução.
Todo conflito é público, publicamente vivido e conduzido na sua evolução. Todo conflito tem seu espectro de publicidade, cujo limites são alvos de tentativas de controle e que intervêm na forma como é vivido e conduzido na sua evolução. Essa publicidade não precisa ser vista como uma esfera que se oponha ao privado. Decerto não ignoramos as formas de apropriação diversas de conflitos, mesmo quando se estabelecem nos foros íntimos ou privados (MARQUES, 2007, p. 35).
O conflito, no plano das ideias, pode ser entendido realmente como disrupções acumuladas de uma combinação de valores e necessidades intensificadas e enriquecidas de emoções subjetivas e sentimentos privados e relevantes das contradições, algo que não se revela para além daquele que sente, convive e participa, mas que no final de tudo resulta em um senso de realidade e aparência: fruto do que foi digno de ser visto ou ouvido. E, uma vez que nosso senso de realidade depende totalmente da aparência e, portanto, da existência de um domínio público (ARENDT, 2014, p. 63), conviríamos dizer, aproveitando enquanto corpo político que se liga a um número considerável de contradições “organizadas”, que o conflito é um “fenômeno público” sob “domínio público”11 pelo fato de reunir presença e participação simultânea de inúmeras perspectivas e em diferentes ângulos, uma identidade na mais completa diversidade, além de proporcionar uma “arena pública” em que outros podem ver e acompanhar as relações.
Ao longo do texto se torna notável que o conflito é exposto como um fenômeno que apresenta habilidade em reconhecer as partes envolvidas, como por exemplo: ao reconhecer as contradições como elementos e partes constitutivas do conflito, assim nas relações entre privado e público, visto que determinantes também se mostram para a própria ação do reconhecimento, e entre outras capacidades em reconhecer as diferenças, necessidades e carências etc. Sem dúvida, o reconhecimento é a capacidade por conseguir mostrar facilmente as relações (matéria, tema, objeto etc.) dos envoltos, e, se o reconhecimento é algo que distingue, identifica e indica, nesse caso, torna-se motivacional entendermos o conflito como “indicador de necessidades” pelo fato de enaltecer e descrever as necessidades dos envolvidos.
Além de tudo, diante dessa habilidade, e analisando a partir da perspectiva de Marques (2007, p.34), “compreendemos que o conflito revela-se como um instrumento metodológico de apreciável importância e é uma porta de entrada para pensar as relações entre atores diversos”. Justamente, tudo acontece pelo fato de o conflito ter a capacidade de desenvolver, de imediato, uma arena pública oportuna e que permite analisar, conjuntamente, “todas” relações dos envolvidos, “todas” expressões e fatores que contribuíram para a situação existente, antes em razão aos seus métodos específicos nos quais ele próprio recorre como o processo de congregar, relacionar e separar o irrelevante a partir daquilo que é digno de ser visto ou ouvido, e que valida enquanto aparência e realidade.
Visto deste ângulo, ainda segundo Marques (2007, p. 39), o conflito perde a conotação de anomia, revelando-se como instância constitutiva, capaz de criar realidades, configurar identidades, expressar e redesenhar fronteiras. Dessa forma, desobriga-se pensar o conflito como algo desprovido de harmonia, como um incessante renascimento de desordens de todo tipo. Muito diferente dos pensamentos de teóricos mais conservadores como Durkheim, que só pelo fato do conflito apresentar ser um fenômeno que se constrói ao longo de vivências, como um fluxo contínuo que não chega necessariamente numa resolução definitiva, passa a ser visto como um fenômeno anormal, anárquico e mórbido, que vai contra algum “produto de regulamentação” de ordem moral e contra o “bem comum”, favorecendo a fragmentação coletiva em prol do desenvolvimento da liberdade individual.
Ao analisarmos as obras de Durkheim12 , podemos perceber que o mesmo sempre se preocupou em estudar as “formas desviadas” como meio de permitir determinar melhor as condições de existência do estado normal (DURKHEIM, 2008, p. 367), isto é, em outras palavras, aquilo que é nocivo e apresenta ameaça, devemos nos preocupar em entender o problema para visar a manutenção da unidade social, acreditando que é com base de regras que se prevê as condições de equilíbrio.
No entanto, enquanto superam as diferenças, as semelhanças bastam para integrar as representações assim aproximadas; as dissonâncias de detalhe desaparecem no seio da harmonia total. Ao contrário, à medida que as diferenças se tornam mais numerosas, a coesão se torna mais instável e precisa ser consolidada por outros meios (DURKHEIM, 2008, p. 379-380)
Nessas condições, para Durkheim, qualquer tipo de relação de conflito significa ausência de regulação, e que sem dúvida é viver num estado de anomia 13. “Eximirmo-nos de ver nos conflitos uma forma de desequilíbrio, ou mesmo parte de um processo onde a ordem é finalmente restaurada, significa reconhece-lo como inerente à vida social” (MARQUES, 2007, p. 35), por conseguinte não temos como recusar que é um fenômeno constitutivo da sociedade. Além do mais, para darmos intensidade ao assunto, Simmel afirma que “em contraste com tal negatividade pura, o conflito contém algo positivo. Seus aspectos positivos e negativos, no entanto, estão integrados: podem ser separados conceitualmente, porém não empiricamente” (SIMMEL, 2011, p. 569), fator motivacional para conferirmos o fenômeno com mais detalhes a partir das experiências e investigações de campo, além ser uma referência que corrobora na sustentação do nosso argumento que qualquer tipo de relação de conflito entre organismos sociais fortalecem os seus laços, permitindo prender umas às outras como “unidade” do consenso e da discórdias.
O indivíduo não atinge a unidade de sua personalidade exclusivamente por uma harmonização exaustiva, de acordo com as normas da lógica, objetivas, religiosas ou éticas, do conteúdo de sua personalidade. Ao contrário, contradição e o conflito não apenas precedem esta unidade, mas são nele operativos a cada momento de sua existência. Da mesma forma, não existe provavelmente nenhuma unidade social onde as correntes convergentes e divergentes entre os seus membros não estejam inseparavelmente entrelaçadas. Um grupo absolutamente centrípeto e harmonioso, uma pura “unificação”, não só se apresenta como empiricamente irreal, como não representa nenhum processo concreto da vida (SIMMEL, 2011, p. 570).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Toda essa argumentação desenvolvida sobre o conflito se deu na tentativa de mostrar que ele, enquanto “fenômeno público” é a expressão de relações que enaltece e ocupa todos os lugares, e que vive e se move, ao logo do seu processo, por meio de pressões assimétricas, sob uma arena de “vetos” e “disputas”, e que no final de tudo sempre se resumem e se traduzem em novas relações de conflitos. Ademais, o conflito passa a ser o “fenômeno motor” que ascende as relações das políticas públicas, por ter seu “caráter público”, e que pode ser entendido como um único meio que legitima o seu adjetivo “público” para se intitular como “política pública”.
E retomando a capacidade do conflito em enunciar concepções, crenças, expectativas que os atores envolvidos têm em relação a outros, tornando-se fator motivacional por conseguir mostrar as relações (matéria, tema, objeto etc.) dos mesmos, sendo capaz de identificar, descrever e enaltecer as necessidades desse atores, entende-se o conflito como um indicador de necessidades, ou melhor dizendo, o “indicador de políticas públicas”, e que pode avaliar (ou mensurar) nos seus próprios processos políticos.
Já nos autorizando a compreendê-lo como “indicador de política pública”, sem dúvida, estamos falando de uma ferramenta política, consideravelmente útil, podendo contribuir para responder questões internas e externas da “política pública”. Em outras palavras, o conflito aponta o que precisa ser visto e revisto. O conflito além de indicar as necessidades, o mesmo também traz necessidades, isto é, enquanto houver conflito, este será porque existem necessidades que precisam ser vistas e revistas.
Se atentarmos a afirmação de Gurr (1985, p. 476), que “o conflito pode ser um meio disponível para mudar normas políticas estabelecidas”, deixa-se claro que o mesmo além de ser “indicador” é também “ação para enfrentamentos públicos”, tornando-se “motor propulsor” para análise e formulação de novas políticas públicas. O importante que não devemos confundir esses “enfrentamentos públicos” para além de um plano de ação que passa para o discurso como meio de persuasão, pautado por um cenário político, o mesmo que Hanna Arendt (2005, p. 35) enfatiza: que o ser político, o viver numa polis, significa que tudo é decidido mediante palavras e persuasão, e não através de violência.
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WEBER, Max (1864-1920). Metodologia das ciências sociais, parte 1; tradução de Augustin Wernet; introdução à edição brasileira de Maurício Tragtenberg. – 4.ed – São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2001.
* Professor da Universidade Potiguar – UNP, Doutorando em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail: henrick_maia@hotmail.com
** Mestrando em Ciência Sociais pelo Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). e-mail: dbc_borges@hotmail.com
1 Nesse modelo, a montagem da agenda se refere ao processo pelo qual os problemas chegam à atenção dos governos; a formulação da política diz respeito ao modo como as propostas de política são formuladas no âmbito governamental; a tomada de decisão é o processo pelo qual os governos adotam um curso de ação ou não ação; a implementação da política se relaciona ao modo pelo qual os governos dão curso efetivo a uma política; e a avaliação da política se refere aos processos pelos quais tanto os atores estatais como os societários monitoram os resultados das políticas, podendo resultar daí em uma reconceituação dos problemas e das soluções político-administrativas. (HOWLETT, 2013 p. 14-15).
2 Encontra-se, majoritariamente, sua definição traduzida como “o governo em ação” (Cf. FONSECA, 2013, p. 403). Além de tudo, qualquer definição de política pública é arbitrária e na literatura especializada não há um consenso quanto à definição do que seja uma política pública, por conta da disparidade de respostas para alguns questionamentos básicos: (SECCHI, 2012, p. 02).
3 Segundo Hegel (1988, p. 14), o espírito nunca está em repouso e é concebido sempre num “movimento progressivo”.
4 Na teoria contemporânea da Democracia confluem três grandes tradições do pensamento político: a) a teoria clássica, divulgada como teoria aristotélica, das três formas de Governo, segundo a qual a Democracia, como Governo do povo, de todos os cidadãos, ou seja, de todos aqueles que gozam dos direitos de cidadania, se distingue da monarquia, como Governo de um só, e a da aristocracia, como Governo de poucos; b) a teoria medieval, de origem “romana, apoiada na soberania popular, na base da qual há a contraposição de uma concepção ascendente a uma concepção descendente da soberania conforme o poder supremo deriva do povo e se torna representativo ou deriva do príncipe e se transmite por delegação do superior para o inferior; c) a teoria moderna, conhecida como teoria de Maquiavel, nascida com o Estado moderno na forma das grandes monarquias, segundo a qual as formas históricas de Governo são essencialmente duas: a monarquia e a república, e a antiga Democracia nada mais é que uma forma de república (a outra é a aristocracia), onde se origina o intercâmbio característico do período pré-revolucionário entre ideais democráticos e ideais republicanos e o Governo genuinamente popular é chamado, em vez de Democracia, de república. O problema da Democracia, das suas características, de sua importância ou desimportância é, como se vê, antigo. Tão antigo quanto a reflexão sobre as coisas da política, tendo sido reproposto e reformulado em todas as épocas. De tal maneira isto é verdade, que um exame do debate contemporâneo em torno do conceito e do valor da Democracia não pode prescindir de uma referência, ainda que rápida, à tradição (BOBBIO, 1998, p. 319-320).
5 Segundo o PIRES (2012, p. 08), essa variabilidade dos canais de interlocução existentes refere-se atualmente entre Estado e sociedade no país.
6 Cf. DELEUZE (2005, p. 83).
7 A ideia de luta, que desempenha papel fundamental no esquema weberiano, como um componente significativo nuclear de toda a relação social (WEBER, 1999, p. 16).
8 O termo “público” significa, em primeiro lugar, que tudo o que aparece em público pode ser visto e ouvido por todos e tem maior divulgação possível (ARENDT, 2014, p. 61). Em segundo lugar, o termo “público” significa o próprio mundo, na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que privadamente possuímos nele (Ibid. p. 64).
9 No entanto, há muitas coisas que não podem suportar a luz implacável e radiante da constante presença de outros na cena pública; nesta, só pode ser tolerado o que é considerado relevante, digno de ser visto ou ouvido, de sorte que o irrelevante se torna automaticamente um assunto privado (ARENDT, 2014, p. 63).
10 Temos de fazer distinção entre a “evidência” daquilo que foi interpretado por meio da “compreensão” e a vivência que diz respeito a qualquer tipo de “validação”. Pois, em termos de lógica, a evidência inclui como pressupostos apenas a “possibilidade de pensamento” – a possibilidade de ser pensado e, com referência ao conteúdo, apenas a possibilidade objetiva das conexões que poderiam ser apreendidas mediante a “interpretação”. Para a análise da realidade, entretanto, ela tem apenas o caráter de uma “hipótese de trabalho” – quando se trata da explicação de um processo concreto e/ou quando se trata da formação de conceitos universais - , independentemente se, neste momento, estes conceitos estão sendo elaborados com fins heurísticos ou com a finalidade da elaboração de uma terminologia uniforme – ela apenas se apresenta como um “construto ideal-típico” (WEBER, 2001, p. 85).
11 O domínio público, enquanto mundo comum, reúne-nos na companhia uns dos outros e, contudo, evita que caiamos uns sobre os outros, por assim dizer. O que torna a sociedade de massas tão difícil de ser suportada não é o número de pessoas envolvido, ou ao menos não fundamentalmente, mas o fato de que o mundo entre elas perdeu seu poder de congregá-las, relacioná-las e separá-las (ARENDT, 2014, p. 65).
12 DURKHEIM, Émile (1858-1917). A divisão do trabalho anômica. In: Da divisão do trabalho social; tradução Eduardo Brandão. – 3ª.ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2008.
13 Embora Durkheim sempre demonstre generalizações nas suas análises, para Simmel (2011, p. 573), algo que é negativo e prejudicial entre os indivíduos, se for considerado isoladamente e com objetivo particular, não tem necessariamente o mesmo efeito na relação total desses indivíduos.
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