Remo Moreira Brito Bastos*
Universidade Federal do Ceará, Brasil
remomoreira@gmail.comRESUMO: Neste trabalho, fruto parcial de pesquisa bibliográfica e documental desenvolvida em nossa Tese de Doutorado, ora em produção, procurar-se-á proceder à caracterização do paradigma neoliberal/mercantil de educação, perspectiva contemporaneamente hegemônica nos países centrais, o qual subsume completamente essa esfera social aos mecanismos capitalistas de mercado, destituindo-a de seu fundamental papel de veículo do esclarecimento e da formação humana e instrumentalizando-a com vistas a destravar e acelerar a reprodução ampliada do capital, cuja acidentada dinâmica tem demonstrado a dificuldade de seu correspondente modo de produção em conciliar suas intrínsecas contradições desde o agravamento dos sintomas da crise estrutural de seu sistema sociometabólico, a partir de meados da década de 1960.
PALAVRAS-CHAVE: Política educacional, Crise educacional, Estados Unidos, Accountability, Testes padronizados
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Remo Moreira Brito Bastos (2016): “No Child Left Behind: a “crise” escolar como estratégia nos Estados Unidos”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (julio-septiembre 2016). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/03/crise-escolar.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/CCCSS-2016-03-crise-escolar
INTRODUÇÃO
Inicialmente, será delineado o panorama da crise educacional que atinge os Estados Unidos, centro orgânico do capitalismo mundial, acentuada com o advento dos programas “No children left behind” (“Nenhuma criança deixada para trás”), regulamentado por lei federal promulgada pelo Presidente George W. Bush em 08 de janeiro de 2002, e “Race to the Top” (“Corrida para o topo”), instituído em 2009 pelo Presidente Barack Obama1 , ambos considerados por seus criadores e apoiadores reformas que objetivam a recuperação do nível de desempenho educacional daquela nação e a eliminação da diferença nesse quesito (“achievment gap”) que desfavorece os negros e os hispânicos em relação aos brancos. Partimos da hipótese de que a adoção desse modelo educacional fracassou em lograr tais objetivos, em muitos casos agravando-os, em função, notadamente, de seu caráter imediatista, mercantilizante e adestrador, intrinsecamente divorciado das mais básicas necessidades pedagógicas e de desenvolvimento humano e social do alunado daquela nação.
VISÃO GERAL E ARGUMENTAÇÃO CENTRAL DA PROBLEMÁTICA
Importa, a principio, atentar para o atual contexto da economia política da educação nos Estados Unidos, no qual a macroestrutura de poder econômico corporificada por fundações privadas e gigantescas corporações empresariais oligopólicas vêm capturando o sistema educacional daquela nação, parasitando-o com vistas a impulsionar o bilionário mercado de provimento educacional privado, o qual, por sua vez, potencializa a criação e a disseminação de imensas cadeias de valor para explorar os segmentos de mercado nas áreas de tecnologia da informação, de consultoria e de infraestrutura para os testes padronizados de larga escala, sendo estes considerados um fim em si mesmo, verdadeira obsessão das forças político-econômicas dominantes naquela formação social, e mecanismo manipulatório habilmente utilizado no sentido de justificar a desestruturação do sistema educacional público, como se verá no decorrer do presente capítulo.
Outro aspecto de fulcral relevância na atual conjuntura do sistema escolar estadunidense consiste na política de culpabilização e responsabilização dos professores pela propagada crise do sistema, utilizada, com efeito, como justificativa para vulnerabilizar e desprestigiar a educação pública com o intuito de facilitar a adoção de mecanismos de mercado na gestão e mesmo na provisão educacional naquele sistema.
A CRISE EDUCACIONAL NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
Nos últimos trinta anos, a sociedade estadunidense vem sendo impactada, sobretudo por intermédio da imprensa hegemônica e de centros de pesquisa (think tanks) institucionalmente vinculados a grandes corporações empresariais ou por essas subvencionados, por uma avalanche de propostas, muitas das quais já implantadas, com vistas a reformar o sistema educacional nacional básico (em seus níveis primários e secundários) daquela nação, cuja qualidade vem, no entendimento daqueles segmentos corporativos, deteriorando-se sensivelmente, causando a perda de competitividade internacional do país em virtude da supostamente declinante formação técnica e intelectual de sua força de trabalho.
Nesse diagnóstico, a incapacidade técnica da gestão estatal, o corporativismo e a incompetência de professores e diretores desempenham papel determinante no alegadamente pífio desempenho dos estudantes norteamericanos, entendendo-se sempre a aferição daquele estritamente por testes padronizados de alto impacto, cujos insatisfatórios resultados seriam congruentes com a débil qualidade do ensino que recebem de seus professores.
A hipótese de trabalho da pesquisa que desenvolvemos, consubstanciada em nossas apreensões teóricas e empíricas na área, decorrentes de pesquisas anteriormente conduzidas, bem como em minucioso levantamento exploratório, considera que as deficiências que efetivamente vêm afetando aquele sistema educacional decorrem precisamente das ações que vêm sendo tomadas no sentido de subordinar o funcionamento daquele sistema à dinâmica de acumulação global capitalista, motivadas sobretudo pelos indisfarçáveis interesses econômicos em torno de uma indústria de mercado global cujo volume de negócios já ultrapassa a casa do trilhão de dólares 2. A seção a seguir contextualiza o momento histórico em que são lançadas as condições que permitirão deflagrar o processo em questão.
ANTECEDENTES: “UMA NAÇÃO EM RISCO”
Em abril de 1983, o então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, divulga para a imprensa o teor de um relatório preparado pela National Commision on Excellence in Education (Comissão Nacional de Excelência em Educação), intitulado A Nation At Risk (Uma Nação em Risco), o qual alertava para a precária qualidade da educação naquele país, e cuja repercussão naquela sociedade foi bombástica. Dentre outros resultados divulgados, o documento informa que vinte e três milhões de americanos adultos eram analfabetos funcionais, que o desempenho médio dos estudantes do ensino secundário em testes padronizados foi pior do que antes do lançamento do satélite russo Sputnik, em 1957, e que apenas um quinto dos alunos com dezessete anos de idade conseguiram escrever um breve texto persuasivo. Sobre o impacto nacional do documento, testemunha a historiadora de educação Diane Ravitch3 :
Após a publicação do Uma Nação em Risco, o discurso público sobre o sistema educacional estadunidense passou a se alicerçar na crença infundada de que suas escolas públicas estavam presas em um arco de declínio. Inúmeros relatórios foram feitos por comissões, forças-tarefa e grupos de estudo, supostamente para documentar a "crise" na educação americana, a "crise" do desempenho dos alunos, a "crise" de evasão na escola secundária, a "crise" de maus professores. Revistas de notícias como Time e Newsweek publicaram histórias sobre a crise, as redes de televisão mostraram especiais sobre a crise, editoriais opinaram sobre as causas da crise. O barulho constante do jornalismo negativo teve seu efeito: A opinião pública positiva sobre a qualidade da educação pública americana caiu de 1973 para 2012. Em 1973, 58% dos americanos confiavam nas escolas públicas, mas em 2012 sua taxa de aprovação caiu para apenas 29% (ainda que superior à confiança pública nos bancos e nas empresas, que se situou em 21%, ou no Congresso, em 13%). (RAVITCH, 2013, p. 37)4
Desde então, de acordo com Berliner e Biddle (1995), os defensores dos vouchers 5 e a direita política estadunidense ("uma poderosa coalizão política conservadora, liderada por interesses corporativos [...] contra as escolas públicas", segundo Foster (2011)) têm aproveitado a comoção gerada pelo relatório para culpabilizar os professores como bodes expiatórios da suposta "crise" educacional, a qual, segundo ainda aqueles três autores, não passava de um mito, o que os dois primeiros procuram demonstrar na referida obra por meio de uma minuciosa análise dos testes SAT (Scholastic Aptitude Test)6 e de outros de menor abrangência. Foster (2011) salienta, ainda, que o relatório passa ao largo de qualquer menção à desaceleração do crescimento econômico, à desigualdade social crescente e ao aumento da pobreza nos Estados Unidos7 .
Em análise mais nuançada, Ravitch (2010, 2013), não obstante acompanhar esses estudiosos nas críticas ao referido relatório, no que se refere à indevida imputação da responsabilidade pela perda de competitividade do parque industrial estadunidense ao suposto decréscimo do nível educacional de sua força de trabalho, assim como às nefastas consequências de seu uso político, quando a obsessão com os testes e com a responsabilização de professores e diretores torna-se a agenda nacional da reforma, pondera, todavia, que não era esse o espírito no qual se imbuiu a comissão designada para produzi-lo. Mais: assevera que:
O A Nation at Risk foi notável pelo que não disse. Não ecoou o frequentemente expressado desejo de Reagan de abolir o Departamento de Educação dos EUA. Ele não apoiou e nem mesmo discutiu suas outras causas educacionais favoritas: vouchers e oração nas escolas. Ele não se referiu à competição baseada no mercado e nem à escolha entre as escolas; ele não sugeriu a reestruturação de escolas ou de sistemas escolares. Ele não disse nada sobre o fechamento de escolas, privatização, federalização da educação municipal, ou outras formas de pesada responsabilização. Ele referiu-se apenas brevemente, quase de passagem, a testes. Em vez disso, ele abordou os problemas que eram intrínsecos à escola, como o currículo, os requisitos de graduação, formação de professores, bem como a qualidade dos livros didáticos; ele não disse nada sobre o governança ou organização de distritos escolares, porque estes não eram vistos como causas do baixo desempenho. (RAVITCH, 2013, p. 24, grifo nosso)
Outro ponto em que a análise de Ravitch (2013) conflui com a de Berliner e Biddle (1995) reside na desmistificação da apregoada queda do desempenho dos alunos estadunidenses nos exames nacionais. Apoiando-se nas estatísticas produzidas a partir do inicio dos anos 1970, relativas ao exame National Assessment of Educational Progress (Avaliação Nacional do Progresso Educacional; doravante NAEP) 8, apontado como a única medida institucional de desempenho acadêmico realmente reconhecida nacionalmente, para avaliações longitudinais, a autora sustenta que desde 1973 (para o exame do NAEP conhecido como "long term trend assessment"), ou desde 1992 (para o exame normal, aplicado anualmente), tem havido sustentada elevação nas notas dos estudantes norte-americanos em leitura e matemática, ao contrário do que a grande mídia e os reformadores empresariais sistematicamente divulgam. In verbis:
Os dados do NAEP mostram sem sombra de dúvida que os resultados dos testes de leitura e matemática melhoraram para quase todos os grupos de estudantes americanos ao longo das últimas duas décadas: devagar e firmemente no caso de leitura, e drasticamente no caso da matemática. Os alunos sabem mais e podem fazer mais nesses dois assuntos de competências básicas agora do que poderiam vinte ou quarenta anos atrás. [...] Então, da próxima vez que você ouvir alguém dizer que o sistema [escolar estadunidense] está "quebrado", que os estudantes americanos não são tão bem educados como eles costumavam ser, que nossas escolas estão falhando, conte à pessoa os fatos. Os resultados dos testes estão [na verdade, é] subindo. Claro, resultados de testes não são a única forma de medir a educação, mas na medida em que eles importam, eles estão melhorando. Nossos alunos têm maiores notas em testes de leitura e matemática do que eles tinham no início de 1970 ou início de 1990. (RAVITCH, 2013, p. 48, grifo nosso)
Todavia, distintamente daqueles autores, que afirmam que o relatório estaria repleto de mitos e fraudes, Ravitch (2010, 2013) contemporiza, ponderando que o relatório podia ser entendido como um apelo apaixonado para que as escolas funcionassem melhor em sua missão principal como instituições educacionais e para conformar o sistema de ensino aos ideais da nação; e mesmo como um alerta de que a nação seria prejudicada economicamente e socialmente, a menos que a educação fosse melhorada dramaticamente para todas as crianças. Segundo Ravitch (2010, p. 26):
O A Nation at Risk certamente não era parte de uma conspiração de direita para destruir a educação pública ou um precursor do movimento de privatização da década de 1990 e início do século XXI. Também não oferecia soluções simples para problemas complexos ou exigia o impossível. Cada uma de suas recomendações era no âmbito das escolas que então existiam e como elas existem agora, e nenhuma tinha qualquer potencial de prejudicar a educação pública. O relatório tratava a educação pública como um empreendimento intencionalmente profissional que deveria ter metas claras e alcançáveis.
Acrescenta ainda a pesquisadora que muito embora o relatório não tratasse especificamente de questões de raça e classe, sublinhava repetidamente que a qualidade da educação deveria melhorar em todo o espectro social, e que todos, independentemente de raça ou classe ou status econômico, deveriam ter direito a uma oportunidade justa e aos instrumentos para o desenvolvimento da mente e do espírito. Para isso, "o relatório recomendava requisitos mais fortes para a conclusão do ensino médio; padrões mais elevados para o desempenho acadêmico e conduta do aluno; mais tempo dedicado à instrução e trabalhos de casa; e padrões mais elevados para a entrada na profissão docente, assim como melhores salários para os professores." (RAVITCH, 2010, p. 24). Por fim, observa a historiadora que, contrariando todas as catastróficas previsões do A Nation at Risk, os Estados Unidos continuaram, nos trinta anos posteriores à divulgação daquele documento, sendo a maior potencia econômica mundial e líder em varias outras áreas 9.
De alguma forma, no meio de toda essa interminável polêmica, as escolas públicas continuaram a ensinar gerações de estudantes. E de alguma forma, apesar das intermináveis reclamações e agitações políticas, a economia americana continuou a ser a maior do mundo. E de alguma forma, a cultura americana continuou a ser uma força criativa e vibrante, reformulando as culturas de outras nações (para melhor ou para pior). Nossa democracia sobreviveu, e as inovações tecnológicas americanas mudaram a forma como as pessoas vivem ao redor do globo. Apesar das alegadas falhas das escolas que educaram a grande maioria deles, os trabalhadores americanos estão entre os mais produtivos do mundo. (RAVITCH, 2013, p. 37).
O fato é que, independentemente das motivações ou das disposições pedagógicas e mesmo ideológicas que presidiram a produção do A Nation at Risk, os efeitos de sua utilização política mostraram-se contundentemente convenientes aos interesses dos segmentos empresariais estadunidenses que desde o início da década de 1970 procuravam colonizar essa esfera social, como forma de potencializar a ampliação das oportunidades de aplicação de vultosos estoques de capitais ociosos por conta dos efeitos da crise estrutural capitalista, que já nessa época atingiam a maior parte dos países centrais, inclusive aquele. A seção seguinte procura elucidar o modus operandi dessa estratégia por parte daquelas corporações e seus aliados, incrustados notadamente na mídia, nos think tanks e na institucionalidade política.
NO CHILDREN LEFT BEHIND: A “CRISE” ESCOLAR COMO ESTRATÉGIA
Como consequência das graves advertências contidas naquele relatório, padronização de conteúdos curriculares, aumento desproporcional das horas destinadas a testes e avaliações verticalizantes focando responsabilização de professores e diretores passaram a conformar a agenda para a reforma educacional nos EUA. A despeito da então inexistência de qualquer pesquisa seriamente desenvolvida e referenciada que abonasse essas medidas 10, elas foram amplamente aceitas, sem qualquer questionamento, pela grande imprensa, pelo mainstream acadêmico e pela população em geral.
Em Washington, a receptividade às políticas de testes e responsabilização cresceu mais ainda na década de 1990. O primeiro presidente Bush lançou seu programa America 2000 em 1991, recomendando a adoção voluntária, pelos estados, de padrões curriculares e testes nacionais, contudo, não obteve a aprovação no Congresso, de maioria democrata, para a implantação de sua política. Bill Clinton chegou ao poder prometendo criar o mesmo sistema de padrões curriculares e testes nacionais, mas foi igualmente impedido por uma maioria republicana no Congresso. Seu programa Objetivos 2000, promulgado antes de os republicanos assumiram o controle do Congresso no outono de 1994, incentivava os estados a desenvolver seus próprios padrões curriculares e seus próprios testes. Naquela conjuntura, tornou-se um ritual para igualmente republicanos e democratas lamentar a falta de “prestação de contas” na educação pública americana e reclamar que nenhum professor, diretor, ou estudante fosse responsabilizado pelos fracos resultados nos testes (RAVITCH, 2010).
Contudo, a grande estratégia, que proporcionaria um incalculável impulso àquelas ideias, sedimentando-as como senso comum nacional, e colocando em prática a maioria delas, foi o programa federal No Children Left Behind (Nenhuma criança deixada para trás; doravante NCLB), lançado em 2001 pelo então presidente George W. Bush, aprovado pelo Congresso no mesmo ano e promulgado como lei federal 11 por aquele governante em 08 de janeiro de 2002. (UNITED STATES OF AMERICA, 2002)
Salientando sua complexidade, Ravitch (2010) delineia uma sucinta descrição do programa: Os estados eram estimulados (mediante verbas federais) a implantar seus próprios testes e adotar três níveis de desempenho (tais como básico, proficiente e avançado, por exemplo) de acordo com seus critérios. Todos os alunos da terceira à oitava série fariam provas de leitura e matemática anualmente naquelas séries do ensino fundamental e uma vez no ensino médio, e suas notas seriam desagregadas por etnia, status socioeconômico, condições de incapacidade física e de inglês como segundo idioma, com o intuito de monitorar o progresso de cada um desses grupos de alunos. Os estados ficavam obrigados a apresentar anualmente uma “prestação de contas” mostrando a variação (positiva ou negativa) das notas de seus alunos, referentes ao ano anterior 12, bem como um cronograma estabelecendo quando e como todos aqueles grupos de alunos alcançariam a meta de 100% de proficiência nessas duas matérias até 2014.
Prossegue aquela historiadora esclarecendo que qualquer escola que não fizesse "progressos adequados" para cada subgrupo com vistas à meta de 100% de proficiência seria rotulada como uma escola "em necessidade de melhoria", e enfrentaria uma série de sanções anualmente cada vez mais onerosas. Em um primeiro ano nessa condição, a escola seria colocada em "aviso prévio". No segundo ano, seria obrigada a oferecer a todos os seus alunos o direito de transferência para outra escola, com transporte pago pelo distrito a que pertencesse a escola "em necessidade de melhoria" (descontado diretamente da dotação repassada pelo Governo Federal). No terceiro ano, a escola seria obrigada a oferecer aulas gratuitas para estudantes de baixa renda, custeadas da mesma forma que o transporte retro mencionado. No quarto ano, a escola seria obrigada a realizar "ações corretivas", que poderiam significar mudanças curriculares, mudanças de pessoal, ou aumento na carga horária diária de aulas ou do ano escolar. Se uma escola não conseguisse atingir suas metas para qualquer subgrupo durante cinco anos consecutivos, ela seria obrigada a se "reestruturar", com cinco opções, tendo que optar por uma das seguintes alternativas: converter-se em uma escola charter 13; substituir o diretor e toda a equipe; abrir mão do controle para a gestão privada; entregar o controle da escola para o estado; ou "qualquer outra grande reestruturação da governança da escola." (A maioria dos estados e distritos terminou para escolher a última, a mais ambígua, na esperança de evitar as outras sanções) (RAVITCH, 2010).
O NCLB exigia14 que todos os estados participassem dos exames do NAEP, os quais passariam a testar todos os alunos em leitura e matemática nas quarta e oitava séries, a cada dois anos (UNITED STATES OF AMERICA, 2002). Antes do NCLB, a participação dos estados nos exames do NAEP era voluntária e os testes não eram administrados a cada dois anos, bem como suas notas, que não tinham consequências para qualquer estudante, escola ou distrito, serviam apenas como auditoria externa para monitorar o progresso dos estados no cumprimento de suas metas, pois o exame era amostral, e não censitário (RAVITCH, 2010).
A idéia por trás do NCLB era que as desigualdades de oportunidades de educação seriam reduzidas ou desapareceriam caso os alunos fossem forçados a fazer constantemente testes padronizados, as escolas desagregassem os dados para mostrar as notas obtidas pelos estudantes de diferentes subgrupos, e os distritos interviessem com ações específicas focadas nas escolas de menor desempenho naqueles exames. No entanto, o amplo consenso observado entre a maioria dos pesquisadores, como se verá a seguir, deixa patente que testes padronizados são ineficazes e mesmo contraproducentes quando utilizados como instrumento de avaliação suficiente para conduzir qualquer reforma educacional.
Sobressai nitidamente, em cuidadosa análise, a discrepância entre as disposições do texto legal e a efetiva implantação do programa, em prejuízo do atendimento ao básico direito de provimento educacional prestado com níveis mínimos de qualidade e efetividade, notadamente para os segmentos socioeconômicos e étnicos historicamente desfavorecidos daquela sociedade, e em prol da estruturação de um sofisticado e intrincado esquema de desvio dos recursos financeiros legalmente destinados às escolas verdadeiramente públicas, conduzido pelos maiores conglomerados empresariais e financeiros (incluídas as fundações) daquela nação - liderando um bloco que conta ainda com as elites da política institucional daquele país – em direção a um gigantesco setor de negócios que utiliza a educação como plataforma de operacionalização de seus esquemas de valorização ilimitada e insaciável de capital.
CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS
Nos EUA, a forte resistência dos pais, dos professores e dos alunos levou o Governo Federal a encerrar o NCLB (o qual, como se esperava, não atingiu a irracional meta de 100% de proficiência de todos os discentes do ensino básico nas disciplinas testadas), com a promulgação de uma nova lei educacional, Every Student Succeeds Act (ESSA, Lei Todo Estudante Vencerá), a qual confere aos estados maior protagonismo na condução de sua política de educação, ao permitir que essas unidades federativas estabeleçam múltiplas medidas de aferição do desempenho acadêmico de seus educandos, possibilitando assim que os testes deixem de constituir a única forma de avaliação do aprendizado dos estudantes (BROWN, 2015; FOSTER, 2011).
Cabe, agora, àquela sociedade, a vigilância com vistas a impedir que a obsessão por esses tipos de testes continue a minar a educação pública daquele país, prejudicando principalmente os vitimados pela desigualdade e pela segregação socioeconômica e étnica.
REFERÊNCIAS
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BRACEY, Gerald W. Setting the record straight. Portsmouth (NH): Heinemann, 2004.
BROWN, E. How schools would be judged under ‘Every Student Succeeds’, the new No Child Left Behind. The Washington Post, Nov. 30, 2015. Disponível em: <https://www.washingtonpost.com/news/education/wp/2015/11/30/how-schools-would-be-judged-under-every-student-succeeds-the-new-no-child-left-behind/>. Acesso em: 27 abr. 2016.
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FOSTER, John Bellamy. Education and the structural crisis of capital. The US Case. Monthly Review, New York, v. 63, n. 3, p. 6, 2011.
FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
RAVITCH, Diane. Reign of error: the hoax of the privatization movement and the danger to America’s public schools. New York: Basic, 2013.
RAVITCH, Diane. The death and life of the great American school system: how testing and choice are undermining education. New York: Basic, 2010.
RAVITCH, Diane. About Diane. Site da autora. Disponível em: <http://dianeravitch.com/about-diane/ > Acesso em: 26 fev 2016
ROTHSTEIN, Richard. The way we were?: The myths and realities of America's student achievement. Brookings Institute Press, 1998.
STRAUSS, Valerie. Global education market reaches $4.4 trillion – and is growing. The Washington Post, 29 fev. 2013. Disponível em: <https://www.washingtonpost.com/ news/answer-sheet/wp/2013/02/09/global-education-market-reaches-4-4-trillion-and-is-growing/>. Acesso em: 20 fev. 2016.
TIENKEN, Christopher. Rankings of international achievement test performance and economic strength: correlation or conjecture? International Journal of Education Policy and Leadership, Virginia, v. 3, n. 4, p. 1-15, 2008.
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2 Cabe observar que o segmento educacional representa, para os grandes investidores financeiros globais, não somente um dos mais promissores, mas um dos que mais crescem em todo o mundo, já tendo ultrapassado a cifra de 4,4 trilhões de dólares (STRAUS, 2013), dos quais 788 bilhões somente nos Estados Unidos (FANG, 2014).
3 Diane Ravitch é Professora Pesquisadora de Educação (aposentada) da Universidade de Nova York. De 1991 a 1993 foi Secretária Assistente de Educação (no Brasil, corresponderia ao cargo de maior nível hierárquico em um ministério, excetuando-se o de ministro) e Conselheira do Secretário de Educação (secretário é o cargo que no Brasil corresponderia ao de ministro) Lamar Alexander, no governo do Presidente George H. W. Bush (RAVITCH, s/d). Além da participação no Governo Bush, sua produção intelectual era apoiada por fundações conservadoras, tais como a John M. Olin Foundation, e em sua atuação institucional, juntamente com vários colegas acadêmicos "pró-mercado", advogava os cânones liberais da accountability e da livre-escolha. Entretanto, em abril de 2009, em uma reviravolta que marcou época na história da educação estadunidense, Ravitch, desiludida e decepcionada com os resultados e as consequências da reforma educacional empresarial que tomava de assalto o sistema público daquele país, rompe com os antigos aliados e empreende uma surpreendente transformação em sua atuação como pesquisadora e professora, tornando-se em poucos meses a maior expoente da grande articulação política-educacional em defesa da educação pública dos Estados Unidos. (RAVITCH, 2010).
4 Todas as traduções do presente trabalho, quando não indicadas em contrário, são de responsabilidade de seu autor.
5 Voucher escolar é um auxílio do governo em dinheiro ou sob forma de crédito a ser utilizado pelos pais dos alunos em uma escola primária ou secundária de sua escolha (DICTIONARY.COM, s/d). Constitui uma das principais ideias do economista liberal Milton Friedman para a educação (FRIEDMAN, 1984)
6 Um dos dois principais exames de admissão nas universidades estadunidenses, juntamente com o ACT (American College Testing).
7 Na mesma linha argumentativa, reportar-se a Bracey (2004) e Rothstein (1998).
8 Ravitch (2013), em seu quinto capítulo, fornece rica documentação em apoio à perspectiva proposta, por meio de vasto manancial de relatórios oficiais do NAEP, abrangendo um período compreendido desde 1971 até 2011. Importa esclarecer que o National Assessment of Educational Progress - NAEP (Avaliação Nacional do Progresso Educacional), um exame nacional também conhecido como "o Boletim Escolar da nação", é o único teste de âmbito nacional capaz de comparar o desempenho dos alunos entre os estados daquele país.
9 Tienken (2008) pode corroborar a argumentação da autora.
10 Não obstante o texto da lei tenha preconizado que “pesquisas cientificamente fundamentadas” (Scientifically Based Research) deveriam guiar as práticas educativas, definindo a referida expressão como “pesquisas que envolvem a aplicação de procedimentos rigorosos, sistemáticos e objetivos para obter conhecimentos confiáveis e válidos atinentes a atividades e programas educacionais” (UNITED STATES OF AMERICA, 2002, p. 540).
11 Trata-se da "lei de responsabilidade educacional" daquele país.
12 Descrito na legislação do programa como adequate yearly progress (progresso anual adequado, doravante AYP). Trata-se de uma medida de acompanhamento anual das notas da escola ou do distrito escolar. (UNITED STATES OF AMERICA, 2002)
13 Escolas charter são financiadas com recursos públicos, mas administradas de forma privada por organizações com ou sem fins lucrativos. Para aprofundamento, conferir Ravitch (2013), especialmente seu capítulo 16
14 O NCLP foi oficialmente extinto em 10 de dezembro de 2015, com a revogação da lei que o criou em 2002, tendo em vista a promulgação da Every Student Succeeds Act – ESSA, diploma legal que institui o novo programa educacional do governo federal dos Estados Unidos (UNITED STATES OF AMERICA, 2015). Os aspectos diferenciais da nova lei, em relação à anterior, assim como o andamento de sua efetiva implementação, serão ulteriormente abordados na sequência do presente estudo.
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