MITRE, Maristela Jorge*
ARAÚJO, Wânia Maria, de**
Centro Universitário UNA, Brasil
maristela.mitre@hotmail.comRESUMO
Este artigo tem o objetivo de revisitar as proposições da Política Nacional de Habitação (PNH) instituída pela Lei 11.124/2005 e examinar os mecanismos de governança e governabilidade nela existentes e que dão ancoragem aos preceitos da produção social de moradia. Entende-se que a PNH sucumbiu ao jogo de interesses presente na questão urbana e à ditadura do mercado dando lugar a um articulado processo de mercantilização da habitação de interesse social que se consolidou com o Programa Minha Casa Minha Vida. A produção de moradia então perde o adjetivo “social” e afasta as prerrogativas de gestão, governabilidade e participação previstas na PNH concedendo ao setor privado da construção civil um forte protagonismo, apagando a centelha que havia sido acesa aos movimentos sociais e reduzindo o papel do poder público na promoção da política habitacional. Espera-se poder demonstrar a importância do resgate e fortalecimento daqueles mecanismos de governança e governabilidade propostos pela PNH como forma de devolver às gestões municipais a atribuição crucial de, não só planejar, mas participar ativamente do processo de provisão habitacional e consolidação das premissas da produção social da moradia.
Palavras-chave: Política Nacional de Habitação, Minha Casa Minha Vida, Produção Social da Moradia, Mercantilização da moradia, Governança, Governabilidade.
ABSTRACT
This paper aims to revisit the Brazilian National Housing Policy (NHP) established by Law 11.124/2005 and examine the governance and governability mechanisms within it which give anchorage to the social housing production precepts. It's understood that the NHP has succumbed to the game of interests present in the urban issue, and to the dictatorship of the market giving rise to an articulate process of mercantilization of social housing interest consolidated with the "Minha Casa Minha Vida" Program . The housing production loses then the adjective "social" and drives away the management, governability, and participation prerogative foreseen in the NHP granting to the private sector of construction industry a strong leading role, erasing the spark that had been lit to the social movements, and reducing the role of public power in the housing policy promotion. It's hoped to show the importance of the rescue and the fortification of those governance and governability mechanisms proposed by the NHP as a way to give back to municipal managements the crucial attribution of, not only planning, but participating actively in the process of housing provision and consolidation of the social housing production premises.
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MITRE, Maristela Jorge y ARAÚJO, Wânia Maria, de (2016): “Governança e Governabilidade para uma política de desenvolvimento urbano integradora”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (julio-septiembre 2016). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/03/governabilidade.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/CCCSS-2016-03-governabilidade
INTRODUÇÃO
A criação do Ministério das Cidades (MCidades), no primeiro mandato do presidente Lula, em 2003, representou para o Brasil a institucionalização da política urbana e das políticas setoriais de habitação e saneamento. Com a alçada de promover o desenvolvimento urbano, o MCidades incorporou em suas ações a política de subsídio 1 à habitação popular e o compromisso de promover a articulação com as diversas esferas de governo, com o setor privado e organizações não governamentais na gestão das áreas de sua competência (BRASIL, 2010, p.28-29) colocando a questão urbana para ser discutida na agenda política nacional.
Por intermédio da Lei 11.124 (16/06/2005) e com o objetivo de se consolidar a Política Nacional de Habitação (PNH), o MCidades instituiu o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), regido pelo princípio constitucional da moradia como direito e vetor de inclusão social e garantia de acesso à terra urbanizada. Priorizar o atendimento habitacional para a população de menor renda era uma das diretrizes do SNHIS.
Entre 2007 e 2008, como um desfecho das ações e desdobramento da PNH, o MCidades preparou o Plano Nacional de Habitação (PlanHab) elaborado a partir de estudos técnicos levando em consideração o perfil do déficit habitacional brasileiro, a demanda por moradia e a diversidade do território nacional. O PlanHab foi objeto de amplo debate e pactuação com os diversos segmentos da sociedade, caracterizando-se, simultaneamente, como um plano estratégico de longo prazo e ferramenta de planejamento das ações públicas e privadas de enfrentamento das necessidades habitacionais do país (BONDUKI; ROSSETTO; GHILARDI, 2006).
Garantir que os recursos públicos para moradia sejam destinados exclusivamente para subsidiar a população de mais baixa renda compõe o objetivo principal do SNHIS que estabelece também que o acesso à moradia seja assegurado por meio do FNHIS de forma articulada entre as três esferas de Governo. O SNHIS constitui-se de um sistema concebido para ser democrático e participativo e sustenta um modelo descentralizado de gestão que convoca os entes federados a uma corresponsabilidade na implementação da política de habitação de interesse social. A gestão e o controle dos recursos do FNHIS são feitos pelo Conselho Gestor do FNHIS (CGFNHIS).
Com o SNHIS, uma nova sistemática de acesso aos recursos do Orçamento Geral da União (OGU) e do FNHIS foi instituída e a obtenção dos recursos passou então a depender da adesão formal dos entes federados ao sistema e do cumprimento das atribuições firmadas em termo específico. Essa adesão constitui-se em um mecanismo que fundamenta a relação de parceria e integração da União com os Estados, Distrito Federal e Municípios para viabilizar a descentralização das ações inerentes à PNH, cuja estrutura configura uma interinstitucionalidade que teria sido concebida para potencializar ações e recursos e compartilhar os compromissos advindos das políticas públicas relativas ao desenvolvimento urbano, tanto entre as instâncias federativas quanto com a sociedade.
O Termo de Adesão assinado pelos Entes Federados estabelece os padrões de reciprocidade e contrapartidas atribuídos às partes e inclui a obrigatoriedade de constituição de Conselho e Fundo Local de Habitação de Interesse Social pelos Estados, Distrito Federal e Municípios e o compromisso de elaborarem, de forma participativa, seus próprios Planos Locais de Habitação de Interesse Social (PLIS) para terem acesso aos recursos do OGU e FNHIS (BRASIL,2005). Fica demonstrado nessa estrutura um modelo de governança capaz de garantir não só uma maior transparência no processo de implementação da política habitacional, mas uma maior capacidade de governabilidade em razão do cunho de planejamento de médio e longo prazos que traz em seu bojo.
Tanto a PNH quanto o PlanHab foram resultantes de processos participativos, envolvendo os diversos segmentos da sociedade civil. Movimentos populares, empresários, organizações não governamentais (ONGs), setor acadêmico, entidades de classe e poder público municipal e estadual foram mobilizados em torno das discussões para descortinar o cenário habitacional brasileiro e propor um plano de atendimento às demandas identificadas e assim inspirar os governos municipais e estaduais na elaboração dos seus próprios planos.
Segundo Krause; Balbim; Neto(2013, p. 10,11)
Verifica-se que, ao menos na conformidade legal, o planejamento participativo passa a ter papel central na definição das políticas de habitação de interesse social a partir de 2005, ao contrário dos momentos anteriores marcados pela ausência de planejamento ou por um processo altamente centralizado e tecnocrático. Afinal, como as normas preveem que os PLHIS devam ser elaborados utilizando-se metodologia participativa, seria de se esperar que os conselhos locais de habitação tivessem papel de destaque em sua elaboração. Ademais, com os PLHIS elaborados, também seria esperado que os conselhos se capacitassem, ou fossem capacitados, para as tarefas relativas à gestão da política e dos instrumentos habitacionais locais, de modo a zelar pela implementação dos PLHIS. É o que se esperaria com a instituição do SNHIS como efetiva política habitacional.
Entretanto, como preconizou Maricato (2006) a sustentação da PNH dependia “da defesa e continuidade dos pilares que a inspiraram” (MARICATO, 2006, p.21), e, em razão dos diferentes e divergentes interesses emaranhados na questão do desenvolvimento das cidades, a PNH sucumbiu ao mercado dando lugar ao processo de mercantilização da moradia de interesse social arregimentada pelo Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). O próprio PMCMV acabou por mudar o direcionamento do FNHIS que “praticamente deixou de apoiar a provisão pública de habitação de interesse social” (KRAUSE; BALBIM, NETO, 2013, p.7). Assim, temos na PNH e no SNHIS uma estrutura de governança instituída, mas, de certa forma natimorta. Conforme afirmam Balbim e Krause (2014)
No atual período, efetiva e infelizmente, verifica-se que ações do próprio governo federal contrariam as teses que este ajudou a criar e implantar [...], teses essas que contavam fortemente com os princípios e as iniciativas da produção social da moradia. A opção pela contratação de construtoras pelo FAR 2, voltadas à produção de unidades habitacionais de forma massificada, é fortemente majoritária no PMCMV, e deverá continuar a sê-lo, haja vista o impacto no desenvolvimento econômico [...]. (BALBIM; KRAUSE, 2014, p. 200)
Pretende-se, portanto, nesse texto, elucidar a importância dos instrumentos de governança e governabilidade3 presentes na PNH e no SNHIS sugerindo que tais mecanismos sejam resgatados e colocados a serviço dos programas não só de provisão habitacional, mas de desenvolvimento urbano e rural, integrado e sustentável devolvendo, não só ao poder público, mas aos movimentos sociais, o protagonismo necessário à consolidação das premissas da produção social de moradia. Um breve relato acerca da estrutura e funcionamento do SNHIS e do PMCMV dará a sustentação necessária à incursão pelo tema.
O Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social e o Programa Minha Casa Minha Vida: uma ruptura com os propósitos da produção social da moradia
Os Programas do SNHIS foram regulamentados e lastreados em recursos originários do Fundo de Garantia por Tempo de Serviços (FGTS), Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), Orçamento Geral da União (OGU), Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) (BRASIL, 2004). A exemplo do FAR e do FDS, os subsídios previstos nos programas que utilizam tais recursos são inversamente proporcionais à capacidade de pagamento da família beneficiária, assim, as prestações habitacionais são tanto menores quanto menor a renda familiar, caracterizando uma sistemática mais redistributiva e menos assistencialista, uma vez que o beneficiário é alçado à condição de participante e corresponsável na provisão de sua moradia.
É possível dizer que a proposta política do SNHIS supera os modelos anteriores, no sentido de substituir o paternalismo presente nas cessões de uso e doações por uma forma concebida para propiciar, ainda que de maneira simbólica, a participação financeira do beneficiário na produção e aquisição de seu imóvel residencial e o retorno financeiro aos cofres públicos na forma de prestações subsidiadas pelo governo federal. Além disso arregimenta um modelo de governança e um arranjo institucional que reproduzem, em âmbito municipal e estadual, um arcabouço criado no âmbito Federal para a gestão dos recursos e da própria política e que representa um pacto firmado com as respectivas instâncias governamentais.
Esse modelo configura-se da seguinte forma: para ter acesso aos recursos do FNHIS, além de assinar o Termo de Adesão ao SNHIS, estados e municípios devem atender a três exigências regulamentares: instituir o Fundo Local de Habitação de Interesse Social com dotação orçamentária própria de sua instância governamental; constituir seus conselhos estaduais e municipais de habitação, respectivamente, garantindo ¼ dos assentos aos representantes dos movimentos sociais; e ter elaborado, de forma participativa, seus Planos Municipais de Habitação de Interesse Social (BRASIL, 2005).
Nos programas subsidiados pelo FNHIS, os mecanismos de acesso aos recursos, além de estimularem o controle social, a transparência e a dinamização de fundos locais, agregam um forte apelo à redução do patrimonialismo, uma vez que atribui aos conselhos municipais de habitação o papel de participar ativamente do processo de seleção das demandas e institui o compartilhamento de responsabilidades. Além disso, promovem a real dimensão da noção de produção social da moradia uma vez que parte dos valores pode ser destinada ao pagamento de mão de obra das famílias beneficiadas e apoio à assistência técnica para elaboração de projetos e acompanhamento de obras nos regimes de autoconstrução ou mutirão.
De acordo com Balbim e Krause (2014, p. 197, 198)
[...] O FNHIS também apoia a prestação de serviços de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (ATHIS), o que é de extrema relevância para a produção social da moradia, uma vez que esse apoio técnico é destinado tanto aos estados e municípios como às entidades organizadoras privadas, sem fins lucrativos. A ATHIS, em consonância com a Lei no 11.888/2008, possibilita a contratação de serviços para elaboração de projetos – urbanização, edificações, regularização fundiária e trabalho técnico social –, tendo como inovação, ainda, a possibilidade de contratação de serviços de acompanhamento e de mão de obra para melhorias habitacionais em áreas consolidadas – desde que tais obras sejam executadas pelas próprias famílias beneficiárias, em regime de mutirão, autoconstrução ou autogestão. Esta modalidade, assim, atende à demanda e à necessidade expressas pelos movimentos de luta pela moradia, e viabiliza assistência técnica a melhorias incrementais da moradia, [...].
Quanto aos Conselhos Municipais de Habitação, apesar de tais instâncias terem sido constituídas de forma compulsória, por exigência do SNHIS, para que os municípios pudessem fazer jus aos recursos do FNHIS, foram concebidos para garantir a integração com a sociedade e com ela debater e aprovar as políticas, definir prioridades e critérios de elegibilidade, seleção e enquadramento dos programas, das famílias e das áreas na aplicação dos recursos financeiros originários da União, estados e municípios. Juntos, SNHIS, FNHIS, ConCidades e conselhos municipais constituem uma estrutura criada para dar ancoragem à política nacional de habitação no Brasil (BRASIL, 2004) e ao planejamento das ações de urbanização, regularização e integração de assentamentos precários e provisão habitacional.
Tal sistemática veio propor a efetivação de um novo paradigma na formulação e implementação de políticas públicas de desenvolvimento urbano baseado na criação de canais legítimos de interlocução voltados à promoção de uma maior transparência e corresponsabilidade dos entes federados e da sociedade civil no atendimento às demandas setoriais de habitação, saneamento ambiental, infraestrutura, mobilidade e transporte coletivo, equipamentos públicos e serviços. Uma estrutura capaz de fazer a intercessão da política de habitação com o conceito de desenvolvimento urbano integrado e de ampliar as possibilidades de planejamento de médio e longo prazos com repactuações quadrienais.
Desde a extinção do Banco Nacional da Habitação (BNH), em 1986, passando pela Política Nacional de Habitação lançada em 1996, de “inspiração liberal” (BALBIM; KRAUSE, 2014, p 194), nenhum outro mecanismo institucional de gestão, que pudesse dar conta da enorme demanda habitacional instalada, havia sido implementado no país. Uma carência de políticas, programas e ações que negligenciou, ao longo dos anos, os preceitos constitucionais, que consideram a habitação como direito do cidadão e a participação social como um princípio da gestão democrática, expresso no Art. 1º da Constituição Federal e previsto no Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001, Art. 43, Cap. IV.
A PNH e o PLANHAB representam, portanto, um marco histórico, primeiramente, por terem o propósito de suprir o vazio deixado pelo BNH; segundo, por constituírem-se num grande aparato voltado à alocação de recursos e à busca pelo engajamento das três esferas de governo e a iniciativa privada e que organiza um modelo de gestão pública jamais visto; e, terceiro, por prescrever a participação popular e representativa no planejamento de ações contínuas e integradas, com metas estabelecidas e revisões periódicas.
Além disso, os programas e ações voltados à produção social da moradia, a exemplo do Crédito Solidário instituído por meio da Resolução nº 93/2004 do Conselho Curador do FDS especialmente para ser implementado por cooperativas e associações habitacionais, atenderam a uma demanda histórica das entidades e movimentos sociais de luta por moradia. De acordo com Balbim e Krause (2014, p.196)
[...] a experiência pioneira do Crédito Solidário parece ter levado o governo federal a reconhecer o papel dessas entidades organizadoras, ao destinar a elas uma ação do FNHIS e incluí-las entre os atores envolvidos no Programa Minha Casa Minha Vida.
Apesar dos avanços na construção de políticas voltadas ao desenvolvimento urbano e de todos os dispositivos de governança e governabilidade previstos no SNHIS, “a implementação das políticas e do processo de participação ainda está muito aquém dos anseios e apostas feitas pelos movimentos de moradia e de reforma urbana” (FERREIRA, 2012, p.9). Para consolidar a produção social da moradia e a participação das entidades da sociedade civil na aplicação de recursos orçamentários para habitação é preciso que haja não só inovação, mas maturidade da gestão pública e dos agentes financeiros para lidar com os movimentos sociais e um arcabouço normativo condizente com a capacidade instalada das entidades (BALBIM; KRAUSE, 2014).
Como nas palavras de Ferreira (2012, p.9),
O principal programa habitacional do atual governo, o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), por exemplo, sequer foi discutido no Conselho das Cidades antes do seu lançamento, em 2009. Teve como objetivo principal reaquecer o mercado imobiliário no Brasil – respondendo à crise mundial de 2008 – financiando diretamente empresas e construtoras para a construção para as classes de faixa de renda de 0 até10 salários mínimos. É um programa dos governos Lula e Dilma que responde a uma demanda do empresariado da construção civil, desconsiderando o papel que os governos municipais e estaduais podem (e devem) ter na formulação e implementação de uma política habitacional mais ampla, que inclua produção de novas moradias, estoque de terras, urbanização, regularização fundiária e planejamento urbano.
O PMCMV, inspirado no modelo chileno de provisão habitacional, que surgiu como medida anticíclica na crise financeira mundial de 2008, deu centralidade ao setor privado da construção civil contrariando os princípios do SNHIS que pela primeira vez na história do país havia atribuído protagonismo e corresponsabilidade aos municípios, estados, Distrito Federal na implementação dos programas de habitação. De acordo com Aragão (2012)
O PMCMV ignorou em larga medida as premissas e debates acumulados em torno do Plano Nacional de Habitação de Interesse Social. [...] A implementação de uma política habitacional regida por uma lógica empresarial trouxe reflexos diferenciados para a construção do espaço urbano, assim como para a eficácia da política de habitação como mecanismo de redução das desigualdades socioespaciais (ARAGÃO, 2012, p.47)
Nesse sentido, não se pode deixar de mencionar que a política habitacional, tanto aquela adotada pelo BNH, quanto a que está vigente, trazendo um arcabouço normativo de gestão compartilhada, privilegia o modelo capitalista de produção, promovendo empresas ligadas ao financiamento, produção e venda de moradias (MARICATO, 1987apud HIRATA, 2009) 4 e definindo a localização dos empreendimentos. Como o preço final das unidades habitacionais é pré-definido pelo programa, o lucro, que é sempre o objetivo maior das empresas, acaba sendo auferido ou pela redução do custo de construção ou pela redução do custo da terra. Resulta daí não só a drástica redução da qualidade dos produtos, com tipologias padrão, mas a periferização da moradia de interesse social, dada a necessidade da produção em larga escala, com forte tendência à verticalização, e a falta de grandes áreas nas regiões mais centrais (ARAGÃO, 2012).
Enquanto programa de habitação de interesse social, o Programa Minha Casa Minha Vida busca atender à demanda habitacional do público formado por famílias com renda de até R$5.000,00, priorizando inicialmente aquelas com renda de até R$1.600,00 (Faixa I)5 em um leque de estratégias para favorecer o acesso à moradia por meio de subsídio do Estado associado ou não à concessão de crédito. Os recursos para o programa foram divididos pelas regiões do país de acordo com o déficit habitacional de cada uma delas e conforme regulamentação específica para municípios com população acima de 50 mil habitantes e entre 20 mil e 50 mil habitantes (BRASIL, 2009).
O mecanismo de priorização de regiões de acordo com seu número de habitantes previsto no programa não caracteriza uma política redistributiva e de universalização e não leva em consideração a “expressão territorial das desigualdades” (KOGA, 2011, p. 24), assumindo, portanto, um caráter apenas paliativo “de minorar as agudizações e não de universalizar um padrão de cidadania” (KOGA, 2011, p. 25), definindo o direito como mérito. Para Koga (2011)
Neste caso, a orientação que é tomada como parâmetro para uma ação é a busca em localizar a agudização de situações e não as restrições à cidadania e à justiça social. A precariedade de condições de vida espalha-se no Brasil e está presente em todas as cidades [...]. Selecionar os municípios restringe direitos dos cidadãos (KOGA, 2011, p. 25).
Acrescenta-se aí o fato de que, apesar do grande montante de subsídio público destinado ao programa MCMV, o fenômeno da segregação proveniente do processo de urbanização intensa com produção de moradia em locais sem cidade acaba por se repetir “[...] produzindo novas manchas urbanas monofuncionais e aumentando a densidade populacional de zonas guetificadas já existentes” (ROLNIK, 2015, p. 314),
Cabe ressaltar que, a despeito dos pontos críticos, é possível afirmar que o PMCMV inova ao articular mecanismos de transferências de recursos não onerosos, de diferentes fontes (na forma de transferência de renda, como subsídio à família, e não ao imóvel), priorizando o atendimento à parcela da população de baixa renda e à classe média (BRASIL, 2010). Por outro lado, padece por não incorporar os instrumentos de gestão urbana6 previstos no Estatuto da Cidade, em especial no que tange ao combate à segregação socioespacial, tornando frágil seu alcance social.
E é importante salientar também que à medida que o programa incorpora uma sistemática de subsídio único e intransferível, é preciso que sejam feitos diagnósticos despidos de assistencialismo e imunes ao patrimonialismo e, já no processo de seleção de beneficiários, sejam adotadas metodologias adequadas que privilegiem a informação e a conscientização sobre a natureza do programa enquanto parte de uma política pública e a origem dos recursos, buscando favorecer mais a justiça social e a gestão do déficit habitacional qualitativo e quantitativo existente. Entretanto, no MCMV essa prerrogativa não se efetivou como poderia se efetivar se os mecanismos de gestão previstos no SNHIS estivessem sendo aplicados.
Um outro ponto que merece destaque reside no fato de que o modelo adotado no PMCMV exige do aparelho estatal a adoção de mecanismos de controle integrados para a sistematização dos dados e eficiência na gestão das informações. Uma eficiência que a máquina estatal demonstrou ainda não possuir 7 e que se confirma nas várias matérias publicadas nos grandes veículos de comunicação, informando sobre os empreendimentos do Programa Minha Casa Minha vida dominados pelo crime organizado, invadidos e depreciados, muitas vezes, com a aquiescência dos próprios beneficiários do programa.
Assim, no que tange às políticas públicas, é necessário que o Estado possua a capacidade necessária não só para pensá-las, mas para implementá-las e acompanhar sua execução, monitorando dados e resultados. De acordo com Filgueiras e Andrade (2010), é importante levar em consideração “a organização do governo municipal para a execução das políticas sociais” (FILGUEIRAS; ANDRADE, 2010, p. 127). Segundo as autoras, no caso da provisão habitacional, da urbanização e em outras ações, pesam sobre as administrações municipais “diversas exigências em termos de habilidades políticas, recursos operacionais, diagnósticos das situações e clareza dos propósitos das intervenções” (FILGUEIRAS; ANDRADE, 2010, p. 127). Santos Jr8 (2001apud FILGUEIRAS; ANDRADE, 2010) afirma que
O organograma da área social e a capacidade institucional dos órgãos gestores são alguns dos muitos fatores que podem incidir sobre o desempenho de programas nesta área. A frágil capacidade técnico-operacional das administrações municipais pode ser constatada pela deficiência na oferta de serviços públicos, pela precária informatização dos procedimentos administrativos, pelo reduzido número e baixa capacitação profissional dos quadros técnicos, pelos procedimentos orçamentários desvinculados da atividade de planejamento e não submetidos a controle social e pela administração escassamente dotada de instrumentos adequados para o planejamento em médio e longo prazo. (SANTOS JR, 2001 apud FILGUEIRAS; ANDRADE, 2010, p. 127)
Apesar de Filgueiras e Andrade (2010) estarem se referindo à questão urbana nas regiões metropolitanas, as ponderações por elas apresentadas aplicam-se a outras cidades de menor porte que também padecem da falta de saneamento, da incidência de ocupações irregulares e precárias, de problemas fundiários, da falta de capacidade técnica, administrativa e logística, da falta de espaços de participação e, sobretudo, de gestões “personificadas no gestor”, demandando, portanto, que se estabeleça um modelo de governança também para essas cidades, compatível não só com as matrizes das políticas, mas com a complexidade dos problemas da sociedade e do próprio Estado.
Leva-se em consideração que a universalização e efetividade das políticas públicas, o bom uso do espaço urbano, o acesso à cidade, aos serviços e equipamentos, à cultura, ao esporte e ao lazer e a mitigação das desigualdades sociais pressupõem não somente o enfrentamento da ditadura do mercado e do conflito de interesses, mas também, e tanto pela sua interligação, a necessidade do desenvolvimento institucional dos governos municipais em todo território nacional, a criação de espaços de vocalização e a superação do patrimonialismo, do clientelismo e da cultura da exceção e do favorecimento que se perpetua nas relações, sobretudo na gestão pública.
Numa realidade de déficits habitacionais astronômicos e históricos, carestia e falta de terra urbanizada e interesses divergentes, que necessariamente refletem no “viver a/na cidade”, é preciso que a essência dos programas e políticas públicas, notadamente no recorte da habitação de interesse social, esteja emoldurada no que Rolnik (2002) chama de “política urbana contra a exclusão”, consolidando a premissa de que habitar vai muito além de ocupar um espaço físico sobre o solo. O habitar carrega em si o sentido da cultura, da interação, do convívio, das relações sociais que se estabelecem no território enquanto lugar social dotado de complexidade e multiplicidade e do exercício da cidadania, mas também exige que esses lugares representem as centralidades necessárias ao existir de qualquer cidadão.
Trata-se de pensar o direito coletivo e o princípio da justiça social (OLIVEIRA, 2001) a partir do uso responsável da propriedade, o que exige do Estado uma “estrutura institucional e capacidade técnica para a formulação e implementação de políticas públicas verdadeiramente democráticas [...]” (NAKANO, 2010, p. 4), “[...] buscando o necessário equilíbrio entre os interesses público e privado no território urbano” (OLIVEIRA, 2001, p.8).
Tudo isso exige a estruturação, regulamentação e aplicação de mecanismos eficientes de gestão e participação os quais a Política Nacional de Habitação e o SNHIS contemplam, ainda que de maneira incipiente. Resgatá-los, desenvolvê-los e associá-los aos programas de desenvolvimento urbano é, portanto, não só uma forma de dar aplicabilidade a uma importante norma instituída a partir de estudos técnicos e das demandas dos movimentos sociais, mas uma necessidade urgente da sociedade que se vê confinada em um modelo saturado de cidade e submissa à incompletude da gestão pública.
Governança, Governabilidade e Gestão Social na PNH e no SNHIS
A divergência de interesses presente nas relações que se estabelecem entre os diversos segmentos da sociedade enquanto partícipes ou destinatários no processo de implementação de políticas públicas de habitação dificulta a materialidade de uma gestão urbana inclusiva. Tem-se de um lado o público alvo e de outro as grandes construtoras e incorporadoras; os especuladores imobiliários e latifundiários (cujas terras, em especial nas cidades de menor porte, alcançam o perímetro urbano e o desmembramento lhes é favorável); os cartórios que não abrem mão de seus privilégios monopolizantes; o setor público; a sociedade, os agentes financeiros e entidades executoras. Todas essas forças provocam “padrões desiguais, precários e predatórios de urbanização [...] e formas excludentes de uso e ocupação do solo urbano, que segregam os locais de moradias dos grupos de alta, média e baixa renda” (NAKANO, 2010, p.4).
Diante desse crítico cenário que descortina nas metrópoles um modelo saturado e para as pequenas e médias cidades um futuro insustentável, defende-se a necessidade premente de se conjugar e colocar em prática os princípios da gestão social, da governança da governabilidade como mecanismos de enfrentamento à rápida e crescente exclusão socioespacial.
Precisamos ativar suas maiores potencialidades, as inteligências coletivas capazes de buscar soluções conjuntas para problemas comuns. As cidades são os locais mais propícios para a realização de amplos debates públicos, inclusive com a utilização das modernas tecnologias de comunicação, na busca por agendas políticas compartilhadas e articuladas. [...]. Políticas públicas inseridas em estruturas de governança territoriais e econômicas que operem articulações entre as escalas locais, regionais e nacionais e estejam organizadas nas esferas municipais, estaduais e federal. Estruturas que precisam ser criadas com investimentos maciços na formação continuada de gestores públicos e em arranjos organizacionais que superem o baixo grau de desenvolvimento institucional existente nos entes da federação (NAKANO, 2010, p.4).
Entende-se que a constituição do SNHIS e da PNH foi um passo importante na direção de uma política urbana que abarque o estímulo à participação, à intersetorialidade e uma “atuação coordenada e articulada entre os entes federativos” (BONDUKI; ROSSETO; GHUILLARD, 2006). A base normativa do SNHIS atribui papel central às prefeituras na articulação com o Governo Federal e interlocução entre os atores e um protagonismo na aplicação dos recursos destinados à execução das intervenções e na implementação da Política Nacional de Habitação. Entretanto, a implementação da PNH, o acesso à moradia digna e a universalização de direitos sucumbiram ao processo de mercantilização da habitação e das cidades desconstruindo as conquistas resultantes da luta de longos anos dos movimentos sociais.
Como ferramenta de planejamento, o PlanHab apresenta propostas operacionais que devem ser implementadas no curto, médio e longo prazos de forma articulada com os Planos Plurianuais (PPAs) e, como plano estratégico, define metas a serem alcançadas até o ano de 2023 com revisões a cada quatro anos e avaliação de resultados e análise de novos cenários e projeções (BRASIL, 2010). Tal sistemática não vem sendo cumprida na prática. Por sua essência estratégica, envolvendo diagnósticos, prognósticos e planejamento, tal sistemática requer um engajamento da sociedade, principal interessada e alvo das ações e, consequentemente, a consolidação e efetividade das instâncias de participação, que devem ser permanentes, para que as demandas vocalizadas e os ajustes necessários sejam incluídos nas agendas e nas metas estabelecidas. Para isso há um longo caminho a percorrer.
Ao discorrer sobre governança urbana e participação pública, Frey (2007) faz a seguinte consideração “Governar torna-se um processo interativo porque nenhum ator detém sozinho o conhecimento e a capacidade de recursos para resolver problemas unilateralmente” (STOKER, 2000, p. 939 apud FREY, 2007, p.138) e complementa com Kickert (1999): “O governo é apenas um entre muitos influentes atores sociais que estão envolvidos na formulação e implementação de políticas públicas” (KICKERT et al. 10, 1999, p. 5, apud FREY, 2007, p.138).
Segundo Ribeiro e Santos Junior (2012), com o aprofundamento do processo de mercantilização da cidade, é urgente atualizar o debate em torno do urbano e de um novo projeto de vida social capaz de
[...] propor mecanismos de um novo tipo de coesão social baseado na negação da segregação social, na promoção da função social da cidade e da propriedade, na gestão democrática, e na difusão de uma nova cultura social, territorial e ambiental que promova padrões de sociabilidade com base na solidariedade, na construção de identidades e na representação de interesses coletivos. [...]. Ao mesmo tempo, essa agenda exige um agente social capaz de expressar esse projeto e esse programa. Com efeito, o movimento da reforma urbana está desafiado a intervir programaticamente na cidade na forma de uma rebeldia criativa, buscando promover universos sociais nos quais possam surgir e se desenvolver práticas educativas, políticas públicas e novas linguagens culturais geradoras da desmercantilização da cidade e da promoção do direito à cidade, buscando romper, desta forma, com a hegemonia do neoliberalismo empreendedorista (RIBEIRO; SANTOS JÚNIOR, 2012, p. 17-18).
Trata-se de reconhecer as “novas potencialidades relacionadas à ampliação dos atores sociais envolvidos na gestão da coisa pública” (FREY, 2007, p.138) e a necessidade de promover a intersetorialidade e a articulação desses atores em favor da melhoria da capacidade de governar do Estado em prol do bem comum. Essa orientação inspira a substituição de um modelo de gestão pública de caráter mais gerencialista 11 por uma gestão “democrático-participativa” (FREY, 1996 apud FREY, 2007, p. 138) no sentido de “mobilizar todo conhecimento disponível na sociedade em benefício da melhoria da performance administrativa e da democratização dos processos decisórios locais” (FREY, 2007, p.138) e consolidar a gestão social numa relação dialética entre a governança, a governabilidade e a gestão social.
Diante da “centralidade do mercado na gestão da vida social” (FERREIRA NETO, 2012, p. 89), e considerando que ao Estado cabe regular, normatizar e cuidar do interesse público, e compreendendo que “entre a administração pública e a cidadania não há um contrato comercial com base individual”, mas “um contrato social e político de base coletiva” (FERREIRA NETO, 2012, p. 97), é do Estado a incumbência de se organizar para que a gestão social genuinamente aconteça e consolide-se. E, nesse sentido, é preciso que ele consiga aliar “resolutividade” às suas práticas gerenciais, viabilizando o exercício do controle social por meio de canais efetivos de participação direta (FERREIRA NETO, 2012).
Já a gestão social que trazemos para esse contexto é defendida por Ávila (2001), como “a gestão das demandas e necessidades dos cidadãos” (ÁVILA, 2001, p. 14), e como tal impõe às populações o desafio de serem protagonistas na construção de seus próprios territórios, pois as políticas, programas e projetos virão em resposta a essas demandas que “reconhecidas como legítimas” (ÁVILA, 2001, p.14) passam a se constituir em direito, fundamentando, por sua vez, as políticas públicas (ÁVILA, 2001).
E nesse sentido a gestão social impõe ao Estado o desafio de se estruturar para não só atender às necessidades da sociedade, mas de participar de forma ativa do processo de identificação e organização das demandas e contendas sociais. Na gestão social, cabe ainda o planejamento das ações públicas necessárias à universalização das políticas sociais em conjunto com os demais atores e partes interessadas, rompendo de vez com seu modelo anacrônico de se aparelhar para se enclausurar na máquina burocrática e ineficiente.
Portanto, se os instrumentos de governança estão prescritos na política, e vigentes, resta pensar que o que esteja faltando sejam então os mecanismos de governabilidade e gestão social que façam permear pelo campo da exequibilidade aquilo que a norma guardou para si. E, nesse sentido, para que se tenha mais controle social e regulação, o dever do Estado se faça cumprir e o cidadão, ativo, se faça ouvir, é necessário que se tenha espaços de vocalização e estímulo à participação deliberativa e cívica para que a sociedade tome ciência dos programas e ações em vigor e suas regulamentações e não só participem, mas cobrem dos agentes públicos sua aplicação.
Assim, torna-se essencial cuidar da Informação, instituir canais de comunicação e transparência, dispor de mais tecnologia a serviço da cidadania e do controle social, de mais apoio às manifestações e coletivos culturais, estímulo ao bom uso das redes sociais, capacitação e reconhecimento dos servidores públicos, dos conselheiros, mobilizadores sociais, lideranças locais e mediadores. E, sobretudo, para garantir a intersetorialidade, a interdisciplinaridade, o desenvolvimento da cidadania, tão necessários quando se pensa o urbano, é preciso reconhecer também, e trazer para dentro do processo, os profissionais do trabalho social garantindo a aplicação dos preceitos da Portaria 21/201412 do Ministério das Cidades como forma de potencializar as ações de busca pela defesa dos direitos sociais e promoção de posturas cívicas de cumprimento de deveres e pactos sociais.
É exatamente nessa direção que defende-se o resgate dos mecanismos de governança e governabilidade previstos no SNHIS para a implementação, não só da política de provisão habitacional para a população de menor renda, como também das ações de desenvolvimento integrado das cidades, reconstituindo e consolidando os fundos e conselhos municipais de habitação de interesse social, instituindo grupos gestores interdisciplinares, elegendo e capacitando mobilizadores sociais, articulando de forma intersetorial e interinstitucional um planejamento urbano mais voltado para a inclusão socioespacial e que dote as cidades um caráter mais funcional e justo. Entende-se que tais mecanismos delegam às administrações públicas municipais uma corresponsabilidade no processo de implementação dos programas, imputando-lhes atribuições para uma gestão compartilhada e elegem as pessoas como parte importante e ativa do processo.
Considerações finais
Em meio às relações que se estabelecem entre os diferentes atores sociais; em meio aos “projetos societários de desenvolvimento em disputa” (MAIA, 2005, p. 2) que se polarizam no “desenvolvimento do capital e desenvolvimento da cidadania” (MAIA, 2005, p. 2), representando interesses públicos ou privados, individuais ou coletivos, torna-se exigência incondicional a criação de estratégias e metodologias que sustentem os processos de condução desses interesses e que só serão eficientes se constituídos da relação dialética entre governança, governabilidade e gestão social. Acredita-se que, a partir dessa relação dialética, que requer, provoca e é em si empoderamento e participação, abre-se espaço para uma repactuação social por meio da qual os cidadãos possam creditar a si a capacidade de transformar o caráter instrumental e burocrático presente na forma de gerir e implementar as políticas públicas, fazendo-se seus destinatários naturais por direito em lugar da benesse que até agora só vem escamoteando o traço “hierárquico-autoritário” presente nos programas (KOGA, 2011, p. 44).
Tais premissas inscrevem os programas habitacionais na política de desenvolvimento urbano integrado e sustentável, guarnecendo a concepção de uma intervenção que promova não só o acesso das comunidades à habitação, mas seu desenvolvimento social, político e econômico. Prover moradia passa a demandar também a gestão democrática e transparente dos investimentos públicos e da informação, a verificação e análise prévia da viabilidade social e ambiental das intervenções, a plena apropriação dos bens e serviços disponibilizados, enfim a implementação de ações inovadoras voltadas à gestão social e ao desenvolvimento local com governança e governabilidade. Nesse sentido, faz-se essencial a ação conjunta do executivo, do judiciário e do legislativo em sinergia com os agentes financeiros, cartórios, prestadores de serviços, setor privado e outros segmentos da sociedade no fim precípuo de conter as influências mercadológicas na questão do urbano.
Constituir o vigor de um governo democrático e representativo e a vitalidade política de uma comunidade estaria, por assim dizer, diretamente relacionado a uma propriedade sócio-organizativa endógena, capaz de surgir no interior do próprio tecido social de forma pragmática a partir das condições locais instaladas e de visões e problemas compartilhados. Os cidadãos aqui representados adquirem a faculdade de, não só participar de, participar em organizações que se constituem para gerir de forma organizada as demandas sociais. Essa estrutura de engajamento fortalece os propósitos e projetos comunitários e o próprio Estado.
Dessa maneira, os servidores e gestores públicos, a que Carvalho (2014) chama de “atores internos” e os grupos da sociedade civil, que para essa autora são os “atores externos”, devem agir de modo conciliador, buscando “fortalecer e construir novas relações entre Estado e sociedade civil para recuperar a confiança social perdida e fortalecer a dimensão da participação” (CARVALHO, 2014, p. 51), instituindo assim modelos de governança e governabilidade para organizar e gerir os interesses coletivos. É com base em tais premissas que se defende, portanto, o resgate e o aprofundamento dos instrumentos de gestão previstos na PNH e no SNHIS colocando-os a serviço dos programas não só de provisão habitacional, mas de desenvolvimento urbano e rural, integrado e sustentável.
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* Socióloga, mestre em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local pelo Centro Universitário UNA. Especialista em Política Social e Desenvolvimento Urbano. Assistente de Projetos Sociais na área de Desenvolvimento Urbano e Rural da Caixa Econômica Federal, maristela.mitre@hotmail.com.
** Assistente Social, mestre em Ciências Sociais e doutorado em Ciências Sociais pela PUC Minas. Professora do Programa de Pós-Graduação em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local do Centro Universitário UNA e da Escola de Design da UEMG, wania.maria@yahoo.com.br.
1 Os subsídios, em caráter único e no formato de desconto aplicado às prestações habitacionais, são concedidos às famílias, de forma pessoal e intransferível, e não ao imóvel. Tem o propósito de compatibilizar o custo de aquisição do imóvel à capacidade de renda da população mais pobre (BRASIL, 2004).
2 FAR: Fundo de Arrendamento Residencial gerido pela Caixa Econômica Federal.
3 Governabilidade como as “condições sistêmicas sob as quais se dá o exercício do poder, [...] sobretudo, no processo de tomada de decisões; e governança como a capacidade de tomar e executar decisões, garantindo sua continuidade no tempo [...] (DINIZ, 2000).
4 MARICATO, E. Política Habitacional no Regime Militar. Petrópolis: Vozes, 1987.
5 Em Março de 2016 o Governo Federal lançou o PMCMV III e os limites de renda passaram a ser de R$1.800,00 para a Faixa I, R$3.600,00 para a faixa 2 e R$6.500,00 para a faixa 3. No novo PMCMV Ficou instituída também a faixa 1,5 para renda familiar de até R$2.350,00.
6 Pela Constituição Federal, o principal instrumento da política de desenvolvimento e expansão urbana devem ser os Planos Diretores. O Estatuto da Cidade, Lei no 10.257/2001, “dedica grande parte de seu conteúdo aos instrumentos para a promoção da política urbana, em especial na esfera municipal [...]” (OLIVEIRA, 2001, p. 24).
7 A exemplo da ineficiência na aplicação da metodologia do IPTU Progressivo previsto no Estatuto da Cidade ( Lei 10.257/2001) que prevê o aumento do imposto na medida da ociosidade e reserva de terras à especulação imobiliária nos centros urbanos.
8 SANTOS Jr. Orlando Alves dos. Democracia e governo local: dilemas da reforma municipal no Brasil. RJ: Revan/Fase, 2001.
9 STOKER, G. Urban political science and the challenge of urban governance. In J.Pierre (Ed.). Debating Governance: authorit, steering and democracy (pp.91-109). New York:Oxford university Press, 2000.
10 KICKERT, W. J. M.; KLIJN, E. H.; KOPPENJAN, J. F. M. Introduction: a management perspective on policy networks. In W. J. M. Kickert, E. H. Klijn, & J. F. M. Koppenjan (Eds.). Managing complex networks. Strategies for the public sector (pp.1-13). London, Thousand Oaks, New Delhi: SAGE, 1999b.
11 Modelo que incorpora na administração pública o princípio da eficiência para resultados e apadrinhado pelo conceito New Public Management – NGP que propunha uma “reforma geral do Estado” (PAES DE PAULA, 2005, apud FERREIRA NETO, 2012, p. 90) em razão das crises globais da década de 1970 que abalaram o processo de construção do Estado de Bem Estar Social.
12 Regulamenta o trabalho social nos programas e ações do Ministério das Cidades.
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