Suzanna Da Silva Ferreira *
Márcia Aparecida Da Silva Pimentel**
Diego Mercês De Barros***
Universidade Federal do Pará, Brasil
suzannsilva@hotmail.comResumo
Este artigo objetiva analisar o ordenamento territorial desenvolvido por meio de criação de unidades de conservação, a partir de uma abordagem geográfica, com reflexões conceituais acerca da paisagem territorializada e sua indissociabilidade no trato das temáticas ambientais. A área de estudo é a Reserva Extrativista Marinha São João da Ponta, localizada na região norte do Brasil, no estado do Pará. Compreende-se que, as interpretações de considerações atuais sobre preservação da paisagem e valorização do desenvolvimento territorial com sustentabilidade, recebem amparo na análise geográfica e nas reflexões que circundam a criação e gestão de áreas protegidas, sobretudo quando se trata de RESEX, em que pese a solicitação da criação da unidade por demanda da própria comunidade local. Neste sentido, torna-se relevante destacar que a Reserva Extrativista Marinha São João da Ponta, enquanto unidade territorial de conservação permite uma leitura da paisagem com componentes naturais e culturais que direcionam políticas de ordenamento territorial e de sustentabilidade ecológica.
Palavras chave: Unidade de Conservação, Reserva Extrativista, Paisagem-Território, Gestão de Paisagem, Meio Ambiente, Comunidades Tradicionais.
Resumen
Este artículo tiene por objetivo analizar el ordenamiento territorial desarrollado por medio de la creación de unidades de conservación a partir de una perspectiva geográfica, con reflexiones conceptuales acerca del paisaje territorializado y su indisociabilidad en el trato de las temáticas ambientales. El área de estudio es la Reserva Extractivista Marina São João da Ponta, localizada en la región norte del Brasil. Se comprende que las interpretaciones de consideraciones actuales sobre preservación de paisaje y valorización del desarrollo territorial sustentable reciben amparo en el análisis geográfico y en las reflexiones que circundan la creación y gestión de áreas protegidas, sobre todo cuando se trata de RESEX, en la que pesa la solicitud de creación por demanda de la propia comunidad local. En este sentido, se torna relevante destacar que la Reserva Extractivista Marina São João da Ponta, como unidad territorial de conservación permite una lectura del paisaje con sus componentes naturales y culturales que direccionan políticas de ordenamiento territorial y de sustentabilidad ecológica.
Palabras Claves: Unidad de Conservación, Reserva Extractivista, Paisaje-Territorio, Gestión del Paisaje, Medio Ambiente, Comunidades Tradicionales.
Abstract
This article aims to analyze the spatial planning developed through the creation of conservation units, based on a geographical approach, with conceptual reflections about the territorialized landscape and its inseparability in the treatment of environmental themes. The area of study is the São João da Ponta Marine Extractive Reserve, located in the northern region of Brazil, in the state of Pará. It is understood that the interpretations of current considerations on landscape preservation and enhancement of territorial development with sustainability, receive support in the geographic analysis and in the reflections that surround the creation and management of protected areas, especially when it comes to RESEX, especially the request of the creation of the unit by demand of the local community itself. In this sense, it is relevant to point out that the São João da Ponta Marine Extractive Reserve, as a territorial unit of conservation, allows a reading of the landscape with natural and cultural components that guide territorial planning policies and ecological sustainability.
Key words: Conservation Unit, Extractive Reserve, Landscape-Territory, Landscape Management, Environment, Traditional Communities
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Suzanna Da Silva Ferreira, Márcia Aparecida Da Silva Pimentel y Diego Mercês De Barros (2016): “Paisagens transversais e ordenamento territorial em áreas protegidas: análise paisagística do meio ambiente territorializado por comunidades extrativistas da Amazônia”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (octubre-diciembre 2016). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/04/reserva.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss201604reserva
O Estado brasileiro mantém, ao longo de sua história, uma conflituosa relação na esfera das questões ambientais, com agudizada perda de sua biodiversidade em decorrência de diversos fatores, tais como: os padrões de desenvolvimento que ressignificam os valores da natureza, o crescimento populacional que aumenta a pressão sobre o consumo dos recursos naturais, e, entre outros, a predominância de implantação de empreendimentos perniciosos à conservação da natureza e aos saberes e modo de vida de comunidades tradicionais.
A pressão ambientalista nacional e internacional, contra o uso predatório da natureza e por um novo padrão de desenvolvimento sustentável, fomentaram as variadas discussões em torno da proteção dos recursos naturais, como as conferências organizadas pelas Nações Unidas que resultaram em criações de estratégias para atender aos compromissos assumidos pelo governo brasileiro em resposta às iniciativas mundiais, como é o caso da criação e implantação das Unidades de Conservação (UC), utilizadas a fim de proteger o patrimônio natural e cultural do país.
Como resposta mais estruturada a uma necessidade de conservação ambiental, a implantação de Áreas Protegidas, de inicial critério preservacionista, ditavam a restrição de uso do solo para proteção dos recursos naturais, em que não se permitia a permanência de populações locais em áreas de interesse na manutenção do equilíbrio e estrutura natural, com permissão somente de uso indireto dos atributos naturais. Entretanto, em meio às adversidades e contraposições às práticas preservacionistas, seguiram-se discussões realizadas no âmbito da inserção de populações locais e a relevância destes grupos ao equilíbrio de áreas ecologicamente importantes.
Desde a criação de áreas naturais protegidas nos Estados Unidos, em meados do século XIX, que objetivavam proporcionar aos habitantes da cidade um lugar onde se pudesse apreciar a natureza, constituiu-se uma política preservacionista adotada principalmente nos países de terceiro mundo (Diegues, 2008). A este autor, essa ideia de transferência de “espaços naturais vazios”, sem a presença de moradores, foi conflitante ao ser implantada em países tropicais, por haver nessas regiões populações tradicionais e indígenas.
O ideário conservacionista praticado pelo Estado, mesmo que resguarde a valorização do modo de vida tradicional e assevere a relevância destas práticas socioeconômico-culturais na proteção ambiental, ainda assim efetua propostas de implantação pensadas e concretizadas de ‘cima para baixo’. Compreende-se que, as interpretações de considerações atuais sobre preservação da paisagem e valorização do desenvolvimento territorial com sustentabilidade, amparam a análise geográfica nas reflexões que circundam a criação e gestão de áreas protegidas, sobretudo quando se trata de Reservas Extrativistas (RESEX), em que pese a solicitação da criação da unidade por demanda da própria comunidade local.
Sob estas condições regulamentaram-se, por meio da Lei 9.985/2000, as UC no Brasil em dois grupos distintos, constituindo-se em: Unidades de Proteção Integral e de Unidades de Uso Sustentável. Neste último grupo enquadram-se as RESEX, categoria que contempla área utilizada por populações extrativistas tradicionais, e tem por objetivo a proteção dos meios de vida e cultura dessa população (BRASIL, 2000). Na perspectiva da RESEX realizamos este artigo, em que analisamos a paisagem-território da RESEX Marinha São João da Ponta, localizada na mesorregião nordeste do estado do Pará, região norte do Brasil.
Cabe destacar que a Reserva Extrativista Marinha São João da Ponta, enquanto unidade territorial de conservação permite prescindir uma leitura da paisagem com componentes naturais e culturais que direcionam políticas de ordenamento territorial e de sustentabilidade ecológica.
Entre marés, matas, mangues, rios, caminhos, estradas, moradias, praças, portos e outras paisagens, os pescadores artesanais da RESEX Marinha São João da Ponta, caracterizam, organizam, concebem, estruturam o seu território das atividades cotidianas, materializando territorialidades e moldando paisagens. Este território, definido por processos de relações temporais, não pode ser apreendido dissociado da paisagem, pois, ao considerar que a paisagem “aclara e humaniza o território”, como bem ilumina Passos (2013: 29), entende-se que já não é suficiente analisar o território, e as respectivas territorialidades que o constituíram, sem entender a subjetividade e distintos elementos físicos e simbólicos a este imbricados.
A primeira seção deste artigo abrangerá a transversalidade da paisagem e território, como categorias indissociáveis, que integram perspectivas geográficas de análises ambientais, direcionando reflexões acerca da gestão da paisagem - polissêmica, dialética, complexa, imaterial e material. A segunda seção contextualizará a análise da paisagem território da RESEX Marinha de São João da Ponta, com caracterizações da UC e relações entre desenvolvimento territorial e a concepção paisagística à gestão do meio ambiente. Na última seção apresentamos breves considerações finais, a este artigo, que, todavia não pressupõe um ponto final a discussão de certo modo complexa e imbuída de desdobramentos.
As questões ambientais que orientam este trabalho seguem por um paradigma de reflexão e apreensão geográfica assentada em categorias chave desta ciência: paisagem e território em suas interfaces. Frente aos desafios postos à geografia, de um ‘nó górdio’ à sua funcionalidade científica, (cada vez mais ratificada e reproduzida como disciplina pedagógica) buscam-se caminhos, mediados por novos modelos teórico-metodológicos, que instrumentalizem um pensamento geográfico de reencontro a arcabouços teóricos, apartados por setorizações das ambas correntes de geografia humana e física.
Ao utilizar novas possibilidades de análise, sem a ambição ou ousadia de expressar solução à dicotomia geográfica, temos por escopo identificar e mapear manifestações, representações e configurações individuais e coletivas que organizam e reorganizam o território de comunidades tradicionais, que residem no entorno de unidades de conservação. Todavia, a compreensão da dinâmica territorial estará inter-relacionada a paisagem, que é cada vez mais um processo de transformação, um fenômeno inscrito na história, interpretação social da natureza (BERTRAND, 2009).
A proposta de Bertrand indica o futuro da geografia sustentado por estudos do meio ambiente, com adesão crítica e construtiva de suas problemáticas. O autor preconiza que as pesquisas geográficas, em relação ao meio ambiente são difíceis, porém, inevitáveis e “a geografia deve demonstrar sua capacidade de enriquecer ou de renovar os problemas ambientais” (2009: 198).
O meio ambiente, na contemporaneidade, incluso em temáticas centrais de discussões e preocupações interdisciplinares, onde não mais se pretende separar os elementos biofísicos e socioeconômicos, interpõe a variados campos científicos, ramificações em seus objetos centrais de estudo. A rigor, o que anteriormente situava-se restrito às ciências da natureza, como exemplo, a ecologia sistêmica, ou às ciências humanas, cita-se a antropologia, em ambiente de “crise ecológica” prescinde de pesquisa interdisciplinar, a fim de atentar-se a complexidade das questões ambientais.
Morin, ao tratar da Inteligência Cega na obra “Introdução ao pensamento complexo”, anuncia que “a ambição do pensamento complexo é dar conta das articulações entre os campos disciplinares que são desmembrados pelo pensamento disjuntivo” (2006: 06), e ainda nos passos deste autor, Bertrand segue a reflexão o qual cita: “a cada vez mais a ciência antropossocial precisa articular-se com a ciência da natureza e que esta articulação requer organização da própria estrutura do saber” (2009: 117)
De imediato entendemos a emergência em se fazer o diálogo entre os distintos campos do saber. A geografia, que transita nos interstícios das ciências ditas naturais e, ao mesmo tempo caracterizada como ciência humana, é intitulada e identificada como ciência de síntese, pressuposto relativamente danoso ao enquadramento desta enquanto ciência relevante, tanto às questões físicas quanto as questões sociais.
Contudo, diante da temática ambiental, de onde se urge por métodos, vias epistemológicas e discursos unívocos, unimo-nos ao pensamento bertrandiano em analisar o meio ambiente a partir da perspectiva da paisagem territorializada:
A temática é unívoca: estudar sobre as franjas incertas das ciências da sociedade e das ciências da natureza os espaços geográficos, paisagens e territórios que nos rodeiam e, numa certa medida nos condicionam. Apreendendo-nos globalmente como objetos, ou sujeitos mistos, às vezes naturais e sociais. Quase sempre antropizados, quase sempre artificializados. O princípio de hibridação é o fio condutor de nossa pesquisa. (Bertrand, 2009: 17)
Sob estas condições, versaremos sobre o território dos pescadores da RESEX Marinha de São João da Ponta, considerando os olhares sobre esta paisagem mediadora da relação sociedade e natureza – paisagem como uma interpretação social da natureza – de reconhecimento do “subjetivo, simbólico e identitário dos sujeitos e dos quadros de vida desses sujeitos” (PASSOS, 2013: 17). Isto porque a complexidade da paisagem, como bem ratifica Bertrand, prescinde a análise de seu sistema sem fragmentá-la, visto que esta complexidade-diversidade é morfológica (forma), constitucional (estrutura) e funcional.
Em análise sincrônica a “geografia transversal” bertrandiana, nesta conjectura do diálogo indissociável entre território e paisagem, analisaremos este complexo território-paisagem como o meio ambiente apreendido de alguma forma por olhar humano, traduzido como “(...) Construção cultural e construção econômica misturadas. E sob a paisagem, há o território, sua organização espacial e seu funcionamento” (2009: 332). Revelando também algumas proposições geográficas que propalam por estas análises híbridas, ainda que percorram por outros métodos investigativos.
2.1 Diálogo entre paisagem e território: novos paradigmas para geografia (?)
Realizar um inventário conceitual em torno destas duas categorias não é o principal enfoque desta pesquisa. Pretendemos, de fato, destacar a inter-relação e os porquês de agregar este par categórico como perspectivas analíticas para entender, contemplar e identificar as atividades e necessidades reais e, até mesmo, acrescentar argumentos (a medida em que nos couber) que fomentem a gestão compartilhada da unidade de conservação estudada.
As reflexões que preveem uma articulação pluridimensional na geografia, constam do período de 1960 e 1970, em distintos métodos científicos da geografia física e humana, após avanços alcançados por estudioso como Paul Vidal de La Blache, Alexander von Humboldt, Karl Ritter, entre outros do século XIX e início do XX, relatado por Saquet (2015).
Em sua obra, Saquet ilumina um trajeto teórico-histórico de movimento de renovação global da geografia, que pretendia insurgir, por meio das mobilizações de professores, estudantes e demais interessados em novos arranjos, acepções que enalteceriam outros elementos de análise, como “as formas e as relações sociais, o movimento, os conflitos e as contradições, a formação do território e de diferentes paisagens, todos elementos mascarados, até então através de abordagens eminentemente descritivas, superficiais e classificatórias” (2015: 49).
Dentre tantos pensadores que ensaiaram uma ruptura com as abordagens positivistas e neopositivistas, em busca de novos aportes teórico-conceitual, que combinem processos sociais com objetos naturais, Saquet menciona abordagens de Quani, cuja fundamentação na obra de Lenin o fez delinear articulação de “elementos da Geografia e da História, que podem ser traduzidos pela relação paisagem-território” (2015: 50).
É importante frisar que as análises de Saquet são centralizadas em autores de orientação marxista, que galgam por avistadas acepções teórico-metodológicas e resultam em outros conceitos de território e de paisagem, destacando-se a apreensão da paisagem como “materialidade das relações sociais”. O autor complementa ainda que estes estudos “contribuem efetivamente na elaboração de uma teoria marxista da relação espaço-tempo com um caráter político de transformação e conquista de justiça social, relação materializada na paisagem e no território” (2015: 53)
As colocações acima, ainda que transitando por métodos e teorias de princípios antagônicos ao de Bertrand, perfilam um objetivo comum: de anseios, criações, renovações ou revisões, imbuídas aos consentimentos de pluralidades conceituais imbricadas a geografia, que evoque paradigmas satisfatórios e sustentáveis com base no conhecimento que a própria ciência já produziu e produz. São proposições de diálogos conceituais que não subjazem, mas entrecruzam-se, complementam-se e encaminham por distintos eixos epistemológicos, reflexões a base da complexidade polissêmica da paisagem e seus atributos, que assenta sobre si a (des)organização do território.
Dentre as “perspectivas de abordagens de território e territorialidade humana, que se sucedem no tempo histórico e coexistem em alguns momentos e períodos”, Marcos Saquet elenca quatro perspectivas (2015: 30):
É na perspectiva ambiental que o território e a paisagem convergem e se complementam de modo mais profícuo e, atualmente sistematizado. Vejamos que já não é uma proposta restrita a uma corrente do pensamento geográfico, mas trata-se de proposições distintas com finalidades assemelhadas, em que a paisagem não se limita a noção pictórica, estética, descritiva do visível, mas ela (a paisagem) efetiva elementos que humanizam o território, e a ele atribuem dimensões subjetivas, que interpretam a territorialidade em consonância com as marcas impressas na paisagem.
“Não é possível negligenciar a características plurais, naturais e sociais, históricas e relacionais de cada território quando temos um compromisso político com a qualidade de vida do povo e com a recuperação e preservação ambiental” (SAQUET, 2015: 129). Esta assertiva do autor ratifica seu inventário, de pensadores que comungaram dos mesmos pressupostos, e o fizeram significar a paisagem como mediadora ao desenvolvimento e melhorias de qualidade de vida por meio do planejamento e gestão do território. Sobretudo ao expressar o pensamento de Quani (2006: 14 apud Saquet, 2015: 131) no qual “[...] A paisagem se materializa enquanto penetra, inspira e modifica o projeto territorial.” (grifo do original).
A paisagem, atribuída de projeção imaterial/subjetiva, não se escapa, nessas tendências, a um arcabouço ecossistêmico, preponderante a sua identidade e reconhecimento de forma geral à geografia. Se considerarmos temas específicos da geografia física (biogeografia, geomorfologia, climatologia, hidrografia) logo nos vem em mente aspectos da natureza que nos endereçam a paisagem “natural”, das estruturas biofísicas. Estas análises fragmentadas oferecem o suporte vertical (solo, água, vegetação, ar) de elementos estruturantes da paisagem, que necessariamente não devem ser estudados de forma isolada, ou parafraseando Passos (2013), não se deve isolar o elemento ecológico da conjuntura socioeconômica.
A articulação do ser humano, da sociedade, da economia e da cultura com o patrimônio natural, ou, se preferirmos, a produção do espaço resultante da apropriação e domínio do território pela sociedade também se traduz indelevelmente na paisagem. Nela ficam inscritos os modos de inserção do povoamento e das infraestruturas que o servem, de exploração dos recursos agroflorestais, pastoris, industriais, os testemunhos de desastres e catástrofes quando os geocomplexos entram em ruptura. (PASSOS, 2013: 88)
Dentro desta análise do professor Messias dos Passos, com elucubrações esclarecedoras sobre novas perspectivas de abordar a paisagem, entendemos a interface e transversalidade do conceito/noção da paisagem, tanto ao fato de imbricar-se ao território em análise que considere sua complexidade e diversidade, quanto ao reforço à utilização de tudo que lhe é/foi agregado enquanto elementos de análise. Ou seja, a história da paisagem, como categoria geográfica e todo seu percurso de conhecimento produzido, não fenece, nem é sobreposto, não são conhecimentos alijados de análise dos fenômenos, ao contrário considera-se “que ela deve ser estudada como um ‘polissistema’ formado pela combinação dos sistemas natural, social, econômico, cultural etc.” (PASSOS, 2013: 36).
Deste modo, a analogia paisagem-território, sob a ótica de um par categórico geográfico, conflui a interpretações que revelam a diversidade do espaço analisado, em que pese o movimento antropossocial que modela a paisagem natural (ecológica, biofísica) e cultural (das experiências e representações) e materializa territórios formados com toda sua relação de uso dos recursos e do poder, por dinâmicas socioeconômicas e políticas, sempre conformados em construções históricas.
“O território começou a ser paisagem quando ele começou a ser pensado. « Começou a ser pensado » significa que uma distância se estabelece em relação ao objeto que é, de qualquer maneira, transformado para ser mudado”. Esta é uma reflexão de Raffestin (2007: 10, destaque do autor) acerca da representação e significados da paisagem, e dos significados que suas linguagens imprimem no território.
Neste texto, o autor destaca os aspectos representacionais da paisagem, sobretudo quando de sua artialização, mas não isolados ao estado da arte, são de fato completudes. As linguagens artísticas, naturais e lógico-matemática são as “ajudas” para se compreender a realidade material e as representações da realidade que compõem a noção de paisagem. Ciência e arte assumem função relevante, ao passo que se entende que a extensão da noção de paisagem vai mais além da geografia, mas são os desdobramentos geográficos que dimensionam o plano de fundo, aberto pelo espaço para além do olhar.
A paisagem apresenta, realmente, um duplo caráter de autonomia ao mesmo tempo como forma e como produção. (...) É possível afirmar, então, que tudo isso vale para todas as formas de representações, pois elas são condicionadas pelo olho do pintor ou do fotógrafo, pelo olho do poeta ou do romancista, por aquele do geógrafo ou do ecólogo. Uns e outros tomam para si as mediações e os transpõem em suas obras. (RAFFESTIN, 2007: 10)
O caráter, muitas vezes banal da concepção paisagística, exprime representações inextricáveis ao trabalho pensado e realizado na formação do território. Dito isto, Raffestin entende que de modo natural, o território tem o seu valor de uso e controle como base essencial, mas por meio da representação a ele também se atribui valor de troca, por plano sociocultural, mas também no plano socioeconômico (2007).
Bertrand (2009: 295), com sua sintética e profícua assertiva, afirma que “a paisagem nasce toda vez que um olhar cruza um território”, e neste sentido as representações se elaboram a partir de um processo de vai-e-vem, onde sujeito e objeto assumem função recíproca, que em substância resulta um ‘produto de interface’ atrelando sociedade a um território.
O modelo esquemático a seguir objetiva sintetizar as averiguações sobre paisagem-território e a perspectiva de utilizar este diálogo na discussão geográfica do debate relacionado ao meio ambiente.
Em suma, esta perspectiva de análise da paisagem em interface com o território, ambiciona organizar o território ao entender sua estrutura e funcionamento, ou seja, os elementos naturais e sociais que o constituem a partir da polissemia da paisagem.
As questões que substantivam a transversalidade entre paisagem e território (ainda escassas no Brasil) e encaminham para um novo paradigma, viabilizam com clareza a produção científica sobre o meio ambiente no que tange as análises geográficas. Isto não significa afirmar que não haja discordâncias e dificuldades, ou ainda, que esta represente uma via de solução à dicotomia física x humana. De fato, entre as dificuldades ou riscos que perpassam esta visão, seriam possíveis simplificações ou reducionismos, traçados sem fundamentos em conceitos e métodos, de concepções vagas e individuais a partir de referências próprias.
As demandas atinentes às políticas públicas para unidades de conservação, que não deixam de antever um ordenamento territorial, precisam favorecer e reconhecer interpretações e abordagens híbridas. De imediato, a propositiva de Bertrand de associação dos contrários (natureza e sociedade, ordinário e extraordinário, subjetivo e objetivo, individual e coletivo) embasam essas pesquisas e comungam da complexidade tratada por Morin: “a ambição do pensamento complexo é dar conta das articulações entre os campos disciplinares que são desmembrados pelo pensamento disjuntivo” (2005: 06)
Ainda sobre ordenamento territorial, destacamos os quatro princípios orientados na Carta do Ordenamento do Território (CONSEIL D’EUROPE, 1998: 10) o qual nos foi apresentado por Messias dos Passos (2013: 20).
Para não concluir, mas encaminhar a tessitura desta temática, nos indagamos em torno do COMO operacionalizar esses conceitos: territoriais, paisagísticos, complexos, pluridimensionais, objetivos e subjetivos, de representações materiais e imateriais da paisagem-território dos pescadores usuários da RESEX, e entendemos que a interpretação fotográfica e a metodologia da pesquisa participativa (em articulação com o atores sociais na materialização de mapas mentais significativos para compreensão de suas territorialidades) são caminhos eficientes como ferramenta de elaboração para apreensão da dialética tipo-indivíduo, que para Bertrand é o próprio fundamento do método de pesquisa.
3. PAISAGEM-TERRITÓRIO: CATEGORIAS INDISSOCIÁVEIS PARA ANÁLISES DO MEIO AMBIENTE
O tema do meio ambiente, com o arquétipo de interdisciplinar, tem em seu legado discussões e soluções parciais, incompletas, que priorizam um lado ou outro da relação sociedade x natureza, enraizado de conceitos e metodologias com dificuldades de conceber a inter-relação dos fenômenos. Definir o que é particular da natureza ou da sociedade, como se configurassem uma relação antagônica, não cabe mais às questões ambientais contemporâneas, pensamentos de Bertrand e Passos conduzem esta afirmação.
O emergente e inadiável apelo à proteção dos recursos naturais, após reincidentes equívocos de se pensar que era necessário apartar o homem para efetivar a proteção, impregnou um paradigma de produção científica setorizada, fragmentada e débil. Por um lado os estudos ecológicos preconizavam valor real e funcional ao meio ambiente, entendia-se e inventariavam-se as estruturas ecossistêmicas, identificavam-se as formas e funções dos elementos biofísicos, em observação unilateral. Do mesmo modo ocorria/ocorre nas ciências humanas, onde se apreende o homem como parte da natureza ou como a própria natureza “tomando consciência de si”, sem, todavia tangenciar sua atuação no remodelar dos fenômenos naturais.
Nossa acepção acerca do meio ambiente estará baseada na compreensão deste enquanto conjunto de “elementos externos que rodeiam a sociedade e que interagem com ela” (BERTRAND, 2009). Deste modo, o pressuposto para análise se estabelece na ação do homem com os recursos por ele trabalhado/modificado e consequentemente produzido, e o tempo é fator preponderante para se considerar qualquer observação.
De tal modo recente, esta abordagem ambiental prediz a geografia um caminho complexo, porém adequado ao conhecimento já produzido nesta ciência. Não que meramente baste articular os conceitos e métodos da geografia, agregar indistintamente todos os fenômenos e desta soma extrair os conteúdos relevantes às demandas acadêmicas-produtivistas-científicas. Contudo é indispensável considerar a dimensão geográfica do meio ambiente em interatividade com outras disciplinas, como nos explica Bertrand (2009: 21) quando se interroga: “Qual geografia para qual meio ambiente?”, como resposta o mesmo autor indica por possibilidade “Enraizar o meio ambiente no território dos homens e na história longa das sociedades (...) o meio ambiente é o jogo e a geografia a ferramenta.” (p.19)
“A geografia é uma interpretação social do território”, nessa perspectiva “territorializar o meio ambiente é, ao mesmo tempo, enraizá-lo no território dos homens e na longa história das sociedades”. Ao afirmar estas questões territoriais para a temática do meio ambiente, Passos (2013) orienta à importância da geografia em direcionar o conhecimento ambiental, com arranjos inter-multidisciplinares, que associam ciências sociais e ciências da natureza.
Atentos à criação de uma identidade geográfica, pertinente aos debates e necessidades da atualidade, os autores acima induzem que se apropriar das questões relativas ao meio ambiente é o ‘casamento’ ideal à geografia, é ali que se encontra o seu futuro, posto que ela (a geografia) deve demonstrar sua habilidade e capacidade em enriquecer, renovar, impetrar e se apropriar, ancorada por suas categorias e métodos, às indagações e insurgentes problemáticas ambientais.
A revisão de conceitos geográficos que decorre, de forma mais intensa, a partir da década de 70 do século XX, impulsa desdobramentos evidenciados na concepção de paisagem e território, e na apreensão destes como categorias potencializadas para se fazer a gestão do meio ambiente, nestes termos “o meio ambiente reclama um método de complexidade associando dialeticamente epistemologia e história das ciências, teoria e prática, método e técnica, saber e formação”. (BERTRAND, 2009: 21)
Morin (2005) bem expressou que ao conhecimento científico coube dilapidar, durante muito tempo, a complexidade dos fenômenos, na pretensão de revelar a ordem simples a que obedecem, contudo o autor assina que a complexidade é uma palavra-problema e não uma palavra-solução.
Para exercer um pensamento que enderece à interpretação do real, permeando o diálogo e a negociação, Morin vislumbra a necessidade de se desfazer duas ilusões do pensamento complexo: acreditar que a complexidade conduz à eliminação da simplicidade, e, confundir complexidade e completude:
(...) Num sentido, o pensamento complexo tenta dar conta daquilo que os tipos de pensamento mutilante se desfaz, excluindo o que eu chamo de simplificadores e por isso ele luta, não contra a incompletude, mas contra a mutilação. Por exemplo, se tentamos pensar no fato de que somos seres ao mesmo tempo físicos, biológicos, sociais, culturais, psíquicos e espirituais, é evidente que a complexidade é aquilo que tenta conceber a articulação, a identidade e a diferença de todos esses aspectos, enquanto o pensamento simplificante separa esses diferentes aspectos, ou unifica-os por uma redução mutilante. (MORIN, 2005: 176)
Esta complexidade, que certamente envolve as questões ambientais, abarca também a noção de paisagem e institui novos paradigmas. Posto que o meio ambiente é uma tema indefinível e complexo demais, e, como afirma Bertrand, é inviável elucidá-lo sob único conceito e método.
A paisagem, a princípio voltada ao plano da apreciação da pintura, de caráter eminentemente descritivo do visível, sobre o qual a “vista alcançava”, posteriormente vinculou-se a tradição naturalista. Por um tempo, a paisagem permaneceu estanque na geografia, sem lugar e sem método, após a ruptura entre geografia física e humana. Reconstruções contemporâneas acerca da noção da paisagem, não mais reduzem sua apreensão aos elementos da natureza ‘natural’, mas, sobretudo da natureza antropizada. (ESTÊVES, 2009).
De acordo com Laura Estêves, a paisagem não tem uma base conceitual clássica para visão contemporânea em que ela é empregada, sua atribuição está atualmente ligada ao meio ambiente, muito por influência da mídia. Este é um desafio ao tratar de paisagem, pois como ratifica Bertrand
A paisagem é termo pouco usado e impreciso e, por isto mesmo cômodo, que cada um utiliza a seu bel prazer. (...) não é a simples adição de elementos geográficos disparatados. É, numa determinada porção do espaço, o resultado da combinação dinâmica, portanto instável, de elementos físicos, biológicos e antrópicos, que reagindo dialeticamente, uns sobre os outros, fazem da paisagem um conjunto único e indissociável, em perpétua evolução. (BERTRAND, 2009: 33)
Ao conceber uma ‘representação da paisagem’ Bertrand orienta a um sistema de referência socioecológico, apreendendo que a paisagem não tem existência fora do sistema no qual ela funciona. Com efeito, o autor instrumentaliza uma regra das três unidades (2009: 223) para reencontrar a coerência interior do sistema socioecológico, constituindo-se em :
Com esta regra de três unidades, o autor fortalece a acepção da paisagem como produto econômico e cultural, que não cessa de prenunciar o sistema socioecológico. Incontestavelmente ligada ao processo de produção, a porção do espaço material com estrutura e sistema socioecológico, que assenta a paisagem, é considerada por um processo tripolar (BERTRAND, 2009: 226) “no qual intervêm um observador, um mecanismo de percepção e um objeto”. Os sistemas históricos, culturais e econômicos são fundantes para que a paisagem não volte a ser definida a partir da “leitura direta de um espaço”. Neste sentido as representações, percepções e interpretações individuais e coletivas, que filtram/decodificam o olhar primeiro e imediato, reconfigurarão o sentido da produção da paisagem.
É prolífica, para gestão de espaços territorialmente protegidos, a adoção dessa perspectiva paisagística multidimensional, imbuída dos distintos olhares, o que vem se tornando prática recorrente na França à gestão do meio ambiente, essencialmente de áreas políticas de proteção ambiental.
Esse antagonismo de percepção e de demandas sobre a paisagem e as controvérsias socioeconômicas que delas emanam nos conduzem a outros dois pontos: as bases sobre as quais são tomadas as decisões referentes ao futuro dos territórios, e o fato de que a evolução das paisagens afeta ambos os olhares. (SILVA, 2014: 63)
Sob estas condições, o Sistema Paisagístico Territorializado (SPT), é apresentado por Bertrand como protótipo teórico a paisagem, que reconquistaria centralidade nas explanações sobre ocupação e exploração do meio ambiente (Reis Jr, 2012). Ou ainda, como explica Passos (2013: 37): “(...) A paisagem território se define como um fato geográfico territorializado/materializado, diferente das paisagens dos pintores e dos poetas.(...) Constitui um sistema territorial de complexidade-diversidade, seja material ou natural”.
Esta é das discussões recentes para Bertrand, com desdobramentos que pressupõe para certos autores como Reis Jr, a substituição ao modelo GTP (Geosistema, Território, Paisagem) ainda que não reconhecida. Este aporte interpretativo se reflete na paisagem sobre o plano metódico de representação cultural, em que o cerne se dá por uma paisagem menos espessa, centralizando sua atenção aos modos como os sujeitos se apropriam e utilizam seus espaços.
Ao entender do autor Reis Jr (2012), Bertrand identifica que caberia ao geógrafo físico “alargar a perspectiva das considerações naturalistas” – renaturaliser le paysage – vislumbrando a este profissional da contemporaneidade, capacitação de discussões mais pragmáticas aos estudos paisagísticos, o qual cita por exemplo as perspectivas endereçadas ao planejamento (aménagement). Reis Jr destaca geógrafos latino-americanos, que influenciados pela geografia francesa, dedicam-se a atividades imputadas às abordagens econômicas e da organização e estruturação política, práticas estas identificadas frequentemente no trato de gestão e manejo.
Paralela a compreensão de Reis Jr, está a observação de Passos (2013: 95) acerca do desenvolvimento do trabalho extraordinário, cuja substância se faz em diálogo e inter-relação com outras ciências, citando os antropólogos como exemplo, a fim de que a geografia não desenvolva um trabalho solitário no tratamento geográfico do meio ambiente. Cultura e sensibilidade, sob o ponto de vista de Passos, interferem em demandas socioeconômicas e ecológicas, sobretudo quando em consonância a gestão do meio ambiente e das transformações dos territórios.
Este é um pensamento caro e inextricável a interdisciplinaridade e complexidade exigida às elucubrações do meio ambiente, sobretudo à geografia por vezes sem identidade científica, em um campo de produção do saber ambiental. Bertrand subentende que a geografia não implica, ao menos inicialmente, uma disciplina mal colocada, ao tangenciar ou se embeber nesta trama categórica, em que a ‘ciência de síntese’ ocupa posição estratégica entre natureza e sociedade.
Este viço que se pretende e se antecipa a relevância da paisagem nas questões pertinentes ao meio ambiente deve ser entendida mais que um atalho, como argumenta Messias dos Passos, a paisagem precisa percorrer um trajeto tal qual aclare e humanize o território.
Com vistas a fornecer meios conceituais e metodológicos que permitam o avanço no conhecimento ambiental, Bertrand dispõe seis conceitos fundamentais em torno do conceito de território e meio ambiente, atento ao fato de que territorializar o meio ambiente é enraizá-lo na sociedade e na natureza (2009: 203). Os conceitos serão demonstrados no quadro a seguir:
Quadro 02: Conceitos fundamentais para territorializar o meio ambiente
SOCIALIZAR O MEIO AMBIENTE |
Segue a linha da evolução do conceito de meio ambiente que não é de origem geográfica. Contribuições de antropólogos, economistas e sociólogos. Neste conceito, socializar o meio ambiente é mudar a finalidade do sistema para entrar na análise das estratégicas sociais e dos modos de representação. Grande aderência da geografia humana, que encontrará concepções da natureza mais pertinentes que muitas análises da geografia física. |
ESPACIALIZAR O MEIO AMBIENTE |
Contribuição essencial da geografia, mas longe de seu pleno desenvolvimento. Constatação de estudos que variam entre um espaço mal determinado, ou a divisão do espaço do tipo corológico herdado da biogeografia. A abordagem espacial, quali/quantitativa, tornou-se um conhecimento pleno, de implicações sociais e naturais, que muitos geógrafos alcançaram destaque. |
ANTROPIZAR O MEIO AMBIENTE |
Os meio ditos naturais estão na verdade ampla e remotamente artificializados. Estrutura e funcionamento, e consequentes evoluções, dependem largamente das condições de transformação e de sua gestão pelas sociedades sucessivas. Aspecto essencial do meio ambiente conhecido pelos ecologistas, mas não e por eles apropriado. |
HIBRIDIZAR O MEIO AMBIENTE |
Convencimento de que o meio ambiente não é natural nem naturalista, mas contém parte maior ou menor do natural. É produto de interface que é preciso tratar como tal. Conceitos utilizados originários das ciências do homem e da sociedade, ou das ciências da vida e da terra. Há muita confusão no manuseio dos conceitos e até na língua comum. A pesquisa ambiental deve se prestar a esclarecimento semântico que assegure o domínio de mecanismos conceituais. |
HISTORIAR O MEIO AMBIENTE |
Continuação lógica das outras propostas. Só se pode socializar e antropizar o meio ambiente se ele foi inscrito a perspectiva do tempo e da duração. Este tempo que é primeiro aquele da natureza, mas é sobretudo o tempo da história das sociedades. É a memória dos territórios e das regiões, gravada no espaço como no espírito dos homens. |
PATRIMONIALIZAR O MEIO AMBIENTE |
Estudos ambientais concebidos, direta ou indiretamente, para ajudar a ação. Patrimonializar não é apenas buscar razões no passado, mas é também projetar o meio ambiente em um futuro que só pode ser de evolução rápida e frequentemente de mutação. |
Fonte: Adaptado de Bertrand, 2009
Se não existe “geografia sem território” e a geografia se constrói nessa dinâmica inter-relacional de sociedade e natureza, (re)ordenar o território com ênfase a “territorilizar o meio ambiente”, como já mencionado em outro momento, é o trajeto híbrido que substancia a análise ambiental na geografia e infere ao complexo território-paisagem o olhar dos homens sobre o meio ambiente.
A construção humana da paisagem nasce a partir do olhar que cruza o território, porém este ‘olhar’, que em um primeiro momento foi desprovido de relações (temporais, culturais, trabalho), deve ser imbuído de interação de elementos para sustentação da interface paisagem e território. Passos (2013) enuncia que as interações destes elementos constituem o modo de representação sociocultural de um espaço, e estes elementos são: o objeto, como um espaço geográfico qualquer, e o sujeito – observador – que é o homem com sensibilidades e projetos.
Augustin Berque, conforme a leitura de Silva (2014: 58) recomenda “duvidar da paisagem” e invita a não “projetar no outro nossos próprios modos de ver”, “tomar distância de nós mesmos, imaginar como o mundo é percebido em outras culturas, em outras épocas, em outros meios sociais”. Este autor, sob outro ponto de análise da paisagem, a entenderá a partir de sua dialética, onde não é tão somente a “morfologia do ambiente” ou a “psicologia do olhar”, mas significa em sentido mais amplo da “constituição material das coisas” ou “instituição mental da realidade”.
As análises apregoadas denotam formas de leitura da paisagem, distintas das acepções artísticas de pintores e poetas, ou, da descrição de estruturas funcionais ecossistêmicas. A partir do novo paradigma, as abordagens sempre intuem a construir a noção híbrida paisagística, onde os sujeitos que “depositam” suas expectativas nos terrenos e produzem suas territorialidades, elaboram paisagens que não residem nem no objeto e tão pouco no sujeito de modo isolado, mas na interação complexa destes dois termos: “(...) É na própria complexidade deste cruzamento que se fixa o estudo paisagístico.” (BERQUE, apud SILVA, 2014: 58).
Atentos a estas elaborações, identificamos o quanto a análise paisagística, assentada nas práticas territoriais, norteia à compreensão do constructo de comunidades tradicionais em relação à paisagem-território que os compões e que os mesmos compõem. Frente ao desafio de alcançar o meio ambiente em perspectiva complexa e que pondere a diversidade que o forma, concordamos com a assertiva a seguir acerca da preocupação de gestão da paisagem e suas relações dialéticas:
De fato, a demanda social da paisagem, muito mal conhecida, fica dividida entre o desejo de conservar os lugares memoráveis e o de ver perdurar a vida social e econômica do campo. Se se quer o espaço rural como espetáculo e, ao mesmo tempo, como meio de vida, em que condições é possível agir tanto sobre os olhares quanto sobre os processos de produção das paisagens? (DONADIEU apud SILVA, 2014: 63)
As unidades de conservação se configuram em territórios protegidos, resguardados por sua valoração no tocante a biodiversidade que o integra. A proteção dos recursos naturais, por essência, é a via de regulamentação das UC’s. Todavia, em decorrência da incorporação conceitual de valorização do saber tradicional, que envolve comunidades ou grupos cujas práticas já trazem por si só um modelo de sustentabilidade, propugnou-se por articulação de regras de uso que viabilizem as práticas reprodutoras destes sujeitos, estejam eles estabelecidos dentro das áreas protegidas ou em seu entorno.
3.1.1 RESEX Marinha de São João da Ponta e representações paisagísticas para gestão de UC
O município de São João da Ponta está localizado na zona costeira do estado do Pará, na mesorregião nordeste e microrregião do salgado que é composta por 40 municípios, sendo que 19 deles apresentam ecossistemas de manguezal. Esta é uma área de grande relevância ecológica para preservação destes ecossistemas. Por conta de sua localização privilegiada para proteção e preservação das áreas de mangue, fonte de maior parte de produção econômica do município, e por solicitação dos moradores, foi iniciado o processo de criação da Reserva Extrativista de mesmo nome do município.
A localização central do município está na latitude 00°50’59’’sul e longitude 47°55’12’’oeste, com altitude de 34 metros em relação ao nível do mar. Seus limites se fazem na parte norte e oeste com São Caetano de Odivelas, ao sul com os municípios de Terra Alta e São Caetano de Odivelas, e a leste com os municípios de Terra Alta e Curuçá. O acesso se dá pela rodovia PA-136 (Rodovia Castanhal - Curuçá) e PA-375, conforme informações cedida pelo ICMBio.
A base da economia está na cata de caranguejo, na pesca e na agricultura a partir de lavouras temporárias e permanentes (Rodrigues, 2013), com produção de abacaxi, arroz, feijão, mandioca, melancia e milho nas lavouras temporárias, e coco-da-baía, maracujá e pimenta-do-reino nas lavouras permanentes, conforme dados do censo de IBGE (2010).
As regiões de mangue da costa paraense ainda são pouco antropizadas e apresentam atributos representativos para sua conservação, tanto em aspectos ecológicos como nas questões referentes ao modo de vida de suas populações, as quais imputam maior significado às políticas de conservação, ao passo que urge analisar, compreender e dar visibilidade e representatividade a padrões de vida que perfilem condições de sustentabilidade ambiental.
Por meio do Decreto S/N de 13 de dezembro de 2002, a Reserva Extrativista Marinha de São João da Ponta foi implantada, abrangendo aproximadamente 3.203,24 ha (três mil, duzentos e três hectares e vinte e quatro centiares) e um perímetro aproximado de 131.268,88 (cento e trinta e um mil, duzentos e sessenta e oito metros e oitenta e oito centímetros), conforme explica Rodrigues (2013).
As comunidades usuárias moram no entorno da área delimitada como unidade de conservação, que é constituída por 720, 8458 ha de espelho d’águas e 2.482,3942 ha de manguezais. Tem por limite divisor com outras RESEX o Rio Mocajuba, que banha a Reserva Extrativista Marinha Mãe Grande de Curuçá situada em seu limite ao sul, no município de Curuçá, e o Rio Mojuim a nordeste, recurso natural divisor com a Reserva Extrativista Marinha Mocapajuba, em São Caetano de Odivelas.
Através da elaboração e implantação de instrumentos tais como: Plano de Utilização, demarcação física e sinalização, regulação fundiária e fortalecimento das associações de bases extrativistas comunitárias, são progressivamente efetivadas a co-gestão de unidades extrativistas na costa paraense, que atualmente é constituída por 12 RESEX Marinhas.
De acordo com a regulamentação das Unidades de Conservação, a gestão das Reservas Extrativistas será consolidada aos moldes de gestão compartilhada, mediada por um Conselho Deliberativo, formado por gestores dos órgãos públicos, sociedade civil, comunidade do entorno com respectivos representantes, pesquisadores, representantes de associações e afins, para que se implante na unidade o modelo de co-gestão.
Diegues bem argumenta, acerca do exposto, quando refere-se a importância das populações tradicionais no papel de conservação da natureza, e robustece a relação homem/natureza como papel preponderante nesta organização territorial. Ao passo que é revisto o tema biodiversidade e começa a ser desenvolvido encontrando espaço em outras ciências, o conhecimento tradicional passa a ser reconhecido e torna-se imprescindível a leitura dinâmica da paisagem.
Por conhecimento tradicional, Diegues (2008: 179) define como “o saber e o saber-fazer, a respeito do mundo natural, sobrenatural, gerados no âmbito da sociedade não-urbano/industrial, transmitidos oralmente de geração em geração”. Este saber, por vezes repetidas em esfera global, são secundarizados e inviabilizam a gestão compartilhada de UC’s. Sob formas recorrentes no Brasil, a gestão de unidades de conservação são pouco democráticas e participativas, distantes das paisagens locais, das necessidades e saberes das populações, sobretudo das tradicionais (DIEGUES, 2008).
Neste contexto dos saberes tradicionais, Moraes (2005) ressalta a validade dos saberes não-científicos, não escolares, mas que são fundamentais à reprodução da atividade pesqueira com diferentes meios de uso. Ao autor, os saberes ligados a populações envolvem relações estreitas entre o homem e a natureza, permeados por relações de ordens pontuais e também míticas.
O conhecimento do ambiente em que vive essas populações e a sua habilidade no manuseio dos recursos naturais, à medida que são transmitidos e absorvidos pelas gerações, transformam práticas, hábitos de vida, modos de apreensão e apropriação da natureza com traços característicos. São interações advindas do contato íntimo com a natureza, seja pelas águas, florestas, terras e com o próprio homem. (MORAES, 2005: 89)
Em compasso aos sentidos que as populações tradicionais atribuem ao seu território, com produções e construções contínuas de paisagens materiais e imateriais, concordamos e encontramos grande apoio nas observações referidas anteriormente. Contudo, para materializar esse pensamento sincrônico a procura de visibilizar a paisagem territorializada por meio dos olhares internos, dos próprios sujeitos que cotidianamente a edificam, realizamos um exercício o qual solicitamos que os mesmos registrassem elementos paisagísticos que remeteriam a alguma representatividade.
Jean Brunhes (apud Passos, 2013: 204) ratificou que “a fotografia é mais mostrativa que demonstrativa”, e o próprio Messias afirma que “as fotos se prestam para explicitar como o processo de ocupação do território se materializou na paisagem” (2013: 202).
A fim de não interferir na percepção e representação da paisagem aos sujeitos ora entrevistados, o equipamento fotográfico foi entregue em suas mãos, e em determinado momento o interrogamos sobre: quais imagens de sua localidade você levaria registrada em caso de mudança residencial? Após suas respostas, solicitávamos que os mesmos pudessem fotografar essas imagens. As respostas e registros ratificaram a concepção de Berque sobre analisar a paisagem sob outro ponto, a partir de sua dialética, nem se restringindo a morfologia do ambiente, tão pouco a psicologia do olhar, mas na instituição mental da realidade.
A Geo-foto-grafia nos é apresentada por Passos como ferramenta de expressão dos sujeitos sobre o seu mundo e suas reflexões. As fotos expressam o revelar, esclarecer da história territorial por meio dos sujeitos que criam/compõem esta história. “A paisagem é a fisionomia da região. É nela que as relações sociedade-natureza se materializam (...) onde a estrutura socioeconômica atuou sobre a estrutura geoecológica para construir a paisagem atual.” (PASSOS, 2013: 204)
As fotografias apresentadas a seguir, registradas por representantes das comunidades da RESEX de São João da Ponta, demonstram que as formações sociais que moldam a paisagem e territorializam o meio ambiente, são mais que a somatória de elementos apreciativos, representam de fato uma funcionalidade interativa, que conservam, sobretudo os elementos que dinamizam seu cotidiano.
Os elementos paisagísticos naturais, como o rio, a floresta, o mangue, os igarapés, são paisagens consideradas por estes sujeitos, mas em nenhum momento segregados de elementos que expressam sua territorialidade. Logo a igreja, a escola, o campo de futebol ou mesmo a própria residência são representações consideradas por estas comunidades e que também necessitam ser estimadas à compreensão global da paisagem território, principalmente no trato da gestão da paisagem, que Passos (2013) afirma está contida num campo de força entre habitante residente na paisagem e gestores que atuam sobre ela.
De imediato, o sujeito que fala por si e é escutado, expressa seu saber híbrido da interface paisagem território, mesmo que cientificamente não o suponha. E é neste sentido que explorar o saber tradicional não pode se abreviar a catalogação ou inventário sistemático de novos campos de construção do saber. Cada sujeito representava a sua imagem de forma individual, a partir do seu contato e das suas relações mais íntimas com a paisagem. Clarificando a observação, provavelmente qualquer olhar estrangeiro, se meramente posto de forma apreciativa (ou depreciativa, dependendo das intenções) pouco ou nada evidenciará estruturas aquém do belo ou do diferente do seu vivido. Noutras palavras, geralmente destacam-se estruturas de agradável valor, sejam de elementos naturais ou socialmente construídos, ainda que de modo inconsciente.
As observações realizadas neste artigo marcaram o início de uma pesquisa que analisa estudos sobre a gestão da paisagem e sua apreensão e utilização à atividades que alteram ou remodelam o ambiente, devido ao uso dos recursos do território.
Materializando esta análise, investigamos as políticas públicas destinadas a criação de unidades de conservação, sobretudo de unidades de uso sustentável, neste caso, as reservas extrativistas marinhas.
O aporte teórico acerca da paisagem esteve centrado em discussões atuais que objetivam “convergir culturas, tradições e políticas diferentes, mas foca no encorajamento de autoridades pública em adotar, em nível local, regional, nacional e internacional a ‘política da paisagem’, (...) adotando medidas específicas com finalidade de proteger, gerenciar e planejar a paisagem.” (Passos, 2013, p.93)
Mesmo com relevantes intervenções institucionais paralelas a utilização de saberes da comunidade local sobre ecossistemas costeiros, ainda são necessárias investigações que indiquem e orientem a gestão da paisagem com elaboração de estratégias que instrumentalizem a manutenção de espaços tradicionais, com ordenamento territorial sustentável, embasado na acepção fundante em que “a paisagem é um bem comum e não pertence a ninguém, que não é somente uma imagem estética, mas uma relação entre o homem e o meio ambiente”.
Esta acepção nos permite compreender a paisagem para além da visão restrita à análise ecossistêmica, pictórica ou naturalista, mas expande sua conceituação para entender a relação de atores sociais em construção com seus territórios em integração com diferentes aspectos da natureza.
Cabe sempre a discussão de adotar, à implantação dos espaços protegidos sob condições constantes e crescentes, a relevância do conhecimento dos sujeitos locais que territorializam a paisagem. Isto porque, como já foi teoricamente evidenciado, a paisagem é transversal e sobre ela incide as ações significativas de grupos sociais que a modelam, a representam e a territorializam.
Deste modo é insuficiente ordenar um território, observado tangencialmente por atributos ecológicos, a revelia dos interesses das comunidades que o compõem. Entendemos que esta decisão pode resultar numa animosidade decorrente de gestão unilateral e pode ocasionar o agravamento de conflitos quanto ao uso dos recursos, impossibilitando uma sustentabilidade socioambiental equitativa e prospectiva.
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** Professora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Pará-UFPA. Endereço eletrônico: mapimentel@ufpa.br
*** Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Pará. Endereço eletrônico: digbarr2@gmail.com
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