Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


SOCIEDADE E CULTURA DO POVO MARAGUÁ SEGUNDO A OBRA MARAGUÁPÈYÁRA

Autores e infomación del artículo

Rozenilce Silva dos Santos*

Renan Albuquerque Rodrigues**

Francisco Alcicley Vasconcelos Andrade***

Universidade Federal do Amazonas, Brasil

falcicley@gmail.com

Resumo
Almejou-se realizar análise comunicacional concernente à sociedade e cultura do povo Maraguá segundo o livro Maraguápéyára. A obra foi organizada por quatro autores indígenas descendentes da etnia Maraguá: Yaguarê Yamã, Elias Yaguakãg, Uziel Guaynê e Roni Wasiry Guará. Esses autores são lideranças étnicas que, a partir de sua produção literária, concorrem para fomentar a democratização de informações acerca de sua etnia, tendo em vista a manutenção de conhecimentos tradicionais, como cosmologia, mito fundador, parentesco e xamanismo.
Palavras-Chave: Análise de Literatura, etnia Maraguá, Amazônia.

Resumen
Aspirado a lograr su tratamiento comunicacional en relación con la sociedad y la cultura de las personas, según el libro de Maragua Maraguápéyára. El trabajo fue organizado por cuatro autores descendientes indígenas de la etnia Maragua: Yaguarê Yama, Elias Yaguakãg, Uziel Guaynê y Roni Wasiry Guara. Estos autores son líderes étnicos que, desde su producción literaria, contribuyen a promover la democratización de la información acerca de su origen étnico con el fin de mantener los conocimientos tradicionales como la cosmología, fundadores mito, el parentesco y el chamanismo.
Palabras clave: Análisis de la literatura; etnia Maragua; Amazonia.



Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Rozenilce Silva dos Santos, Renan Albuquerque Rodrigues y Francisco Alcicley Vasconcelos Andrade (2016): “Sociedade e cultura do povo Maraguá segundo a obra Maraguápèyára”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (octubre-diciembre 2016). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/04/maragua.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss201604maragua


Introdução
Ao se comunicar, pessoas são capazes de construírem mundos dinamizados de significados (COHN, 1978). Ao se darem enquanto seres comunicacionais ao mundo, as pessoas nele se integram, possibilitando reconformações às coisas e ao próprio universo ao redor (IANNI, 2002).
Na sociedade contemporânea, que tem fomentado a ampliação de meios comunicacionais entre as pessoas, tendem a haver presenças massificadoras de discursos ideológicos e orientados, sobretudo pela grande mídia. Esses discursos podem vir a ser disseminados como culturas majoritárias, ofuscando a opinião de minorias (BOURDIEU, 1990; HALL, 2006). Com a indicação de exclusão de culturas minoritárias, formas de conhecimento que poderiam contribuir para diálogos capazes de gerar efeitos positivos à sociedade são anuladas. Para Beltrão (1980, p. 52), “[…] a comunicação é o problema fundamental da sociedade contemporânea”. E no tocante à comunicação escrita, especificamente à literatura, a problemática da não observância à multiplicidade de socioculturas também tende a ser efetiva.
Na Amazônia, quando se tratam de discursos de povos tradicionais ameríndios, há desconhecimento em variadas medidas sobre seus modos de vida. Tomando o pressuposto como problemática, podem-se depreender interpretações acerca do atual sistema de comunicação social em vigência e ponderar sobre elas. A partir daí, formas de expressão de populações étnicas, desfavorecidas pelo atual sistema comunicacional, são entendidos como desimportantes (BERGUER e LUCKMANN, 1973; MELO, 1998).
Mesmo considerando esse cenário adverso, grupos organizados socialmente tem conseguido dinamizar perspectivas que podem mudar o trato das pessoas com o mundo, “adotando roupagem nova, que lhe confira voz e voto no concerto universal” (BELTRÃO, 1980, p. 39). São grupos que vislumbram formas de comunicação alternativas, desvinculadas do mass media, como a literatura indígena amazônica.
Tomando o suposto, o projeto almeja realizar análise comunicacional concernente à sociedade e cultura do povo Maraguá segundo o livro Maraguápéyára. A obra foi organizada por quatro autores indígenas descendentes da etnia Maraguá: Yaguarê Yamã, Elias Yaguakãg, Uziel Guaynê e Roni Wasiry Guará.
Eles são lideranças étnicas que, a partir de sua produção literária, concorrem para fomentar a democratização de informações acerca de sua etnia, tendo em vista a manutenção de conhecimentos tradicionais, como cosmologia, mito fundador, parentesco e xamanismo.

3.1 O livro Maraguápéyára
A obra está dividida em oito capítulos, subdivididos com as seguintes abordagens: "O povo Maraguá e sua história"; "A cultura da caça e pesca"; "Cultura e sociedade"; "A cultura material", "A cultura agrícola"; "A cultura do sagrado"; "A cultura das histórias de assombração"; "A cultura infantil".
Os quatro primeiros capítulos são abordagens mais reduzidas em relação aos demais, que nos permitem conhecer por meio de relatos a trajetória desse povo. Pode-se caracterizar a obra Maraguápéyára como documento que registra através da escrita a vida do povo Maraguá.
O livro é enriquecido com palavras étnicas e imagens em tons preto e branco que propõe compreender melhor a narrativa textual. Essa obra possui galeria de fotos e glossário da língua do povo Maraguá, além de glossário de palavras regionais amazônicas e registro da biografia dos organizadores da obra.
Por meio do universo indígena literário da obra, observa-se preocupação dos organizadores em registrar a história desse povo e fortalecer, de maneira expressiva, informações sobre sociedade e cultura Maraguá. Dessa forma, mostra a luta pela a afirmação identitária e histórica.
Segundo observou-se no livro, presume-se que a etnia tenha características próprias, herdadas da miscigenação com povos Aruak e Tupi, principais núcleos culturais da região do Rio Abacaxis, afluente da margem direita do Rio Amazonas, entre o Rio Madeira e o Rio Tapajós, de onde se originam os Maraguá.
Na apresentação inicial do livro (orelha), a filósofa, autora de Para aquém ou para além, enfatiza o poder das palavras, da comunicação, da linguagem oral diante dos nossos olhos, a qual permite viagens no imaginário histórico, do passado alheio, narrado em visões de mundo distintas, porém homogêneas.

4. Enfoque Teórico
4.1 Sociedade, Cultura e Mídia Implicada
Caracterizar a sociedade é um trabalho que tende a se efetivar de maneira concreta na medida em que são caracterizadas as pessoas integrantes de determinada cultura. Nesse sentido, Beck (2010) sugere que o reconhecimento individual do lugar que se ocupa no meio social pressupõe reconhecer-se enquanto pessoa e reconhecer essa incorporação também em outrem.
A interlocução entre sociedade e cultura, dentro de uma esfera que se pode considerar como sendo a sociedade, é uma noção grega. Para os antigos atenienses, a Ágora era um espaço justamente onde a sociedade poderia pensar coletivamente e decidir a partir da vontade da maioria. Evidente que a sociedade grega não considerava a todos como pessoas aptas a pensarem a vida social. Mulheres, jovens, crianças e escravos não tinham o direito de se manifestar enquanto integrantes da sociedade.
Trazendo a problemática para o viés atual, cabe enfatizar que sociedade e cultura tendem a ser, em ampla medida, construções também inerentes à comunicação entre pessoas e aos modos como se interpretam e transmitem informações. Nessa conjuntura, Beck (IB. op. cit.) ainda observa que efeitos da comunicação de massa e das mídias refletem expressões maciças da organização em sociedade e das escolhas do cotidiano cultural das pessoas. O autor propõe que a individualização da pessoa se caracteriza, em suma, na maneira diferenciada das formas tradicionais do que é disseminado culturalmente pela sociedade.
Na contemporaneidade paradigmas concernentes à informação interpessoal estão sendo rompidos, a exemplo do comportamento comunicacional de homens e mulheres, que possuem implicação maior em cotidianos a partir de multimeios informacionais, gerando reflexos culturais em variados afazeres da vida cotidiana. Cultura e sociedade, portanto, em razão da comunicação em torno desses processos, marcam construções de crenças, atitudes, valores e ideologias na sociedade presente.
São construções que afetam contingências diárias e impactam na angulação da vida moderna. Desta feita, pode-se inferir que a vida em coletividade hoje, é uma vida marcada por representações sobre a cultura em correlação ao que se vive em sociedade. Gramsci (2000), por exemplo, no século XX, questionava o papel do Estado na mediação dessas representações. Gomes (2000), por sua vez, propôs reflexões enfatizando que a cultura é uma necessidade indispensável para os indivíduos, mas essa necessidade não deve ser ditada pela sociedade e sim pensada a partir de mediações coletivas.
Nesse sentido, tomando a contento a problemática indígena amazônica e o marco teórico a ser abordado, sublinha-se que a construção da ideia de pessoa entre ameríndios pode dialogar com pressupostos da comunicação e da mídia (falada, escrita e televisionada) enquanto veículo que auxilia na formação de opinião em contextos sociais diversos.

5. Justificativa
Traços associativos entre presente e passado, enfatizando tradições, parecem serem notórios nos textos dos escritores indígenas. Prova disso é a forte ligação com causas indígenas, dentre elas a liberdade de expressão e o livre pensar, para os quais a comunicação é indispensável.
Na literatura do indígena da etnia Maraguá, publicada até o presente momento, costumes, cultura, conflitos e aspectos sociais da realidade indígena estão caracterizados, construídos, decodificados e informados em uma interação processual realizada por ele próprio enquanto pessoa indígena inserida no contexto de controvérsias multiculturais e socioambientais amazônicas. Diante dessa perspectiva o presente artigo tende fomentar conhecimento a cerca da interrelação entre sociedade branca e sociedade indígena.

Objetivos
Objetivo Geral
Realizar leituras aprofundadas e ponderações interpretativas dos textos do livro MaraguáPéyára organizado pelos indígenas Yaguaré Yamã, Elias Yaguakãg, Uziel Guaynê e Roni Wasairy Guará, via análise de conteúdo manual e inferências hermenêuticas (VALA, 1986; BARDIN, 2002), buscando-se tecer considerações acerca da construção da pessoa indígena da etnia Maraguá em relação a universos não indígenas amazônicos.

Objetivos Específicos
Caracterizar o processo narrativo e comunicacional dos autores dos textos e a linha de desenvolvimento da obra, buscando especificar a importância que a comunicação tende a possuir na construção dos saberes e fazeres indígenas. Ponderar sobre a construção/formação da pessoa indígena amazônica como ponto essencial para se pensar identidades amazônicas.

7.Metodologia
7.1 Abordagem
A investigação foi formatada a partir de pressupostos teóricos da Teoria da Comunicação, a qual, enquanto forma de conhecimento, implica em percepções da realidade a partir da ideia de que ações comunicacionais não estão desvinculadas do contexto da realidade no qual emergem, circulam e são modificados.
Adotou-se perspectiva de que a comunicação é decorrente de saberes práticos e remete-se  estruturas individuais, grupais ou sociais (COHN, 1978).

7.2 Amostragem
Analisou-se a obra MaraguáPéyára,organizado por Yaguaré Yamã, Elias Yaguakãg, Uziel Guaynê e Roni Wasiry Guará.

7.3 Procedimentos de coleta
Foi referência para o plano de coleta do material a análise de conteúdo manual, considerando pressupostos acerca de temporalidade e narrativa incidente em discursos ou transcrições. A técnica objetiva aproveitar dados brutos contidos em uma ou mais comunicações, identificando padrões via categorias conceituais ou classes contextuais dos textos, com contagem de unidades de contexto elementar e observação da importância dos enunciados (UCEs) (SÁ, 1998).

7.4 Procedimento de Análise
Tomando como suposto que o ato de descrever tende a ser uma tentativa de reportar o fato tal como aconteceu, por meio de formas de réplica do acontecimento, a análise do corpus coletado será realizada a partir de avaliação de unidades temáticas contidas nas obras (Unidade de contexto Elementar – UCEs), as quais em sua totalidade serão avaliadas por quadros léxico-semânticos interpretativos. Foram usadas técnicas de interpretação e inferências para escritos referentes a fazeres comuns, lugares e saberes.
A análise dos textos foi embasada tomando-se como suposto que a magnitude (quanti) e a variação (quali) das descrições textuais possíveis de análise em uma mesma pesquisa. A diferença existente entre pesquisas das vertentes qualitativa e quantitativa é tratada por Triviños (1987). Segundo o autor, há produções que podem ser observadas nas duas áreas, que se interligam e não disputam entre si, ou seja, bons e diversos estudos estão sendo levados a cabo pelas duas escolas, sem prejuízo para uma ou outra.
A análise de conteúdo tanto quanto a avaliação por sentidos hermenêuticos almejam a compreensão crítica das comunicações observadas e capturadas, seu conteúdo manifesto ou latente, bem como as significações explícitas ou ocultas via simbologias transcritas. A técnica objetiva diminuir ao máximo a enorme quantidade de informações, em dados brutos, contidas em uma ou mais comunicações a categorias conceituais ou classes contextuais, que permitam passar dos elementos descritivos à interpretação de sentidos.
Foi efetivada interpretação textual tomando como base a significação do documento como um todo. Como procedimento intermediário, situou-se a inferência, que permite a passagem explícita e controlada da descrição à interpretação. Assim, não foi a descrição, mas a inferência a intenção da análise de conteúdo (VALA, 1986).

Resultados e Discussão
Dentro do âmbito da questão indígena, é possível situar a Amazônia enquanto região onde há controvérsias decorrentes de relações conflituosas de povos étnicos com o Estado, setores produtivos e comunidades não indígenas que vivem e trabalham no bioma. Têm sido constantes problemas que emergem dessa perspectiva, visto que em pequenas e médias cidades da região, com especificidades para a fronteira Amazonas-Pará, onde se situam os municípios de Parintins, Barreirinha e Nhamundá, localizam-se disputas políticas e migrações territoriais entre indígenas das etnias Sateré-Mawé e Hixkaryana – o que tem forçado polêmicas em torno do uso de saberes e fazeres locais em contextos macros.
Implicado a isso, está a emergência de se ponderar acerca das migrações aldeia-cidade, as quais integram o indígena a um lócus de existência urbano, diferente da natividade cosmológica legada historicamente a ele. Ambiguidades relacionadas a desemprego, desterritorialização, desfiliação parental, linguística, isolamento e abuso de psicotrópicos incidem nessa conjuntura. Nesse cenário, populações nativas tendem a desenvolver estratégias singulares para se comunicar de modo objetivo. Uma dessas estratégias é a literatura.
Na literatura enfocada em Maraguápéyára, um dos autores, Yaguaré Yamã, índio da etnia Maraguá com parentelas Sateré-Mawé, ressalta temáticas elencadas enquanto problemas que tendem a emergir não diretamente, mas por meio de simbologias e territorialidades. Portanto, pretendeu-se justificar o projeto tomando a questão indígena a partir de tratos realizados por Yaguaré. Buscou-se identificar perspectivas sobre problemáticas de i) saberes ancestrais na construção da pessoa indígena Maraguá e ii) fragmentação de simbologias imemoriais dos povos étnicos.
A partir desses problemas históricos enfrentados por populações indígenas, e sobremaneira mediante avaliação acerca do uso de um dos seus maiores patrimônios imaterial, o saber cosmológico, concretizado na escrita de Yaguaré Yamã, é que se almejaram fazer reflexões. Entre tais reflexões, pode-se ponderar acerca da ressignificação do povo Maraguá em meio a diferentes sociedades através da língua materna, que, por um longo período, ficou ofuscada devido à quase extinção desse povo. No entanto, novos costumes foram adquiridos de forma espontânea e passaram a fazer parte dos hábitos, como se deu no caso da sociocultura do guaraná, provável herança dos povos Sateré-Mawé.
Entre demais heranças culturais do povo Maraguá, citam-se os rituais de passagens e de nominação. Na cultura social destacam-se política, religião, esportes e brincadeiras. Partindo dessas categorizações nativas, importou projetar que o formato comunicacional do livro de Yaguarê Yamã, Elias Yaguakãg, Uziel Guaynê e Roni Wasiry Guará é um meio de falar a seus pares, de reivindicar seu direito à expressão, um direito, inclusive, que a grande mídia em geral solapa dos povos ameríndios. Um direito que abrange a possibilidade de disseminar a cultura indígena em meio a uma sociedade que deveria ser plural, mas que não se molda a partir desse viés, vivificando muito mais coisas e fatos urbanos, não tradicionais.
De tal feita, a proposta foi estudar a obra literária que se supõe ser de amplo poder de comunicação coletiva, tendo em vista engendramentos sociais e culturais que se notam atualmente na Amazônia. O processo de discussão da problemática indígena na atualidade, é importante enfatizar, a partir do suposto no livro, tem sido ampliado segundo novas formas de comunicação, a saber, por exemplo, redes sociais, blogs independentes e rádios alternativas, bem como a mídia televisiva e publicações impressas. Portanto, entendeu-se que a veiculação editorial de livros, de modo independente, de modo que dissemine saberes imateriais de populações tradicionais e simbologias próprias referentes a cosmologias étnicas, é ação primordial para avaliar tais problemáticas que incidem, sobretudo, quando se observa a relação da sociedade com sua cultura.
Partindo desse panorama geral em que se molda a obra, procurou-se destacar especificidades do livro sobre i) cultura da caça e pesca: Aningáwa Murugáwa (A origem da Aninga); ii) cultura e sociedade: Pazaquê (Ritos de Passagem); iii) e cultura das histórias de assombração: Kãwera.

Cultura da Caça e Pesca: Aningáwa Murugáwa (A origem da Aninga)
Observa-se que na cosmologia empregada na literatura do Maraguápèyara há tentativas de harmonizar o convívio entre gentes e bichos. Ao relacionar a figura humana para justificar a existência das diversas nominações presentes na cultura Maraguá, é possibilitada reflexão acerca da importância da representatividade que cada ser detém perante outrem.
Dessa forma, ponderamos sobre a lenda da Aningáwa Murugáwa (A origem da Aninga), homem bondoso que na adolescência dedicou-se a cuidar de répteis. Aningáwa, segundo a mitologia Maraguá, foi um indígena que tinha fascínio em proteger cobras e as considerava amigas. Segundo o livro, acredita-se que esses animais não tinham um local adequado para que pudessem ficar protegidos e, por isso, Aningáwa travou incansável missão de protegê-las.
Segundo relatos na obra, o índio protetor de cobras construiu moradia para si e a compartilhava com todas as serpentes que procuravam abrigo. O fascínio e dedicação em cuidar e alimentar os animais foram intensos e a atividade fomentou a proteção de Çukuywéra (espirito da água e mãe de todas as serpentes).
Ao envelhecer, Aningáwa pediu para que, após sua morte, seus irmãos cortassem o corpo em quatro pedaços e o jogassem em lugares diferentes: no rio, lago, restinga e terra firme. Para que fosse realizado o desejo do índio cuidador de cobras, foi necessário se recorrer à ajuda de Çukuywéra, para que os irmãos tivessem acesso ao corpo. Ao morrer, em sua própria casa, tomada por cobras de todos os tamanhos, elas não permitiram a aproximação de pessoas imediatamente, sendo isso possível apenas com permissão do espirito da mãe de todas as serpentes.
Passado um mês, nos locais onde foram jogadas partes do corpo de Aningáwa começaram a crescer plantas. Em cada local, esses vegetais receberam nominações distintas: na água do rio, Aninga; na terra firme, Mabary; e, na restinga, Sororoka. Desde então, segundo a narrativa textual, as cobras tiveram lugar para morar e costumam viver até hoje nesses lugares. Çukuywéra pediu às filhas cobras para que jamais se esquecessem da bondade de Aninguáwa.
Dessa forma, o povo Maraguá justifica a nominação Aninga como sendo um local de bastante representatividade para esses animais. Essa nominação foi usada como forma de eternizar o ser Aningáwa, considerando o convívio entre gentes e bichos em ambientes amazônicos. A origem da Aninga possibilita reflexões acerca do universo indígena ainda que naturalmente não haja em todas as regiões amazônicas a presença de indivíduos da etnia Maraguá (estão restritos a áreas do Médio Madeira).

Cultura e Sociedade: Pazaquê (Ritos de Passagem)
Segundo a obra Maraguápéyára, a construção da pessoa indígena Maraguá é marcada pela existência de manifestações que reforçam e reafirmam a identidade étnica, além de influenciarem nas mudanças das etapas da vida do indivíduo Maraguá em sociedade. Entre essas manifestações, estão os ritos de passagem: Wakaripé (ritual masculino para o indivíduo tornar-se adulto); Gualipãg (ritual para torna-se caçador guerreiro-chefe); Waiperiá (ritual da tucandeira); e Piãg'agiré (ritual da menina moça).
Acerca das quatro manifestações elencadas, nota-se que ao menos uma, certamente, a saber, o ritual da tucandeira, é herança do amplo contato dos Maraguá com os Sateré-Mawé. É possível que o ritual da menina-moça dos Maraguá tenha forte influência dos povos Ticuna, mas, sobre o suposto, o livro Maraguápéyrá não apresenta registros.
Na literatura de Yaguarê, na sociedade Maraguá cada ritual possui características e especificidades diferenciadas. Pode-se afirmar que esse momento contribui de maneira incisiva na formação individual das pessoas dessa etnia. Conforme relatos contidos na obra, Wakaripé é o ritual masculino mais antigo de todas as manifestações culturais da sociedade Maraguá. Por muito tempo, permaneceu único nas manifestações do povo, ficando para segundo plano em meados do século XVIII, a partir da adesão do Waiperiá (ritual da tucandeira).
Ao contrário do indivíduo não indígena, legalmente considerado adulto ao completar 18 anos, a pessoa indígena masculina da etnia Maraguá inicia essa etapa de maneira precoce, entre 12 e 14 anos de idade. Nessa faixa etária, o indivíduo Maraguá é considerado apto a passar pelo Wakaripé.
Conforme o Maraguápéyára, o ritual consiste na realização de três testes; atravessar o rio a nado, passar uma noite na mata e acender quatro fogueiras localizadas às margens do terreiro principal da aldeia, no período máximo de dois dias. Apenas o indígena organizador das provas, denominado de Mirixawa, pode acompanhar, sem interferir, para garantir o cumprimento fiel dos desafios. Ao final das provas, comemora-se em festa a inserção dos novos indivíduos na vida adulta. Observa-se que o autor é incisivo em evidenciar que o Wakaripé é um desafio fácil a ser superado, se comparado com Gualipãg (ritual para tornar-se caçador guerreiro-chefe).
Percebe-se que, ao realizar tal comparação, o autor aponta que um dos rituais especificados, o Gualipãg, parece ter maior força expressiva que o Wakaripé. Refere-se à força expressiva no sentido de hierarquias sociais indígenas, projetadas em função de estruturais de parentesco da etnia, consolidadas historicamente.
Segundo a obra Maraguápéyára, o indígena líder ou aspirante a líder designa-se a praticar provas do ritual Gualipãg. A manifestação consiste na caçada de três aninais: onça pintada adulta, gavião real e cobra sicuriju de pelo menos seis metros. Ao capturar os animais, o indígena extrai seus adornos e os usa como troféus.
Para cada prova realizada, o indígena conquista uma palavra da nominação "Caçador Guerreiro-Chefe". Yaguarê enfatiza como sendo difícil prever o período de tempo que o indígena leva para concluir o desafio, podendo começar adolescente e terminar idoso. Apesar do longo tempo para realização das provas, o autor pondera que poucas pessoas conseguem o titulo de caçador guerreiro-chefe.
Pelos relatos descritos na literatura do Maraguápéyára, o indivíduo que conclui o ritual Gualipãg torna-se Pemerõg (caçador guerreiro-chefe). Em comparação ao ritual Wakaripé, o caçador guerreiro-chefe comemora o títuloem festa realizada pelos demais líderese também éapresentado para a sociedade Maraguá.
A cultura Maraguá é fomentada com heranças culturais provenientes do convívio ao longo dos tempos com o povo Sateré-Mawé. Entre elas, a manifestação do ritual da tucandeira (Waiperiá) passou a fazer parte da construção do indígena Maraguá e suplantou por muitos anos o ritual mais antigo Wakaripé. Embora o ritual da tucandeira tenha tido grande relevância nesse período, sua adesão não foi unânime. Porém, somente através do projeto "de volta às origens" que houve o resgate da cultura do Wakaripé, que, apesar de ser um ritual antigo, encontrou restrições por parte de algumas pessoas em virtude de religiosidades ocidentais e da sociedade contemporânea.
Assim como o indivíduo masculino, a construção da pessoa Maraguá feminina possui ritual específico, o ritual da menina moça, Piãg’ãgiré, momento em que marca a passagem da menina para a vida adulta. A passagem da fase da mulher Maraguá ocorria de maneira precoce, se comparada à construção da pessoa não indígena. O Piãg’ãgiré foi deixado de ser praticado ao longo dos tempos. O ritual consistia no recolhimento da menina na casa de reclusão para as mulheres.
Assim, pode-se afirmar que os ritos de passagem do povo Maraguá são práticas que exprimem, em certa medida, singularidade étnica do convívio em sociedade. A pessoa indígena, através desses acontecimentos, conquista autonomia hierárquica e desperta admiração dos demais integrantes da sociedade Maraguá.

Cultura das Histórias de Assombração: Kãwera
Dentre simbologias relacionadas a mitos, está a da Kãwéra, um demônio pertencente à ordem dos seres, criado por Anhãnga numa época em que Ária-Wató, um feiticeiro Sateré-Mawé, pediu que Anhãga punisse a todos os humanos por não quererem segui-lo. Outra versão, baseada na cosmologia Maraguá, conta que os Kãwéra teriam sido criados para ser uma espécie de guardião da floresta, com a função de atormentar todos aqueles que entrassem em ambientes nativos para degradar a natureza.
Esse mito é contado tendo em vista apresentar sentidos relacionados a “histórias de fantasmas” (YAMÃ et al., 2014, p. 115-116) para as etnias, as quais são contadas na Mirixawaruka, a casa de conselho. Trata-se de um lugar onde tradicionalmente histórias de visagens são transmitidas, principalmente ao pôr do sol. A lenda do Kãwéra habita a crença de moradores do rio Abacaxis, considerado região da etnia Maraguá, na Amazônia Central. Com aparência de morcego, Kãwéra mora em buracos de árvores na cabeceira do Ygarapé Kãwéra e costumam atacar principalmente em noites de “Lua de Sangue”.
Como se pode notar, em suma, trata-se de literatura específica singular, que acumula conhecimentos tradicionais a saberes contemporâneos. Essa narrativa tem sido produzida na medida de uma construção comunicacional que aposta em saberes nativos e apresenta possibilidades de leitura de mundo variada da dinâmica urbana não indígena. A lenda de Kãwéra diz respeito a uma entidade da mitologia que em língua Maraguá significa “esqueleto velho”. O mito descreve Kãwéra como ser horripilante, de aparência assustadora. Na mitologia Maraguá, é o responsável pelo terror causado por contadores de história em aldeias, que ao cair da noite, na hora em que todos descansam, relatam particularidades dos terríveis homens-morcego.
Para eles, os Kãwéras são seres sedentos por sangue e carne humana, além de serem os maiores perseguidores dos Maraguá, e, por esse motivo, seus maiores inimigos nos campos místico e religioso. Esses caçadores de gente receberam originalmente o nome de Zorak, que em língua Maraguá significa “filhos do demônio”. São criaturas metade humano e metade morcego, que viviam em cavernas escuras localizadas em meio ao lago sagrado Waruã, um lago dito encantado pelos Maraguá, que nunca está dois dias no mesmo lugar, pois sempre desaparece após o por do sol.
A lenda indica perspectiva indígena de conceber a ideia do medo. A figura do Kãwéra foi criada para projetar fobias na mente e assim impedir pessoas de invadirem determinados habitats, desmatar ou fazer qualquer modificação em áreas ditas assombradas. Foi também determinante a construção da ideia de Kãwéra para que houvesse respeito da parte dos jovens da aldeia a ensinamentos dos velhos. Nesses ensinamentos, está presente a ideia de que a noite foi feita apenas para dormir e não para caçar. A lenda de Kãwéra se tornou conhecida a partir do ataque a jovens caçadores da aldeia, que desobedecendo o ensinado por velhos resolveram caçar à noite, deparando-se com terrível criatura com garras e dentes enormes, atacando-os e levando à morte de vários jovens Maraguá.
A partir de depoimentos dos seus próprios sujeitos, autores indígenas valorizam a cultura e dinamizam saberes, englobando variados aspectos socioculturais presentes ou ão ainda hoje na sociedade contemporânea. A partir da reflexão da lenda Kãwéra: o demônio guardião da floresta pode-se obter uma visão da cultura indígena e seu propósito em relação à discussão sobre a preservação da Amazônia. Pela lenda, é evidente o levantamento da questão do cuidado e preocupação com a floresta e seus recursos. A análise revela a postura de ameríndios ante habitats e a preocupação com a preservação e a significância da cultura.

Conclusão
Os autores de Maraguápéyára, a partir de seus textos, demonstram conhecimento aprofundado sobre a temática indígena e sabem transmitir informações a respeito de seu povo. A linguagem adotada na obra é formal e expressa uma comunicação que tende a ser compreendida de modo fácil, ainda que esteja carregada de palavras construções linguísticas amazônicas.
Os discursos empregados na obra são objetivos e subjetivos e tendem a proporcionar ao leitor viagem ao imaginário simbólico e imaterial de ameríndios. Diante desses pressupostos, observou-se que a construção da pessoa indígena Maraguá foi realizada através de três ponderações: Aningáwa Murugáwa, Pazaguê, Kãwera. A tríade forneceu pistas acerca de como o indivíduo étnico é reconhecido pelos seus pares dentro do contexto da tradição a qual pertence.
Diante dessa perspectiva, conclui-se que o edifício identitário desse povo tem sido reconformado conforme a contemporaneidade, sendo que a dispersão territorial pode, segundo interpretação sublinhada via Maraguápéyára, ser fator que propiciou fortemente a nova roupagem étnica Maraguá. Acredita-se que a obra representa uma literatura de potencialização de valores, crenças, atitudes e ideologias étnicas dos Maraguá. As constatações foram observadas mediante análise de estratégias comunicacionais utilizadas na escrita dos relatos, sobretudo no âmbito da diversidade cultural da etnia, enfocada como algo constante e intrinsecamente ligado a parentescos, compadrios, cosmologias e estruturas clânicas.

Referências

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* Graduanda em Comunicação Social/Jornalismo (Ufam), bolsista de Iniciação Científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ambientes Amazônicos (Nepam/CNPq)

** Doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia. Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA) da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Lidera o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ambientes Amazônicos (Nepam/CNPq). Suas áreas de interesse são i) comunicação social e ii) sociedade-ambiente na Amazônia (subárea interdisciplinar).

*** Mestre em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia - PPGCASA/ UFAM. Possui graduação em ADMINISTRAÇÃO pela Universidade Federal do Amazonas (2011), graduação em GEOGRAFIA pela Universidade do Estado do Amazonas (2010), Especialização em Turismo e Desenvolvimento Local pela Universidade do Estado do Amazonas (2011) e Pós-Graduado em MBA em Gestão em Logística e Operações Globais pela Universidade Estácio de Sá. Foi professor de Geografia, Ecoturismo e Ecologia Básica do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas/ Campus Parintins e professor assistente do Curso de Tecnologia em Gestão Pública da Universidade do Estado do Amazonas/ Núcleo de Estudos Superiores de Borba. Atualmente é professor de carreira do curso de Administração no Instituto de Ciências Sociais, Educação e Zootecnia – ICSEZ/ UFAM.


Recibido: 30/08/2016 Aceptado: 18/11/2016 Publicado: Noviembre de 2016

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