Miguel Arturo Chamorro Vergara*
Sócrates Jacobo Moquete Guzmán**
Universidade Estadual de Santa Cruz, Brasil
mikevergara@hotmail.comRESUMO: De que forma vem sendo abordado o estudo da identidade do ponto de vista interdisciplinar? Qual tem sido o papel das posições metodológicas e teóricas referentes às abordagens iniciais da identidade cultural? Este artigo faz um recorrido pela literatura para responder essas questões e desenvolver os percursos das posições teóricas e metodológicas que permitam responder essa problemática. Para tanto é analisado, inicialmente, o domínio conceitual da identidade cultural focada por um modelo explicativo essencialista/primordialista por antropólogos, sociólogos e historiadores. Assim como mostrar algumas das demandas privilegiadas de analises na formação das identidades culturais, ante a complexa realidade sociocultural discursiva que se apresentam enriquecendo e tencionando a discussão desta proposta.
Palavras-chave: Identidade, Identidade Cultural, Realidade Social, concepção primordialista, pós-modernismo.
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Miguel Arturo Chamorro Vergara y Sócrates Jacobo Moquete Guzmán (2016): “Os percursos da identidade cultural”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (octubre-diciembre 2016). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/04/identidade.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss201604identidade
1. Introdução
Desde o século XX, as ciências sociais e humanas vêm refletindo sobre as questões teórico-metodológicas dos grandes sistemas interpretativos que, na sua pretensão racionalista, não correspondem às necessidades da complexa realidade social contemporânea. Nesse cenário epistêmico, a identidade cultural tem sido alvo de reexames nestes últimos anos.
O fim dos modelos unitários vigentes na modernidade, com a valorização da fragmentação do indivíduo - “o homem disperso” - levou a questão da identidade a ser rediscutida a partir da ruptura de um mundo ordenado pelo progresso, para outro marcado pelas incertezas. Por conseguinte, essa reviravolta de reestruturação e modificação do fazer ciência social tem, na abordagem das identidades, seus reflexos e implicações.
A identidade cultural estaria num novo processo compreensivo e interpretativo ante a denominada modernidade tardia reflexiva, ou pós-modernidade, vivenciando visíveis mudanças que ocorrem na sociedade em suas múltiplas faces: política, artística, literárias, econômica, científica, tecnológica, educativa e de relações humanas, dentre outras.
Novos focos teóricos e reforços metodológicos vêm sendo implementados nas ciências humanas por autores que trazem elementos de compreensão da complexidade e do fenômeno identitário: Barth (1968), Homi Bhabha (1998), Hall (2000), Bauman (2001), Giddens (2002), Bachelard (1986), Durand (1997), Maffesoli (1997) dentre outros interessados em tratar a pluralidade, o multiculturalismo, a hibridação e a diversidade do tecido sóciocultural, dimensões constituintes dos níveis da realidade social e da condição humana.
A partir da problematica dos descentramentos do sujeito da modernidade, pensamento marxista por meio de autores como Althusser (1918-1989), da Psicanálise de Freud e Lacan, da linguística estrutural de Saussure partilhada por Derrida, dos estudos de Michel Foucault e da posição do feminismo, constatam, na ciência social contemporânea, o interesse nas identidades abertas, contraditórias, inacabadas e fragmentadas (HAll:2003). Por isto, a reflexão exercida sobre os processos culturais contemporâneos concentram na definição do lugar a partir do qual pode ser construída a crítica da identidade cultural, na busca por ferramentas teóricas atualizadas para dar conta da inter-relação contemporânea entre identidade e cultura. (AGIER, 2001)
Nesse sentido, o estudo da identidade vem sendo abordado como um fenômeno processual, relacional, de construção social, que tem a interdisciplinaridade como foco epistemológico. O debate sobre a identidade está aberto para outros campos do conhecimento, tais como História, Sociologia, Psicologia Social, Direito, Linguística, Mitologia, dentre outros, com ênfase em abordagens diferenciadas.
Entretanto, nas abordagens iniciais da identidade cultural as posições metodológicas e teóricas relativas a um determinismo conceitual foi influenciador em áreas de conhecimentos e focos de interesses de estudos de grupos no Brasil. Para desenvolver os percursos das posições teóricos metodológicas examinaremos inicialmente o domínio conceitual da identidade cultural, focada por um modelo explicativo essencialista/primordialista por antropólogos, sociólogos e historiadores. Assim como mostrar algumas das demandas privilegiadas de analises na formação das identidades culturais, ante a complexa realidade sociocultural discursiva que se apresentam enriquecendo e tencionando a discussão desta proposta.
2. OS DIVERSOS ENFOQUES IDENTITARIOS DA CULTURA
O domínio conceitual da identidade na modernidade forçou interesses de uma epistème disciplinar na antropologia de variadas concepções e abordagens. Os atributos culturais exercem um notável interesse para determiná-la, entre os quais foram destaque a herança cultural transmitida por ancestrais comuns e os vínculos afetivos, considerados como fonte de ligações primárias de uma identidade cultural.
Assim, surge a concepção primordialista, que se constitui em um pólo teórico na dinâmica de estudos das identidades, - sejam nacionais, étnicas, culturais - postulando a existência de alguns elementos básicos da cultura ligados à identidade, tais como o caráter inefável, irracional e ressentido dos sentimentos inspirados por ela. (POUTIGNAT e STREIFF-FENART, 1997).
Por sua vez, essa posição recebe críticas, pois esses elementos ignoram as dimensões implícitas do ambiente político e econômico no qual os grupos e as identidades se manifestam, segundo os autores Keyes (1976), Bonacich (1980), Mackay (1982) e Muga (1984), citados por Poutignat e Streiff-Fenart (1997). Além disso, o dado primordial é considerado como base na dependência de laços genéticos ou historicamente herdados no tempo. Isso significa partilhar o processo de transmissão de ancestrais comuns, sendo que essa partilha se constitui como ligação primária e fundamental da identidade.
Esse tipo de determinismo pode operar por meio da inferência de uma estrutura profunda (genótipo), a partir de diferenças de superfície que podem ser os fenótipos, estabelecendo um potencial indutivo que permite que as identidades sejam vistas como inalteráveis, exclusivas e naturais. Esse caráter dado, a priori, às identidades das fontes primárias é independente das relações entre indivíduos e seu grupo, assim como a interrrelação com outros grupos. Por outro lado, foca a natureza dos sentimentos inefáveis que, segundo Eller e Coughlan (1996), não podem ser analisados em relação à interação social, pois são determinados aos indivíduos e às suas práticas.
Tais sentimentos primordiais são vinculados às circunstâncias e encontram-se em referência à qualidade afetiva dos membros, cuja força emocional está baseada nas relações de parentesco e na ancestralidade. A reciprocidade e adesão à etnia, à língua, aos costumes, aos vínculos entre os membros dos grupos familiares e ancestralidades são, freqüentemente, uma ferramenta de coerção e cooptação, como também de recrutamento.
É este determinismo implícito nas ligações primordiais que “[...] derivam mais de um sentimento de afinidade natural do que da interação social” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1997, p. 89), que são percebidas como imediatas e naturais à existência social. Tais argumentos não teriam sido suficientes para constituir uma teoria da etnicidade, em que pese a importância da qualidade primária da identidade, como são o parentesco e os vínculos afetivos, que não são suficientes para garantir a explicitação do fenômeno da etnicidade.
No Brasil, trabalhos pioneiros na Antropologia, como os dos pesquisadores Curt Nimuendaju (1929) e Freyre (1933), considerados por Cardoso de Oliveira (1988) “heróicos”, foram realizados quando a Ciência Antropológica ainda não havia se institucionalizado no Brasil. Essas pesquisas deram início às investigações das relações sociais entre brancos e índios ou negros e brancos, respectivamente.
Tais abordagens contribuíram para as descrições minuciosas, sistemáticas e precisas dos vários aspectos das culturas desses grupos e sistemas sociais em relação às identidades. Outra significativa tendência da pesquisa recebeu uma forte influência do modelo teórico da aculturação, que ganhou visibilidade ao se interessar pelas mudanças de traços culturais na relação entre índios e brancos. Na obra de Athias (2007), o autor destaca os trabalhos de Herbert Baldus (1937), Egon Schaden (1955) e Eduardo Galvão (1949), pesquisas que trazem como perspectiva teórica a noção de assimilação).
Nos anos 30, na era do presidente Vargas, a reconstrução do nacionalismo brasileiro voltou-se para a ideia de unidade nacional e outra da dissolução das raças para um único povo mestiço. No que diz respeito à posição teórica relativa à fusão das raças, diz o autor, tanto antropólogos como sociólogos consideram necessário propor uma crítica às teorias racistas, abandonando as explicações deterministas, da pureza étnica e da superioridade do branco, para novas percepções desses fenômenos por meio do enfoque da cultura.
Entre esses trabalhos, Athias destaca aqueles preocupados com a formação sociocultural, a evolução da sociedade e, sobretudo, a mestiçagem brasileira. Entre estes, Gilberto Freyre (1934), Oliveira Viana (1911) e Arthur Ramos (1942), colocaram-se em oposição aos trabalhos de Nina Rodrigues (1899), Euclides da Cunha (1902), Couto Magalhães (1876), entre outros.
De modo geral, tais posições teóricas supunham o futuro desaparecimento dos grupos étnicos, que seriam incorporados, em maior ou menor grau, ao grupo majoritário, isto é, valorizar-se-ia a assimilação em detrimento da etnicidade. Assim, optou-se por implementar um sistema de classificação social em que a cor da pele é sinônimo de “aparência racial”, que opera até os dias de hoje. Percebe-se, ainda, a desvalorização da população indígena frente a um Estado que produz dados demográficos com fins perversos, embora os censos busquem expressar a evolução demográfica de uma população e trazer subsídios importantes para a análise da política e da legislação indigenista. Oliveira (1999) mostra como os censos de 1900, 1920 e 1970 omitem inteiramente as questões étnicas e raciais, e como, usando mecanismos homogeneizadores, produzem a invisibilização destas parcelas da população. Eles consideram os “indígenas” uma relíquia histórica.
Tanto na Sociologia quanto na Antropologia, implementaram-se as pesquisas sobre relações raciais nesta ótica. Nos anos 50, os conceitos de raça, classe e nação foram a chave para o desenvolvimento de tais estudos.
A confluência da importância do racismo e da democracia racial brasileira propiciaram um campo empírico diferenciador entre pesquisadores do Norte e do SulA “questão racial” significou enfrentar o tema da identidade nacional, pensada em particularidades locais.
O trabalho sociológico de Florestan Fernandes, segundo Guimarães (2005), acerca das relações raciais no Brasil, foi bem sucedido ao levar em consideração o ideal nacionalista e desenvolvimentista de redefinição do “povo brasileiro”, por meio da fusão dos conceitos de raça e de classe nos anos 50 e 60, posteriormente partilhada e refinada por antropólogos e sociólogos (GUIMARÃES, 2005). Foram relevantes as pesquisas com grupos afro-brasileiros nos anos 40 e 50, abordagem importante como os estudos sobre o candomblé, constituindo um marco definidor para estudos posteriores dessas tradições culturais e sua religiosidade.
Para Guimarães (2005), tais estudos tiveram sua influência de 1940 a 1960 no Brasil, através de escolas de pensamentos e abordagens empíricos. Alem do mais segundo este autor essas escolas “paulistas” e “baianas” são fortes nesse tipo de estudos, apesar de que esquemas interpretativos e metodológicos distintos fazem chegar a conclusões diferentes sobre as relações raciais no país. Entre os pesquisadores que Guimarães destaca sobre as questões raciais estão: Gilberto Freyre (1933); Charles Wagley (1958); Donald Pierson (1945) e Roger Bastide (1961), Florestan Fernandes (1955); Costa Pinto, Thales de Azevedo, Oracy Nogueira, René Ribeiro, Guerreiro Ramos, Pierre Van de Berghe e Marvin Harris.
Porem no final dos anos 60, antropólogos começaram a perceber que o conceito de cultura não conseguia analisar certas situações do mundo empírico das identidades e das etnicidades. Nas palavras de Aguiar (2007, p. 88), por exemplo “observa-se que as fronteiras das culturas não coincidiam com as fronteiras grupais da teoria da etnicidade, seria possível que dois grupos compartilhassem características em comum como língua e religião e, no entanto, se sentissem diferentes um do outro.”
Assim, o antropólogo Fredrik Barth (1969) elaborou uma teoria da identidade, a qual rompe fronteiras entre disciplinas, isto é, outras formas de saberes aplicados. A incorporação das idéias de Barth demarca o rompimento definitivo de Cardoso de Oliveira, segundo Lima (2007), com o paradigma culturalista predominante no Brasil, que tinha em Darcy Ribeiro seu maior expoente. Em vista disso, os empreendimentos teóricos empíricos etnográficos procuraram abordar o estudo da identidade no interior de contextos sociais que determinam a posição dos agentes e orientam suas representações e escolhas. A identidade é dotada de eficácia social e produz efeitos sociais reais, sendo estes fatores sociológicos dominantes nas interações e relações sociais (MARTINI, 2005).
Nesse ínterim, no contexto brasileiro, Cardoso de Oliveira (1971) considera que a identidade é um fenômeno do contato interétnicos, que pode ser estendido para retratar as relações de indivíduos e grupos. Para esse enfoque, Cardoso de Oliveira (1971, p. 926) diz que “(...) a identidade teria duas dimensões, isto é, a pessoal (individual) e a social (coletiva), e esses níveis fazem dessa categoria um fenômeno bidimensional”. Ele considera relevantes os mecanismos de identificação fundamentais para entender as relações contrastivas da identidade, e acrescenta (p.927) que a identidade “(...) é assumida pelos indivíduos e grupos em diferentes situações concretas”. Essa identidade contrastiva, segundo o autor, constitui-se na base em que esta se define como afirmação de nós sobre os outros
Cuando una persona o un grupo se afirman como tales lo hacen como medio de diferenciación en relacion a otra persona o grupo con que se afrontan. Es una identidad que surge por oposición, ella no se afirma isoladamente (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1971, p. 927).
Pode se dizer, que nesse período dos anos 60/70, nos seminários sobre identidade e etnicidade de Claude Lévi-Strauss e de Fredrik Barth, marcou o surgimento desse objeto controverso, ao qual se atribuiu uma dupla propriedade. Como Agier (2001) assinala:
... em primeiro lugar, a presença quase obsessiva da identidade em todas as ocorrências da vida social, ubiqüidade que a torna inapreensível enquanto tal; em segundo lugar, a possibilidade de sua descoberta e autonomização como objeto de análise a partir de seus limites. Se essas duas referências são um ponto de orientação para a antropologia, isto se deve ao fato de terem tornado possível a distância critica em relação a uma categoria interna na disciplina, a identidade, ao passo que durante décadas os próprios etnólogos, em suas monografias étnicas e em seus inventários de tradições, falaram sobre ela, e até mesmo a produziram, sem sabê-lo ou sem medir todas as suas conseqüências (AGIER, 2001, p. 8).
Portanto, existe um esforço teórico na abordagem antropológica brasileira em utilizar essa noção de identidade para levar em conta a multiplicidade, a diferença, o contraste, isto é, uma formulação que seja útil em seu emprego para tratar o diverso no interior de uma sociedade. O olhar etnográfico fica atento às articulações dos processos identitários (pessoais, profissionais, sociais, locais, regionais, nacionais etc) e aos vários tipos de diversidade (de classe, de etnicização, de gênero etc.) em vários campos da complexa realidade social.
Esta aproximação de subjetividades, segundo Despres (1975), já tinha sido caracterizada antes de Barth, pelo Rhodes Livingstone Institute, citando trabalhos de Epstein e Mitchell. Contudo, a diferença identitária não seria a consequência direta da diferença cultural (muitas identidades coexistem numa mesma cultura), impedindo que, nas trocas sociais, uma identidade possa se construir.
A relevância desses tipos sociais de pessoas se encontrarem num mesmo grupo dentro de uma sociedade, segundo mostra Brandão (1986), permite a possibilidade de compreender os mapas socioculturais que traçam para os indivíduos os caminhos de suas trajetórias de vida.
A experiência de vida de cada um de nós confirma uma conclusão a que os estudiosos sobre o assunto acabam quase sempre chegando: não é fácil separar a dimensão da construção e do exercício cotidiano da identidade de sua dimensão social. Na verdade de suas várias dimensões sociais e socialmente simbólicas (BRANDÃO, 1986, p.39).
No entanto, nas interações de um mundo globalizado, em que as identidades tendem a perder suas referências locais, maximizaram-se as sempre existentes migrações transcontinentais, assim como novas construções de nacionalismos ressurgem e que necessariamente sua formação não tem esta vinculação à construção de um Estado.
Os trabalhos construcionistas dos nacionalismos trazidos por Geller (1983), Anderson (1983) e Smith (1992), são uma demonstração da crítica à homogeneização nacional e à compreensão da sociedade pluriétnica, assim como novos subtemas, tais como saúde, gênero etc., trazem novas possibilidades de situar as construções socioculturais das identidades.
Hannerz (1997) reforça que a cultura, na sua dinâmica, apresenta um constante movimento de recriação e os atores tendem a inventar a cultura, a refletir e fazer experiências com ela, a discuti-la e a transmiti-la. Assim, é construída a noção de “fluxo”, que se refere às coisas que não permanecem no seu lugar, às modalidades e expansões variadas.
Por isso, voltam-se as atenções para um construcionismo aberto às possibilidades cotidianas das identidades socialmente construídas, despertando as atenções dos pesquisadores, voltam-se também para os processos que levam em consideração as relações e a gênese das identidades ou reconfiguração, como alertou Cardoso de Oliveira (2006), sem levar em consideração esta separação dicotômica (Cultura/Identidade).
Tal postura é sustentada por Bauman (2002), quando lembra que esses conceitos, cultura e identidade, nasceram juntos; eles se correspondem. Esse argumento é pertinente para a atualidade, pois se percebem, na dinâmica sociocultural, espaços de criatividade e liberdade. Assim, as questões relativas à identidade no Brasil se voltaram para os reforços de refinamento das análises e reconsiderações conceituais de noções já usadas, como “raça”, “etnia”, “grupo étnico”, “minoria”, “fronteiras” e “cultura” na modernidade.
Esta nova possibilidade de repensar a identidade como construcionismo social, nas palavras de Kenneth Gergen (1985), é uma forma de investigação social que “[...] preocupa-se principalmente em explicar os processos pelos quais as pessoas descrevem, explicam ou dão conta do mundo (incluindo elas mesmas) no qual elas vivem” (GERGEN, 1985, p. 266). Hoje, reaparece um novo matiz de interpretação e compreensão do racismo, das relações raciais, das identidades emergentes, tudo isso atrelado a fenômenos complexos de reconhecimento, como a emergência das identidades de grupos indígenas, negros remanescentes, migrantes e outras representações identitárias.
Assim faz o antropólogo Pacheco de Oliveira (2006) ao tratar a identidade cultural indígena do Nordeste usando a noção de “índios misturados”. Além das visões nativas sobre o presente e o passado desses grupos indígenas remanescentes, ele precisou proceder a uma releitura crítica do material acumulado. O movimento indigenista prega o reconhecimento das terras, tradição, educação de resgate, saúde sem discriminação, demarcação, devolução das terras, proteção contra as invasões e indenizações pelas arbitrariedades já cometidas.
A criação desse modelo hegemônico de “Estado-Cidadão” no Brasil implicou na uniformidade dos padrões de relacionamentos, sem considerar as dimensões pluriétnicas que exigem uma cidadania diferenciada. As formas de sociabilidade empreendidas por ações coletivas de movimentos sociais e organizações étnicas procuram subjetivamente a formação de consciências étnicas enfatizando espaços de visibilidade e reconhecimento nacional.
Atualmente, vemos antropólogos e historiadores no Brasil ressaltando os processos de etnogénese em que são contempladas as reivindicações de direitos das chamadas populações locais e ou tradicionais; os processos de mobilização dos movimentos, grupos culturais, étnicos, lideranças, têm como finalidade sair da sua condição de invisibilidade e marginalização social, por meio de reivindicações pelos seus direitos, com uma participação e envolvimento nas políticas públicas de desenvolvimento. Assim, também, o antropólogo passa a ter importância na vida pública.
Nesses processos de emergência dos “índios do Nordeste”, o emprego do termo “remanescente”, segundo Arruti (1997), responde à necessidade de torná-los nomeáveis, adjetivando-os para que se façam visíveis e aceitáveis. Assim, as novas articulações e enfoques metodológicos da identidade têm favorecido explicitar os processos identitários das comunidades quilombolas e indígenas, a exemplo das quebradeiras de coco babaçu, das artesãs de Arrumã do rio Negro, dos ribeirinhos e dos atingidos por barragens, entre outros.
Com relação à abordagem contemporânea do candomblé, Prandi (1991), Augras (1983), Segato (2005), entre outros, mostram também uma preocupação com a questão política, mítica, simbólica e organizacional da identidade cultural religiosa, levando em consideração elementos étnicos e raciais. Além disso, diversas obras vêm sendo produzidas pelos próprios pais e filhos de santo, tais como: Póvoas (2007) com sua obra “Da porteira para fora” e “A fala do santo” (PÓVOAS, 2002); “Itan dos mais-velhos” (PÓVOAS, 2004); “Caroço de dendê – a sabedoria dos terreiros: como ialorixás e babalorixás passam conhecimentos a seus filhos”, de Yemanjá M.B. (1997) e (2004); “Histórias que minha avó contava...” e “Candomblé: a panela do segredo” de Eyin, Cido de Ogum, 2000), entre outros.
Essas obras ampliam a compreensão da linguagem oral e simbólica, demandadas pelas pesquisas dos antropólogos, possibilitando um diálogo com novos conhecimentos sobre construção de identidades, sociabilidades das diversas entidades, divindades e ancestralidade, que essas experiências de comunidades religiosas preservam.
As novas adjetivações, a exemplo da cultura negra, indígena, européia, africana, ocidental ou oriental e a mobilização recente de coletividades, almejam o reconhecimento de uma auto-identificação, especificamente no campo das fronteiras étnicas, o que possibilita uma reflexão teórica sobre suas ressignificações.
O tema da passagem de uma cultura negra entre África e Brasil serviu de motor para a produção acadêmica e a mobilização social, alimentando um ideário político capaz, no devir, de inverter o sentido estigmatizante de ser negro no Brasil (SANSONE, 2004; BACELAR, 1994). Apesar de que, para Ianni (1996), o fenômeno dos problemas raciais emerge e se desenvolve no jogo das forças sociais, que se movimentam em escala local, nacional, regional e mundial ante as implicações econômicas, políticas e culturais. Aí, mesclam-se diversidades e desigualdades de todos os tipos, compreendendo inclusive as religiosas e linguísticas, mas sempre envolvendo alguma forma de racialização das relações sociais (IANNI, 1996).
Nesses contextos sociais, as identidades culturais tendem a exibir um grau elevado de desterritorialização, a ponto de alguns autores as haverem caracterizado como a etnicidade sem comunidade, expressões altamente estetizadas e performativas de grupos que, muitas vezes, já não estão em condições de exibir uma cultura étnica reconhecível a outra e não precisam de uma identificação que abranja todos os âmbitos da vida que funcione em tempo integral. Elas podem ser muito intensas, mas não são exclusivas nem determinam toda a vida social do indivíduo.
Então, sem a contemporaneidade do estudo da identidade, ampliaram-se as possibilidades de abordagem do processo de construção social, isto também significou de maneiras diferenciadas, afastar-se da idéia de que a identidade é uma coisa estável e natural. Além disso, as percepções das identidades redutíveis e dualistas condicionaram a heterogeneidade e diversidade humana a procedimentos meramente abstratos. Esses procedimentos, conceituais, dos atributos primordiais inerentes à cultura, que dão sentido à existência social, aos costumes, aos vínculos afetivos, às místicas de viver aquilo que nós somos, quando criticados, deixam de levar em conta a profundidade dos níveis de sua identificação.
No obstante, essas especificidades de vínculos e sentimentos primordiais, são retomadas, visando sustentar sua qualidade primária e fundamental, assim como valorar a importância dos “vínculos” no processo de construção simbólica de seus aspectos dinâmicos e estratégicos, em que as expressões e interesses comuns são mobilizados pelas sensibilidades dos membros.
Como ressalta Poutignat, Streiff-Fenart e Bell (1975), a possibilidade de combinar interesses políticos com vínculos afetivos como uma função instrumental e expressiva pode ser feita a partir da articulação de símbolos culturais menos abstratos e mais identificáveis, com a possibilidade das abordagens mobilizacionistas usarem vínculos étnicos como uma estratégia instrumental da identidade.
Assim também o fez a abordagem da identidade, que se opõe às concepções tradicionais de cultura como uma totalidade integrada, e ao essencialismo primordialista, retomando a dimensão cultural como um ponto de destaque. Nessa perspectiva, o trabalho desenvolvido pelo Antropólogo Eriksen (2002) é interessante quanto ao fato de valorizar as dimensões comunicativas das diferenças culturais compartilhadas, sobretudo como elas são acionadas nas relações. Assim, isso dá a perceber a atuação de um princípio interacionista e culturalista, simultaneamente, o que pode auxiliar na compreensão da questão das fronteiras e limites presentes nas relações interétnicas, sem ignorar as relações de poder.
A questão, como diz Eller e Coughlan (1996), é ressaltar a qualidade emocional da vida cultural humana, que está acima de sua mera dimensão racional ou instrumental. É crucial que se reconheça sua importância no processo de identificação do vínculo. Os fatores de identidade – língua, religião, costumes, raça, ou laços sanguíneos – assumidos, são chamados por Clifford Geertz (1963) de “lealdades primordiais”. Segundo esse autor, os seres humanos nascem como animais incompletos, os quais se preenchem por meio da cultura que eles próprios criam, a qual assume o papel de uma atribuição primordial de existência social.
Apesar de se perpetuar por meio de um processo contínuo de sociabilização, que acentua a percepção de exclusividade dos membros de um determinado grupo e o sentido de diferença relativamente a outros grupos sociais, a pertença a um determinado grupo social é definida no ato do nascimento.
Como afirma Hall (2002), a construção da identidade cultural na modernidade criou um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo centro consiste num núcleo interior, que emerge pela primeira vez quando o sujeito nasce e com ele se desenvolve, ainda que permaneça essencialmente o mesmo - contínuo ou idêntico a ele - ao longo da sua existência. Para o autor, este foi o sujeito da civilização ocidental que vigorou, tornou-se centrado em si mesmo, quando na realidade cada concepção de pessoa tinha sua própria história e vida cultural. O centro essencial do “eu” era a identidade de uma pessoa, ou seja, a substância, a essência, a alma que pulsava consciente de si, a qual determinava a sua vontade e o seu pensamento, que comprovava a sua própria existência.
A avaliação crítica da teoria pós-moderna de identidade tem de ser feita conjuntamente com uma avaliação da teoria da cultura que lhe serve de apoio e, por isso, começa com esta última. Também, a globalização tem tido um efeito de pluralizar as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições para sua identificação.
Porém, a ideologia teórica da globalização torna as identidades culturais fechadas, deixando de lado o imperativo da dinâmica múltipla de identificações, forte heterogeneidade sociocultural da realidade. Consequentemente, as identidades tornaram-se mais um "posicionamento", mais políticas, mais plurais e diversas, menos fixas e menos unificadas.
O declínio do paradigma do sujeito autocêntrico, assim como o descentramento do sujeito, traz de volta o desafio ontológico do nascimento do “Eu” múltiplo, o sentido de si mesmo, o sujeito humano que sou eu, as possibilidades do auto-reconhecimento de si etc. A procura de respostas a essas questões subjacentes leva o olhar metodológico para este “Eu múltiplo” da pessoa, de identificações relativas ao conjunto de “suas qualidades e atributos”, tornando-se um referencial à compreensão da alteridade e a nossa própria identidade.
Considerações finais
Com base nas constatações apresentadas é que pode-se dizer que a questão identitária cultural tem seus percursos no processo dinâmico de transformação do paradigma das ciências, que opera desde o início do século XX, entre elas a Antropologia, a qual mostra limitações quanto às abordagens para a complexa realidade social atual. Como Cardoso de Oliveira (1998) já havia assinalado, para alcançar uma boa compreensão, é importante compreender o movimento histórico na dinâmica de mudanças metodológicas, teóricas, disciplinares, para repensar os paradigmas de “ordem” para os processos culturais, caracterizados [...] “por domesticar eficazmente esses elementos, a saber, a subjetividade, o indivíduo e a história”. São, precisamente, esses os elementos que, a nosso modo de ver, constituem fator motivador para tratá-la nesta pesquisa.
Grande parte das tendências teóricas emergentes da identidade na contemporaneidade leva mais em conta os aspectos diacríticos, aquilo que pode ser exteriorizado, em detrimento dos aspectos internos que fazem parte constitutiva de uma representação presente nos acontecimentos da vida do homem. A cultura tem relação direta com a formação das qualidades e atributos da pessoa, razão pela qual, no mundo do homem, ela é construída, fazendo as pessoas pertencerem e exercerem enraizamentos
Ressalta-se a importância na teoria antropológica contemporânea, a qual se depara com a necessidade de abordar questões da alteridade e o sentido do ser no mundo da vida cultural (nas vivências) de grupo. O Brasil, com sua singularidade de ser um país culturalmente heterogêneo, é a marca distintiva no quadro latino-americano e mundial, como reforça Sodré (2002), por apresentar uma pluralidade de modo de vida com grandes aproximações simbólicas respondendo, também, ao processo dinâmico de criação da diversidade cultural brasileira, mostrando alguns mecanismos de dialogicidade entre as culturas desta sociedade pluricultural, além do pesquisador ser um porta-voz dessas tensões e polaridades, que se vivenciam na realidade sociocultural da identificação local. Pois como mostra o autor a identidade, recorrência de todo fenômeno humano é algo implícito em qualquer representação de nós mesmos, tendo de colocar ênfase na dinâmica das movediças que se inscrevem no pensamento social da contemporaneidade.
O pensamento da identidade sempre pressupôs uma estabilidade espacial: em várias línguas, o “eu sou” coincide com “eu estou” (inglês, alemão, francês e outras). A identidade reflete uma opacidade do sujeito ou uma expectativa de fechamento da subjetividade diante das mudanças, mas também diante do “outro” (seja dentro ou fora do grupo). Com a troca do enraizamento espacial pela aceleração temporal (transportes, telecomunicações), a estabilidade identitária perde força (SODRÉ, 2002, p. 41).
Entretanto é conhecido o fato da identidade cultural ainda estar presa a uma epistemologia de noções e tendências que permite alcançar um nível adequado de compreensão da condição humana, insistindo nos fragmentos descritivos da cultura e representando tanto uma ameaça à própria variabilidade de seu dinamismo quanto uma pluralidade da existência cotidiana do homem. (Carvalho 2003),
Nessa perspectiva reflexiva, significa abrir e mudar, quando seja necessário, as categorias de análise usadas para atingir as construções das vivências da identidade cultural. O que não significa desconstruir posições com o desejo de destruir aspectos significantes que devem ser preservados, sem esta domesticação da exclusão metódica que ressalte a dimensão processual criativo de toda Cultura, e sabendo que a noção de identidade cultural não é um assunto pessoal, pois ela é sempre vivida no dialogo com os outros sim perder o valor real pelas diferencias.
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** Concluiu o doutorado em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2003. Concluiu o Mestrado em Economia pela mesma instituição. Participou de 9 eventos no brasil e dois eventos internacionais. Atua nas áreas de Economia e Ciência Política, com ênfase em Economia do Setor Público, Economia Solidaria, Instituições monetárias e Desenvolvimento Local com base no turismo. Atualmente é professor Pleno da Universidade Estadual de Santa Cruz, Departamento de Ciências Econômicas e do Mestrado em Economia Regional e Políticas Públicas.
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