Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


CULTURA POPULAR E IDENTIDADE: RELAÇÕES POSSÍVEIS NO ÂMBITO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

Autores e infomación del artículo

Flávio Reginaldo Pimentel*

Instituto Federal do Pará, Brasil

flavio.pimentel@ifpa.edu.br

Resumo: O presente artigo é fruto de leitura e análise acerca dos estudos sobre Cultura Popular e Identidade. Partindo das definições destas duas categorias, procura-se estabelecer uma relação possível entre elas, bem como entender como tais manifestações estão presentes em grupos sociais diferentes e indivíduos distintos, frutos de uma sociedade globalizada e plural ao mesmo tempo. Vale ressaltar que a reflexão sobre Cultura Popular e Identidade são pautadas nas Ciências Sociais e na Antropologia, mas também podem ser estudadas por outras áreas das humanidades. Definir Cultura Popular não é tarefa fácil, pois muitas visões e posturas a cercam, mas longe de definir tal conceito, é importante entendê-lo, para a partir daí estabelecer uma relação de proximidade com a Identidade ou as várias Identidades construídas pelas pessoas ao longo da vida. São utilizados como suporte teórico para discutir sobre Cultura Popular e Identidade textos de ARANTES(1981), AYALA (1995), ORTIZ (1998), CUCHE (1999), ROCHA (2004), BURKE (2010), HALL (2003), BOSI (2008), entre outros.

Palavras-Chave: Cultura Popular, Identidade, Sociedade, Grupos Sociais, Indivíduo, Modernidade, Ciências Sociais.

Resumen: El presente artículo es fruto de lectura y análisis a respecto de los estudios sobre Cultura Popular e Identidad. Partiendo de las definiciones de estas dos categorías, buscase establecer una relación posible entre ellas, bien como entender como tales manifestaciones están presentes en grupos sociales diferentes e individuos distintos, resultados de una sociedad globalizada y plural al mismo tiempo. Vale decir que la reflexión sobre Cultura Popular e Identidad son guiadas en las Ciencias Sociales y en la Antropología, pero también pueden ser estudiadas por otras áreas delas humanidades. Definir Cultura Popular no es tarea fácil, pues muchas visiones y posturas las rodean, mas lejos de intentar definir tal concepto, es importante entenderlo, para entonces establecer una relación de cercanía con la Identidad o las varias Identidades construidas por las personas a lo largo de su vida. Serán utilizadas como soporte teórico para discutir sobre Cultura Popular e Identidad los textos de ARANTES (1981), AYALA (1995), ORTIZ (1998), CUCHE (1999), ROCHA (2004), BURKE (2010), HALL (2003), BOSI (2008), e otros.

Palabras clave: Cultura Popular, Identidad, Sociedad, Grupos Sociales, Individuos, Modernidad, Ciencias Sociales



Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Flávio Reginaldo Pimentel (2016): “Cultura popular e identidade: relações possíveis no âmbito das ciências sociais”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (julio-septiembre 2016). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/03/identidade.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/CCCSS-2016-03-identidade


1. A CULTURA POPULAR: UMA MANIFESTAÇÃO DO POVO

Nas páginas seguintes, trataremos da Cultura Popular como uma espécie de desdobramento do debate travado sobre o conceito e definição do que é cultura. Para tanto, encontramos um debate nada fácil para o que vem a ser Cultura Popular. Percebemos que o seu conceito está longe de ser definido com mais clareza, tanto pelas Ciências Humanas e Sociais ou pela Antropologia, áreas do conhecimento que se dedicam a estudar os fenômenos culturais de determinadas sociedades ou grupos sociais. Os significados encontrados são bastante heterogêneos, e também são variáveis os eventos a que essa expressão se relaciona.
Este conceito nos remete a um amplo campo de concepções e pontos de vista que encontramos desde a negação, implícita ou explícita, de que os fenômenos por ela identificados contenham qualquer forma de “saber”, até a perspectiva de atribuir-lhe o papel de resistência contra a dominação da classe influente.
Um teórico que tem contribuído na discussão acerca da cultura popular em seus trabalhos é Antonio Arantes 1 que diz:

Muita gente torce o nariz, levanta as sombracelhas ou movimentam-se com impaciência quando ouve o enunciado “Cultura Popular”. Isto se deve a, pelo menos, dois motivos. Em primeiro lugar, ao fato dessa noção ter servido a interesses políticos populistas e paternalistas, tanto de direita quanto de esquerda; em segundo, ao fato de que nada de claramente discernível e demarcável no concreto parece corresponder aos múltiplos significados que ela tem assumido até agora. (ARANTES, 1981:08)

Esta passagem nos revela de fato um fundo de verdade, pois também as políticas públicas governamentais para a área da cultura popular não apresentam clareza de objeto nem de objetivos, pois se agrupa tudo em um emaranhado de manifestações, dando-se o carimbo de “popular” e pronto, não se distinguem as diferenças existentes entre tais manifestações, é como se tudo fosse uma coisa só.
Vale a pena ressaltar neste aspecto o que Henrique Rocha 2, num trabalho interessante a respeito de Folclore e Cultura Popular, nos diz sobre o emprego destes termos. Sempre há uma “tendência natural de entendimento” de que tudo é igual, tudo é a mesma coisa, tudo é simplificado quando se refere ao povo. Ao que nos parece, vem ao encontro do que foi dito anteriormente, no momento em que nos referirmos a essa confusão de objeto e objetivo.

Apesar de serem conceitos bastante utilizados por estudiosos, pesquisadores e inclusive pelos próprios produtores de cultura, são frequentemente mal empregados para definir comportamentos, manifestações e objetos produzidos no universo popular como um todo. Ao se misturar folclore com cultura popular, o que ocorre é que, ou ao analisar ou descrever fatos culturais utilizando-se dos dois termos sem distinção, provoca-se uma indeterminação da origem do objeto de estudo e, consequentemente, equívoco na sua classificação. (ROCHA, 2004: 24)

Ou ainda, como complementa Arantes: “um grande número de autores pensa a “cultura popular” como “folclore”, ou seja, um conjunto de objetos, práticas e concepções, sobretudo religiosas e estéticas, consideradas ‘tradicionais’” (ARANTES, 1981:16)
Em sociedades estratificadas em classes sociais, a cultura é uma atividade especializada que tem como objetivo a produção de um conhecimento e de um gosto que sempre é difundida entre os mais corretos, os mais adequados, os mais plausíveis, em outras palavras “os melhores”. Sendo assim, “ser culto” é uma condição que engloba várias qualidades, ou seja, ter razão, ter bom gosto ou, numa palavra, como diz o dicionário “saber” significa ter conhecimento, estar informado. Portanto não deixa espaço para o que vem do povo, o que é popular, pois este termo é desprovido de conhecimento, de razão e de bom gosto. Serve apenas como distração e exótico, âmbito em que está incluída a cultura popular.
Mesmo que tenhamos presente em nosso cotidiano, como fala Arantes:

Samba, frevo, maracatu, vatapá, tutu de feijão e cuscuz. Seresta, repente e folheto de cordel. Congada, reisado, bumba-meu-boi, boneca de pano, mamulengo, colher de pau. Moringa e peneira. Carnaval, procissão. Benzimento, quebranto, simpatia e chá de ervas. (ARANTES, 1981: 12)
           

Devemos ser cautelosos, pois pode surgir daí um grande preconceito, pois sempre tendemos a colocar todas essas “coisas” juntas, mas que são das mais variadas origens e regiões, tendemos a simplificar tudo e colocarmos sempre num plano inferior, como se tudo não passasse de ingenuidade, algo simples demais, mau gosto, pitoresco, pois tudo está relacionado com o povo, com o popular, e isso nos basta para termos aversão, mesmo que de alguma maneira isso se faça presente em nós, mas procuramos esconder, até o momento que nos interessar esconder ou explicitar, de acordo com as conveniências sociais.
Encontramos então em Rocha:

A menção mais antiga ao conceito pode ser identificada em escritos de Montaigne e Blaise Pascal, pensadores dos séculos XVI e XVII, com o surgimento do popular sendo associado com o crescimento da economia de mercado e, posteriormente, com a formação dos estados nacionais no século XIX que conduziram à unificação dos grupos sociais em cada país. (ROCHA, 2004:07)

E Rocha vai prosseguir dizendo que “o popular também se firmou como campo de investigação, com a expressão “cultura popular” só sendo possível historicamente quando a diferença e a oposição de classes se tornou patente com a consolidação da Revolução Industrial”. (ROCHA, 2004:07)
A partir destas afirmações, percebemos que o termo “cultura popular” nos dá a dimensão de classes no interior de uma sociedade capitalista, onde os modos de produção estão concentrados nas mãos da classe dominante, restando às classes subalternas a venda de seu trabalho, de sua mão de obra em troca de salário para sobreviver. Esta nova configuração social surge a partir da Revolução Industrial, quando novas relações sociais são estabelecidas. E o surgimento da noção de cultura popular também está ligada ao surgimento de um espírito nacional, ou melhor, da necessidade de se construir uma identidade nacional para os países em pleno desenvolvimento industrial.
 Resultado disso é que “se manipulam repertórios de fragmentos de “coisas populares” que, em muitas sociedades inclusive a nossa, expressa-se e reafirma-se simbolicamente a identidade da nação como um todo ou, quando muito, das regiões, encobrindo a diversidade e as desigualdades sociais efetivamente existentes no seu interior”. (ROCHA, 2004:08) Pensa-se, neste sentido, numa espécie de espírito único, como se todos os grupos sociais de um determinado espaço fossem uma coisa só, como a exemplo, falar em Cultura Brasileira, Cultura Italiana, Cultura Espanhola, ou ainda, regionalizando no espaço geográfico brasileiro, Cultura Nordestina, Cultura Mineira, Cultura Amazônica, Cultura Paraense.
Porém, a noção de cultura popular que nos propomos apresentar em nosso trabalho vai nos remeter necessariamente, como foi dito anteriormente, ao Povo.  Mas qual povo seria esse? Um questionamento importante nos faz Peter Burke 3:

De quem é a cultura popular? Quem é o povo? Ocasionalmente, o povo era definido como todas as pessoas de um determinado país, como a imagem de Geijer sobre todo o povo sueco a cantar como um só indivíduo. Na maioria das vezes, o termo era mais restrito. O povo consistia nas pessoas incultas. Para os descobridores, o povo par excellence compunha-se dos camponeses; eles viviam perto da natureza, estavam menos marcados por modos estrangeiros e tinham preservado os costumes primitivos por mais tempo do que quaisquer pessoas. Mas essa afirmação ignorava modificações culturais e sociais, subestimava a interação entre campo e cidade, popular e erudito. Não existia uma tradição popular imutável e pura nos inícios da Europa moderna, e talvez nunca tenha existido. Portanto, não há nenhuma boa razão para se excluir os moradores das cidades, seja o respeitável artesão ou a turva de Herder, de um estudo sobre cultura popular. A dificuldade em se definir o ‘povo’ sugere que a cultura popular não era monolítica nem homogênea”. (BURKE, 2010:49)

Este questionamento sobre quem é o povo a quem o termo cultura popular se refere, é importante, inclusive para optarmos por uma linha de pensamento, pois, a nosso ver, não é possível considerar amplamente o povo, ou seja, todos os habitantes de determinada região ou país, por exemplo. Nessa mesma área ou região habitada, teremos diversas classes sociais, ricos e pobres, trabalhadores e patrões, homens e mulheres, pessoas com grau de escolaridade e outras sem. Enfim, necessário faz-se refletirmos qual é nosso alvo, a quem nos referimos ou a que grupo social utilizaremos o termo Cultura do Povo.
Modernamente, o termo cultura popular vai nos remeter a inúmeras definições, algumas mais tendenciosas, outras nem tanto, com certeza devido ao que se quer realmente enfatizar sobre cultura popular. Optamos neste trabalho pelo que Stuart Hall propõe:

O termo ‘popular’ guarda relações complexas com o termo ‘classe’. Os termos ‘classe’ e ‘popular’ estão profundamente relacionados entre si, mas não são absolutamente intercambiáveis. Não existem culturas inteiramente isoladas e paradigmaticamente fixadas numa relação de determinismo histórico, a classes inteiras – embora existam formações culturais de classe bem distintas e variáveis”. (HALL, 2003:262)

E ainda, Hall vai complementar: “A cultura dos oprimidos, das classes excluídas: esta é a área à qual o termo ‘popular’ nos remete”. É nesse espaço da contradição que as classes populares se encontram numa estrutura capitalista em que comumente encontramos indícios de manifestações de cunho popular. Para tanto, vale lembrar o que Ecléa Bosi4 fala: “definir cultura popular não é tarefa simples; depende da escolha do ponto de vista e, em geral, implica tomada de posição”. (BOSI, 2008:77)
Nesta perspectiva de tomada de posição, a que se refere Ecléa Bosi, embrenhamos nosso trabalho. Optamos por uma classe que vive à margem, sempre relegada ao plano secundário, e que entendemos como cultura popular, que para nós é o resultado de todo um processo vivido pelo povo e que vai se tornando de alguma forma presente nas mais diversas práticas representativas, como comidas, crenças, línguas, danças e literatura, e que tais manifestações estão historicamente ligadas às populações menos favorecidas e marginalizadas da sociedade que construiu, para si, formas de criação e produção de sua cultura e identidade.
Num trabalho interessante sobre Cultura Popular no Brasil, os professores Marcos Ayala5 e Maria Inês Ayala 6 nos falam que: “a expressão ‘cultura popular’, sinônimo de cultura do povo, permite visualizar mais facilmente um aspecto que nos interessa ressaltar: o de ser uma prática própria de grupos subalternos da sociedade”.  (AYALA&AYALA, 1995:09)
Entendemos então que cultura popular são manifestações historicamente ligadas às populações menos favorecidas e marginalizadas da sociedade, ou seja, o povo simples e humilde foi capaz de construir, para si, formas de criação e produção de sua identidade e com isso procura manter viva a memória, preservando seus valores e princípios, contidos nas danças, cantorias, celebrações festivas, narrativas, histórias, contos e relatos, enfim, nas mais diversas manifestações culturais.
A cultura popular serve de porto para o povo o qual procura manter viva sua tradição através da oralidade que é passada de pai para filho, de avô para neto. As narrativas orais e histórias de vida são exemplos dessa estratégia que, a meu ver, precisa urgentemente ser preservada, pois, com o advento de novas tecnologias, muito do que era oral se perdeu ou acaba no esquecimento e não se valoriza mais.

2. SOBRE IDENTIDADE OU IDENTIDADES

O conceito de cultura popular, conforme vimos, sempre obtive uma atenção especial no âmbito das ciências sociais, junto a esses conceitos, outro nos parece também ganhar força quando nos referimos a indivíduos ou grupos sociais, é o termo Identidade. O cuidado também deve ser tomado inicialmente, para não cairmos no modismo apontando atitudes ou ações das pessoas, colocando tudo no âmbito da cultura ou da identidade, caindo com isso na simplificação.
Parece-nos importante saber o que entendemos por identidade. Não há dúvidas que este questionamento, consequentemente, vai se referir à questão de cultura, com a qual possui uma estreita ligação, mas não são sinônimas, são diferentes e possuem estudos próprios que têm suscitado um debate importante nas pesquisas que se interessam pelo tema.
Em nosso trabalho, seria impossível falar sobre cultura popular sem mencionarmos a identidade cultural que dela pode ser gerada. Num trabalho importante e muito discutido em várias áreas do conhecimento, Stuart Hall nos fala que:

A questão de identidade está sendo extensamente discutida na teoria social. Em essência, o argumento é o seguinte: as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. Assim a chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. (HALL, 2006:07)

No trecho acima, Hall nos fala da questão da crise de identidade numa sociedade chamada por ele de pós-moderna. Sendo mais claro, essa crise de identidade é de certa maneira algo que vem acontecendo na contemporaneidade, pois, por muito tempo, desde o Iluminismo, tinha-se o homem uno, dotado de racionalidade que fazia com que este homem fosse centrado, dando estabilidade e fundação sólida para sua identidade, algo que não acontece nos dias atuais, pois verificamos as inúmeras identidades assumidas pelas pessoas no decorrer do dia, por exemplo.         
 Para tanto, vale lembrar que Stuart Hall nos ajuda a compreender e analisar as identidades culturais que se referem às chamadas “culturas nacionais”. Ele nos diz que nação é também uma identidade política, ou seja, um Estado, que é um sistema de representação cultural. Em outras palavras, a nação é composta de diversas representações e símbolos que fundamentam a constituição de uma suposta identidade nacional.
As chamadas culturas nacionais, como a brasileira, são produtoras de sentido para que possamos nos identificar e construirmos nossa identidade. Estes elementos de identificação estão contidos em narrativas, memórias, imagens, paisagens, lugares e servem de suporte para a constituição da identidade nacional. Abaixo transcrevemos um trecho de Seu João Batista da Silva, um dos narradores entrevistados, que fala ao perguntarmos sobre o lugar de onde veio:

Eu sou cearense mesmo, um lugarzinho que chama lá de Aroeira. E sempre foi assim, sempre falei assim. Porque quando eu cheguei aqui, eu morava ali no sitio do Chico Lopes, ai ele perguntou pra mim assim: - “Rapaz, você é mesmo cearense?” – “Rapaz eu vim de lá né, eu acho que sou de lá.” – “Não você não é cearense, rapaz, é porque todo cearense bebe né, você não bebe, então você não é cearense.” –“Pois eu sou cearense, nasci lá, meus pais tudo nasceram lá, me criei lá, vim pra cá depois de grande.” – “Você não é cearense, você fala que nem paraense.” Não ele achou diferente eu falar. Que ele, ele também era cearense. Foi, ele não achou eu parecido com cearense. Mas ele falou (risos) que eu não era cearense (risos). Mas meu pai, tudo era cearense. 7

O trecho da entrevista nos aponta para essa construção identitária falada anteriormente, ou seja, algum aspecto da vida do indivíduo, neste caso, de Seu João, é o lugar de nascimento, do qual ele mantinha uma viva simbologia, é determinante para ele afirmar, Eu sou cearense mesmo, um lugarzinho que chama lá de Aroeira.8
Sobre a questão da diferença, ela é essencial na construção da identidade ou das identidades assumidas por nós em nossa vida. Toda a identidade está baseada numa construção simbólica da diferença, o que permite ao ser humano ficar ancorado, sem se preocupar se é verdadeira ou falsa a identidade assumida. Não há uma autêntica o que há são várias identidades, as quais são construídas pelos grupos sociais que compõem determinados espaços geográficos, e estas construções aconteceram nos mais diferentes momentos históricos.
            Ainda sobre a questão da diferença, vemos no trecho retirado da narrativa de Seu João, que ela pode ser significativa, dependendo do contexto, pois na conversa, para o interlocutor de Seu João, ele não era cearense, pois tinha hábitos e costumes diferenciados do que comumente tinham os outros cearenses. Chega até a afirmar que ele se parece mais com paraense do que com cearense. A visão comum que se tem sobre esta questão identitária é que todos devem ser iguais, não permitindo que alguém seja diferente no grupo, por outro lado, a identificação é forte em Seu João, pois ele é categórico e busca amparo na hereditariedade, Mas meu pai, tudo era cearense 9.
Citando Renato Ortiz em seu trabalho, Cultura Brasileira e Identidade Nacional, fala que:

 Identidade é um termo que tem sido tradicionalmente usado para descrever ou interpretar o indivíduo, tal como ele se revela e se conhece ou como ele se vê representado em sua própria consciência. Enquanto que sob uma perspectiva psicológica, a identidade produz um sentido de ordem na vida do indivíduo, sob uma perspectiva sociológica ela situa o indivíduo em um grupo social. Ambas as perspectivas se completam ao considerarmos que, para saber quem somos, temos que reconhecer a posição em que nos colocamos. (ORTIZ, 1998:11)

           
O trecho acima aponta duas perspectivas relacionadas ao termo identidade, a primeira de ordem psicológica, e a segunda de ordem sociológica. Ambas vão se completar dando um sentido maior, e de certa forma mais completo, ao conceito de identidade. Essa junção, da primeira, que apresenta um sentido consciente do indivíduo, e a segunda, que aponta onde este indivíduo se situa no grupo social, parece-nos ser interessante, pois para dizermos que temos determinada identidade, temos que ter uma consciência desse fato, dessa opção, dessa escolha, isto por sua vez nos leva a nos localizarmos dentro do grupo social ou dos grupos sociais dos quais fazemos parte.
A identidade serve para simbolizar nosso pertencimento a uma organização social, seja política, religiosa ou cultural, bem como também para representar o outro da mesma forma. Semelhante perspectiva Denis Cuche aborda sobre a questão psicológica e social na construção identitária:

A identidade cultural remete, em um primeiro momento, à questão mais abrangente de identidade social, da qual ela é um dos componentes. Para a psicologia social, a identidade é um instrumento que permite pensar a articulação do psicológico e do social em um indivíduo. Ela exprime a resultante das diversas interações entre o indivíduo e seu ambiente social 10. (CUCHE, 1999:176-177)
           
Como vemos, Cuche também apresenta estas duas dimensões, a psicológica e a social do indivíduo na construção de sua identidade. Para, além disso, surge outro aspecto que se refere ao pertencimento. Maria Cristina Stevens 11 fala sobre este pertencimento e seu papel na construção da identidade:

Existe uma rica produção teórica sobre a importância dos múltiplos determinantes e das diversas posições do sujeito na formação de nossa identidade, que se constrói a partir de nosso ‘pertencimento’ a identidades étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, sobretudo, as culturas nacionais distintas. Por outro lado, observa-se que, aproximadamente a partir da segunda metade do século passado, a humanidade passa por uma complexa mudança que vem fragmentado as concepções tradicionais de nação e de sujeito que por tanto tempo nos deram localizações sólidas como indivíduos sociais. O conceito de indivíduo tem sofrido profundas transformações decorrente de sua inevitável articulação do mundo contemporâneo. Além disso, não podemos mais ignorar a importância das variáveis de raça, etnia, gênero, classe, opção sexual na formação de nossa identidade. (STEVENS, 2007: 43-44)

A autora revela a importância de um “pertencimento”, algo que, a nosso ver, deva partir do indivíduo esta escolha, para traduzir-se em uma identificação étnica, racial, linguística, religiosa e principalmente cultural, formando assim as culturas nacionais, como quando nos referimos acima, ao tratar da identidade nacional brasileira. Este pertencimento é pertencer a algo, a um grupo familiar, social, religioso, esportivo, enfim, às mais diferentes modalidades de organização social a que estamos sujeitos dentro da sociedade moderna.
Ainda sobre o “pertencimento”, poucas pessoas estão expostas a apenas uma comunidade ou grupo social, mas às vezes a vários “pertencimentos” de uma só vez. Como dizer, no caso de um migrante, citando como exemplo, é homem, pai de família, marido, nordestino, cearense, pernambucano, potiguar, pequeno agricultor, desempregado, enfim, muitas categorias identitárias sobrecarregando uma pessoa só.
Outro aspecto relevante na passagem citada de Stevens é quando a autora diz que ocorreu uma complexa mudança nos paradigmas que sempre serviram de suporte sólido para os indivíduos sociais. A mudança da sociedade e suas novas relações na contemporaneidade não podem deixar de estar relacionadas com variáveis como: classe social, gênero, opção sexual, opção religiosa, formação profissional, variáveis estas que são constantes na nova estrutura social moderna. É bom que se diga que isso se deve à dinâmica estrutural e social pela qual passa a humanidade de uma forma geral.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cultura Popular e Identidade são termos que se aproximam, mas não podemos simplesmente confundir as duas noções, pois, existem distinções significativas para ambas e não podemos cair no erro de achar que tudo é a mesma coisa. Em geral, a cultura nos remete a processos inconscientes, já a identidade cultural, por sua vez, a processos conscientes de vinculação a um grupo social ou até mesmo a uma classe social ou nação, por exemplo.
Conforme esclarece Denis Cuche, o qual diz que, “em última instância, a cultura pode existir sem a consciência de identidade, ao passo que as estratégias de identidade podem manipular e até modificar uma cultura. A cultura depende em grande parte de processos inconscientes” 12. E prossegue dizendo que “a identidade remete a norma de vinculação, necessariamente consciente, baseada em oposições simbólicas” 13 .
Nas ciências sociais de uma forma geral, conforme já dissemos anteriormente, muito se tem debatido acerca do tema identidade cultural, várias definições e interpretações surgiram, dentre as quais algumas apontam que a identidade permite que o indivíduo se localize e também seja localizado pelos outros no meio social em que está habituado, bem como ajuda a definir e discernir melhor sua própria cultura.
Na perspectiva apontada por Cuche, achamos interessante ressaltar que ele se refere a uma concepção relacional e situacional para a construção da identidade cultural, ou seja, a identidade é uma criação a partir da relação que acontece entre os diversos grupos sociais com os quais estamos inseridos.
Esta abordagem é interessante, pois nos leva a entender que, entre os diversos grupos que compõe determinada sociedade, a identidade deles pode ser marcante e se constrói a partir das relações estabelecidas com os demais grupos sociais, e mesmo os membros no interior destes grupos, buscam algo que os identifique, algo característico como iguais ou diferentes dos outros. Isto tudo sendo construído e reconstruído a partir das trocas sociais que são estabelecidas. Sendo assim, a identidade sempre existe na relação estabelecida com a outra, ou as outras, numa relação contínua de troca.
Dentro desse emaranhado de questões sobre a identidade e sua relação com a cultura popular, resta-nos apontar um aspecto que, a nosso ver, é importante na construção da mesma. É quando nos referimos ao espaço, pois esta identidade está ligada intimamente a ele, o espaço que o sujeito ocupa no mundo, pois é, a partir desse momento, que ele reflete sua posição, quem é e qual sua posição no mundo.
Portanto, temos que ter em mente que, hoje, a identidade é uma reivindicação pela diferença e esta diferença está relacionada com a cultura popular a que pertence o indivíduo detentor de tais manifestações culturais. Vale lembrar que este texto é importante para o aprofundamento das discussões acerca de tais temas pois enriquem e suscitam novos estudos.

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ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. Tradução Amalio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 

* Docente efetivo do Instituto Federal do Pará (IFPA campus Belém) com especialização em Estudos Culturais da Amazônia e Mestrado em Letras na área de concentração em Estudos Literários pela Universidade Federal do Pará.

1 Antonio Augusto Arantes Neto. Bacharel em Ciências Sociais (Universidade de São Paulo, 1965), Mestre em Antropologia (Universidade de São Paulo, 1969) e PhD em Antropologia Social (University of Cambridge/King´s College, 1977). Foi um dos criadores do Departamento de Antropologia da Unicamp, ao qual está vinculado desde 1968. Foi presidente da ABA - Associação Brasileira de Antropologia – e Secretário-geral da ALA - Associação Latino-americana de Antropologia.

2 Henrique Pereira Rocha. Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará. Atualmente é professor universitário no Centro de Ensino Superior do Ceará - Faculdade Cearense. Tem experiência na área de Comunicação e Cultura, atuando principalmente nos seguintes temas: comunicação, cultura popular, folclore, pesquisa científica, antropologia e valorização das culturas regionais.

3 Peter Burke (Stanmore, 1937) é um historiador inglês. Atualmente é professor emérito da Universidade de Cambridge. Foi professor-visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA – USP), de Setembro de 1994 a setembro de 1995. É também um dos maiores especialistas mundiais na obra de Gilberto Freyre.

4 Ecléa Bosi nasceu em São Paulo, filha de Dona Ema - dos Strambi da Rua da Consolação - e de Antonio Correa Frederico, família com raízes em Santo Amaro e Pinheiros. É professora de psicologia social na Universidade de São Paulo e militante de ecologia. Obras: Cultura de massa e cultura popular - leituras de operárias; Rosalía de Castro: poesias (tradução); Simone Weil - A condição operária e outros estudos sobre a opressão; o seu clássico: Memória e Sociedade, lembranças de velhos.

5 Marcos Ayala. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba (1980), mestrado em Sociologia pela Universidade de São Paulo (1988) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (1996). Atualmente é professor titular da Universidade Federal da Paraíba. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia da Cultura, atuando principalmente nos seguintes temas: cultura popular, patrimônio imaterial cultura e identidade, cultura e memória, cultura popular urbana e cultura afro-brasileira.

6 Maria Ignez Novais Ayala. Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1972), mestrado e doutorado em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria Literária, atuando principalmente nos seguintes temas: cultura popular, literatura oral, cultura brasileira, literatura popular e literatura brasileira.

7 Trecho retirado da narrativa do senhor João Batista de Oliveira. Tal entrevista faz parte do acervo de narrativa que compõe o estudo da minha dissertação de mestrado.

8 Idem, Ibdem.

9 Idem, Ibdem.

10 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Trad. Viviane Ribeiro. Bauru: Edusc, 1999, p. 176-177.

11 Cristina Maria Teixeira Stevens, é professora de Literaturas de Língua Inglesa no Departamento de Teoria Literária da Universidade de Brasília, nasceu e cresceu em Natal, formada em Letras pela UFRN.

12 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Trad. Viviane Ribeiro. Bauru: Edusc, 1999, p. 176.

13 Idem, Ibdem. p. 176.


Recibido: 27/09/2016 Aceptado: 03/10/2016 Publicado: Octubre de 2016

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