Cristiano Elias *
Alessandro Ramos Machado **
Faculdade de Direito do Sul de Minas - FDSM y Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Brasil
cristianoelias@usp.brResumo: No presente artigo, analisa-se o processo dos crimes dolosos contra a vida, particularmente o tribunal do júri, dentro do paradigma do Estado Democrático de Direito, tanto na sua fundamentação como na sua concretude, tomando-se como referência a teoria discursiva do direito de Jünger Habermas. Para tanto, faz-se um breve introito desta teoria, abordando o procedimento discursivo com suas características e acentuando como se dá a legitimidade da decisão advinda dele. Adiante, pontua-se uma das reconstruções realizadas por Habermas, a separação dos poderes, examinando os discursos de fundamentação e os de aplicação, com especial enfoque neste último. Passa-se, então, para o processo dos crimes dolosos contra a vida, abordando o procedimento escalonado e alguns atos processuais, especialmente aqueles praticados no tribunal do júri, a fim de se verificar até que ponto esse processo concretiza a teoria discursiva do direito e se funda na democracia, percorrendo todo o excurso a pesquisa bibliográfica.
Palavras-chave: Estado democrático de direito, Teoria discursiva do direito, Processo de crimes dolosos contra vida, Tribunal do júri.
The democratic-procedural ground of the jury
Abstract: In this article, it intends to analyze the process of intentional crimes against life, especially the trial by jury, within the democratic rule of law paradigm, both in its ground as also in its concreteness, taking as reference the Jürgen Habermas's discursive theory of law. Thereby, it makes a brief introduction of this theory, broaching the discrusive proceeding with their characteristics and stressing how is the legitimacy that comes from it. Forward, it points one of the reconstructions made by Habermas, the separation of powers, examining the grounding discourses and the aplication discourses, with special focus in the last one. Then, it focus on the process of intentional crimes against life, broaching the procedure and some procedural acts, especially those practiced in the jury, in order to verify if this process concretized the discursive theory of law and is grounded on democracy, through all the text the bibliographic research.
Keywords: Democratic rule of law; Discursive theory of law; Process of intentional crimes against life; Jury.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Cristiano Elias y Alessandro Ramos Machado (2016): “Da fundamentação democrático procedimental do júri”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (octubre-diciembre 2016). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/04/juri.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1604juri
1. Introdução
A raiz do processo dos crimes dolosos contra a vida, em especial a atual configuração do júri, é situada na Magna Carta do Rei João Sem Terra, de 1215, oportunidade em que os barões ingleses obtiveram a chancela do rei de que seriam julgados por seus pares. Identificada posteriormente como um direito fundamental, essa chancela se incorporou nas Constituições e foi desenvolvida em procedimento acolhido pelos diversos códigos de processo penal.
No Brasil, o tribunal do júri foi instituído pelo decreto do Príncipe Regente, Dom Pedro I, na data de 18 de junho de 1822 e atualmente ele está assentado no art. 5º, inciso XXXVIII da Constituição Federal - CF, entre os direitos e garantias fundamentais. Nesse sentido, parte da doutrina considera-o como uma garantia individual. Eis o que sustenta Guilherme de Souza Nucci:
O Tribunal do Júri é, apenas, uma garantia humana fundamental formal. […] Nos países em que não há júri – e são muitos – também é viável subsistir um Estado Democrático de Direito. Juízes togados imparciais promovem o julgamento de pessoas acusadas da prática de delitos.
Aliás, fosse ele um tribunal indispensável à democracia, deveria julgar muito mais que os crimes dolosos contra a vida. Possivelmente, haveria de deliberar sobre todos os delitos existentes no ordenamento pátrio. 1
Por outro lado, Eugênio Pacelli de Oliveira preleciona que o tribunal do júri consubstancia o princípio democrático:
Costuma-se a afirmar que o Tribunal do Júri seria uma das mais democráticas instituições do Poder Judiciário, sobretudo pelo fato de submeter o homem ao julgamento de seus pares e não ao da Justiça togada. É dizer: aplicar-se-ia o Direito segundo a sua compreensão popular e não segundo a técnica dos tribunais.
Nesse sentido, de criação de justiça fora dos limites do Direito positivo, o Tribunal do Júri é mesmo democrático.2
Ante essa divisão, pretende-se no presente artigo analisar o processo dos crimes dolosos contra a vida, em especial o tribunal do júri, para além da garantia, como uma expressão e exemplo do Estado Democrático de Direito, objetivando-se também verificar, a partir disso, sua fundamentação democrática.
Preliminarmente, é importante consignar que esse paradigma de Estado apresenta os seguintes princípios estruturantes:
A. Constitucionalidade: vinculação do Estado Democrático de Direito a uma Constituição como instrumento básico da garantia jurídica; B. Organização Democrática da Sociedade; C. Sistema de direitos fundamentais individuais e coletivos, seja como Estado de “distância”, porque os direitos fundamentais asseguram ao homem uma autonomia perante os poderes públicos, seja como um Estado “antropologicamente amigo”, pois respeita a dignidade da pessoa humana e empenha-se na defesa e garantia da liberdade, da justiça e da solidariedade; D. Justiça Social como mecanismos corretivos da desigualdade; E. Igualdade não apenas como possibilidade formal, mas, também, como atribuição de uma sociedade justa; F. Especialização de Poderes ou de Funções, marcada por um novo relacionamento e vinculada à produção dos “resultados” buscados pelos “fins” constitucionais; G. Legalidade que aparece como medida do direito, isto é, através de um meio de ordenação racional, vinculativamente prescritivo, de regas, formas e procedimentos que excluam o arbítrio e a prepotência; H. Segurança e certeza jurídicas. 3
Com efeito, trata-se de um Estado que acolhe o pluralismo, os direitos fundamentais em suas mais diversas matizes e a transformação da sociedade, sem desprezar a segurança jurídica, tudo isso sob o manto da Constituição como garantidora de transformação do status quo em busca da igualdade e da solidariedade. Frise-se que o grande diferencial desse modelo não está precipuamente em seu conteúdo, mas na dinamicidade da democracia, que é uma construção, uma vivência.
Adota-se, então, a teoria discursiva do direito, desenvolvido por Jürgen Habermas, como manifestação do paradigma democrático. Como será visto, é no discurso que o direito vai obter sua legitimidade, não advinda da mera legalidade, mas da consideração dos cidadãos como autores e destinatários dos direitos.
O discurso, como fio condutor da teoria do direito habermasiana, será o divisor de águas entre o poder legislativo e o judiciário. Cada um terá o seu discurso próprio. No entanto, assim como funções legislativas são exercidas, ainda que minoritariamente, pelo poder judiciário, não se pode esquecer a possível entrada dos discursos de fundamentação, típicos do legislativo, também na jurisdição. Cabe, para os fins do presente artigo, uma maior investigação científica do discurso jurídico ou de aplicação, precipuamente esperado por parte de poder judiciário.
Enfim, olhando para o processo dos crimes dolosos contra a vida, com seu rito escalonado e para o tribunal do júri, o estudo centra-se na relação entre os mesmos e a teoria discursiva, para encontrar a fundamentação democrática deles, bem com o que falta para atingi-la em plenitude.
2. A teoria discursiva do direito e o discurso como procedimento de legitimação
A teoria discursiva do direito é resultado do profícuo, sofisticado e amplo estudo de Jürgen Habermas. Ao que interessa na presente análise, pode-se afirmar inicialmente que essa teoria tem como principal proposta um resgate da legitimidade através de um procedimento discursivo.
Habermas desenvolve seu caminho teórico em muitas bases, dentre elas a filosofia da linguagem, especialmente com a virada linguística ou linguistic turn, em que se deixou uma relação sujeito-objeto, adotando uma relação sujeito-proposição. Não há um objeto, cuja essência espera para ser conhecida. O mundo e aquilo que o compõe, inclusive o homem inserido nele, se desvelam na linguagem, construto humano. 4 Assim, a virada linguística abandona o paradigma da filosofia da consciência, do sujeito solipsista que podia tudo conhecer, para centrar-se na intersubjetividade.
Dentro desse paradigma, seguido por Habermas, a verdade 5há de ser alcançada entre os sujeitos da comunicação compartilhada. Por outro lado, o autor busca uma pragmática universal da linguagem, ou seja, aquilo que pode estar presente em nossa comunicação cotidiana.
Sua proposta é que falantes e ouvintes compreendem o significado de uma sentença quando sabem sob que condições a sentença é verdadeira.6 Ou seja, a referência à validade, inerente à linguagem, é essencial para que se compreenda o significado. Todavia, a validade não está ligada apenas à representação linguística dos estados de coisas, ou seja, às afirmações e asserções relacionadas à verdade. Habermas busca comprovar que existem pretensões da validade em relação a outros modos de emprego da linguagem. 7 Colocando às claras o que foi dito, ao se afirmar algo, em qualquer hipótese, pretende-se que a asserção seja reconhecida como verdadeira pelo interlocutor. Por exemplo, se se diz Caio matou Tício, deseja-se que os interlocutores, nesse caso, os jurados no tribunal do júri, reconheçam a verdade de tal estado de coisas no mundo. E isso se estende para outras pretensões de validade: a pretensão de correção quanto à norma e de veracidade quanto a um sentimento ou expressão subjetiva.
Ocorre que havendo contestação de tais pretensões, o interlocutor deve apresentar argumentos para embasá-las. É aqui que entra o discurso, em que os argumentos aparecerão. Conforme ensina Rafael Lazzarotto Simioni:
Os participantes de uma interação estão obrigados a supor a existência de um mundo em comum. Agindo instrumental ou comunicativamente , os participantes de uma interação ‘compartilham a mesma suposição formal de mundo’, a partir da qual as certezas dos participantes podem ser problematizadas. Por isso, enquanto a ação comunicativa reproduz o ‘mundo vivido’ compartilhado intersubjetivamente, o discurso torna-se o lugar onde as convicções implicitamente tematizadas são postas em questão. (...)
Nessas condições, o discurso exige argumentação, porque só os enunciados capazes de satisfazer as três pretensões universais de validade é que podem conquistar aceitação intersubjetiva.8
Importante dizer que a qualquer momento uma pretensão de validade pode ser levantada em um retorno ao discurso.
Ademais, Habermas, tendo passado pela escola de Frankfurt, vai fazer uma crítica à racionalidade instrumental, voltada exclusivamente para o êxito, indo além da primeira geração da escola ao propor outra racionalidade.9 Com efeito, preocupado com a interferência dos meios poder e dinheiro, que buscam justamente o mencionado êxito, ele vai propor, ao lado da instrumental, uma razão comunicativa e a correspondente ação comunicativa, ação na qual se persegue o entendimento, sem qualquer coação, exceto a do melhor argumento capaz de levar a um consenso. Nesse diapasão é que se alcança a situação ideal de fala, assim por ele caracterizada:
(a) publicidade e inclusão: ninguém que, à vista de uma exigência de validez controversa, possa trazer uma contribuição relevante, deve ser excluído; (b) direitos comunicativos iguais: a todos são dadas as mesmas chances de se expressar sobre as coisas; (c) exclusão de enganos e ilusões: os participantes devem pretender o que dizem; e (d) não coação: a comunicação deve estar livre de restrições, que impedem que o melhor argumento venha à tona e determine a saída da discussão.10
Tem-se, assim, um ambiente discursivo em que todos têm oportunidade de contestar de forma livre, apresentar contribuições, argumentos e sem qualquer coação, a não ser a do melhor argumento. Percebe-se que essa situação é inclusiva, pois permite que o alter se manifeste perante o ego. Outrossim, baseia-se na liberdade e igualdade da vontade, trilhando o caminho do Estado Democrático de Direito.
Se antes o entendimento era garantido por um mundo da vida que propiciava o pano de fundo para tanto, hoje não mais. Ademais, a integração social não é alcançada pela moral, que não possui força motivadora suficiente para induzir a ação. Assim, desenvolvendo sua teoria do agir comunicativo, voltado ao entendimento, Habermas vai propor a teoria discursiva do direito, em que tanto o direito e a moral fundam-se em um procedimento discursivo neutro e o direito assume a função de integração social.
Vale lembrar que desde a teoria do agir comunicativo Habermas considerava o procedimento como um dos planos do discurso. 11 Ele não nos dá a norma de agir, o conteúdo, o que não pode ser mais alcançado em uma sociedade de moral pós-convencional baseada em princípios. O discurso fornece, podemos assim dizer, os passos para se obter um resgate das pretensões de validade. 12
Observe-se que, em tempos de grande pluralismo e complexidade, tal procedimento pode ser tido como uma saída para a democracia, justamente por não impor uma norma ou decisão, a não ser aquela que passa pelo crivo discursivo e encontra o consentimento dos interlocutores, afetados e interessados. A teoria discursiva assume, então, os desafios de uma sociedade democrática complexa, plural e multifacetada. No mesmo sentido, sustenta-se que a única medida que se mostra importante, dadas as constantes mudanças que se vivencia atualmente ('todo está em evolución') é a necessidade de um consenso, o mais amplo e duradouro possível. 13
Embora possa ser revisto pelo levantamento ou questionamento das pretensões de validade, o consenso representa uma segurança ao se embasar no melhor argumento e no assentimento dos interessados e afetados. Ademais, mesmo que existindo em um determinado contexto, as pretensões de validade são universais, pois:
(…) uma vez que todo e qualquer significado de uma expressão lingüística encontra-se submetido a um potencial de justificação racional segundo pretensões universais de validade, a ação comunicativa ultrapassa os limites da cultura ou de um “mundo vivido” compartilhado lingüisticamente por uma determinada comunidade. A ação comunicativa exige a idealização de sua justificação racional segundo pretensões de validade que são, ao mesmo tempo, universais e contextuais, transcendentes e situadas. (...)
Em outras palavras, os participantes de uma interação, ainda que situados no espaço e no tempo, exigem a justificação racional de pretensões de validade universalmente idealizadas no espaço e no tempo, isto é, como se fosse válido em qualquer lugar, bem como válido também para o futuro. 14
Nesse ponto, a teoria discursiva é portadora da certeza e segurança elementares do Estado Democrático de Direito, desde que não entendidas em um sentido absoluto, eis que falíveis, mas reforçadas pelo consenso e pelo melhor argumento.
Ao mesmo tempo em que o direito é levado em conta pelo agir estratégico, próprio de uma racionalidade instrumental, em razão da sanção, por exemplo, ele busca legitimidade, que, em um Estado Democrático de Direito de uma sociedade complexa, somente pode ser alcançada pelo entendimento, pelo discurso, institucionalizado juridicamente através de direitos fundamentais:
(1) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do ‘direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação’; (...)
(2) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status de um membro numa associação voluntária de parceiros do direito;
(3) Direitos fundamentais que resultam imediatamente da ‘possibilidade de postulação judicial’ de direitos e da configuração politicamente autônoma de proteção judicial individual; (...)
(4) Direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de formação da opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua ‘autonomia política’ e através dos quais eles criam direito legítimo; (...)
(5) Direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente, na medida em que isso for necessário para um aproveitamento, em igualdade de chances, dos direitos elencados de (1) até (4).15
Nesse passo, percebe-se uma abertura para os direitos e garantias fundamentais abarcados por um Estado Democrático de Direito, a saber: direitos de iguais liberdades, de participação política e direitos a condições mínimas de vida suficientes para garantir o usufruto dos outros direitos.
O resgate da legitimidade pelo discurso vai se dar de tal forma que os cidadãos não vão ser meros portadores de direitos subjetivos de liberdade, ditos negativos, ou de direitos prestacionais ou positivos, os últimos concedidos paternalisticamente pelo Estado. Eles vão ser autores e destinatários dos direitos. Em outras palavras, os direitos subjetivos serão concedidos pelos próprios cidadãos a eles mesmos reciprocamente em um procedimento de formação autônoma da vontade, o qual se embasa naqueles direitos subjetivos. Assim, a cooriginariedade da autonomia pública e privada, do interesse privado e do público, levando, enfim, à legitimidade da decisão pelo fato de resultar dos próprios cidadãos, sem qualquer coação e sob a liberdade e a igualdade.
3. A separação dos poderes como discurso e o discurso do judiciáriO
Dentro da teoria discursiva do direito, Habermas não vê a separação dos poderes como separação de funções e sim separação de discursos, ou seja, ressalta a importância do discurso presente em cada órgão de soberania.
Habermas funda-se, parcialmente, na teoria da argumentação de Klaus Günther, concordando com a diferenciação entre fundamentação e aplicação da norma jurídica. Na primeira discute-se se a norma é válida para cada um, independente de sua aplicação. Já a segunda centra-se na adequação da norma a uma situação. 16 Assim, o discurso de fundamentação volta-se à pretensão de validade, sendo aberto a variados discursos – o pragmático, em que, através do saber empírico e máximas estabelecidas, são levantados argumentos referentes aos meios apropriados para preferências dadas e julgadas as consequências de decisões alternativas, ou seja, examina-se a adequação de uma estratégia de ação a um fim; o ético, em que contam argumentos que abordem nossa autocompreensão da forma de vida transmitida pela tradição e que levem, dessa forma, à opção axiológica ou valorativa por uma forma autêntica de vida, focando-se na configuração dos valores; e o moral, com argumentos que passam pelo crivo da generalização, ou seja, se uma determinada conduta é boa para todos e não somente do ponto de vista das preferências subjetivas ou do modo de vida autêntico para uma comunidade. 17 Já no discurso de aplicação não se discuti a validade, que já está dada, ela é prima facie. não se fazendo necessária uma nova fundamentação da norma tida como válida, eis que filtrada em um procedimento democrático-discursivo. Nas palavras de Habermas:
Que uma norma valha prima facie significa apenas que ela foi ‘fundamentada’ de modo imparcial; para que se chegue à decisão válida de um caso, é necessária a ‘aplicação’ imparcial. A validade da norma não garante por si só a justiça no caso singular.
A aplicação imparcial de uma norma fecha a lacuna que ficara aberta quando de sua fundamentação imparcial, devido à imprevisibilidade das situações futuras.18
O discurso de aplicação tem que observar a lei, o ordenamento como um fato, uma facticidade. Mas ele não escapa do questionamento da validade, ou seja, de uma justificação racional, assim como o discurso de fundamentação. Ademais, Rafael Lazzarotto Simioni pontua que uma decisão jurídica não pode se impor apenas pela faticidade da ordem jurídica, sob a justificação da segurança jurídica. A decisão também tem que ser correta.19 É assim em Habermas, o direito pende entre faticidade e validade – no caso do discurso de justificação, entre a segurança jurídica e a correção.
Em Habermas, essa justificação ocorre diversamente daquela presente no discurso de fundamentação. Especificamente, dada a vagueza da norma, que não vem individualizando em quais casos poderá ser aplicada ou não, nos discursos de aplicação:
(...) não se trata da validade e sim da ‘relação adequada’ da norma à ‘situação’. Uma vez que toda norma abrange apenas determinados aspectos de um caso singular, situado no mundo da vida, é preciso examinar quais descrições de estados de coisas são significativas para interpretação da situação de um caso controverso e qual das normas válidas ‘prima facie’ é adequada à situação apreendida em todas as possíveis características significantes.20
Registre-se que, além disso, as perspectivas diversas das partes envolvidas devem manter contato com as perspectivas gerais dos parceiros do direito, que se fizeram presentes no momento do discurso de fundamentação. É claro que nos discursos de fundamentação há um espaço ampliado para a consideração das diferentes perspectivas, o que não ocorre nos de aplicação, onde tal espaço é representado pelo juiz. Este deve fazer a conversão entre o ponto de vista das partes e o presente na norma válida prima facie. 21
Assim, Habermas, encampando a contribuição de Dworkin, vai colocar ainda a exigência de coerência da decisão com todo o direito, sem os vícios presentes no monólogo do juiz Hércules. Ou seja, o juiz singular não decide sozinho, ele tem que conceber sua interpretação construtiva como um empreendimento comum sustentado pela comunicação pública dos cidadãos. 22
Habermas vai se preocupar com a busca da única decisão correta, mas sem perder de vista a falibilidade da mesma, sua provisoriedade, sanando tal tensão através do procedimento discursivo:
A fresta de racionalidade que surge entre a força meramente plausibilizadora de um único argumento substancial ou de uma sequência incompleta de argumentos, de um lado, e a incondicionalidade de pretensão à “única decisão correta”, de outro lado, é fechada ‘idealiter’ (idealmente) através do procedimento da busca cooperativa da verdade. 23
O discurso é um espaço para a emersão dos argumentos presentes em determinado momento. Conforme já dito, as pretensões de validade são universais, ou seja, embora contextualizadas, abarcando os argumentos presentes naquele momento e espaço, transcendem ambos. O discurso de aplicação é o do judiciário, enquanto que o de fundamentação é o do legislativo, cabendo àquele conhecer as circunstâncias fáticas na maior medida possível e selecionar a norma adequada, respeitando-se a coerência com todo o ordenamento jurídico.
Não se detendo na lógica, no conhecido silogismo judicial, a fundamentação jurisdicional ou jurídica na teoria discursiva:
analisa a aceitabilidade racional dos juízos dos juízes sob o ponto de vista da qualidade dos argumentos e da estrutura do processo de argumentação. Ela apoia-se num conceito forte de racionalidade procedimental, segundo o qual as qualidades constitutivas da validade de um juízo devem ser procuradas, não apenas na dimensão lógico-semântica da construção de argumentos e da ligação lógica entre as proposições, mas também na dimensão pragmática do próprio processo de fundamentação.24
Não se pode deixar de acentuar que a seleção da norma adequada ocorre em um discurso feito dentro do processo judicial, em que serão apresentados argumentos não circunscritos em relação ao direito e circunscritos no que toca aos fatos.25 Aqueles não são limitados, já que dizem respeito à escolha da norma adequada dentre muitas que possam se candidatar, o que não ocorre com os últimos, a exemplo do debate no plenário do júri, em que a acusação deve se ater aos limites da pronúncia nos termos do art. 476 do Código de Processo Penal - CPP.26
Mas, dada a dinamicidade da vida em sociedade, ainda mais em um ambiente em que a velocidade vem tomando conta como na contemporaneidade, é admissível que haja casos não regulados por normas ou cuja regulamentação somente pode ser alcançada no caso concreto. Ademais, mesmo nos casos regulados, admite-se certa discricionariedade do juiz, como aponta Luigi Ferrajoli:
Os espaços de discricionariedade da jurisdição, de fato, são inegáveis. Até mesmo em matéria penal, onde é máximo o valor da certeza, podem se distinguir, facilmente, três espaços fisiológicos e insuprimíveis de discricionariedade judiciária que correspondem, entre tantos, aos seguintes tipos de poder: o ‘poder de qualificação jurídica’, que corresponde aos espaços de interpretação da lei, ligados à semântica da linguagem legal; ‘o poder de verificação factual’ ou de valoração das provas, que corresponde aos espaços da ponderação dos indícios e dos elementos probatórios; ‘o poder equitativo de conotação’ dos fatos verificados, que corresponde aos espaços de compreensão e de ponderação dos conotados singulares e irrepetíveis de cada fato, mesmo se todos subsumíveis na mesma figura legal do crime.27
Nessa senda, surge um dos problemas da teoria discursiva do direito, a entrada dos discursos de fundamentação no judiciário, em que:
Na medida em que os programas legais dependem de uma concretização que contribui para desenvolver o direito – a tal ponto que justiça, apesar de todas as cautelas, é obrigada a tomar decisões nas zonas cinzentas que surgem entre a legislação e a aplicação do direito –, os discursos acerca da aplicação do direito têm que se complementados, de modo claro, por elementos dos discursos de fundamentação. Esses elementos de uma formação quase-legisladora da opinião e da vontade necessitam certamente de um outro tipo de legitimação. O fardo desta legitimação suplementar poderia ser assumido pela obrigação de apresentar justificações perante um fórum judiciário crítico. Isso seria possível através da institucionalização de uma esfera pública jurídica capaz de ultrapassar a atual cultura de especialistas e suficientemente sensível para transformar as decisões problemáticas em foco de controvérsias públicas.28
Portanto, é certo que a entrada desses elementos alarga o espaço de discussão para além do círculo do juiz solipsista que decide isoladamente com sua consciência. Exige-se a fundamentação, a apresentação de argumentos nessa esfera pública. Como nesses casos de discricionariedade judicial há uma interpretação construtiva do direito,29 não se pode apelar para a escolha da norma jurídica, etapa que já foi superada. O discurso não gira apenas em torno do mundo do direito posto e suas muitas normas jurídicas. Portanto, nessa construção, devem adentrar outros argumentos que não somente jurídicos, assim como ocorre nos discursos de fundamentação.
Não se pode encerrar este tópico sem o seguinte questionamento: se em relação ao magistrado togado, ao aplicar a lei, com seu conhecimento técnico e pretensamente imparcial, admite-se uma certa margem de discricionariedade, o que se pode esperar, então, de um juiz leigo, o jurado?
4. As especificidades do processo dos crimes dolosos contra vida e o tribunal do júri
O processo dos crimes dolosos contra a vida está expressamente previsto no artigo art. 5º, XXXVIII da CF, mas é da leitura do procedimento e respectivos atos processuais que o compõe, regulados nos arts. 406 a 497 do CPP, que é possível perceber sua especificidade em relação aos outros processos.
Com efeito, tem-se um processo escalonado, bifásico. Na primeira etapa ou fase há a instrução perante um juízo togado com as garantias já previstas na ordem constitucional, como contraditório, ampla defesa e imparcialidade do juiz, presentes nos demais processos. 30 Tal etapa finda-se com uma sentença interlocutória – não decide a pretensão punitiva, mas mista – encerrando uma fase, denominada sentença de pronúncia. A respeito dessa decisão, vale lembrar consignar que:
(...) o julgamento dos crimes dolosos contra a vida é do Tribunal do Júri, conforme exigência e garantia constitucional. Por isso, só excepcionalmente é que tal competência poderá ser afastada. Na fase da pronúncia, o que se faz é unicamente o encaminhamento regular do processo ao órgão jurisdicional competente, pela inexistência das hipóteses de absolvição sumária e de desclassificação. Essas duas decisões, como visto, exigem a afirmação judicial da certeza total quanto aos fatos e à autoria – por isso são excepcionais. 31
Por essa razão, pode-se dizer que uma sentença de pronúncia é meramente de admissibilidade, que se diga, aprecia se é viável que se prossiga com a pretensão, a qual, por outro lado não dispensa a devida colheita de provas e uma atenta análise pelo magistrado. Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci ressalta a importância do contraditório, da ampla defesa e de uma decisão fundada no binômio prova suficiente e dúvida razoável no encerramento da primeira fase:
(...) além da garantia fornecida pela inicial persecução penal, consubstanciada, como regra, no inquérito policial, para que se receba, com justa causa, a denúncia ou queixa, exige-se uma instrução, sob o crivo do contraditório e com garantia da ampla defesa, perante o juiz togado. (...)
É preciso cessar, de uma vez por todas, ao menos em nome do Estado Democrático de Direito, a atuação jurisdicional frágil e insensível, que prefere pronunciar o acusado, sem provas firmes e livres. (...)
Demanda-se segurança e a essa exigência deve estar atrelado o magistrado que atua na fase da pronúncia. (...) O raciocínio é simples: o juiz da fase da pronúncia remete a julgamento em plenário o processo que ele, em tese, poderia condenar, se fosse o competente. Não é questão de se demandar ‘certeza’ de culpa do réu. Porém, deve-se reclamar provas ‘suficientes’. Havendo a referida ‘suficiência’, caberá ao Conselho de Sentença decidir se condena ou absolve.
Sob outro prisma, a suficiência de provas deve espelhar uma dúvida razoável. (...) Envolvida está a valoração da prova, que, com certeza, varia de pessoa para pessoa, logo, de um juiz para juiz.32
Então, desde essa primeira fase, já se revela a importância do contraditório e da ampla defesa para que os sujeitos possam debater e conhecer as circunstâncias do caso, esclarecendo-se a justiça da pronúncia. Aliás, essa é uma exigência em toda instrução criminal, seja ela pré-processual, seja realizada em juízo, a fim de que o órgão jurisdicional competente, devidamente formado o seu convencimento, possa pronunciar-se o mais corretamente possível e com justiça.33
Ademais, vencida a instrução com a sentença de pronúncia, inicia-se a segunda etapa ou fase do processo, onde ele mais se diferencia e deixa sua marca: o plenário do tribunal do júri. Já se especifica com o julgamento da conduta por juízes leigos, advindos do seio da população. Portanto, vai-se além da esfera de um juiz ou um colegiado especializado, ampliando-se o foro de debate. Nesse passo, vale lembrar que o CPP apenas exige que o jurado seja maior de 18 anos e de notória idoneidade (art. 436), proibindo-se qualquer tipo de discriminação (art. 436, § 1º) e certamente abrindo as portas para uma participação ampla da sociedade civil. Tal fato é reforçado pela requisição da indicação pelos diversos segmentos da organização social, representados por associações e núcleos comunitários (art. 425, § 2º). É evidente que existem restrições quanto à participação efetiva de uma pessoa no conselho de sentença (arts. 447 a 449), porém, que devem ser devidamente fundadas na imparcialidade para se assegurar um julgamento justo. 34
O contraditório é algo presente e fundamental não somente no conhecimento e julgamento do processo dos crimes dolosos contra a vida, como também em todo o processo penal, como realização de um processo justo e eqüitativo, único caminho para a imposição da sanção de natureza penal, nas palavras de Eugênio Pacelli de Oliveira. Nesse sentido, o autor preleciona ainda que:
(...) para além do interesse específico das partes e, de modo especial, do acusado, é bem de ver que o contraditório põe-se também como método de conhecimento do caso penal. Com efeito, uma estrutura dialética de afirmações e negações pode se revelar extremamente proveitosa na formação do convencimento judicial, permitindo uma análise mais ampla de toda a argumentação pertinente à matéria de fato e de direito.35
Essa estrutura dialética 36assume uma fisionomia própria no plenário com a chance de o jurado questionar o arguente durante sua exposição (CPP, art. 480) e o próprio aparte previsto no art. 497, XII do CPP.
Igualmente, as partes terão que convencer não mais um juiz togado e graduado na técnica e dogmática jurídica. Os argumentos devem se dirigir para juízes leigos, os jurados. Por essa razão, há um consenso que a ampla defesa também é dilatada, uma vez que podem vir à tona muitos outros argumentos, além dos jurídicos propriamente ditos. É o que se encontra na seguinte lição:
Quando a justiça se separa da realidade, quando paira nas alturas ideais da perfeição, ela perde o contacto com os homens para os quais foi feita. O Direito nada mais é do que um regulador da vida de homens de carne osso. A imposição da justiça absoluta com desprezo das contingências humanas é a maior das injustiças: ‘summum ius, mumma iniura’. Para evitar o vezo do juiz profissional que se acastela na estratosfera da justiça ideal, a humanidade recorreu sempre à participação dos leigos nos julgamentos.
Por meio deles a justiça toma contacto com a Terra, com o mundo em que vivem o criminoso e a sociedade. Penetrar o julgamento de considerações éticas, psicológicas, econômicas, etc., é a finalidade do júri. 37
Posteriormente, Hélio Tornaghi critica ainda a objeção que se faz à existência de julgadores sem qualquer formação jurídica, concluindo que nessa manifestação democrática fundamenta-se a soberania do tribunal do júri. Assim, a doutrina do processo penal mais uma vez se harmoniza com a teoria discursiva do direito, colocando em relevo não só o princípio democrático com a razão da validade, como também exortando a sociedade a participar da tomada da decisão, sem se portar como um destinatário passivo da norma jurídica a ser formada. A inclinação pelo caráter democrático do tribunal do júri está presente na pensamento do autor em exame, revelando notável progresso, porque, quando foram expressos, a CF vigente na época não formalizava a decisão política fundamental por um Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, merece ser feita a transcrição literal da doutrina em tela:
O julgamento pelo júri [e o meio mais seguro de verificar se a legislação penal se conforma ao sentimento popular e permitir a eqüidade , isto é, a justiça do caso concreto, a justiça que leva em conta todas as circunstâncias, previstas ou não na lei, para decidir. A grande sabedoria dos romanos permitiu ao Pretor amenizar os rigores e corrigir as falhas do ‘ius civile’, da lei, e graças a isso o Direito romano se aperfeiçoou e engrandeceu. Igual tarefa é dada ao jurado, que deve ter a lei por padrão, mas com independência para avaliar os fatos de modo diverso, como se ele próprio tivesse de legislar para o caso concreto. Afirma-se que a insciência do jurado em matéria jurídica desaconselha a atribuição de tais poderes. Mas, em primeiro lugar, por esse argumento também não deveria dar-se poder de legislar a quem não fosse jurisperito e, no entanto, as leis são feitas por leigos. Em segundo lugar, esse argumento confunde ciência com sabedoria. É certo que o povo não tem ciência, mas que lhe sobra a sabedoria, que é o gosto, o paladar, o sentido da ciência, que é a experiência acumulada e polida pela prudência, ele próprio o revela nas máximas, nos brocardos em que exprime em forma concisa e lapidar o que filósofos não saberiam dizer. O povo tem o instinto de sobrevivência e a sabedoria da vida. Ele sabe, ele sente o que convém e o fundamento do Direito é utilitário: é o bem comum temporal.
Se o jurado verifica que a lei, no caso concreto, não corresponde ao ideal de justiça, deixa de lado a lei e fica com a justiça e nisso não há nada de mais: o próprio juiz togado tem esse poder, em certos casos, dado também por lei. A lei não pode ser feita ‘intuitu personae’ mas a sentença pode e deve.
Para isso é que o júri deve ser soberano. 38
Logo, mesmo que se trate de um discurso jurídico e dentro de um processo, há espaço ainda para outros argumentos no tribunal do júri. É o que ocorre, por exemplo, quando se invocam as causas supralegais de exclusão da ilicitude e de culpabilidade. A primeira faz-se presente na excludente de ilicitude não prevista em lei. Notoriamente, conhece-se a possibilidade da sua acolhida a partir de variada fundamentação, a saber: a consideração da antijuridicidade como lesão de um bem jurídico, cuja relevância é aferida a partir das normas de cultura; além disso, a possibilidade do emprego da analogia, dos costumes, bem como dos princípios gerais do direito; saliente-se ainda a utilização da lógica do razoável, em que se considera o direito em uma acepção ampla e se busca uma decisão justa no caso concreto. 39 Por outro lado, a exclusão da culpabilidade deve ser extraída da inexigibilidade de conduta adversa, quando se verificam circunstâncias anormais que descaracterizam reprovabilidade pelo tipo injusto realizado, ou seja, uma causa genérica assentada no fato do legislador não poder prever todos os casos de aplicação da lei e na interpretação teleológica da norma positivada de acordo com o bem comum.40 Como se vê, trata-se de casos não previstos em lei, em que se exige uma interpretação construtiva, abrindo-se de novo portas para argumentos extrajurídicos, nos moldes já delineados.
Dentre outros direitos e garantias fundamentais, cite-se o direito à igualdade, no conceito especialmente a denominado como paridade de armas, quando se proibi, por exemplo, a ocorrência da surpresa, mediante a apresentação de documento ou objeto somente no momento da audiência de instrução e julgamento. 41 Eis uma razão do porquê se falar em um verdadeiro duelo 42no processo penal para o convencimento do juiz, que, nesse caso, são os jurados do tribunal do júri. É importante estabelecer a respeito disso que o conhecimento com devida antecedência dos fatos é fundamental não só para a discussão em plenário sem qualquer manipulação, como também para que tudo desenvolva-se em um ambiente com respeito àquele direito, consequentemente observando o princípio do contraditório e da ampla defesa. Nesse sentido, em relação à efetivação do contraditório e da ampla defesa, a doutrina esclarece ainda que:
No processo penal é necessário que a informação e a possibilidade de reação permitam um contraditório pleno e efetivo. Pleno porque se exige a observância do contraditório durante todo o desenrolar da causa, até seu encerramento. Efetivo porque não é suficiente dar à parte a possibilidade formal de se pronunciar sobre os fatos da parte contrária, sendo imprescindível proporcionar-lhes os meios para que tenha condições reais de contrariá-los. Liga-se, aqui, o contraditório ao princípio da paridade de armas, sendo mister, para um contraditório efetivo, estarem as partes munidas de forças similares.43
Finalmente, mencione-se ainda a possibilidade de o juiz determinar novas diligências para esclarecer fato que interesse ao julgamento da causa após a sentença de pronúncia (CPP, art. 423, I); a reinquirição de testemunha já ouvida em plenário, mesmo que encerrada a instrução (CPP, art. 476, § 4º); a diligência para verificação de fato essencial levantada por jurado, inclusive com a possível dissolução do conselho de sentença, se necessário (CPP, arts. 480, § 2º e 481); ou seja, existem um grande número de hipóteses na legislação processual penal sobre o procedimento do tribunal do júri que apontam para mecanismos que ampliam a possibilidade de cognição da situação concreta, oferecendo às partes participação na tomada da decisão. Como se vê, o espaço público para a participação democrática no processo penal na hipótese de crimes dolosos contra a vida é deveras amplo conforme previsões do Código.
5. Conclusão
Ante todo o exposto, algumas conclusões tornam-se devidas.
A configuração do processo dos crimes dolosos contra a vida e do tribunal do júri, certamente os aproximam muito da teoria discursiva do direito, quiçá sejam os institutos jurídicos que mais lhe tocam.
O rito escalonado em duas fases abre a possibilidade de conhecimento abrangente da situação ou caso concreto e de melhor análise na escolha da norma a ser aplicada, sendo tal possibilidade perseguida em diversas oportunidades. Ademais, o tribunal do júri é um foro de debate ampliado, levando-se a discussão para o ambiente social, ali encarnado nos jurados, leigos que vivenciam o dia a dia da comunidade e muitas vezes, quando não composto por advogados, sequer conhecem o linguajar técnico do direito. Não estão contaminados, assim, pela mera formalidade ou pelo positivismo que ainda impera em nos tribunais, acrescentando legitimidade na decisão, pois é o povo quem está decidindo ou representantes dele, em um foro de discussão dilatado.
É certo que esse foro é ampliado ou dilatado até certa medida. Isso porque, encerrados os debates, não há mais um coletivo presente. O jurado decidirá sem motivação e de acordo com sua consciência – circunstância essa cristalina conforme exortação feita pelo juiz-presidente após a formação do conselho de sentença, o que acaba retomando o sujeito solipsista que Habermas tanto crítica, seja na sua interpretação do juiz Hércules de Dworkin, ou ao querer substituir a razão prática pela comunicativa, fundando seu agir comunicativo na intersubjetividade da linguagem. Conforme lembrado por Guilherme de Souza Nucci ao tecer críticas ao art. 478 do CPP:
olvida-se que a análise do quadro probatório é feita por um colegiado leigo, sob critérios pessoais e não divulgados, motivo pelo qual inúmeros outros fatores podem ser considerados sem que possuam supedâneo legal. Exemplo disso é a própria simpatia ou antipatia gerada pelo réu ou pela vítima, pelo acusador ou pelo defensor. 44
A mesma percepção tem Eugênio Pacelli de Oliveira ao tratar do momento em que o jurado isola-se para decidir:
E o Tribunal do Júri, no que tem, então, de democrático, tem também, ou melhor, ‘pode ter também’, de arbitrário.
E isso ocorre em razão da inexistência do dever de motivação dos julgados. A resposta à quesitação pelo Conselho não exige qualquer fundamentação acerca da opção permitindo que o jurado firme seu convencimento segundo lhe pareça comprovada ou revelada (aqui, no sentido metafísico) a verdade. E, convenhamos, esse é realmente um risco de grandes proporções. Preconceitos, idéias pré-concebidas e toda sorte de intolerância podem emergir no julgamento em Plenário, tudo a depender da eficiência retórica dos falantes (Ministério Público, assistente de acusação e defesa).45
Em outras palavras, há um perigo considerável de o melhor argumento vir à tona e ele não ser devidamente considerado. Não se pretende aqui, obstaculizar a entrada de argumentos como nos casos em que há uma interpretação construtiva, preservando-se o discurso aberto e franco a argumentos não jurídicos, como os de ordem moral e pragmática. No entanto, o gradiente democrático depende de decisão lastreada em um consenso, obtido pela força do melhor argumento, evitando-se a arbitrariedade, bem como questões de eficiência, estratégica, econômicas ou até mesmo que o medo levem o jurado a adotar qualquer opção. Assim, os argumentos devem vir à tona, serem debatidos e considerados, seja para serem rejeitados ou para serem acolhidos por parte dos jurados. Mesmo que eles decidam levando em conta somente o bom senso, a escolha deve ser fundamentada argumentativamente, explicitando-se o porque aquela escolha seria a melhor do ponto de vista do mesmo bom senso.
Além da discussão, debate ou diálogo ante os jurados, faz-se necessária ainda a exteriorização das razões da decisão, tão importante em um processo penal comunicacional, conforme defende Cláudia Aguiar Silva Britto:
Já foi reprisado em diferentes passagens que os personagens dentro do círculo comunicacional sejam instados a falar e, consequentemente, também devem ser ouvidos. Esse dado não reverbera de modo diferente quando se trata de assumir qualquer postura decisória. Isso porque a decisão judicial deve simbolizar o resultado de um processo racional de argumentos a partir de um mecanismo de compreensão sobre cada fato concreto. Por isso, é necessária a exteriorização das razões do julgador, de modo tal que os interlocutores também compreendam o mecanismo racional que levou o juiz a decidir desta ou daquela maneira.46
Assim, um passo talvez merece ser dado para aproximar ainda mais o processo dos crimes dolosos contra a vida da teoria discursiva, ganhando em legitimidade, qual seja, a institucionalização do debate reservado entre os jurados no momento da votação e a exposição dos motivos da decisão, exatamente como se assiste nos notórios tribunais dos júris do direito norte-americano, ressuscitando no momento mais crucial do processo aquele locus ampliado que ficou para trás. A incomunicabilidade do jurado neste momento tão importante não encontra vantagem alguma capaz de compensar o efeito deletério da perda da continuidade do debate público e democrático.
Encampando o procedimento discursivo em vários pontos, o júri e o processo dos crimes dolosos contra a vida realizam de forma mais direta o paradigma do Estado Democrático de Direito na seara jurisdicional, externando, vivamente, sua fundamentação democrática. O norte oferecido pelo paradigma discursivo somente vem a conferir legitimidade ao júri e aos processos dos crimes dolosos contra a vida e afastar a defenestrada visão de que o júri seria um instrumento político-capitalista ao punir, na prática, somente os menos favorecidos, tese açambarcada pelos que se dizem contrários a essa instituição e ao processo de fundo democrático.
Como se vê, a democracia é uma experiência abrangente, uma vivência. Assim, o processo dos crimes dolosos contra a vida e, em particular, o tribunal do júri, mesmo tendo dado importantes passos na direção certa, encontra ainda algum caminho pela frente para poder institucionalizar com plenitude o paradigma discursivo e engrandecer-se em legitimidade democrática.
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2 Oliveira, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 11 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 589.
3 Streck, Lênio Luiz; Morais, José Luiz Bolzan de. Comentário ao art. 1º. In: Canotilho, J. J. Gomes et. al. (Coord.). Comentário à constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 114.
4 Conforme lembrado por Georges Abboud, Henrique Garbellini Carnio e Rafael Tomaz de Oliveira, com a virada a linguagem deixa de ser mero objeto para ser fundamento. É nela que são produzidos o sentido e o significado. Daí a importância da linguagem para o conhecimento do fenômeno jurídico, ou seja, o direito que é produto humano pela mesma. (In: Introdução à teoria e à filosofia do direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 167).
5 Não se entenda, aqui, verdade como correspondência com o real. Conforme nos lembra Lênio Luiz Streck “a verdade deixa de ser conteudística para ser uma verdade como idealização necessária. É uma verdade argumentativa, atingida por consenso. Não há fundamentação válida de qualquer enunciado (norma) que não seja pela via argumentativa, insiste Habermas, mesmo recentemente em Verdade e justificação.” (In: Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 97).
6 Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, v. 1, p. 481.
7 Ibid, p. 483.
8 Direito e racionalidade comunicativa: a teoria discursiva do direito no pensamento de Jürgen Habermas. Curitiba: Juruá, 2007, p. 90, 95.
9 Os pensadores dessa escola, em sua primeira geração, voltaram-se para uma crítica da razão instrumental e tecnológica, a qual promovia a dominação não somente dos processos naturais, mas também dos sociais. A razão iluminista era vista como ligada a uma lógica dominadora. (Teoria crítica da sociedade. In: Abbagnano, Nicola. Dicionário de filosofia. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 1128). Defendia-se que à própria razão caberia fazer tal denúncia criticando toda a sociedade e conduzindo-a a um modelo sem exploração. No entanto, a proposta da primeira geração da escola de Frankfurt é meramente negativa, pois não apresenta uma alternativa à razão dominadora (Reali, Giovanni; Antisieri, Dário. História da filosofia: do romantismo até nossos dias. 7 ed. São Paulo: Paulus, 2005, v. 3, p. 849 e 856).
10 Habermas, Jürgen. Agir comunicativo e razão destranscendentalizada. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 67.
11 É importante frisar que o procedimento é um dos planos, pois, após analisar três aspectos da argumentação – processo, procedimento e produção de argumentos procedentes e convincentes, Habermas sustenta a impossibilidade de separação desses três planos. (In: Teoria do agir comunicativo: racionalidade da ação e racionalização social. Op. cit., p. 61-63).
12 Habermas, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2013, p. 125.
13 Britto, Cláudia Aguiar Silva. Processo penal comunicativo: comunicação processual à luz da filosofia de Jürgen Habermas. Curitiba: Juruá, 2014, p. 72.
14 Simioni, Rafael Lazzarotto. Op. cit., p. 57.
15 Habermas, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade.2 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, v. 1, p.159-160.
16 Günther, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral. 2 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 32.
17 Habermas, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade.2 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, v. 1, p. 192, 194, 195, 200, 202, 203.
18 Ibid. p. 270.
19 Op. cit. p. 186.
20 Habermas, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade.2 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, v. 1, p. 270-271.
21 Ibid. p. 285.
22 Ibid. p. 278.
23 Ibid. p. 283.
24 Ibid. p. 281.
25 Simioni, Rafael Lazzarotto. Op. cit., p. 204-205.
26 Badaró, Gustavo. Processo penal. Rio de Janeiro: Campus Elsevier, 2012, p. 509.
27 Ferrajoli, Luigi. Constitucionalismo principialista e constitucionalismo garantista. In: Ferrajoli, Luigi et. al. (Org.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 46-47.
28 Habermas, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2001, v. 2, p. 183.
29 Simioni, Rafael Lazzarotto. Op. cit., p. 213.
30 Os arts. 394 a 405 do CPP regulamentam a instrução criminal, determinando a aplicação subsidiária de tais normas aos demais procedimentos, como o relativo aos crimes dolosos contra a vida (CPP, art. 394, § 5º). De fato, notam-se pequenas diferenças entre essas normas e as que regulamentam a instrução na primeira fase dos crimes dolosos contra a vida, como a oitiva do Ministério Público sobre preliminares e documentos apresentados na defesa (CPP, art. 409).
31 Oliveira, Eugênio Pacelli de. Op. cit., p. 599.
32 Op. cit. p. 62-63.
33 Tucci, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 191.
34 Marques, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 3 ed. Campinas: Millenium Editora, 2009, v. III, p. 151 e ss.
35 Oliveira, Eugênio Pacelli de. Op. cit., p. p. 34.
36 Lopes Junior, Aury. Direito processual penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 221.
37 Tornaghi, Hélio de. Instituições de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1977, v. 2, p. 98-99.
38 Ibid. p. 99-100.
39 Mirabete, Julio Fabbrini; Fabbrini, Renato N. Manual de direito penal: parte geral. 29 ed. São Paulo: Atlas, 2013, v. 1, p. 162-163.
40 Marques, José Frederico. Tratado de direito penal. Campinas, SP: Millennium, 2002, p. 263.
41 Bonfim, Edilson Mougenot. Curso de processo penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 764.
42 Carnelutti, Francesco. As misérias do processo penal. Campinas: Russell, 2008, p. 44.
43 Fernandes, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 61. Ademais, saliente-se o contraditório e a ampla defesa compõe o círculo fundamental do processo penal para se chegar a uma decisão justa. Assim, os princípios do contraditório e da ampla defesa não devem ser confundidos, nessa relação dialética, porquanto a prática da defesa depende do contraditório, enquanto que o contraditório pressupõe a defesa (Grinover, Ada Pelegrini et al. As nulidades no processo penal. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 63)
44 Op. cit. p. 189.
45 Op. cit. p. 589.
46 Op. cit., p. 178.
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