Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


MEMÓRIA E PATRIMÔNIO CULTURAL: UM OLHAR PARA A FORMAÇÃO DE UMA POLÍTICA DA DIVERSIDADE LINGUÍSTICA NO BRASIL

Autores e infomación del artículo

Izabel da Silva*

Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil

izabeldasilva13@gmail.com

RESUMO: Este artigo objetiva refletir sobre a formação de uma política linguística de salvaguarda da diversidade linguística como patrimônio cultural brasileiro. Na formação dos Estados-nação, a língua funcionou como um importante recurso de transmissão de uma memória oficial e de criação de um patrimônio cultural que pretendeu forjar uma identidade nacional (Le GOFF, 1984; PRATS, 1998), colaborando com a redução da diversidade linguística de diferentes culturas formadoras da sociedade brasileira. No entanto, nos últimos anos, algumas iniciativas têm refletido uma preocupação com o reconhecimento da pluralidade linguística, como a criação do decreto nº 7.387/2010 que instituiu o Inventário Nacional da Diversidade Linguística (IPHAN, 2014). Dessa forma, primeiro, discorremos sobre as concepções de memória e patrimônio cultural e sua relação com a formação dos Estados nacionais. Em seguida, apresentamos uma visão panorâmica das políticas linguísticas. Para então, analisarmos como está sendo constituída uma política da diversidade linguística no Brasil.

Palavras-chave: políticas linguísticas, diversidade linguística, memória e patrimônio cultural

 

ABSTRACT: This article aims to reflect on the formation of a language policy to safeguard linguistic diversity as Brazilian cultural heritage. In the formation of nation-states, the language functioned as an important transmission feature of an official memory and the creation of a cultural heritage that sought to forge a national identity (Le GOFF, 1984; PRATS, 1998), contributing to the reduction of diversity language of different cultures forming of Brazilian society. However, in recent years, some initiatives have reflected a concern for the recognition of linguistic plurality, such as the creation of the Decree 7.387/2010 which established the National Inventory of Linguistic Diversity (IPHAN, 2014). Thus, first, we carry on about the memory of conceptions and cultural heritage and its relation to the formation of nation states. We then present an overview of language policies. By then, we analyze how it is being made a policy of linguistic diversity in Brazil.

Keywords: language policies; linguistic diversity; memory and cultural heritage.


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Izabel da Silva (2016): “Memória e patrimônio cultural: um olhar para a formação de uma política da diversidade linguística no Brasil”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (julio-septiembre 2016). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/03/lenguas.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/CCCSS-2016-03-lenguas


INTRODUÇÃO

A realidade plurilíngue do Brasil ainda é pouco conhecida e discutida no cenário nacional, prevalece a crença no Estado monolíngue, pautado na oficialidade da língua portuguesa, instituída na Constituição Federal de 1988, e invisibilizando as cerca de 200 línguas que configuram o país como um dos territórios mundiais mais diversos linguisticamente (ALTENHOFEN et. al., 2011, p. 19).
Apesar de o Art. 231 da Carta Magna de 1988 reconhecer aos povos indígenas o direito de se expressar em suas línguas, não garantia, até então, a proteção e salvaguarda destas, nem tampouco, o reconhecimento de outras línguas formadoras da sociedade brasileira, como as línguas afro-brasileiras ou as línguas de imigração. Desse modo, o país carecia de uma política linguística específica voltada ao reconhecimento da diversidade linguística.
A preocupação com a garantia dos direitos linguísticos dos povos formadores da sociedade brasileira tem recebido maior visibilidade nos últimos anos, seja através da participação da sociedade civil em reivindicações por direitos linguísticos, ou por iniciativas governamentais de promoção e salvaguarda da diversidade linguística do país. Podemos pontuar como gesto fundador efetivo das discussões a respeito das demandas linguísticas e culturais, o Seminário Legislativo sobre a Criação do Livro de Registro das Línguas, realizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN e pelo Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística - IPOL, que aconteceu no ano de 2006, em Brasília.
O debate acerca da formação de uma política patrimonial para as línguas faladas pelas comunidades brasileiras, iniciado no seminário, ajudou a constituir, ainda em 2006, o Grupo de Trabalho da Diversidade Linguística do Brasil (doravante GTDL), com o objetivo de “analisar a situação linguística do Brasil, estudar o quadro legal dentro do qual a questão se insere e propor estratégias para a criação de uma política patrimonial compatível com a diversidade linguística existente no Brasil” (GTDL, Relatório de Atividades, 2006-2007, p. 3). Nota-se, portanto, o fortalecimento das discussões sobre uma política da diversidade linguística no atual cenário brasileiro, no entanto, acredita-se que ainda se faz necessário dar visibilidade ao debate, o que a partir do nosso ponto de vista, inclui refletir sobre as políticas linguísticas de silenciamento da diversidade que acompanhou a formação de um projeto de Estado-nação; além da problemática em torno dos direitos linguísticos e como estes passam a ser considerados patrimônio cultural imaterial.
Neste sentido, este artigo propõe como objetivo refletir sobre o processo de formação de uma política da diversidade linguística como patrimônio cultural brasileiro. Partimos de uma fundamentação teórico-metodológica interdisciplinar, de cunho interpretativo, para analisarmos os documentos legais que circunscrevem a política da diversidade linguística. Dessa forma, primeiro, discorremos sobre as concepções de memória e patrimônio cultural e sua relação com a formação dos Estados nacionais. Em seguida, apresentamos uma visão panorâmica das políticas linguísticas no Brasil. Para então, analisarmos como está sendo constituída uma Política da Diversidade Linguística no país.

MEMÓRIA E PATRIMÔNIO CULTURAL

A memória é imprescindível para compreendermos a nossa construção identitária como sujeitos e dos grupos sociais aos quais nos inserimos, e para isso, as línguas desempenham um papel importante como elemento de transmissão da memória cultural. Nas palavras de Arruda (2000), citado por Weber e Pereira (2010, p. 115): “o caráter social da memória se dá através de sua expressão pela linguagem, um mecanismo social que confere à recordação compartilhada um significado de identificação emocional, político, geográfico, visual, entre outros”. Logo, a língua carrega elementos da memória que pode constituir o patrimônio e a identidade de um povo.
Para Candau (2012), desde as gravuras pré-históricas (cavernas, paredes, madeiras) e em múltiplas práticas, percebe-se a preocupação do homem em “deixar traços, assinar, deixar suas iniciais”, ou seja, “fazer memória”. Neste sentido, a pedra, o mármore, serviram como suporte para a perpetuação da lembrança no mundo. Conforme pontua  Le Goff (1984), os arquivos de pedra tinham caráter de publicidade e durabilidade dessa memória lapidar e marmórea ligada à escrita.
O desenvolvimento da escrita foi um recurso importantíssimo para construção de uma identidade individual e coletiva, pois, de acordo com Candau (2012, p. 107), é “a tradição escrita (que) vai facilitar o trabalho dos portadores, guardiões e difusores da memória”. O autor reitera que a escrita propiciou a socialização da memória e o armazenamento de informações, com exceção de algumas comunidades onde a transmissão oral foi e continua sendo suficiente para a transmissão e manutenção da tradição cultural, podemos citar como exemplo a existência das 180 línguas indígenas faladas atualmente pela população brasileira.
Le Goff (1984)  ao discorrer sobre o surgimento do conceito de memória coletiva, especifica que seu caráter coletivo deve-se à sua função social, na qual intervém a linguagem, já que ela mesma seria resultado da sociedade e, através dela, primeiro falada e depois escrita, seria possível o armazenamento da memória. Assim, “a falta ou a perda, voluntária ou involuntária, da memória colectiva nos povos e nas nações pode determinar perturbações graves da identidade colectiva” (LE GOFF, 1984, p. 12).
Tanto a escrita, quanto os demais recursos usados para a transmissão da memória, além de registrar os traços do passado, podem ser determinantes na constituição de uma futura identidade cultural, o que possivelmente explica a necessidade de sua proteção e reconhecimento como patrimônio. Desse modo, a memória é importante porque representa a imagem do presente e do passado, e por sua vez, “os bens, que constituem os elementos  formadores do patrimônio, são ícones repositórios da memória, permitindo que o passado  interaja com o presente, transmitindo conhecimento e formando a identidade de um povo” (GHIRARDELLO e SPISSO, 2008, p. 13).
A Revolução Francesa influenciada pelas ideias iluministas, se pautava nas ideologias de racionalidade crítica, histórica, de unidade, entre outras, contribuiu com a formação da cultura material do passado, e fez com que a França assumisse para si, a responsabilidade de reescrever a história universal e tornar-se guia do futuro, pois tinha a pretensão de servir de exemplo às outras nações. Desse modo, um imperativo de seleção orientava a relação com o patrimônio material do passado, visto que, “as antiguidades nacionais davam testemunho de épocas bárbaras, indignas do universal estético e histórico” (POULOT, 2009, p. 91), e que, portanto, poderiam ser modificadas, reutilizadas ou mesmo destruídas, a fim de atender ao ideário da Nação. 
As ações dos nacionalistas franceses acabaram contribuindo com a extinção de um grande número de costumes, a antiga diversidade dos sujeitos obrigou-se a ceder o lugar à uniformidade dos cidadãos. Decorrentes destes princípios, vários aspectos enumerados por Poulot (2009), como a afirmação de uma língua comum, são escolhidos como importantes para compor a invenção da Nação:

(…) invenção dos antepassados fundadores; construção de uma história amplamente compartilhada e que havia passado ao estado, por assim dizer, de conhecimento difuso no corpo social; afirmação de uma língua  e de uma literatura comuns; e, por último, progressiva sensibilização em relação a uma paisagem concebida como uma representação do território nacional (POULOT, 2009, p. 121-122).

Portanto, os idealizadores da nação para atender à coletividade, determinaram que o patrimônio do passado deveria ser propriedade de toda a humanidade e, deveria representar os três valores essenciais da nação: a identidade, a continuidade e a unidade.
O Romantismo,  de acordo com Prats (1998), marca o início do que compreendemos hoje como patrimônio cultural, uma vez que representa uma reação de irracionalidade frente à razão e aos valores canônicos iluministas, ao considerar a natureza idealizada, a história das grandes façanhas heroicas e a genialidade como inspiração criativa. A origem do patrimônio cultural e seu processo de construção não parece ao autor diferente de outros processos de representação e legitimação simbólica das ideologias, por isso ele afirma que o patrimônio cultural é uma invenção e uma construção social. Posto que, nenhuma invenção adquire autoridade antes de legitimar-se como construção social, ao passo que nenhuma construção social se produz espontaneamente sem um discurso prévio inventado pelo poder ao qual se refere o patrimônio cultural.
Em resumo, Prats (1998), conceitua o “patrimônio cultural” como tudo aquilo que socialmente se considera digno de conservação, independentemente, de seu interesse utilitário; abarca também o patrimônio natural, à medida que trata-se de elementos e conjuntos naturais culturalmente selecionados.
Quanto ao “patrimônio cultural imaterial”, Chacon et al. (2014) o conceituam o como sendo “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, arte­fatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os gru­pos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural” (Idem, 2014, p. 17). O patrimônio cultural imaterial, que se transmite de gera­ção em geração, gerando um sentimento de identidade e continuidade, também inclui a diversidade linguística. No entanto, para os autores, a língua se difere dos demais bens culturais devido a seu papel de articulação e transmissão da cultura, assim sendo, “nenhuma prá­tica, nenhuma representação, nem conhecimentos ou técnicas são passíveis de serem transmitidos entre as diferentes gerações senão através da mediação exer­cida pela língua” (CHACON et al., 2014, p. 17).
O acontece sem essa mobilização da memória que é a transmissão? Sem a transmissão da memória, responde Candau (2012, p. 106), “já não há nem socialização nem educação, e ao mesmo tempo, se admitimos, (…), que cultura é uma tradição transmissível de comportamentos apreendidos, toda identidade cultural se torna impossível”. O que acontece quando ações políticas homogeneizadoras e monolíticas impossibilitam o compartilhamento de uma cultura através de sua língua? É o que passaremos a discutir a seguir.

POLÍTICAS LINGUÍSTICAS NO BRASIL

Embora a intervenção humana no uso das línguas não seja recente, foi apenas após a  Segunda Guerra Mundial, na segunda metade do século XX, que surgiram os estudos no campo da “política linguística e planejamento linguístico” como área científica. Arnoux (2012) atribui como marco fundador, as políticas linguísticas implementadas para impor o russo e o inglês como futuras línguas mundiais, quando se dividiram as áreas de influência entre a União Soviética e os Estados Unidos depois da guerra. Quanto ao planejamento linguístico, a autora relaciona o surgimento do termo aos estudos ligados ao processos de descolonização de países da Ásia e África, que após a independência, tinham a função de escolher e impor uma língua nacional diferente das antigas metrópoles.
Para a concepção do binômio política linguística e planificação linguística, Oliveira (2004) apresenta as seguintes definições de Einar Haugen (1966):

Política Linguística é o conjunto de decisões que um grupo de poder, sobretudo um Estado (mas também uma Igreja ou outros tipos de Instituições de poder menos totalizantes) toma sobre o lugar e a forma das línguas na sociedade, e a implementação destas decisões; (…). Planificação Linguística são propostas para modificar a realidade linguística – do status de uma língua em relação a outra, ou de aspectos da sua forma - e se referem ao futuro da relação entre as línguas (OLIVEIRA, 2004, p. 38).

A crítica que faz Hamel (1993) aos primeiros modelos de política linguística se deve à sua relação com concepções estruturalistas da linguagem, mesmo em contextos multilíngues, neste momento, os modelos não concebiam a linguagem como ação social e discurso e desconsideravam as relações de poder, pois suas grandes preocupações relacionavam-se às soluções dos problemas comunicação nesses contextos. Apesar de existir um debate controvertido quanto à definição do termo política linguística, amplamente se entende que a “planificação linguística é um instrumento da política linguística” (HAMEL, 1993, p. 8. Tradução nossa). Preferimos, no entanto, adotar a perspectiva proposta por Maher (2013), por entender que  política e planejamento linguísticos não devem ser vistos como processos independentes ou dissociados, ao contrário, eles são mutuamente constituídos, assim, compreende-se que não só o Estado pode ser agente de políticas linguísticas, ela também pode ser arquitetada localmente nas ações e nos discursos dos falantes. Para a autora, existe uma estreita relação entre políticas linguísticas e políticas de identidade, pois “o estabelecimento de políticas linguísticas não são nunca processos neutros, apolíticos ou isentos de conflito” (2013, p. 121), como podemos observar no cenário nacional, as políticas linguísticas foram/são condicionadas por diferentes momentos históricos.
O processo de formação da língua portuguesa no Brasil recebeu contribuições de diferentes línguas autóctones e alóctones, mas também foi um processo politicamente assimétrico, que teve início com o projeto de colonização territorial português no século XVI.
A imposição da língua portuguesa logo nos primeiros anos da conquista do Brasil, não foi possível devido à grande diversidade de línguas faladas no território. A estimativa introduzida por Silva (2004), seria algo em torno de 1.175 a 1.500 línguas indígenas faladas na época, atualmente, sabe-se da existência de apenas 180 línguas indígenas faladas por uma pequena parcela da população brasileira, um número bastante reduzido se compararmos com o início da colonização. Os dados acerca das línguas africanas são quase inexistentes, resultado da “implantação pela Coroa portuguesa de uma política cultural obscurantista nas terras colonizadas” (BERENBLUM, 2003, p. 64), isto é, os milhares de escravos trazidos ao Brasil falavam diferentes línguas de origem banto, mas devido à política de separação dos escravos falantes da mesma língua, não foi possível a transmissão linguística desses falantes.
No século XVIII, o conceito de Nação, que se originou com a Revolução Francesa, passa a ser vinculado ao Estado moderno, deslocando o poder dos príncipes para o povo. Desse modo, afirma Berenblum (2003), que foi com o surgimento dos Estados nacionais que se tornou necessário a imposição de uma língua oficial em meio a outras línguas ou variedades.  
É neste contexto que o Marquês de Pombal, ministro de D. José I, rei de Portugal, publica o Diretório dos Índios em 1757. O decreto determinava uma intervenção sobre os usos públicos das línguas e a escolha de qual língua deveria ser transmitida no Brasil, já que a diversidade linguística e a difusão do tupi como língua geral representava uma “ameaça para a propagação e afirmação do português, numa época marcada pela consolidação das línguas nacionais na Europa Ocidental” (BERENBLUM, 2003, p. 65).  
Efetivamente, a unidade pretendida acaba sendo imaginária, isto porque a “formulação e execução de uma dada política linguística (…) não garante nem impede a circulação dos sentidos” das línguas (MARIANI, 2004, p. 44). Assim, o uso da língua geral e das demais línguas continuou independente das instruções pombalinas, afirmam Heye e Vandresen (2006, p. 385): “na época da independência (…) o português era a língua da sala de visita, enquanto nos demais contextos se falava ainda a língua geral”.
Conforme pontua Klauck (2004), a partir da independência do Brasil e, mais precisamente, com a proclamação da República, tentou-se criar uma identidade nacional definitiva apesar da grande pluralidade do país - índios, portugueses e negros, no período colonial, e com a crescente entrada de imigrantes e seus descendentes no Brasil, a partir do século XIX. Os imigrantes e seus descendentes mantiveram uma certa unidade linguística e cultural com relação ao país de origem, devido ao isolamento dos governos central e local, pois segundo Klauck (2004) “estes imigrantes foram abandonados em regiões adversas, longe dos centros urbanos, sem possibilidade de integração via estradas e ferrovias, ou mesmo através de um sistema escolar nacional que expressasse a presença política e jurídica do Estado Nacional (Idem, 2004, p. 64-67), esta situação muda após a obrigatoriedade do ensino em língua portuguesa.
No contexto da Segunda Guerra Mundial, o regime ditatorial do Estado Novo (1937-1945), através de políticas linguísticas restritivas como foi a nacionalização do ensino, reprimiu as línguas dos imigrantes e de seus descendentes. Segundo Oliveira (2008):

Foi o caso, especialmente, do alemão e do italiano na região colonial de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Em regiões destes dois estados nas quais a estrutura minifundiária e a colonização homogênea garantiram condições adequadas para a reprodução das línguas, a repressão lingüística, através do conceito jurídico de “crime idiomático”, inventado pelo Estado Novo, atingiu sua maior dimensão (OLIVEIRA, 2008, p. 6).

Depreendemos a partir deste breve relato sobre as políticas linguísticas no Brasil, que conforme argumenta Berenblum (2003), não há nada de natural no sentimento que nos faz identificarmos com certos símbolos nacionais, a compartilhamos características, formas de ser e pensar como cidadãos de uma nação “brasileira”, pois este sentimento foi historicamente construído, assim como a função de unificação e de expressão dos valores democráticos nacionais atribuídos à língua portuguesa.

POLÍTICAS DA DIVERSIDADE LINGUÍSTICA BRASILEIRA

Na seção anterior, acompanhamos o processo histórico das políticas linguísticas no Brasil, da colonização ao período ditatorial, onde fica evidente, como o mito do monolinguismo foi sendo construído a fim de atender ao ideário “uma língua, uma nação”. No intuito de superar as tendências homogeneizadoras e de assegurar a promoção, o respeito e o uso social público e privado das diversas línguas, foi criada em 1996, a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, possibilitando o ordenamento de uma marco político da diversidade linguística.
A Declaração se pauta no princípio de que os direitos linguísticos dos falantes e das comunidades linguísticas são iguais e independentes da consideração jurídica ou política das línguas oficiais, regionais ou minoritárias. Para Hamel (2003) os direitos linguísticos são parte dos direitos humanos fundamentais (coletivos e/ou individuais), pautados nos princípios universais da dignidade humana e igualdade formal de todas as línguas. Neste sentido, o documento considera que “cada língua é uma realidade constituída coletivamente e é no seio de uma comunidade que se torna disponível para o uso individual, como instrumento de coesão, identificação, comunicação e expressão criativa” (OLIVEIRA, 2003, p. 28). Portanto, conforme a Declaração, todas as línguas são a expressão de uma identidade coletiva, mas também uma maneira particular de perceber a realidade, e por isso, as comunidades têm o direito de assegurar sua transmissão e continuidade de suas línguas.
O Art. 46 da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos expressa o direito de toda comunidade linguística a preservar seu patrimônio linguístico e cultural, incluindo suas manifestações materiais (documentos, arquitetura, herança artística, etc.). Consoante às disposições adicionais do documento, cabe ao Poder Público, fornecer os recursos necessários para a “codificação, a transcrição escrita, o ensino das línguas das diversas comunidades e a sua utilização na administração” (OLIVEIRA, 2003, p. 42), bem como, garantir a divulgação e aplicação dos direitos linguísticos e prever em legislação, sanções à violação dos direitos expressos na Declaração.
Em período anterior à publicação da Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, o Brasil já apresentava alguns avanços para a garantia dos direitos linguísticos, com a instituição da nova Constituição Federal em 1988, período de redemocratização do país. O Art. 210 em seu § 2º, apesar de dizer que o ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegura às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem; e o caput do Art. 231 reconhece às comunidades indígenas “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus  bens” (BRASIL, 2013, p. 46). No caso da línguas alóctones, afro-brasileiras ou línguas de imigração, Oliveira (2003) coloca que o Estado não agiu da mesma forma quanto à oficialidade e garantia dos direitos linguísticos e culturais destas comunidades.
O Art. 216 da Constituição nos permite compreender a língua como referencial de identidade e memória e, que portanto, deve compor o patrimônio cultural imaterial a ser salvaguardado pelo poder público em colaboração com a comunidade. Ainda que a Constituição Federal de 1988 não defina claramente o que é patrimônio cultural,  para entender a língua como objeto deste campo, é preciso segundo Chacon et al. (2014), compreender as relações existentes entre língua, cultura e sociedade.

É por meio dos usos que uma língua se mantém viva, que atua como meio de comu­nicação, como expressão e transmissão de conhecimentos, ideias e valores de uma geração para outra. E também é pelo estudo dos seus usos que se compreende, de forma mais significativa, a dimensão identitária das práticas linguísticas (Ibid, 2014, p. 18).

Nesta perspectiva, o texto da Constituição possui fundamentação legal para Soares (2008), pois permite às diferentes comunidades indígenas, afro-brasileiras e de imigração, a “edição de normas e a implementação de medidas, instrumentos e ações que permitam que não somente se expressem em seus próprios idiomas nas relações de repercussão pública, mas que tenham a língua reconhecida como bem cultural brasileiro” (2008, p. 86), o que não altera a oficialidade da língua portuguesa, apenas abre a possibilidade de expressão em outra língua baseada na diversidade cultural.
No entanto, a legalidade  em torno da diversidade linguística brasileira, começa a caminhar de fato, em 2002, com a criação da Lei nº 10.436 que dispõe sobre a oficialidade da Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS, reconhecendo-a como meio legal de comunicação e expressão. Neste mesmo ano, a câmara de vereadores do Município de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, cooficializou no município, as línguas indígenas Tukano, Baniwa e Nheengatu e, segundo Morello (2012), em 2006, a cooficialização destas línguas ganhou diretrizes para sua implementação no município, como resultado de ações conjuntas entre instituições em defesa dos direitos linguísticos e representantes das comunidades linguísticas.
Soma-se ao quadro de línguas indígenas cooficializadas, o Guarani no município de Tacuru, no Mato Grosso do Sul; a autora cita também, a cooficialização das seguintes línguas de imigração nos estados do Espírito Santo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul:

Pomerano, em Santa Maria de Jetibá, Domingos Martins, Pancas, Laranja da Terra e Vila Pavão, no Espírito Santo e em Canguçu no Rio Grande do Sul; Talian, em Serafina Corrêa no Rio Grande do Sul; Hunsrükisch, em Antônio Carlos, Santa Catarina e Alemão, em Pomerode, Santa Catarina: oito diferentes línguas em onze municípios compõem o atual quadro das línguas cooficializadas por municípios brasileiros (MORELLO, 2012, p. 9. Grifos da autora).

O Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política – IPOL, divulgou recentemente uma atualização do quadro de línguas cooficializadas no Brasil, indicando um total de 14 municípios que instituíram uma ou mais línguas cooficiais, como se apresenta na tabela abaixo:

De acordo com Maher (2013), outra importante iniciativa governamental e/ou da sociedade civil, que abriu espaço para pensar a salvaguarda das línguas minoritárias brasileiras, foi a publicação do Decreto nº. 7.387/2010, que institui Inventário Nacional da Diversidade Linguística – INDL.
O INDL surge como “instrumento de identificação, documentação, reconhecimento e valorização das línguas portadoras de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (BRASIL, 2010, p. 1). O decreto, assinado pelos Ministérios da Cultura; da Educação; da Justiça; do Planejamento, Orçamento e Gestão e do Ministério de Ciência e Tecnologia e Inovação, configura-se como uma ação política interministerial; embora o Art. 1º atribua ao Ministério da Cultura sua gestão, sob a coordenação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN.
O Inventário Nacional da Diversidade Linguística, como informa o IPHAN (s/d), possui dupla finalidade: inventariar as línguas e reconhecê-las como patrimônio cultural.  Podemos observar a primeira finalidade com a leitura do Art. 4º do decreto: o INDL “deverá mapear, caracterizar e diagnosticar as diferentes situações relacionadas à pluralidade linguística brasileira, sistematizando esses dados em formulário específico” (BRASIL, 2010, p. 1). Após o processo de inventário das línguas, que possuem relevância para a memória, a história e a identidade dos grupos formadores da sociedade brasileira, caberá ao Ministério da Cultura expedir o título de “Referência Cultural Brasileira” às línguas inventariadas. Este título, ao destacar “a importância das línguas como elemento de transmissão da cultura e como referência identitária  para os diversos grupos sociais que vivem no país” (IPHAN, s/d, p. 1. Grifos no original), remete à segunda finalidade do INDL.
O Decreto nº 7.387/2010 e o formulário específico do Guia de Pesquisa e Documentação para o INDL são os instrumentos oficiais que constituem a política nacional de salvaguarda da diversidade linguística como patrimônio cultural. O Guia visa orientar de forma teórico-metodológica, a produção de conhecimento, documentação e sistematização das línguas a serem incluídas no INDL.
A pesquisa, elaboração e redação do Guia foi realizada com a participação de diversos colaboradores e pesquisadores, envolvendo diferentes órgãos e instituições, e foi publicado pelo IPHAN em 2014. O Guia está organizado em dois volumes, o primeiro, com seis capítulos, trata da Política da Diversidade Linguística e do processo de inventário, abordando temas como a relação entre diversidade linguística e patrimônio cultural. Enquanto que o segundo volume, dividido em duas partes, apresenta um roteiro temático de pesquisa e orientações sobre o formulário do INDL, além abordar conceitos como: atitudes e representações, língua e variedades, usos linguísticos e a escala de vitalidade linguística (CHACON et al., 2014).
Devido a dimensão da diversidade linguística brasileira, o Guia propõe cinco categorias de línguas a serem estudadas e documentadas: línguas indígenas; línguas afro-brasileiras; línguas de imigração; línguas de sinais, línguas crioulas, além das variedades da língua portuguesa.
Na sequência e, finalizando a investigação deste artigo, identificamos os primeiros projetos-pilotos de inventários linguísticos que iniciam a materialização da Política da Diversidade Linguística, a saber: o Levantamento sociolinguístico e documentação da língua e das tradições culturais das comunidades indígenas Nahukwa e Matipu do Alto Xingu, Amazonas; o Inventário da Língua Ayuru, Amazonas; o Levantamento etnolinguístico de comunidades afro-brasileiras: Minas Gerais e Pará; o projeto-piloto da Língua Asuriní do Tocantins; Levantamento linguístico das variantes usadas nas comunidades de surdos de João Pessoa/PB e Recife/PE; Para um inventário da Língua Juruna, Mato Grosso; Inventário da língua Mbyá-Guarani, Santa Catarina; e o Inventário do Talian, Santa Catarina1 .
Dos projetos-pilotos acima destacados, em 2014, as línguas indígenas da família Tupi-Guarani, Asurini e o Guarani Mbya, e a língua de imigração Talian, falada por descendentes de imigrantes italianos, foram as três primeiras línguas a receberem o título de Referência Cultural, passaram a compor o patrimônio cultural imaterial do Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebemos a partir da análise dos documentos que regem a Política da Diversidade Linguística, que a relação entre língua e cultura é indissociável, dessa forma, a diversidade linguística compreende também a diversidade cultural, isto é, se uma a língua gera um sentimento de identidade e pertença a um grupo social como aquela que o representa, que se refere à sua história, ao seu modo de ser e estar no mundo, então, a língua também deve ser tratada como objeto do campo do patrimônio cultural.
A cooficialização municipal das línguas indígenas e de imigração e a criação do INDL refletem a mobilização das comunidades linguísticas, de instituições da sociedade civil e de pesquisadores, preocupados com a garantia dos direitos linguísticos e com formação de uma política linguística voltada à valorização da diversidade como patrimônio cultural imaterial, podendo inclusive, vir a motivar novas iniciativas no campo. No entanto, ainda ficam algumas reflexões, quais as implicações para o Estado brasileiro com a implantação de uma Política de diversidade linguística frente à hegemonia da oficialidade da língua portuguesa? O que será feito efetivamente após a certificação e reconhecimento destas línguas como patrimônio cultural brasileiro?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 Disponível em: < http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/681/>. Acesso em 02 fev. 2015.

Recibido: 07/06/2016 Aceptado: 10/08/2016 Publicado: Agosto de 2016

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