Pedro Henrique Koval Varolo*
Lissandra Espinosa de Mello Aguirre**
Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil
pedrovarolo@gmail.comRESUMO
O presente artigo tem por escopo analisar o fenômeno intitulado como discurso de ódio desenvolvido por meio da rede mundial de computadores. É um fato recorrente principalmente nas redes sócias, e por isso demanda uma análise mais acurada por parte dos operadores do direito. A pesquisa se subdividiu em três pontos: direitos fundamentais e suas características; a previsão legal do direito à liberdade de expressão e o princípio da dignidade da pessoa humana; o discurso de ódio, suas características e o seu tratamento jurisprudencial e doutrinário. Para tanto, em um primeiro momento, o artigo aborda o conceito de direitos fundamentais, suas principais características e limites. Em seguida, trata especificamente sobre o tema liberdade de expressão, discorrendo acerca de seu tratamento pelo ordenamento jurídico, bem como algumas questões jurisprudenciais atinentes ao tema. Noutro ponto, cuida-se do discurso de ódio, em específico. Objetiva-se, neste ponto, conceituar o fenômeno, verificando o tratamento dado pela doutrina, além da jurisprudência aplicada ao caso. Por fim, foi delineada a colisão de direitos fundamentais no discurso de ódio e a maneira de solucionar tal empasse.
Palavras-chave: direitos fundamentais; liberdade de expressão; dignidade da pessoa humana; discriminação; ponderação.
ABSTRACT
The present article has for scope analyze the phenomenon titled as hate speech developed through the worldwide computer network. This fact has been recurrent mostly in partners networks, and therefore demand a more accurate analysis by the law operators. The research was subdivided into three points: fundamental rights and their characteristics; the legal prevision of the right to freedom of speech and the principle of dignity of the individual; hate speech, its characteristics and its jurisprudential and doctrinaire treatment. Therefore, in a first moment, the research approaches the concept of fundamental rights, its main characteristics and limits. Then specifically addresses the theme of freedom of speech, talking about his treatment by the legal system, as well as some jurisprudential issues related to the topic. At another point, takes care of hate speech, in particular. Objective is, at this point, conceptualize the phenomenon, checking the treatment of the doctrine, as well as case law applied to the case. Finally it was delineated the collision of fundamental rights in the hate speech and the way of solution.
Keywords: fundamental rights; freedom of expression; dignity of human person; discrimination; weighting.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Pedro Henrique Koval Varolo y Lissandra Espinosa de Mello Aguirre (2016): “A liberdade de expressão e o discurso de ódio na internet”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (octubre-diciembre 2016). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/04/internet.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/CCCSS-2016-04-internet
INTRODUÇÃO
Com a notável evolução dos meios de comunicação, caminhando do telégrafo à internet, observou-se o nascimento de toda uma gama de direitos e obrigações, e consequentemente, novas lides. Esses fatos ensejaram um aprofundamento jurídico sobre determinadas questões, dentre elas, a limitação de determinados direitos fundamentais, e no presente caso, mais especificamente a liberdade de expressão.
A preocupação com direitos no âmbito da internet já foi objeto de diversos debates, tanto de desencadeou a promulgação da Lei Federal 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), com o fim de trazer uma segurança jurídica às relações virtuais desenvolvidas pelos indivíduos.
Nesse cenário, o presente trabalho se volta a uma questão polêmica e cada vez mais comum no cotidiano das pessoas. Trata-se do chamado discurso de ódio (hate speech), presente no ambiente virtual.
Em setembro de 2009, o Tribunal de Justiça julgou apelação interposta pelo Ministério Público, em face de sentença que absolveu o réu Marcelo Valle Silveira Mello, acusado da prática de crime de racismo. No caso, o réu se utilizou da rede social ORKUT, onde se manifestou contra a política de cotas adotada, com as seguintes palavras:
Infelizmente em universidade pública não dá camarada, pra branco passar precisa tirar 200, e pros macacos passar é só tirar - [menos] 200 [...] esses pretos vão é estragar a universidade pública mais do que já estragam...não sabem nem escrever [...] (SILVA et al, 2011, p. 459).
Em outra ocasião,
Julho de 2011. O pastor Silas Malafaia utiliza um de seus programas veiculados na TV para criticar o uso de símbolos religiosos pelos integrantes da parada Gay de São Paulo. Em dado momento, defende que a igreja católica “tem que cair de pau em cima dos caras”. Pouco antes, afirmara não se importar com críticas do movimento gay: “podem falar o que quiserem. Mas eu lhes pergunto: quem são os doentes? Quem são os verdadeiros doentes, minha gente? (CINTRA, Reinaldo Silva, 2012, p.5)
Constituindo-se de manifestações emanadas no sentido de discriminar determinada classe ou grupo de pessoas, o discurso de ódio contra grupos minoritários merece uma atenção por parte dos aplicadores do direito.
A questão enfoque aqui, conforme será demonstrada no decorrer do trabalho remete a colisão de normas de direitos fundamentais, no caso, a liberdade de expressão do indivíduo em contraponto à dignidade de todo um grupo de pessoas.
Nesse sentido, o que se busca num primeiro momento é tecer considerações sobre os direitos envolvidos no embate, e por fim explicar o fenômeno do discurso de ódio demonstrando como a doutrina e os tribunais superiores vêm tratando do tema.
1 A LIBERDADE DE EXPRESSÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL
A noção de direitos fundamentais relaciona-se com a ideia de democracia ocidental, na medida em que os governantes são escolhidos pelo povo, que exercem um poder sobre a nação, mas não de maneira absoluta, sofrendo diversas limitações, devendo respeito aos direitos e garantias individuais e coletivas positivadas constitucionalmente. Garantias essas que devem ser observadas tanto pelo Estado quanto pela população (MORAES, 2015, p. 28).
O objetivo desses direitos reside em criar e manter pressupostos elementares fundamentados na vida e dignidade humana (BONAVIDES, 2009, p. 560).
1.1 Considerações acerca dos direitos fundamentais
De acordo com Sarlet e Marinoni (2016) os direitos fundamentais devem ser analisados sob duas perspectivas, sejam elas, formal e material. Para ser um direito fundamental na concepção formal, o próprio texto constitucional positivo estabelece um regime jurídico especial e qualifica determinados direitos como fundamentais, os reservando um tratamento específico.
No campo material, exige-se uma análise do próprio conteúdo do direito. Consequentemente, cabe verificar se as posições jurídicas guardam relação com decisões fundamentais sobre a estrutura do Estado e da Sociedade ligadas à pessoa humana, ou seja, limitações, garantias ou até mesmo prestações positivas (SARLET, MARINONI, 2016, p. 320).
A Constituição Federal de 1988 trouxe um rol de direitos fundamentais, estabelecendo, inclusive, um regime próprio para esses institutos. Esses se encontram em seu título II, subdivididos em cinco espécies: direitos individuais e coletivos; direitos sociais; nacionalidade; direitos políticos e partidos políticos.
Os direitos presentes neste título constituem conquistas históricas do homem face ao Estado, vez afastando suas ameaças, vez o obrigando a atuar em favor dos cidadãos (CASTILHO, 2015, p. 202).
Historicamente, o reconhecimento desses direitos se deu em conjuntos, apresentando conteúdos, titulares e eficácias distintas. O surgimento desses grupos ocorreu de forma relativamente progressiva, marcado em cada época pelo contexto histórico correspondente. Daí surge a ideia de fases, ou gerações de direitos fundamentais (CASTILHO, 2015, p. 202).
A ideia de gerações de direitos fundamentais está relacionada com o lema revolucionário francês do século XVIII, qual seja, liberdade, igualdade e fraternidade, inclusive quanto a sequência histórica de institucionalização. Embora sucessivos, o processo de implantação nas diversos textos constitucionais se deu de forma cumulativa e qualitativa (BONAVIDES, 2009, p. 563).
De acordo com Castilho “Nos últimos anos, entretanto, parte considerável da doutrina passou a criticar o termo “geração” para designar as diferentes etapas das conquistas acima referidas” (CASTILHO, 2015, p. 203).
Infere-se da doutrina de Fachin que a interpretação e concretização dos direitos fundamentais podem se dar de forma errônea a depender da terminologia adotada. A utilização do termo gerações pode levar à ideia da existência de sucessão entre as diversas gerações de direitos fundamentais, de forma que a primeira desapareceria com o advento da segunda que, por sua vez, se extinguiria com o surgimento da terceira e assim gradativamente. Todavia, não é assim que se sucede. O surgimento de novos direitos não tem a capacidade de substituir aqueles já existentes. Não há morte em se tratando de direitos, pelo que não se aplica a norma do direito das sucessões, em que há sucessão de direitos e deveres entre pessoas. Não é possível estabelecer similitude entre a conjuntura das pessoas e dos direitos (FACHIN, 2015, cap. XVIII, item 4, s/p).
Embora utilizem o termo gerações de direitos fundamentais, de acordo com Mendes e Branco “os direitos de cada geração persistem válidos juntamente com os direitos da nova geração, ainda que o significado de cada um sofra o influxo das concepções jurídicas e sociais prevalentes nos novos momentos” (MENDES, BRANCO, 2016, p. 136).
Nas palavras de Fachin, “É mais apropriado, então, falar-se em dimensões de direitos fundamentais. Os direitos fundamentais de uma dimensão, porque representam acréscimo aos direitos das dimensões precedentes, com estes interagem, e todos coexistem harmoniosamente” (FACHIN, 2015, cap. XVIII, item 4).
Os direitos fundamentais não podem ser analisados de forma isolada. Todos eles constituem um sistema único, que tem por escopo a proteção da dignidade da pessoa humana. Por isso a doutrina tem dado preferência, nos últimos anos, aos termos fases e dimensões (CASTILHO, 2015, p. 203).
Adentrando as características de cada dimensão, a primeira delas abarca os direitos contidos nas revoluções americana e francesa. Conhecidos como de primeira dimensão por serem os primeiros a ser positivados. Tencionava-se, em especial, assegurar uma esfera de autonomia pessoal resistente as expansões do poder. Por isso que esses direitos se constituírem em postulados de abstenção dos governantes, acarretando em obrigações de não fazer, de não intervir sobre aspectos da vida privada de cada um. Tidos como indispensáveis a todas as pessoas, trajando, então, pretensão universalista. Relacionam-se a liberdades individuais como de reunião, consciência e inviolabilidade de domicílio (MENDES, BRANCO, 2016, p. 135).
Os direitos de terceira dimensão estão associados ao vocábulo fraternidade, por serem associados aos conhecidos direitos de solidariedade (CASTILHO, 2015, p. 203). Diferenciam-se pela titularidade difusa ou coletiva, na medida em que nascem para a tutela de coletividades, grupos, e não do homem isoladamente. Destaca-se o direito ao desenvolvimento, à qualidade do meio ambiente, à paz e a conservação do patrimônio histórico e cultural (MENDES, BRANCO, 2016, 135).
A eficácia e aplicabilidade desses direitos dependem muito de seu enunciado, de modo que há diversos direitos sociais que, para o seu gozo ensejam a regulamentação por norma infraconstitucional. Os direitos democráticos e individuais, em regra, possuem aplicabilidade imediata (art. 5º, §1º, da CF/1988), porém esse simples enunciado não bastaria se outros mecanismos não fossem previstos para que a tornasse eficiente, no caso os remédios constitucionais (MORAES, 2015).
Quanto aos destinatários, os direitos fundamentais são, em regra, destinados a todos os seres humanos. O art. 5º da Constituição Federal, dispositivo na qual está previsto o rol de direitos fundamentais, em seu caput diz o seguinte: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes [...]”.
O termo “estrangeiros residentes no país” deve ser interpretado no sentido de que sua aplicação apenas pode ser garantida em território nacional, sendo de tais modos extensíveis a qualquer estrangeiro que esteja no território nacional, podendo, inclusive se valer dos remédios constitucionais como o habeas corpus e o mandado de segurança.
Embora, a rigor os direitos fundamentais sejam extensíveis aos estrangeiros, há exceções. Consoante explicam Mendes e Branco (2016, p. 171),
Há direitos que se asseguram a todos, independentemente da nacionalidade do indivíduo, porquanto são consideradas emanações necessárias do principio da dignidade da pessoa humana. Alguns direitos, porém, são dirigidos ao indivíduo enquanto cidadão, tendo em conta a situação peculiar que o liga ao País. Assim, os direitos políticos pressupõem exatamente a nacionalidade brasileira. Direitos sociais, como o direito ao trabalho, tendem a ser também compreendidos como não inclusivos dos estrangeiros sem residência no País.
Como exceção, há direitos fundamentais que por sua própria natureza não podem ser extensíveis aos estrangeiros. É o caso, por exemplo, dos direitos políticos. No caso, a Constituição veda expressamente que os estrangeiros se alistem como eleitores, consoante se verifica de seu artigo 14, §2º: “Não podem alistar-se como eleitores os estrangeiros e, durante o período do serviço militar obrigatório, os conscritos”.
No que toca especificamente à liberdade de expressão, constituem-se em emanações do princípio da dignidade da pessoa humana, considerados direitos individuais, e nessa linha, extensíveis aos estrangeiros. Em seu voto proferido no Habeas Corpus 94.477/PR, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Ferreira Mendes explica:
O STF entendeu que seria uma violência não reconhecer o direito de propriedade do estrangeiro no Brasil, independentemente da sua residência, e que não faria sentido recusar-lhe legitimidade ao mandado de segurança, interpretando a cláusula do caput do rol dos direitos fundamentais como a denotar que os direitos individuais são garantidos em concreto dentro dos limites da soberania territorial do País (STF, Habeas-corpus n.º 94.477, 2011).
Em regra, os direitos e garantias fundamentais são destinados a todas as pessoas, independente de sua nacionalidade, exceto aqueles que ensejam o status de cidadão para sua fruição, em especial, os direitos políticos.
1.2 Do direito à liberdade de expressão
A liberdade de expressão é um direito fundamental formal previsto expressamente na Constituição Federal, em diversos de seus dispositivos. Por isso, goza de um regime especial, conforme explicado em tópico anterior.
O termo liberdade de expressão, entendido em sentido amplo, abrangendo as liberdades de pensamento, comunicação, imprensa e religião, remonta à Carta Imperial de 1824, embora sua concretização tenha ganhado força com a Constituição Federal de 1988. É o que ensina Sarlet, Marinoni, e Mitidiero (2016, p. 264), que assim explicam:
Embora se possa afirmar que foi apenas sob a égide da atual Constituição Federal que as liberdades de expressão encontraram o ambiente propício para a sua efetivação, é preciso registrar que tais liberdades se fazem presentes na trajetória constitucional brasileira desde a Carta Imperial de 1824. Com efeito, de acordo com o art. 179, IV, daquela Constituição, “todos podem comunicar os seus pensamentos, por palavras, escritos, e publica-los pela Imprensa, sem dependência de censura; com tanto que hajam de responder pelos abusos, que cometerem no exercício deste Direito, nos casos, e pela forma, que a Lei determinar”. Na Constituição de 1891, art. 72, § 12, constava que “em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento pela imprensa ou pela tribuna, sem dependência de censura, respondendo cada um pelos abusos que cometer nos casos e pela forma que a lei determinar. Não é permitido o anonimato”. O texto da Constituição de 1934, todavia, foi mais detalhado, como se percebe da redação do art. 113, n. 9: Em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento, sem dependência de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e pela forma que a lei determinar. Não é permitido o anonimato. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros e periódicos independe de licença do Poder Público. Não será́, porém, tolerada propaganda de guerra ou de processos violentos para subverter a ordem política ou social.
É possível perceber que a liberdade de expressão vem sendo tutelada pelo direito brasileiro há um extenso período, ganhando força com a Constituição de 1988, em especial, pelo seu aspecto democrático.
Especificamente na Constituição Federal de 1988, a liberdade de expressão tem previsão em diversos dispositivos ao longo de seu texto. Porém, é no art. 5º, inciso IV a sua previsão inicial, determinando ser “livre a manifestação do pensamento, vedado o anonimato”.
De acordo com Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2016, p. 264), esse dispositivo “faz às vezes, no caso brasileiro, de uma espécie de cláusula geral, foi complementado e guarda relação direta com uma série de outros dispositivos da Constituição [...]”.
No entanto, a tutela da liberdade de expressão se estende a vários outros dispositivos constitucionais, elencando de forma específica as liberdades de comunicação, imprensa, religião, ensino, entre outros.
Para André Ramos Tavares (2016, p. 483), a delimitação do conteúdo da liberdade de expressão enseja analisar as suas várias dimensões. Para tanto, necessário seria analisar o direito em suas dimensões substancial, instrumental, coletiva e individual.
A dimensão substantiva faz referência à própria atividade de pensar, resguardando o direito de criar as próprias convicções, ao passo que a dimensão substancial se relaciona com a proteção de se utilizar qualquer meio possível para a exteriorização do pensamento. Já as dimensões individual e coletiva tem ligação com o aspecto subjetivo do direito. A dimensão individual garante ao ser se formar sem ser obrigado a seguir um prévio modelo, enquanto a dimensão coletiva tutela o interesse do indivíduo de se informar para formar a sua própria personalidade (TAVARES, 2016, p. 483).
O Supremo Tribunal Federal atestou a importância do direito à liberdade de expressão, reconhecendo suas dimensões individual e coletiva, dando interpretação conforme a constituição ao art. 287 do Código Penal, excluindo a possibilidade de criminalização da defesa à legalização das drogas (STF, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 153/DF, 2010).
Quanto a sua finalidade, o principal objetivo da liberdade de expressão é a formação da autonomia individual. Esta finalidade é a própria razão de existir do direito ora estudado, o que não obsta a existência de outras finalidades decorrentes desta, como a procura da verdade, a garantia de um mercado livre das ideias, a participação no processo de autodeterminação democrática, a proteção da diversidade de opiniões, a estabilidade social e a transformação pacífica da sociedade e a expressão da personalidade individual o livre desenvolvimento da personalidade do indivíduo e a garantia da democracia e pluralismo político (TAVARES, 2016, p. 485).
Nas palavras de Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2016, p.492),
Assim como a liberdade de expressão e manifestação do pensamento encontra um dos seus principais fundamentos (e objetivos) na dignidade da pessoa humana, naquilo que diz respeito à autonomia e ao livre desenvolvimento da personalidade do indivíduo, ela também guarda relação, numa dimensão social e política, com as condições e a garantia da democracia e do pluralismo político, assegurando uma espécie de livre mercado das ideias, assumindo, neste sentido, a qualidade de um direito político e revelando ter também uma dimensão nitidamente trans-individual, já́ que a liberdade de expressão e os seus respectivos limites operam essencialmente na esfera das relações de comunicação e da vida social.
Ao homem, portanto, busca-se garantir não só a possibilidade de desenvolver seu pensamento, como expor a terceiros as suas ideias através de todos os instrumentos possíveis, respeitados alguns limites. A sua finalidade, portanto, reside no próprio homem e seu desenvolvimento pessoal.
Malgrado seu status fundamental, nenhum direito é absoluto, de modo que a liberdade de expressão deve respeitar algumas balizas em sua fruição. Archibald Cox, citado por Tavares (2016, p. 486) discorre que “a liberdade de expressão, apesar da sua fun-damentalidade não pode nunca ser absoluta”.
Nas palavras de Mendes e Branco (2016, p. 271),
Dessa forma, admite a interferência legislativa para proibir o anonimato, para impor o direito de resposta e a indenização por danos morais e patrimoniais e à imagem, para preservar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, e para que se assegure a todos o direito de acesso à informação. Prevê̂, também, a restrição legal à publicidade de bebidas alcoólicas, tabaco, medicamentos e terapias (art. 220, § 4o). Impõe, ainda, para a produção e a programação das emissoras de rádio e de televisão, o “respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”, confiando à lei federal a tarefa de estabelecer meios para a defesa desses valores (art. 220, § 3o, II).
Há importantes limitações, portanto, no próprio texto constitucional, resguardando outros direitos significativos, como os direitos da personalidade, em especial a privacidade, além de outras garantias ligadas à dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, ensina Tavares (2016, p. 488):
Em outro giro, se a liberdade de expressão encontra-se tutelada para, dentre outras finalidades, assegurar a formação da personalidade individual (ainda que não seja, evidentemente, responsável pela totalidade dessa formação), seria insuportável que seu exercício engendrasse justamente o desrespeito a direitos da personalidade e, ademais, provocasse com isso aquela formação por meio das divulgações viciadas, gerando uma mensagem implícita de que os direitos podem sempre ser violados.
O que se demonstra aqui é que pela sua própria natureza o direito à liberdade de expressão encontra limite nos direitos da personalidade, de modo de que o desrespeito de um pelo outro tem por consequência sobrepujar uma das finalidades da própria liberdade de expressão, que é justamente garantir a formação da personalidade do indivíduo.
1.3 A dignidade da pessoa humana como limite
O termo dignidade da pessoa humana no direito brasileiro remonta à Constituição Federal de 1934, onde já se encontrava positivada (art. 115) no título referente à ordem econômica e social. Com a Segunda Guerra Mundial e as atrocidades dela decorrentes, esta passou a fazer parte dos diversos textos constitucionais dos Estados, inclusive a nossa Constituição Federal de 1988, onde figura de forma expressa como fundamento da república (art. 1º, inciso III, da CRFB/1988).
Diante da íntima relação dignidade da pessoa humana/direitos fundamentais, pode ser considerada uma das bases na qual se assenta o direito constitucional.
O fato de o constituinte ter inserido o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado democrático de direito “reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade Estatal” (SARLET, MARINONI, MITIDIERO, 2016, p. 259).
De acordo com Moura e Firmeza (2015),
Os princípios jurídicos são chamados, por alguns, de “espírito da ordem jurídica”, por serem componentes do direito e também por procurarem fundamentar todo o sistema jurídico, aptos, inclusive, a conferir uma boa carga de certificação às decisões jurídicas, e quanto maior a sua utilização, maior a legitimidade de tais decisões.
Apesar da dignidade da pessoa humana constar do texto constitucional como fundamento da república, o seu status jurídico normativo pode assumir a função de princípio e/ou regra, além de operar como direito fundamental. Não há clareza se a dignidade assume a condição de princípio ou regra ou mesmo se opera apenas como princípio de caráter objetivo ou se assume a função de direito fundamental. Entretanto, a sua localização no texto I dos princípios fundamentais leva a crer que o constituinte a elevou ao status de princípio fundamental, não a incluindo no rol de direitos fundamentais (SARLET, MARINONI, MITIDIERO, 2016).
De acordo com Rizzatto Nunes (2010, p. 59),
É ela, a dignidade, o primeiro fundamento de todo o sistema constitucional posto e o último arcabouço da guarida dos direitos individuais. A isonomia serve, é verdade, para gerar equilíbrio real, porém visando concretizar o direito à dignidade. É a dignidade que dá a direção, o comando a ser considerado primeiramente pelo intérprete.
Nesta lição, a dignidade humana é um princípio cuja observância é obrigatória na aplicação do direito.
Para Moura e Firmeza (2015, s/p),
Por ser atributo inerente do ser humano, de forma inalienável e irrenunciável, a dignidade da pessoa humana implica em uma gama de direitos e deveres fundamentais que asseguram e garantem proteção à pessoa contra qualquer tipo de ato desumano ou degradante, tutelando condições mínimas existenciais para uma vida digna e saudável, e que deve ser levado em consideração diuturnamente, seja para a compreensão, interpretação e aplicação legal, doutrinária e jurisprudencial, em especial no tocante aos direitos fundamentais e aos direitos da personalidade.
Em apertada síntese, é possível concluir pelas lições dos doutrinadores que a dignidade da pessoa humana pode apresentar diversas funções dentro do ordenamento jurídico, seja norma, princípio ou fundamento. Os demais direitos têm por fim efetivar a dignidade humana, servindo esta, deste modo, como princípio a ser utilizado em eventual conflito de normas.
Não menos importante, consoante ensinam Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2016, p. 264) a dignidade da pessoa humana tem por função servir como o limite dos limites. Em suas palavras,
[...] opera simultaneamente como limite e limite dos limites na seara dos direitos fundamentais, o que, em apertada síntese, significa que (na condição de limite) com fundamento na dignidade da pessoa humana, ou seja, em virtude da necessidade de sua proteção, não só́ é possível como poderá́ ser necessário impor restrições a outros direitos fundamentais, como ocorreu, em caráter ilustrativo, no caso da interrupção da gravidez em casos de anencefalia fetal, quando o STF privilegiou a dignidade (e autonomia) dos pais em detrimento da salvaguarda, ainda que por pouco tempo, da vida do feto.
Essa importante atribuição induz a que um direito fundamental não possa ser invocado para tutelar uma situação fática que coloque em risco a dignidade de um ser humano. De igual forma, em eventual conflito entre direitos fundamentais, deve se levar em conta como critério de decisão, uma posição favorável àquele que efetive a proteção à dignidade do ser humano.
2 O TRATAMENTO LEGAL DO DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA INTERNET
O direito à liberdade de expressão tem disposição expressa no artigo 19 da Declaração Universal de Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948:
Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras (ONU, Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948, art. XIX) .
Na ordem constitucional, vem previsto de forma genérica em seu artigo 5º, inciso IV: é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. No entanto, há diversas outras disposições no texto constitucional tratando de forma mais específica deste direito (BRASIL, Constituição Federal, 1988). De outra parte o inciso V do mesmo dispositivo dispõe que “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem” (BRASIL, Constituição Federal, 1988). O que se observa é que de um lado o texto constitucional garante o direito ao indivíduo se expressar livremente, entretanto não o exime da responsabilidade por eventuais excessos que prejudiquem terceiros.
Na esfera infraconstitucional, a utilização da internet no Brasil foi regulamentada pela Lei Federal n.º 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), que, conforme dispõe a sua ementa: estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil (BRASIL, Lei 12.965, 2014).
Na esfera criminal, embora não se refira de maneira específica à internet, a Lei n.º 7.716/1989 cuida de tipificar as condutas resultantes de discriminação, consoante se observa de seu artigo que assim estabelece: “serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” (BRASIL, Lei 7.716, 1989).
2.1 O Marco Civil da Internet
A Lei n.º 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) regulamenta a utilização da internet no Brasil, tanto aos usuários, provedores, como também por parte do poder público. É o que se observa em seu artigo 1º, que assim dispõe: “esta Lei estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil e determina as diretrizes para atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em relação à matéria”.
Em seu primeiro capítulo, a lei trata dos princípios, objetivos e garantias no uso da internet no Brasil. Nas palavras de Jesus e Milagre (2014, p.15),
Importante mencionar que no Brasil não existia lei específica que tratasse dos deveres dos provedores de acesso, aplicações e dos direitos dos usuários. Questões submetidas ao Judiciário comumente apresentavam decisões contraditórias e eram julgadas com base na aplicação do Código Civil Brasileiro, Código de Defesa do Consumidor e outras legislações existentes.
Para Viana (2014, p. 134), “[...] a Lei n.º 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) sem duvida veio a por um Fim no clima de anomia que imperava na utilização da rede no país, trazendo delimitações ao condicionar e regular esse campo da vida social”.
Nas palavras de Leite (2014, p. 244),
[...] é importante ter em mente que o Marco Civil foi elaborado num contexto de desregulamentação da internet ou, pelo menos, de uma grande confusão normativa responsável por uma insegurança jurídica. Daí que ele buscou unificar os elementos constitucionais que devem orientar a regulação da internet no país em nível infraconstitucional, inclusive a elaboração de outros diplomas normativos que ainda serão criados.
No artigo 2º, a Lei cuida dos fundamentos da utilização da internet no país, com a seguinte redação:
Art. 2o A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como: I - o reconhecimento da escala mundial da rede; II - os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; III - a pluralidade e a diversidade; IV - a abertura e a colaboração; V - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e VI - a finalidade social da rede (BRASIL, Lei 12.965, 2014).
O texto privilegiou a liberdade de expressão como fundamento principal, considerando tudo que atente a este direito uma violação ao Marco Civil. Ademais, impede a remoção de conteúdos da internet com base em mero dissabor, salvaguarda inexistente no direito brasileiro até então, de modo que antes do Marco Civil era comum a remoção de conteúdos extrajudicialmente por provedores diante de denúncias online, por insegurança em mantê-los (JESUS, MILAGRE, 2014, p. 22).
Ainda sobre os fundamentos, Jesus e Milagre (2014, p. 20) destacam que “a rede não deve ser vista apenas e tão somente como um comércio, mercado ou oportunidade de lucro, mas como um direito e garantia fundamental, um elemento para transformação da sociedade”.
Adiante, no artigo 3º da lei 12.965, o legislador tratou de inserir os princípios nortes relacionado à internet:
Art. 3º A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios: I - garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal; II - proteção da privacidade; III - proteção dos dados pessoais, na forma da lei; IV - preservação e garantia da neutralidade de rede; V - preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas; VI - responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei; VII - preservação da natureza participativa da rede; VIII - liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei (Brasil, Lei 12.965, 2014).
Embora a liberdade de expressão figure como um fundamento no uso da internet, opera igualmente como princípio, como pode se observar da redação da lei. De outra parte, se constitui em princípio a privacidade do usuário, em sentido amplo, bem como a proteção de seus dados pessoais prevista no inciso III. De acordo com Jesus e Milagre, Até hoje, não se dispunha de uma legislação que protegesse o cidadão em face da violação de sua privacidade ou dados pessoais (JESUS, MLAGRE, 2014, p. 22).
Em síntese, observa-se que o Marco Civil trouxe para a esfera infraconstitucional princípios constitucionalmente estabelecidos, em especial a liberdade de expressão e a privacidade do usuário. Tratou, ainda, de elencar dispositivos específicos a respeito da responsabilidade por eventuais violações a direitos fundamentais. Logo, contribuiu substancialmente para a segurança jurídica nas relações desenvolvidas por meio da internet.
Tomando por expressão chave o termo “liberdade de expressão”, é possível encontrar cinco resultados na Lei n.º 12.965/2014, que, por sua vez, serão apresentados a seguir.
A primeira previsão se encontra no artigo 2º, caput, onde estabelece que “a disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão [...] (BRASIL, Lei 12.965, 2014). De acordo com a interpretação de Jesus e Milagre (2014, p. 19) sobre esse dispositivo, “tudo que atente a tal direito será uma violação ao Marco Civil Brasileiro”. A liberdade de expressão prevalecerá sempre, desde que não viole direitos de terceiros”.
O artigo. 3º, por seu turno, estabelece os princípios que regem o uso da internet no Brasil. Em seu inciso I elenca expressamente a liberdade de expressão como um desses princípios: “I - garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal”. Esse dispositivo traz o que deve ser estritamente observado na utilização da internet, e deixa claro que a liberdade de expressão, além de constituir um fundamento, também opera como princípio previsto no Marco Civil (JESUS, MILAGRE, 2014, p. 21).
De acordo com Viana,
Deve ser observado, por fim, que essa liberdade de expressão, ao ser arrolado como principio do uso da internet no Brasil (inciso I do art. 3º da Lei nº 12.965/214), se fundamenta de modo integrativo-sistemático com o principio da cidadania (inciso I do art. I o da CF) em seu aspecto inclusivo, visto que o art. 4o do Marco Civil da Internet em seu inciso I estabelece o objetivo “do direito de acesso a internet a todos”. Essa disposição legal clara e explicita nos leva a concluir este tópico afirmando que a internet como espaço democrático trouxe como inovação normativa, juntamente com os elementos constitucionais acima analisados, o fundamento da cidadania inclusiva na internet, como uma das facetas da liberdade de expressão, o que cria uma demanda de adoção de politicas publicas de inclusão digital (VIANA, 2014, p. 131).
Conforme se infere da colocação feita pelou autor supracitado, a normatização da liberdade de expressão no Marco Civil da Internet é relevante para o direito, ao passo que contribui, aliada a outros valores expressos nesta lei e na própria Constituição Federal, para a adoção de políticas públicas de inclusão digital.
A terceira previsão é no artigo 8º, caput e parágrafo único. Esse dispositivo estabelece o seguinte:
Art. 8º A garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet.
Parágrafo único. São nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que violem o disposto no caput [...] (BRASIL, Lei 12.965, 2014).
A lei, mais uma vez frisou a importância dos direitos à liberdade de expressão e privacidade dos usuários, trazendo de forma expressa o comando de serem nulas as cláusulas contratuais que afrontarem tais direitos.
Como demonstrado, a lei trouxe dispositivos específicos regulamentando um direito constitucionalmente previsto. As disposições, entretanto, são genéricas, cabendo uma análise de como tal direito tem sido aplicado pelos tribunais superiores (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça).
Em consulta ao sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal, utilizando por critério de pesquisa as seguintes palavras: “marco civil da internet” e “liberdade de expressão”, é possível encontrar apenas um resultado que trata deste tema. Trata-se do Recurso extraordinário n.º 660861/MG. No caso, o tribunal reconheceu repercussão geral da matéria admitindo o recebimento do recurso, entretanto até o presente momento não julgou o mérito da questão.
Esse recurso tem por objeto a análise constitucional da colisão entre a liberdade de expressão e informação em face da privacidade, intimidade, honra e a imagem nas relações desenvolvidas na internet, além da responsabilidade civil do provedor no caso de publicações ofensivas por terceiros em sites de relacionamento.
No Superior Tribunal de Justiça, utilizando do mesmo critério de pesquisa, chegou-se apenas a um resultado. Trata-se do Recurso Especial n.º 1.568.935-RJ, cujo relator foi o Senhor Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.
Nesse julgado, o tribunal fixou entendimento no sentido de que o provedor de acesso de internet não pode ser responsabilizado civilmente por conteúdos ofensivos postados por terceiro. No caso, foi dado provimento ao recurso especial interposto pelo provedor para afastar a sua condenação em danos morais e materiais, em razão de não atender solicitação administrativa para exclusão de conteúdo ofensivo inserido em rede social por terceiro.
A tese aplicada foi no sentido de que o provedor só poderia ser responsabilizado se, caso notificado judicialmente, não viesse a cumprir a decisão emanada pelo poder judiciário.
Em seu relatório, o Ministro articula que o provedor não pode promover a exclusão de conteúdos com base em notificações administrativas, sendo tarefa do poder judiciário analisar eventual ofensa a direito e, deste modo, determinar a exclusão do conteúdo. Nas palavras do Ministro,
Essa aparente ineficiência, contudo, não pode ensejar a punição do provedor e sua imediata responsabilização, pois, caso todas as denúncias fossem acolhidas, açodadamente, tão somente para que o provedor se esquivasse de ações como a presente, correr-se-ia o risco de um mal maior, o de censura, com violação da liberdade de expressão e pensamento (art. 220, § 2º, da Constituição Federal).
Não se pode exigir dos provedores que determinem o que é ou não apropriado para divulgação pública. Cabe ao Poder Judiciário, quando instigado, aferir se determinada manifestação deve ou não ser extirpada da rede mundial de computadores e, se for o caso, fixar a reparação civil cabível contra o real responsável pelo ato ilícito.
Ao provedor não compete avaliar eventuais ofensas, em virtude da inescapável subjetividade envolvida na análise de cada caso. Somente o descumprimento de uma ordem judicial, determinando a retirada específica do material ofensivo, pode ensejar a reparação civil. Para emitir ordem do gênero, o Judiciário avalia a ilicitude e a repercussão na vida do ofendido no caso concreto (STJ, Recurso Especial n.º 1.568.935-RJ, 2016).
Como se vê, a corte cuidou de resguardar o direito à liberdade de expressão, evitando eventual censura na rede, aplicando ao caso o artigo 19, §1º, do Marco Civil da Internet, no sentido de que apenas o poder judiciário pode determinar que o provedor proceda à exclusão de conteúdos postados por terceiros nas redes sociais.
2.2 A lei dos crimes discriminatórios
Na esfera criminal, os atos discriminatórios são tipificados como crime na Lei n.º 7.716 de 5 de janeiro de 1989. De acordo com sua ementa, a lei “define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor” (BRASIL, Lei 7.716, 1989).
Originalmente em seu artigo 1º a lei previa o seguinte: “art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor”. Entretanto, com a redação dada pela Lei n.º 9.459/1997, passou-se a prever expressamente a sua aplicação a crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Em seu artigo 20 a lei cuida da prática dos atos discriminatórios com a seguinte redação:
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97);
Pena: reclusão de um a três anos e multa.(Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97);
§ 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97);
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza: (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97);
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97);
§ 3º No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência: (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97);
I - o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo;(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
II - a cessação das respectivas transmissões radiofônicas ou televisivas.(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97);
II - a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas, eletrônicas ou da publicação por qualquer meio; (Redação dada pela Lei nº 12.735, de 2012)(Vigência);
III - a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores. (Incluído pela Lei nº 12.288, de 2010)(Vigência);
§ 4º Na hipótese do § 2º, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do material apreendido. (Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97).
Como se pode ver, a norma trata especificamente da prática, indução ou incitação a atos discriminatórios. Consoante será explicado em tópico próprio, o discurso de ódio consiste justamente em induzir ou incitar a prática de atos discriminatórios a grupos minoritários.
O parágrafo segundo do artigo supracitado ainda prevê um aumento de pena para o caso da prática do crime pelos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza. Tudo leva a crer que esse aumento de pena se deve à gravidade da conduta, tendo por escopo desestimular eventuais agentes a praticá-la.
Importante inovação é a trazida pelas Leis 12.735/2012 e 12.288/2010, que alteraram a redação dos incisos II e III do §3º, do artigo supracitado. Com a nova redação, pode o juiz determinar a cessação daquelas publicações ofensivas e discriminatórias, priorizando o bem estar da vítima do delito.
Em síntese, a lei cuidou criminalizar a prática do discurso de ódio. No entanto, não são todos os casos possíveis abarcados pela norma. Há diversos casos igualmente de discursos discriminatórios que não são abarcados pela norma, como o caso de eventuais discriminações dirigidas a homossexuais.
3 O DISCURSO DE ÓDIO NA INTERNET
Em setembro de 2009, o Tribunal de Justiça julgou apelação interposta pelo Ministério Público, em face de sentença que absolveu o réu Marcelo Valle Silveira Mello, acusado da prática de crime de racismo. No caso, o réu se utilizou da rede social ORKUT, onde se manifestou contra a política de cotas adotada, com as seguintes palavras:
Infelizmente em universidade pública não dá camarada, pra branco passar precisa tirar 200, e pros macacos passar é só tirar - [menos] 200 [...] esses pretos vão é estragar a universidade pública mais do que já estragam...não sabem nem escrever [...] (SILVA et al, 2011, p. 459).
Em outra ocasião,
Julho de 2011. O pastor Silas Malafaia utiliza um de seus programas veiculados na TV para criticar o uso de símbolos religiosos pelos integrantes da parada Gay de São Paulo. Em dado momento, defende que a igreja católica “tem que cair de pau em cima dos caras”. Pouco antes, afirmara não se importar com críticas do movimento gay: “podem falar o que quiserem. Mas eu lhes pergunto: quem são os doentes? Quem são os verdadeiros doentes, minha gente? (CINTRA, Reinaldo Silva, 2012, p.5).
Essas citações revelam na prática o que é o chamado discurso de ódio. Convém demonstrar o tratamento jurídico que é dado a este fenômeno.
3.1 Conceito
O discurso de ódio é uma das facetas do direito a liberdade de expressão, constituindo uma prática condenável no atual estado democrático de direito. De acordo com Silva et al (2011, p. 411),
O discurso de ódio compõe-se de dois elementos básicos: discriminação e externalidade. É uma manifestação segregacionista, baseada na dicotomia superior (emissor) e inferior (atingido) e, como manifestação que é, passa a existir quando é dada a conhecer por outrem que não o próprio autor. A fim de formar um conceito satisfatório, devem ser aprofundados esses dois aspectos, começando pela externalidade.
O discurso de ódio, nesta lição, apresenta elementos objetivos e subjetivos. O elemento subjetivo se constitui na necessidade do autor do discurso possuir um sentimento de ódio em relação a um determinado grupo, com viés discriminatório. O objetivo, por sua vez, constitui a externalidade do discurso por algum meio de comunicação. Quando presentes esses requisitos há a incidência do discurso de ódio.
Na lição de Hundertmarch e Gregori (2014), o "discurso de ódio consiste em uma manifestação externalizada que atinge a honra de uma coletividade, direcionada a determinado grupo que partilha de uma identidade comum".
Quanto à definição do vocábulo, nas palavras de Brugger (2007, p. 118),
[...] o discurso do ódio refere-se a palavras que tendem a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião, ou que têm a capacidade de instigar violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas.
Da exegese dessa lição, o discurso de ódio estaria restrito a um rol de possíveis discriminações como raça, cor, etnia, entre outros. No entanto, há críticas acerca dessa definição.
Para Silva et al (2011, p. 448),
O homem, dada sua contingência, é capaz de manifestar numerosas características, concretas ou abstratas, passíveis de reconhecimento, diferenciação e, malgrado seu, discriminação. Faz pouco sentido restringir essas características àquelas tidas como mais recorrentes ou mais graves, pois poder-se-ia cometer uma injustiça.
Nessa perspectiva, não faria sentido restringir as possíveis formas de discriminação àquelas mais graves, ensejando uma análise de cada caso no sentido de averiguar se presente a discriminação a determinado indivíduo ou grupo.
3.2 Os elementos do discurso
O discurso de ódio se subdivide em dois atos, quais sejam: o insulto e a instigação. De acordo com Silva et al (2011, p. 448),
O primeiro diz respeito diretamente à vítima, consistindo na agressão à dignidade de determinado grupo de pessoas por conta de um traço por elas partilhado. O segundo ato é voltado a possíveis “outros”, leitores da manifestação e não identificados como suas vítimas, os quais são chamados a participar desse discurso discriminatório, ampliar seu raio de abrangência, fomentá-lo não só com palavras, mas também com ações.
O discurso, então, pode ser no sentido de agredir diretamente á vítima, no caso, grupo de pessoas, ou, por outro lado, pode consistir em instigar outras pessoas a cometer o ato.
Em relação ao modo pela qual se dá a manifestação desse discurso, Hundertmarch e Gregori (2014) explicam o seguinte:
O discurso de ódio visa aumentar sua probabilidade de aceitação por conta do uso de argumentos emocionais e da ausência de contraposição direta e imediata a tais mensagens, considerando as duas facetas de instigar e de insultar, tem-se que o discurso além de expressar, almeja aumentar a discriminação.
É para parte emocional das pessoas que os agentes do discurso de ódio se voltam, almejando prejudicar um grupo específico, seja insultando diretamente ou instigando outras pessoas a fazê-lo.
Pode-se dizer, ainda, que o uso de técnicas persuasivas tem por escopo não apenas a aceitação do discurso, como também almeja intensificar a discriminação.
No que tange aos seus efeitos, o discurso de ódio acaba por provocar uma lesão à dignidade da pessoa humana.
Segundo Hundertmarch e Gregori apud Pflug (2014), “o discurso de ódio consiste em um dos aspectos polêmicos da liberdade de expressão. Consiste na manifestação de ideias que incitam discriminação racial, social ou religiosa em relação a determinados grupos, na maioria das vezes, as minorias”.
O Marco Civil, como explicado em item anterior, elenca em seu artigo 3º os princípios que pautam o uso da internet. Dentre esses princípios estão o direito à privacidade e a liberdade de expressão. Em princípio, interpretando esse dispositivo, não há qualquer hierarquia dentre eles.
Diante dessa situação de paridade, resta ao poder judiciário dirimir a questão quando provocado em casos concretos. A solução desses conflitos remete à teoria constitucional da ponderação, desenvolvida por Robert Alexy.
Como dito, o discurso de ódio constitui uma faceta do direito à liberdade de expressão. De outro lado se encontra o princípio da dignidade da pessoa humana, caracterizando, assim, um verdadeiro conflito de normas de direitos fundamentais.
Essa situação remonta à teoria de Robert Alexy que distingue as normas jurídicas em regras e princípios. De acordo com sua teoria, essa distinção é fundamental, uma vez que o conflito de regras e princípios se dá de forma distinta (ALEXY, 2008).
Para tanto, o autor conceitua princípios da seguinte maneira:
[...] princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas (ALEXY, 2008, p.90).
Por sua vez, traz a seguinte definição para o termo regras:
[...] são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então deve se fazer exatamente aquilo que ela exige, nem mais nem menos. Regras contém, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível (ALEXY, 2008, p. 91).
A importância dessa conceituação reside no eventual conflito de normas. Um conflito entre regras leva, consequentemente, à declaração de invalidade de uma delas. De outra parte, a colisão entre princípios não converge na declaração de invalidade de um deles. Quando há um conflito onde uma situação é autorizada por um princípio e proibida por outro, um deles terá que ceder, sem, no entanto, ser extirpado do ordenamento jurídico (ALEXY, 2008).
De acordo com Trevisan (2015, p.148),
As regras usuais da interpretação jurídica mostram-se insuficientes quando estão em jogo direitos fundamentais. Isso porque tais direitos são propensos a colidir. Como direitos fundamentais são, em geral, normas de caráter principiológico, as colisões entre eles podem ser resolvidas sem que um deles deixe de pertencer ao ordenamento jurídico.
Em síntese, a solução de um conflito de normas demanda uma análise quanto à natureza da mesma. Não há dúvidas que as normas em questão se constituem em princípios, pois não guardam a característica do “satisfazer ou não” como proposto por Alexy. Pelo contrário, são conceitos abertos, na medida em que orientam na aplicação dos demais direitos.
A solução do conflito entre elas, então, enseja a aplicação da ponderação analisando a proporcionalidade no caso (ALEXY, 2008).
De outra parte, há uma tendência no Supremo Tribunal Federal de se adotar a doutrina da posição preferencial ao direito à liberdade de expressão (VIANA, 2014).
Segundo Viana (2014),
Esta doutrina da preferred position reconhece que a free speech é de tamanha importância para as liberdades democráticas que a liberdade de expressão não pode ser virtualmente restringida pelo Governo para prestigiar outros valores. Aqui no texto, essa doutrina surge em conexão com a técnica da ponderação, o que indica que esta posição preferencial não pode ser levada a extremos como um a postura a priori em termos absolutos a favor da liberdade de expressão, mas sim que devem ser tomadas cautelas no sentido de ao máximo possível não produzir restrições que conduzam ao perigo da slippery slope
Essa doutrina de origem norte americana já foi usada como fundamento pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental n.º 130. Nesta ocasião o tribunal entendeu pela precedência da liberdade de imprensa em face de direitos ligados à honra e a imagem, sem, contudo, excluir eventual responsabilidade civil por excesso de gozo do direito a informar (STF, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 230, 2009).
Essa preferência, no entanto, não é absoluta. De acordo com Rothenburg et al (2015), o direito de expressão é “[...] suscetível de restrição em razão da concorrência negativa de outros direitos fundamentais e bens constitucionais, como ocorre quando há divulgação de discursos discriminatórios”.
No ano de 2003 o Supremo Tribunal Federal apreciou o Habeas corpus n.º 82.424-2/RS) um caso que, embora não se refira expressamente a uma situação de discurso de ódio externalizado por intermédio da internet, constitui-se em um importante indicativo da posição daquela corte sobre o tema.
Naquela oportunidade, o tribunal foi provocado a se manifestar em sede de habeas corpus cujo paciente foi acusado de crime de racismo (artigo 20 da Lei n.º 7.716/1989, com redação dada pela Lei n.º 8.081/1990) por ter sido autor de obras literárias com conteúdo antissemita, racista e discriminatório.
O paciente era Siegfried Ellwanger, escritor e sócio da empresa Revisão Editora Ltda., responsável pela divulgação dos conteúdos tidos por racistas, antissemitas e discriminatórios. No decorrer do processo, o acusado foi absolvido em primeiro grau e condenado em segundo. Em seguida, a defesa impetrou habeas corpus ao Superior Tribunal de Justiça, o qual foi denegado, recorrendo em seguida ao Supremo Tribunal Federal.
Três questões foram suscitadas nesse recurso, dentre elas a prescritibilidade do crime, o enquadramento dos judeus no conceito de raça, o conflito entre normas, no caso, o direito à liberdade de expressão e o princípio da dignidade da pessoa humana. O que importa ao presente trabalho é especificamente o embate das normas jurídicas, ponto que será explicitado.
Nesse ponto, a maioria dos Ministros entendeu que, embora não se olvide da importância do direito à liberdade de expressão para o sistema democrático, não lhe pode ser concedida uma amplitude absoluta. O Ministro Gilmar Mendes invocou a teoria da ponderação desenvolvida por Robert Alexy para a solução do conflito. Em parte de seu voto assim ponderou:
[...] Não se contesta, por certo, a proteção conferida pelo constituinte à liberdade de expressão. Não se pode negar, outrossim, o seu significado inexcedível para o sistema democrático. Todavia, é inegável que essa liberdade não alcança a intolerância racial e o estímulo à violência, tal como firmado no acordão condenatório. Há inúmeros outros bens jurídicos de base constitucional que estariam sacrificados na hipótese de se dar uma amplitude absoluta, intangível, à liberdade de expressão na espécie (STF, Habeas corpus 82.424, 2003).
De acordo com o Ministro Gilmar Mendes, na hipótese de conflito entre direitos fundamentais, caberia ao julgador analisar a questão à luz do princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade, proporcionalidade em sentido estrito) da restrição imposta ao agente. No caso, entendeu proporcional a supressão da liberdade de expressão do agente em prol da dignidade da pessoa humana, além de sua condenação criminal pela prática do crime de racismo.
O que se percebe pelo que foi exposto, é que a dignidade da pessoa humana constitui um limite até para o direito de liberdade de expressão, entendimento que vem sendo concretizados por decisões proferidas pelas mais altas cortes do país.
3.3 O reconhecimento do discurso
O Pacto Internacional sobre Direitos Civis trouxe relevante dispositivo versando sobre a questão. Em seu artigo 20 determina que: “1. Será proibida por lei qualquer propaganda em favor da guerra. 2. Será proibida por lei qualquer apologia do ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou a violência” (BRASIL, Decreto nº 592, 1992).
Em decorrência desse dispositivo, um grupo de oficiais da ONU e de outras organizações se reuniu em Londres nos dias 11 de dezembro de 2008 e 23-24 de fevereiro de 2009, e elaboraram os denominados princípios de Camden sobre a liberdade de expressão e igualdade (ARTIGO 19, Princípios de Camden sobre Liberdade de Expressão e Igualdade, 2009).
Retirando fundamento do artigo 20 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, bem como os princípios de Camden sobre a liberdade de expressão e igualdade, a Artigo 19 recomenda a adoção de alguns critérios para enquadrar um discurso como sendo do ódio, isso com o fim de orientar as cortes no trato do tema. As recomendações são as seguintes:
i. severidade: a ofensa deve ser “a mais severa e profunda forma de opróbrio”. ii. intenção: deve haver a intenção de incitar o ódio. iii. conteúdo o forma do discurso: devem ser consideradas a forma, estilo e natureza dos argumentos empregados. iv. extensão do discurso: o discurso deve ser dirigido ao público em geral ou a um número de indivíduos em um espaço público. v. probabilidade de ocorrência de dano: o crime de incitação não necessita que o dano ocorra de fato, entretanto é necessária a averiguação de algum nível de risco de que algum dano resulte de tal incitação. vi. iminência: o tempo entre o discurso e a ação (discriminação, hostilidade ou violência) não pode ser demasiado longo de forma que não seja razoável imputar ao emissor do discurso a responsabilidade pelo eventual resultado. v. contexto: o contexto em que é proferido o discurso é de suma importância para verificar se as declarações tem potencial de incitar ódio e gerar alguma ação (ARTIGO 19, Panorama sobre discurso de ódio no Brasil).
Essas recomendações existem justamente no sentido de fornecer elementos para o reconhecimento da existência do discurso de ódio, evitando restrições arbitrárias à liberdade de expressão.
Para Rothenburg et al (2015, p. 8),
[...] o estabelecimento de parâmetros para que haja restrições deve estar muito bem justificado, haja vista uma evidência histórica: as limitações à liberdade de expressão revelam-se muito mais nocivas para a humanidade do que aptas à criação de uma sociedade mais justa e solidária.
Diante da gravidade de atos preconceituosos e discriminatórios, contra a raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional das pessoas, foi promulgada, em 5 de janeiro de 1989 a Lei n.º 7.716/1989 (posteriormente alterada pelas Leis nº 12.735/2012 e 12.288/2010) criminalizando essas condutas. Essa lei trouxe importante instituto permitindo ao juiz, depois de ouvido o ministério público, que determine a cessação das transmissões radiofônicas, televisivas, eletrônicas ou da publicação por qualquer meio, bem como a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores (BRASIL, Lei 7.716, 1989).
De outra parte, o Marco Civil da Internet não traz qualquer disposição expressa que verse sobre manifestações discriminatórias na internet. Consoante já trabalhado em tópico anterior, a responsabilidade do provedor por conteúdos gerados por terceiro depende de notificação judicial para exclusão do conteúdo. A responsabilização só ocorre quando depois de notificado o provedor não cumpre a ordem judicial.
Em todo o caso, diante da precedência do direito à liberdade de expressão, a exclusão de conteúdo depende de ordem judicial, não podendo emanar de uma simples solicitação administrativa, sob pena de caracterizar censura.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do que foi apresentado, é possível concluir que a liberdade de expressão constitui um direito/princípio fundamental para a existência do Estado Democrático de Direito, na medida em que só é possível existir democracia na ausência de censura, principalmente por parte do Estado.
De outra parte, a dignidade da pessoa humana, qualidade inerente à própria pessoa, constitui-se em fundamento/princípio do direito, operando como limite ao gozo da garantia à liberdade de expressão.
Malgrado a livre expressão do pensamento seja um requisito fundamental para o desenvolvimento do ser humano, esse direito não é absoluto. O seu gozo não pode ultrapassar os direitos da personalidade (intimidade, honra e vida privada) de outras pessoas, por serem esses direitos igualmente importantes na tutela da dignidade da pessoa humana.
Portanto, na hipótese de conflito com entre esses direitos, é necessário um sopesamento, se valendo o jurista da teoria da ponderação, aplicando o princípio da proporcionalidade para a resolução do caso.
Com o advento do Marco Civil da Internet, estabeleceu-se uma regra que, concretizando a própria liberdade de expressão, determinou que a exclusão de conteúdos considerados ilícitos da rede mundial de computadores demanda obrigatoriamente uma apreciação pelo Poder Judiciário, sendo reservado a este órgão determinar a exclusão da informação e responsabilizar os agentes envolvidos.
Essa posição foi, inclusive, chancelada pelo Superior Tribunal de Justiça, que aplicando a norma ao caso, decidiu no sentido de que cabe apenas ao Poder Judiciário esse controle, evitando qualquer lesão à liberdade de expressão.
Assim, no caso de um discurso de ódio praticado contra um grupo qualquer, caberia a este grupo provocar o Estado Juiz com o fim de fazer valer o seus direitos e excluir o conteúdo tido por ilícito.
A questão do discurso de ódio culmina na colisão entre o direito à liberdade de expressão em contraposição ao princípio da dignidade da pessoa humana. Tratando-se de direitos fundamentais, a doutrina se posiciona no sentido da necessidade de uma ponderação entre as normas para o fim de resolver o problema.
A questão já foi tratada pelo Supremo Tribunal Federal, que valendo-se da ponderação entendeu pela prevalência da dignidade do ser humano em prol da liberdade de expressão, num caso de discurso de ódio contra judeus.
Na esfera criminal, importantes formas de discurso de ódio são tipificadas como crime, quais sejam: discriminação, preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. No entanto, nem todas as formas possíveis estão ali discriminadas.
Em síntese, embora o Marco Civil da Internet tenha trazido como princípios fundamentais no uso da internet a liberdade de expressão e a privacidade do usuário, não tratou de maneira específica acerca do discurso de ódio. Entretanto, pela sua potencial lesividade, muitos de seus desdobramentos são tipificados como crime.
No campo jurisprudencial, o posicionamento é no sentido de fazer prevalecer à dignidade do ser humano sobre a liberdade de expressão, coibindo, assim a prática de discursos de ódio.
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução por: Virgílio Afonso da Silva. 5 ed. (alemã). São Paulo: Editora Malheiros, 2008.
ARTIGO 19. Panorama sobre discurso de ódio no Brasil. São Paulo, Artigo 19, n.d. Disponível em:< http://artigo19.org/centro/files/discurso_odio.pdf >. Acesso em 16 fev. 2015.
______Princípios de Camden sobre Liberdade de Expressão e Igualdade. Londres: Artigo 19, 2009. Disponível em:<https://www.article19.org>. Acesso em: 03 out. 2016.
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** Doutora em direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Professora do Curso de Direito da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, e-mail: lissandraaguirre@gamil.com
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