Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


“O CLUBE DO CARIMBO”: AS CONSEQUÊNCIAS CRIMINAIS DA TRANSMISSÃO VOLUNTÁRIA DO HIV

Autores e infomación del artículo

Sergio Rodrigo Martinez
Professor

Gabrielle Cajueiro De Oliveira
Bacharela em Direito

Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil

srmartinez@outlook.com.br

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo analisar as consequências jurídicas da transmissão voluntária do vírus da imunodeficiência humana (VIH). A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA) é causada pelo referido vírus, o qual é transmitido por diversas maneiras. Na presente pesquisa, deu-se enfoque à transmissão por meio de relações sexuais, especificamente às consequências criminais desta conduta dentro do ordenamento jurídico brasileiro. Isso porque se observou a existência de um comportamento de certo grupo de pessoas que vivem com VIH/SIDA, as quais, por meio de relações sexuais, objetivam transmitir propositalmente o vírus, a chamada “carimbada”. Realizado por pesquisa bibliográfica e pela utilização do método de pesquisa dedutivo, o presente trabalho pretende demonstrar que não há legislação específica para a transmissão voluntária do vírus no Brasil, sendo aplicado o Código Penal. Demonstrou-se, ainda, a tendente criminalização relacionada ao vírus da imunodeficiência humana (VIH) dentro do contexto político do país, apresentando-se como uma afronta aos direitos mínimos garantidos para a promoção da dignidade das pessoas que vivem com VIH/SIDA. Contudo, considerando a não existência de legislação específica, há divergência doutrinária acerca da correta tipificação da conduta. Assim, foram apresentados os tipos penais nos quais se enquadraria a conduta e, por fim, ficou demonstrado que tal ato lesivo enquadra-se no delito de lesão corporal gravíssima.

Palavras-chave: Vírus da imunodeficiência humana (VIH), Transmissão voluntária, Clube do Carimbo, Aspectos Criminais, Lesão corporal gravíssima.

ABSTRACT
This paper aims to analyze the legal consequences of the intentional transmission of the human immunodeficiency virus (HIV). The Acquired Immune Deficiency Syndrome (AIDS) it’s caused by the referred virus that is transmitted by several ways. This research focused at the transmission by sexual relation, more specifically the criminal consequences of this behavior in the Brazilian legal system. That is because it was observed the existence of a certain behavior group of people living with HIV/ AIDS, which, through sexual relations, aimed purposely transmit the virus, the “carimbada”. Done by bibliographic research and utilizing the deductive method the present paper intends to show that there’s no specific legislation in Brazil for the intentional transmission of the referred virus, applying the Criminal Law in a subsidiary way. It has been shown also attendant criminality related to human immunodeficiency virus (HIV) within the political context of the country, presenting itself as an affront to the minimum guaranteed rights for the promotion of the dignity of people living with HIV/ AIDS. However, considering the absence of specific legislation, there is a doctrinal divergence about the correctly criminalization of this behavior. Therefore, it was presented the criminal types in which fits this behavior and ultimately it demonstrated that this harmful act is the crime of grievous bodily harm.

Key-words: Human Immunodeficiency Virus (HIV); Intentional transmission; Crime of grievous bodily harm; Personality rights; Judicial compensation.




Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Sergio Rodrigo Martinez y Gabrielle Cajueiro De Oliveira (2016): ““O Clube do Carimbo”: as consequências criminais da transmissão voluntária do HIV”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (octubre-diciembre 2016). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/04/carimbo.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss201604carimbo


1 INTRODUÇÃO

A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA), internacionalmente conhecida pela sigla AIDS, é causada pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV – human immunodeficiency vírus). Tal vírus atua sobre o sistema imunológico, destruindo os linfócitos “T” e comprometendo seriamente as defesas do organismo da pessoa infectada. Ainda não há cura, apenas medicamentos capazes de diminuir a carga viral e, assim, garantir um maior tempo de sobrevida ao paciente.
Tendo em vista que o vírus está presente nos fluídos corporais, sua transmissão dar-se-á por diversas maneiras. Destaca-se, no presente estudo, àquela relacionada às relações sexuais.
Nas datas de 15 e 22 de março do ano de 2015 foram exibidas matérias no programa televisivo “Fantástico” sobre o “Clube do Carimbo”, nas quais se demonstrou o comportamento perverso de certos indivíduos soropositivos em transmitir propositalmente o HIV, por meio de relações sexuais, a chamada “carimbada”.
Daí que se elaborou a presente pesquisa com intuito de questionar quais seriam as consequências jurídicas desse comportamento ao seu autor, quando da transmissão voluntária do HIV/AIDS.
Para que isso seja possível, foram delineados os seguintes objetivos específicos: a) traçar os aspectos gerais do HIV/AIDS e sua transmissão voluntária; b) analisar o tratamento jurídico brasileiro, na seara criminal, da prática da “carimbada”.
Do ponto de vista metodológico, utilizar-se-á na pesquisa o método dedutivo, através de pesquisa bibliográfica consistente no levantamento bibliográfico e no fichamento de dados.
A pesquisa será pautada em referencial bibliográfico multidisciplinar, retratando conceitos, jurisprudências, legislação, dentre tantos outros assuntos pertinentes ao tema proposto.
Para tanto, iniciar-se-á com abordagem dos aspectos gerais do HIV/AIDS e a sua transmissão voluntária.
Nesse momento, a pesquisa lançará mão de enfoque interdisciplinar referente ao tema, atentando-se, também, aos dados fornecidos nos relatórios do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) para esclarecer como se dá a transmissão dos vírus, suas consequências para os contaminados, bem como os aspectos da sua transmissão voluntária através de relações sexuais.  
Por conseguinte, far-se-á uma análise dos aspectos da prática da conduta de disseminar voluntariamente o HIV/AIDS na esfera criminal.
Será apresentado o Projeto de Lei nº 198/2015 em tramitação perante a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, o qual propõe tornar a transmissão proposital do HIV/AIDS em crime hediondo, tecendo-se considerações acerca de sua viabilidade. Após, abordar-se-á a divergência existente na doutrina acerca da correta tipificação da conduta, esclarecendo, ainda, o posicionamento dos Tribunais Superiores.

ASPECTOS CRIMINAIS DA TRANSMISSÃO VOLUNTÁRIA DO HIV/AIDS

A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA), mundialmente conhecida como AIDS, foi assim classificada no ano de 1982, após o surgimento de casos nos Estados Unidos da América, Haiti e África Central, no interregno de 1977 e 1978.
No ano de 1983, cientistas do Instituto Pasteur, localizado na França, isolaram e caracterizaram um retrovírus como agente causador da AIDS. Posteriormente, referido retrovírus tornou-se conhecido como o vírus da imunodeficiência humana (HIV – human immunodeficiency vírus).
Importante ressaltar que, ao contrair o HIV, não necessariamente o indivíduo desenvolverá AIDS. Isso porque, conforme informação do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais brasileiro, o vírus possui possíveis estágios progressivos:

Quando ocorre a infecção pelo vírus causador da aids, o sistema imunológico começa a ser atacado. E é na primeira fase, chamada de infecção aguda, que ocorre a incubação do HIV - tempo da exposição ao vírus até o surgimento dos primeiros sinais da doença. Esse período varia de 3 a 6 semanas. E o organismo leva de 30 a 60 dias após a infecção para produzir anticorpos anti-HIV. Os primeiros sintomas são muito parecidos com os de uma gripe, como febre e mal-estar. Por isso, a maioria dos casos passa despercebido.
A próxima fase é marcada pela forte interação entre as células de defesa e as constantes e rápidas mutações do vírus. Mas que não enfraquece o organismo o suficiente para permitir novas doenças, pois os vírus amadurecem e morrem de forma equilibrada. Esse período, que pode durar muitos anos, é chamado de assintomático.
Com o frequente ataque, as células de defesa começam a funcionar com menos eficiência até serem destruídas. O organismo fica cada vez mais fraco e vulnerável a infecções comuns. A fase sintomática inicial é caracterizada pela alta redução dos linfócitos T CD4 - glóbulos brancos do sistema imunológico - que chegam a ficar abaixo de 200 unidades por mm³ de sangue. Em adultos saudáveis, esse valor varia entre 800 a 1.200 unidades. Os sintomas mais comuns são: febre, diarreia, suores noturnos e emagrecimento.
A baixa imunidade permite o aparecimento de doenças oportunistas, que recebem esse nome por se aproveitarem da fraqueza do organismo. Com isso, atinge-se o estágio mais avançado da doença, a aids. Quem chega a essa fase, por não saber ou não seguir o tratamento indicado pelos médicos, pode sofrer de hepatites virais, tuberculose, pneumonia, toxoplasmose e alguns tipos de câncer. (grifo no original) (BRASIL. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, s.d.) 1

Nota-se, então, que a AIDS se apresenta como estágio mais avançado da patologia sobre o sistema imunológico, comprometendo seriamente a saúde da pessoa infectada. Todavia, o vírus poderá ser transmitido durante qualquer um dos estágios apresentados.
No ano de 2014 havia, aproximadamente, 36,9 milhões de pessoas soropositivas no mundo, sendo destas 2 milhões referente a novos contaminados. Estima-se que 0,8% dos adultos, compreendidos na faixa etária de 15 a 49 anos, vivem com o HIV no mundo. Além disso, 34% dos novos infectados são pessoas com idades entre 15 a 24 anos (UNAIDS, 2015, p. 100-101). 
São cerca de 1,7 milhões de pessoas soropositivas vivendo na América Latina. Destas, 87 mil referem-se a novos infectados em 2014, correspondendo o Brasil por, aproximadamente, 50% de todas as novas infecções na região (UNAIDS, 2015, p. 135-136).
Segundo o último Boletim Epidemiológico HIV – DST, do Ministério da Saúde (2015), “estima-se que, ao fim de 2014, aproximadamente 781 mil indivíduos viviam com HIV/aids no Brasil” (BRASIL, 2015, p. 51).
Destaca-se, por oportuno, que “o crescimento de aids na juventude (15 a 24 anos) continua sendo uma preocupação importante e que as ações nesse segmento têm de ser intensificadas” (BRASIL, 2015, p. 3). Isso porque, segundo as estatísticas, o principal meio de transmissão do HIV, dentre os indivíduos de 13 anos ou mais de idade, é a relação sexual: “em 2014, essa categoria correspondeu a 95,4% entre os homens e 97,1% entre as mulheres” (BRASIL, 2015, p. 15).
Atualmente, certo é que o tratamento específico ofertado na rede pública de saúde, o chamado “coquetel”, prolonga significativamente a vida das pessoas soropositivas e diminui a possibilidade de transmissão do vírus. Todavia, a prevenção mostra-se como meio mais eficaz em um contexto onde ainda não há cientificamente a cura para a moléstia.
Existe ainda a “prevenção combinada”, consistente na combinação de diferentes abordagens, sejam elas comportamentais, biomédicas ou estruturais, objetivando a redução da transmissão do HIV (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2014, p. 7). Destacam-se, na oportunidade, os seguintes meios de prevenção: tratamento da pessoa que vive com HIV/AIDS, profilaxia pós-exposição (PEP) e profilaxia pré-exposição (PrEP).
Nessa perspectiva, observa-se que a combinação das medidas preventivas, seja pelo tratamento, pelas profilaxias acima descritas, ou, ainda, pela ampliação da identificação do diagnóstico através do autoteste referido, permite falar-se na possível tendência da AIDS tornar-se uma patologia crônica, não curável, todavia, não ausente de efeitos colaterais e prejuízos econômicos e psicológicos à vida do indivíduo contaminado.
É nesse sentido que a transmissão voluntária e deliberada do vírus, com o desconhecimento do parceiro sexual, a chamada “carimbada” é um ato lesivo, senão de imediato ao bem jurídico “vida”, mas diretamente prejudicial à qualidade de vida somática e psicológica da vítima contaminada.
 
Tal conduta de transmitir conscientemente o vírus dá-se por comportamento “perverso” do indivíduo soropositivo, ao qual se atribui a definição de parafilia. No caso da “carimbada”, como observado em reportagem jornalística investigativa, verifica-se até a criação de um “clube do carimbo”, voltado a unir, divulgar e estimular a realização desta parafilia lesiva.2
As parafilias, antigamente denominadas perversões sexuais, estão elencadas no item F65 – Transtornos da preferência sexual, da Classificação Internacional de Doenças e Problemas relacionados à Saúde (CID-10), criada pela Organização Mundial da Saúde.
Coelho (2012) traça um paralelo entre a obra “A filosofia na alcova” de Sade e a AIDS ao afirmar:

Se, na obra de Sade, o sexo é deliberadamente utilizado para gerar gozo com a morte do outro, com a AIDS tem-se uma fantasia dessa natureza. De Sade à AIDS, temos uma série de significantes que versam sobre aspectos dessa questão. Hades, Aides e Aidos são os nomes gregos para o deus e o mundo dos mortos, o invisível e o pudor, respectivamente. Em Sade, temos um assassinato através de um vírus invisível (Aides), um gozo perverso através da violação do pudor (Aidos), um mundo dos mortos (Hades) com vida. Na AIDS, temos uma fantasia original sádica, uma porção de morte viva, um pudor (Aidos) que é violado pela exposição de algo até então velado (Aides). Portanto, de Sade à AIDS, temos a passagem de um ato perverso para a fantasia de um gozo assassino, de um sexo que mata.  (COELHO, 2012)

Observa-se, portanto, que a transmissão voluntária está relacionada diretamente à condição psicológica do agente, portador de transtorno da preferência sexual, aliada a uma pulsão destrutiva sádica de si e do outro.
Por outro viés, há casos para além das parafilias, quando o indivíduo portador do HIV, por mitomania, oculta deliberadamente sua condição de soropositivo do parceiro sexual, em virtude do estigma e preconceito existente, objetivando preservar-se e manter seu relacionamento afetivo.
Entretanto, sendo portadores de manias ou não de parafilias, incontroversa é a gravidade da conduta, tendo em vista se tratar de vírus causador de enfermidade incurável, o qual compromete seriamente o sistema imunológico das pessoas infectadas, além dos danos psicológicos que eventualmente possam ser desenvolvidos em decorrência da doença.
Por esse ângulo, manifestou-se o Conselho Nacional de AIDS francês, ao elaborar o documento Avis suivi de recommandations sur la pénalisation de la transmission sexuelle du vih en France (2015, p. 6):  

Em caso de transmissão do vírus, que tenha como resultado a infecção por HIV, constitui indubitavelmente um dano à integridade física da vitima. Relacionado a isso, o progresso terapêutico reduziu consideravelmente as consequências nocivas da contaminação à saúde da vítima, reduziu a severidade do dano à integridade física, mas não a recupera: o caráter incurável da infecção, o seu impacto é irreversível no organismo, a necessidade de acompanhamento por toda a vida, extenso tratamento ou o seu impacto sobre as condições reprodutivas são elementos constitutivos do dano físico 3 (tradução nossa).

Assim, cumpre analisar a transmissão voluntária do HIV. Como assevera Azevedo (2002, p. 15):

[...] deve haver sanções para punir as pessoas que, direta ou indiretamente, de maneira irresponsável, causam ou provocam a transmissão do vírus da AIDS, bem como as que discriminam e desrespeitam as pessoas soropositivas, impondo-lhes, por consequência, a obrigação de reparar os danos causados à pessoa lesada.

Ademais, conforme posicionamento da UNAIDS (2008, p. 1), apenas a transmissão intencional do HIV deve ser passível de punição, em virtude de não haver, efetivamente, uma coibição da prática da conduta em relação daquele que desconhece ser portador da enfermidade e o transmite involuntariamente:

Em alguns países, a lei penal está sendo aplicada para aqueles que transmitem ou expõe outros a infecção do HIV. Não há dados indicando que a ampla aplicação da lei penal para a transmissão de HIV vai atingir justiça crimina ou prevenir a transmissão de HIV. Em vez disso, essa aplicação arrisca enfraquecer a saúde pública e dos direitos humanos. Por causa dessas preocupações, a UNAIDS incita os governos a limitarem a criminalização de casos de transmissão intencional, ou seja, quando uma pessoa sabe o seu status HIV positivo, age com intenção de transmitir o HIV, e de fato o transmite 4 (tradução nossa) (UNAIDS, 2008, p. 1)

Nesse contexto, desponta o questionamento das consequências e dos aspectos jurídicos da transmissão voluntária no ordenamento jurídico brasileiro. Isso porque, além da proteção que a lei deve conferir à pessoa soropositiva, de modo a evitar discriminações e constrangimentos, há a pessoa da vítima. Logo, deve-se objetivar a redução da transmissão do HIV, vírus causador da AIDS, devendo o agente ser responsabilizado criminalmente quando transmite voluntariamente o vírus a outrem, objetivando infectá-lo.
O Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (2008, p. 1), conforme acima demonstrado, firmou o posicionamento de que os governos somente devem aplicar o direito penal nos casos de transmissão intencional do vírus. Para tanto, tece as seguintes recomendações aos Estados membros:
 

  • evitar a introdução de leis específicas para o HIV, aplicando-se a lei penal geral para casos de transmissão intencional;
  • emitir orientações para limitar a discricionariedade da polícia e do Ministério Público na aplicação do direito penal (por exemplo, por definição clara e rigorosamente "intencional" transmissão, ao estipular que um acusado responsabilidade da pessoa para a transmissão do HIV ser claramente estabelecida além de qualquer dúvida razoável, e indicando claramente as considerações e circunstâncias que devem mitigar contra penal Ministério Público); e
  • garantir que a aplicação do direito penal geral à transmissão do HIV seja consistente com as suas obrigações de direitos humanos internacionais5 . (tradução nossa) (UNAIDS, 2008, p. 1)

Não há, no Brasil, uma legislação específica para tratar da transmissão voluntária do vírus, sendo aplicado, portanto, o Código Penal brasileiro.
Outrossim, tramita, no Congresso Nacional, o Projeto de Lei nº 198/2015, cuja finalidade é tratar especificamente acerca da transmissão do vírus do HIV no âmbito penal.
O projeto propõe tornar a transmissão proposital do HIV em crime hediondo, sob o argumento tratar-se a AIDS uma doença incurável e mortal no decorrer do tempo. Tendo conhecimento dessa condição, o portador, caso transmita-a a terceiros, deve ser responsabilizado de maneira mais rigorosa.
O UNAIDS Brasil, opondo-se ao referido projeto de lei, enviou ao Congresso Nacional a “Nota Técnica sobre o Projeto de Lei 198/2015 que ‘torna crime hediondo a transmissão deliberada do vírus da AIDS’”:

A Nota Técnica apresenta argumentos contrários à aprovação de leis específicas para a criminalização da exposição ou transmissão do HIV. Em particular, destaca que este tipo de legislação: (i) não traz vantagens nem benefícios para a saúde pública; (ii) desconsidera os avanços científicos na área; (iii) pode minar as respostas eficazes ao HIV já consolidadas no Brasil; (iv) pode levar a graves erros judiciários; (v) está, cada vez mais, sendo contestada em todo o mundo. Esta nota técnica conclui que, em função de o Brasil já contar com uma disposição legal que permite a ação jurídica sobre casos de transmissão intencional do HIV, qualquer nova legislação sobre o assunto torna-se desnecessária, além de acarretar um provável prejuízo à saúde pública e aos direitos humanos (UNAIDS BRASIL, 2015, p. 1).

Entende o UNAIDS Brasil que já há no ordenamento jurídico brasileiro tipificação penal para a conduta, não havendo necessidade de lei específica. Além disso, enfatiza o posicionamento acerca da “eliminação das leis que criminalizam a exposição ou a transmissão do HIV” (2015, p. 5).  
Saliente-se, ainda, a existência de outros 3 (três) Projetos de Lei referentes à temática, os quais se encontram arquivados, a saber: Projeto de Lei nº 130/1999, Projeto de Lei nº 276/1999 e Projeto de Lei nº 4887/2001.
O Projeto de Lei nº 130/1999, de autoria do então deputado federal Enio Bacci, pretendia “tornar crime hediondo a transmissão deliberada do vírus da AIDS”, de modo a alterar a Lei nº 8.072/1990.
Ainda, o Projeto de Lei nº 276/1999, também proposto pelo deputado acima referido, objetivava a instituição de “pena para transmissão deliberada do vírus da Aids”, acrescendo ao artigo 131 do Código Penal o parágrafo único, o qual determinada a pena de reclusão de 2 (dois) a 6 (seis) anos no caso de transmissão consciente e deliberada do vírus da Aids.
Por sua vez, o Projeto de Lei nº 4887/2001, de autoria do deputado federal Feu Rosa, pretendia a inclusão do artigo 267-A no Código Penal, a fim de tipificar a conduta de “contaminar alguém com doença notoriamente incurável de que sabe ser portador”.
Tentando justificar referido projeto acima, o deputado apresenta argumentos no sentido do “crescente fator de mortalidade no mundo” decorrente da contaminação pelo HIV, além da “certeza de morte”, a qual “torna inigualável o sofrimento da vítima”, em que pese à existência de medicamentos.
No contexto da criminalização da transmissão voluntária do HIV, discorre Godoi:

A criminalização relacionada ao HIV é um problema que envolve grande complexidade, abarcando aspectos médicos, sociais e éticos, sendo recorrente desde o início da epidemia. A polêmica em torno do tema envolve conflito de valores para cuja resolução é necessária uma reflexão ética sobre a sua validade e procedência, especialmente se está em consonância com os princípios dos direitos humanos e como atende aos interesses individuais e coletivos (GODOI, 2013, p. 13).

Nota-se, à vista disso, que a tentativa de justificar a adoção de legislação específica para o HIV/AIDS, além de não estar respaldada em estudos científicos, apresenta-se como verdadeira afronta aos direitos mínimos garantidos para promover a dignidade da pessoa que vive com HIV/AIDS.
Além disso, Godoi (2013, p. 14) pondera acerca das consequências que a adoção de lei penal específica pode causar:

A criminalização da transmissão ou exposição sexual ao vírus HIV e a adoção de lei penal específica para tratar do problema envolvem questões delicadas que se inserem na área da bioética e da saúde pública. De um lado, questionam-se se leis com esse conteúdo não representariam uma afronta aos direitos das pessoas vivendo com o HIV, contribuindo para o aumento da estigmatização e discriminação a que estão sujeitas. De outro lado, também são questionados os impactos que normas dessa natureza poderiam trazer para o âmbito da saúde pública. (GODOI, 2013, p. 14)

Observa-se que a conduta de transmitir voluntariamente o HIV já se encontra inserida no ordenamento jurídico brasileiro, através da aplicação do Código Penal.
Sendo assim, não se faz necessária legislação específica, tampouco “elevar” a transmissão intencional do vírus ao patamar de crime hediondo. Isso porque a elaboração de legislação específica referente à temática comporta, além da comunidade jurídica, aspectos de ordem médica, social e ética, os quais devem ser exaustivamente discutidos a fim de evitar afronta direta aos direitos humanos e, até mesmo, consequente ineficiência penal.
Ocorre que, em virtude da ausência de tipo específico para a conduta, no âmbito penal, há divergência doutrinária acerca do crime o qual deverá ser imputado ao agente na hipótese de transmissão voluntária do HIV.
Para Greco (2014, p. 344), a conduta refere-se à tipificação do artigo 121 do Código Penal, qual seja, homicídio, na sua modalidade tentada ou consumada, sob o argumento ser a AIDS considerada uma doença mortal:

Problema que hoje envolve muita discussão diz respeito à transmissão do vírus HIV. Imagine-se a hipótese em que o agente, querendo, efetivamente, transmitir o vírus HIV à vítima, nela aplique uma injeção contendo sangue contaminado. Pergunta-se: Qual seria o delito imputado ao agente uma vez que, embora contaminada, a vítima ainda se encontra viva? Poderíamos raciocinar em termos de lesão corporal qualificada pela enfermidade incurável?
Entendemos que não. Mais do que uma enfermidade incurável, a Aids é considerada uma doença mortal, cuja cura ainda não foi anunciada expressamente. Os chamados “coquetéis de medicamentos” permitem que o portador leve uma vida “quase” normal, com algumas restrições. Contudo, as doenças oportunistas aparecerem, levando a vítima ao óbito. Dessa forma, mais do que uma enfermidade incurável, a transmissão dolosa do vírus do HIV pode se amoldar, segundo nosso ponto de vista, à modalidade típica prevista pelo art. 121 do Código Penal, consumado ou tentado. (GRECO, 2014, p. 344)

Nesse sentido, também Capez (2015, p. 211) ao afirmar que, na hipótese de haver intenção do agente em transmitir a doença e efetivamente transmiti-la, “o enquadramento da conduta dar-se-á no homicídio doloso, tentado ou consumado (artigo 121, caput)”.
Contudo, a depender da intenção do agente, a conduta poderá ser tipificada, ainda, como lesão corporal culposa ou homicídio culposo, previstos, respectivamente, nos artigos 129, §6º e 121, §3º, ambos do Código Penal.
Quanto ao crime previsto no artigo 130 do Código Penal – perigo de contágio venéreo –, atesta Capez (2015, p. 211) pela impossibilidade da configuração em relação à transmissão da AIDS:

[...] além de não ser considerada doença venérea pela medicina, não é transmissível somente por meio de relações sexuais, mas também, por exemplo, por transfusão de sangue, emprego de seringas usadas.

Nessa perspectiva, discorre Nucci (2013, p. 693) que “a síndrome da imunodeficiência adquirida não é doença venérea, pois ela possui outras formas de transmissão que não são as vias sexuais”. Assevera ainda:

Caso o agente tenha relação sexual com alguém, sabendo-se contaminado e fazendo-o sem qualquer proteção, tendo a intenção de transmitir a moléstia ou assumindo o risco de assim causar, deve responder por perigo de contágio de moléstia grave (art. 131, CP). Consumando-se a transmissão e gerando lesão, deve-se analisar qual o alcance dessa enfermidade (se grave ou gravíssima, a lesão absorve o crime de perigo do art. 131). Por outro lado, conforme o estado de saúde da vítima, a transmissão do vírus HIV pode representar a morte; assim sendo, com ciência do agente, deve responder por homicídio (ou tentativa, conforme o caso). Não cremos possa haver solução única; tudo depende do caso concreto e da real intenção do agente (NUCCI, 2013, p. 652).

Ainda, assegura Nucci (2013, p. 695) a possibilidade do enquadramento da AIDS na hipótese do artigo 131 do Código Penal tendo em vista os progressos na área médica, motivo pelo qual “a descoberta do vírus HIV no organismo não mais equivale, como no passado, a uma sentença de morte”:

Por isso, alteramos nosso anterior posicionamento. A possibilidade de transmissão do vírus HIV pode tipificar o delito previsto no art. 131 – e não necessariamente uma tentativa de homicídio, ou também, caso a enfermidade se instale, lesão corporal grave, que absorve o crime do art. 131. Porém, dependendo do quadro clínico da vítima, ciente o autor, a transmissão do referido vírus pode ter a aptidão de representar uma moléstia fatal, permitindo-se a tipificação com base no art. 121 (forma consumada ou tentada, dependendo do caso concreto). (NUCCI, 2013, p. 695).

Já para Bitencourt (2012, p. 482) a transmissão dolosa do HIV, além da tipificação de homicídio, amoldar-se-á, a depender da intenção do agente, nos crimes de perigo de contágio de moléstia grave (artigo 131 do Código Penal) e lesão corporal seguida de morte (artigo 129, §3º do Código Penal).
Nota-se, portanto, não ser a tipificação da transmissão voluntária do HIV isenta de controvérsias doutrinárias, podendo, conforme assinalado, configurar os crimes de homicídio simples (artigo 121, do Código Penal) – nas modalidades consumada e tentada –, homicídio culposo (artigo 121, §3º, do Código Penal), lesão corporal de natureza gravíssima (artigo 129, §2º, II do Código Penal), lesão corporal seguida de morte (artigo 129, §3º, do Código Penal), lesão corporal culposa (artigo 129, §6º, do Código Penal), ou, ainda, perigo de contágio de moléstia grave (artigo 131, do Código Penal).
A divergência acerca do enquadramento da conduta de transmitir voluntariamente o HIV foi objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus nº 98712:

MOLÉSTIA GRAVE – TRANSMISSÃO – HIV – CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA VERSUS O DE TRANSMITIR DOENÇA GRAVE. Descabe, ante previsão expressa quanto ao tipo penal, partir-se para o enquadramento de ato relativo à transmissão de doença grave como a configurar crime doloso contra a vida. Considerações. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2010).

No referido caso, ao paciente foi imputada a prática de tentativa de homicídio, tendo em vista que, em que pese ter conhecimento de sua soropositividade, manteve relações sexuais com 3 (três) mulheres distintas, as quais desconheciam sua situação médica.
Entendeu o Ministro Marco Aurélio, relator, descabida a imputação do crime de tentativa de homicídio ao paciente, em virtude de existir tipo penal específico para a conduta praticada, qual seja, perigo de contágio de moléstia grave, previsto no artigo 131 do Código Penal (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2010, p. 64-66).
Em seu voto, o Ministro Ayres Britto sustentou:

No Brasil, a criminalização da transmissão intencional do vírus HIV não se dá em tipo penal específico. É falar: não há em nossa legislação figura delituosa que trate, exclusivamente, da transmissão não acidental do vírus da AIDS. E esse quadro se repete em diversos países do ocidente (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2010, p. 75).

Considerando a divergência doutrinária, já existente à época, concluiu que a temática da transmissão intencional do HIV comportava dilema hermenêutico, uma vez que, seja no crime de perigo de contágio de moléstia grave, lesão corporal gravíssima, ou, ainda, homicídio (consumado ou tentado), “o dolo é sempre de dano. Ou seja, a vontade do agente extrapola a simples criação de uma situação de risco e alcança a efetiva lesão ao bem jurídico tutelado”. Prossegue ao afirmar:

15. Acresce que, se examinarmos o tema da transmissão dolosa do HIV pelos resultados que dela podem advir, conseguiremos enquadrá-la em qualquer um dos três tipos penais retromencionados. Veja-se: a) no caso do artigo 131, a efetiva transmissão da doença grave é considera o exaurimento do fato típico; b) no caso da lesão corporal gravíssima, o contágio implicará uma debilidade crônica do organismo da vítima. Debilidade que, apesar de amenizada por via medicamentosa, é incurável; c) no caso do homicídio, mesmo atentando-se para a possibilidade de sobrevida em função de coquetel antirretroviral, a morte da vítima pode ser consequência da doença.
16. Sucede que, dentro da sistemática finalista adotada pelo Código Penal Brasileiro, a adequação típica está vinculada à ação ou omissão orientada para o resultado, devido a que “o injusto não é produzido pela simples causalidade, mas somente como obra de uma determinada pessoa, tendo em vista seus objetivos, motivos ou deveres para com o fato, que apresenta, a mesma importância para o injusto que a lesão efetiva de bens jurídicos.” (TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 238-239.) Daí porque tenho que a controvérsia é  de ser resolvida com a máxima do finalismo penal, expressa na chamada “intenção do agente”; ou seja, fosse o propósito do agente apenas transmitir o vírus do HIV, o crime seria o do art. 131 do CP; fosse a intenção do  réu ofender a integridade física das vítimas, o delito seria o do inciso II do §2º do art. 129 do CP; enfim, fosse o intento do autor da ação matar as vítimas, estaria configurado o homicídio (tentado ou consumado). (grifo no original) (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2010, p. 79).

Tendo em vista a impossibilidade de “chegar a um denominador comum” acerca da correta tipificação da conduta, optaram os ministros do Supremo Tribunal Federal em desclassificar a tentativa de homicídio, e, por conseguinte, afastar a competência do Tribunal do Júri, remetendo os autos ao Juízo comum para que este determinasse a classificação do delito (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2010, p. 86-87).
Outrossim, acerca da impossibilidade da configuração de crime doloso contra a vida:

A pessoa vivendo com HIV/AIDS não tem o domínio sobre a produção do resultado morte, que lhe escapa ao controle. Diríamos que não tem controle, necessariamente, sobre o resultado infecção por HIV. (GUIMARÃES, 2011, p. 15)
[...]
Chamamos a atenção: a imputação de tentativa de homicídio simples ou qualificado, por conta do preconceito, estigma e discriminação contra a pessoa vivendo com HIV/AIDS, nada mais é do que responsabilidade objetiva, que é proibida pelo direito penal brasileiro. (GUIMARÃES, 2011, p. 25)

Embasando-se na referida decisão, quanto a não configuração do crime de homicídio, decidiu o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Habeas Corpus nº 160982, de relatoria da Ministra Laurita Vaz, configurar a hipótese prevista no artigo 129, §2º, II, do Código Penal (lesão corporal gravíssima):
HABEAS CORPUS. ART. 129, § 2.º, INCISO II, DO CÓDIGO PENAL. PACIENTE QUE TRANSMITIU ENFERMIDADE INCURÁVEL À OFENDIDA (SÍNDROME DA IMUNODEFICIÊNCIA ADQUIRIDA). VÍTIMA CUJA MOLÉSTIA PERMANECE ASSINTOMÁTICA. DESINFLUÊNCIA PARA A CARACTERIZAÇÃO DA CONDUTA. PEDIDO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA UM DOS CRIMES PREVISTOS NO CAPÍTULO III, TÍTULO I, PARTE ESPECIAL, DO CÓDIGO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. SURSIS HUMANITÁRIO. AUSÊNCIA DE MANIFESTAÇÃO DAS INSTÂNCIAS ANTECEDENTES NO PONTO, E DE DEMONSTRAÇÃO SOBRE O ESTADO DE SAÚDE DO PACIENTE. HABEAS CORPUS PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, DENEGADO.
1. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 98.712/RJ, Rel. Min. MARCO AURÉLIO (1.ª Turma, DJe de 17/12/2010), firmou a compreensão de que a conduta de praticar ato sexual com a finalidade de transmitir AIDS não configura crime doloso contra a vida. Assim não há constrangimento ilegal a ser reparado de ofício, em razão de não ter sido o caso julgado pelo Tribunal do Júri.
2. O ato de propagar síndrome da imunodeficiência adquirida não é tratado no Capítulo III, Título I, da Parte Especial, do Código Penal (art. 130 e seguintes), onde não há menção a enfermidades sem cura. Inclusive, nos debates havidos no julgamento do HC 98.712/RJ, o eminente Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, ao excluir a possibilidade de a Suprema Corte, naquele caso, conferir ao delito a classificação de "Perigo de contágio de moléstia grave" (art. 131, do Código Penal), esclareceu que, "no atual estágio da ciência, a enfermidade é incurável, quer dizer, ela não é só grave, nos termos do art. 131".
3. Na hipótese de transmissão dolosa de doença incurável, a conduta deverá será apenada com mais rigor do que o ato de contaminar outra pessoa com moléstia grave, conforme previsão clara do art. 129, § 2.º inciso II, do Código Penal.
4. A alegação de que a Vítima não manifestou sintomas não serve para afastar a configuração do delito previsto no art. 129, § 2, inciso II, do Código Penal. É de notória sabença que o contaminado pelo vírus do HIV necessita de constante acompanhamento médico e de administração de remédios específicos, o que aumenta as probabilidades de que a enfermidade permaneça assintomática. Porém, o tratamento não enseja a cura da moléstia.
5. Não pode ser conhecido o pedido de sursis humanitário se não há, nos autos, notícias de que tal pretensão foi avaliada pelas instâncias antecedentes, nem qualquer informação acerca do estado de
saúde do Paciente.

6. Habeas corpus parcialmente conhecido e, nessa extensão, denegado. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2012).

Do presente julgado, podem-se extrair duas conclusões: a) se a intenção do agente sinaliza na transmissão da moléstia incurável à vítima, o delito configurado é o de lesão corporal gravíssima, previsto no artigo 129, §2º, inciso II, do Código Penal; b) o argumento da não manifestação da doença na vítima não merece prosperar, pois não apresenta influência na consumação do delito.

Corroborando com o entendimento da configuração do delito de lesão corporal gravíssima, decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, ao julgar a Apelação Criminal nº 2011.030246-5:

APELAÇÃO CRIMINAL. LESÃO CORPORAL DE NATUREZA GRAVÍSSIMA. TRANSMISSÃO DO VÍRUS HIV (ART. 129, § 2º, II, DO CÓDIGO PENAL). SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. RECURSO MINISTERIAL. PLEITO PELA CONDENAÇÃO DIANTE DAS PROVAS APRESENTADAS NOS AUTOS. ACOLHIMENTO. MATERIALIDADE E AUTORIA DELITIVAS DEVIDAMENTE COMPROVADAS POR MEIO DE DEPOIMENTOS COERENTES E UNÍSSONOS DA VÍTIMA E DAS TESTEMUNHAS. DOLO EVIDENCIADO. CONDENAÇÃO QUE SE IMPÕE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. "Contendo os autos prova incontroversa de que o apelante sabia ser portador do vírus HIV desde data anterior aos fatos narrados na denúncia, impositiva a manutenção de sua condenação por transmitir à companheira a enfermidade incurável" (TJRS, Apelação Criminal n. 70028856680 de Vacaria, rela. Desa. Elba Aparecida Nicolli Bastos, j. 30/4/2009). CONTRARRAZÕES. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA. BENEFÍCIO INCABÍVEL. RÉU ASSISTIDO POR PROCURADOR NOMEADO PELO JUÍZ. INTELIGÊNCIA DO DISPOSTO NO TÍTULO III, ITEM 41, DA LEI COMPLR N. 155/1997. VERBA JÁ CONCEDIDA NA SENTENÇA. PLEITO INACOLHIDO. JUSTIÇA GRATUITA. ISENÇÃO DE CUSTAS PROCESSUAIS. MATÉRIA AFETA AO JUÍZO DE EXECUÇÃO. PEDIDO NÃO CONHECIDO. (SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça, 2011).

Interessante ressaltar que, no caso referente à ementa acima colacionada, a condenação criminal transitada em julgado acabou por originar ação de indenização por dano moral no âmbito cível, assunto que será abordado no capítulo a seguir.

Vislumbra mais acertada a tipificação da conduta de transmitir voluntariamente o HIV – “carimbada” – no disposto no artigo 129, §2º, II do Código Penal (lesão corporal gravíssima). Isso porque: a) a AIDS não mais é considerada uma “sentença de morte”, mas sim, conforme exposto anteriormente, uma doença crônica, não curável, porém administrável; b) inegável que o HIV/AIDS compromete o sistema imunológico da vítima e se trata de enfermidade, até o momento, incurável; c) a imputação ao agente da prática do delito de homicídio, em qualquer de suas modalidades, levando-se em consideração apenas a prática de relações sexuais, revela-se eivada de preconceito, estigma e discriminação às pessoas soropositivas.

Portanto, deve-se ser imputada ao agente, que transmite deliberadamente o HIV a terceiro, a prática do delito de lesão corporal gravíssima, sendo submetido à pena de reclusão de 2 (dois) a 8 (oito) anos, em consonância com o artigo 129, §2º, II, do Código Penal.

CONCLUSÃO

Conforme demonstrado na presente pesquisa, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) é causada pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV) e apresenta-se como estágio mais avançado da patologia sobre o sistema imunológico, comprometendo seriamente a saúde da pessoa infectada.
Dentre as diversas formas de contágio do HIV, a pesquisa deu enfoque àquela realizada por meio de relações sexuais. Especialmente, quando a transmissão do vírus é praticada de maneira intencional pela pessoa que vive com HIV/AIDS, objetivando infectar terceiros, a “carimbada”.
Não obstante, foi exposta que conduta de transmitir conscientemente o vírus dá-se por um grupo pequeno de soropositivos, o “Clube do Carimbo”, isso porque ligada a transtornos da preferência sexual (parafilias) ou, ainda, é decorrente de ocultamento, de forma voluntária, da condição médica da pessoa que vive com HIV/AIDS, em virtude do estigma e preconceito social existente. Destacou-se, na oportunidade, o “Clube do Carimbo”, grupo de indivíduos que possuem o dolo específico de transmitir o HIV a terceiros por meio de relações sexuais.
Nesse contexto, por entender que a transmissão voluntária do HIV/AIDS possui contornos jurídicos, passou-se a analisar suas consequências dentro do ordenamento jurídico brasileiro.
No âmbito criminal, observou-se que não há no Brasil legislação específica para o tratamento da transmissão do HIV/AIDS, atendendo, assim, às recomendações do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS).
Todavia, esporadicamente, são propostos projetos de Lei a fim de especificar a temática, o que revela a tendente criminalização relacionada.
Por não haver legislação específica, a transmissão do HIV/AIDS gera debates doutrinários acerca da correta tipificação. Contudo, o Superior Tribunal de Justiça decidiu no ano de 2012 que a conduta caracteriza delito de lesão corporal gravíssima, previsto no artigo 129, §2º, inciso II, do Código Penal.
Portanto, a “carimbada”, esta entendida como a conduta de transmitir voluntariamente o HIV/AIDS a terceiro, possui reflexos já tipificados no direito penal brasileiro. Estará o sujeito que praticou a referida conduta tanto passível de eventual apuração da responsabilidade criminal, pela prática do delito de lesão corporal gravíssima.
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1 Para maiores informações, visite o endereço: http://www.aids.gov.br/pagina/sintomas-e-fases-da-aids

2 Para mais informações, visite o endereço: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2015/03/novas-vitimas-contam-como-foram-contaminadas-de-proposito-pelo-hiv.html

3 En cas de transmission du virus, l’infection par le VIH qui en résulte constitue indubitablement une atteinte à l’intégrité physique de la victime. À cet égard, les progrès thérapeutiques, en réduisant considérablement les conséquences délétères de la contamination sur la santé de la victime, réduisent la sévérité de l’atteinte à l’intégrité physique mais ne la remettent pas en cause : le caractere incurable de l’infection, son retentissement irréversible sur l’organisme, la nécessité de suivre à vie un traitement lourd ou encore son impact sur les conditions de la procréation demeurent autant d’éléments constitutifs de l’atteinte physique.

4 In some countries, criminal law is being applied to those who transmit or expose others to HIV infection. There are no data indicating that the broad application of criminal law to HIV transmission will achieve either criminal justice or prevent HIV transmission. Rather, such application risks undermining public health and human rights. Because of these concerns, UNAIDS urges governments to limit criminalization to cases of intentional transmission i.e. where a person knows his or her HIV positive status, acts with the intention to transmit HIV, and does in fact transmit it.

5 States should also:

  • avoid introducing HIV-specific laws and instead apply general criminal law to cases of intentional transmission;
  • issue guidelines to limit police and prosecutorial discretion in application of criminal law (e.g. by clearly and narrowly defining “intentional” transmission, by stipulating that an accused person’s responsibility for HIV transmission be clearly established beyond a reasonable doubt, and by clearly indicating those considerations and circumstances that should mitigate against criminal prosecution); and
  • ensure any application of general criminal laws to HIV transmission is consistent with their international human rights obligations.

Recibido: 15/09/2016 Aceptado: 12/12/2016 Publicado: Diciembre de 2016

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