Hilbert Reis Silva*
Universidade Estadual Paulista, Brasil
hilbertreis@gmail.comResumo
O presente estudo sobre criminologia mediática e direitos humanos pretende analisar a evolução da relação entre estes objetos, com o objetivo de compreender como os discursos mediáticos foram capazes de influenciar tantas pessoas, particularmente em dois momentos da história, durante o caso Dreyfus, na França; e o nazismo, na Alemanha. Para tanto, será utilizado a metodologia indutiva, com emprego da técnica de análise documental e bibliográfica. Através de revisão bibliográfica, busca-se compreender os discursos da criminologia mediática, notadamente aqueles introduzidos nos fait divers e nas propagandas. Não obstante, inserido no âmbito da interdisciplinaridade, este trabalho pretende, ainda, demonstrar as incongruências que cercam os direitos humanos no que se refere à temática, no intento de desvelá-los.
Palavras-chave: Criminologia mediática, Direito à informação verdadeira, Fait divers, propaganda,Declaração Universal dos Direitos Humanos.
MEDIA CRIMINOLOGY AND HUMAN RIGHTS
Abstract
This study on media criminology and human rights aims to analyze the evolution of the relationship between these objects, in order to understand how media discourses were able to influence so many people, particularly in two moments of history, during the Dreyfus case in France; and during Nazism in Germany. Therefore, the inductive method, with use of documentary and bibliographic analysis technique will be used. Through literature review, aims to explore the discourses of media criminology, particularly those introduced in the fait divers and propaganda. However, included in the scope of interdisciplinarity, this work also aims to demonstrate the inconsistencies surrounding human rights in relation to the theme, in an attempt to unveil them.
Keywords: Media Criminology, Right to true information, Fait divers, propaganda, Universal Declaration of Human Rights
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Hilbert Reis Silva (2016): “Criminologia mediática e direitos humanos”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (julio-septiembre 2016). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/03/criminologia.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/CCCSS-2016-03-criminologia
INTRODUÇÃO
Do primeiro periódico moderno publicado no mundo, o Relation aller Fürnemmen und gedenckwürdigen Historien1 de 1605, às modernas plataformas de compartilhamento de conteúdo online disponíveis na atualidade, o período histórico compreendido de 1801 a 1900, destacou-se por revelar ao mundo novos paradigmas sociais e econômicos voltados ao rompimento de tradições artesanais e contra-capitalistas.
No século XIX, os periódicos tratavam de variados assuntos de interesse da burguesia, partindo da política, comércio à literatura, compostos de poucas tiragens, geralmente locais, estes jornais foram as razões de ser dos atuais periódicos. Se no alemão Relation aller Fürnemmen und gedenckwürdigen Historien, o formato de publicação ainda se assemelhava a um grande livro de notícias, os periódicos do século XIX, por sua vez, eram muito mais semelhantes aos jornais da atualidade.
Pelo surgimento da imprensa de massa e a industrialização, e com a necessidade de produzir e vender quantidades cada vez maiores de periódicos, os jornais no século XIX rumaram à caminhos antes desconhecidos: a publicidade. Através da venda de espaços publicitários nos periódicos, os media da época começaram a incorporar a lógica capitalista da revolução industrial em curso. As tiragens, a venda e a distribuição cresceram exponencialmente neste período, assim como a necessidade de se criar novos assuntos aos periódicos.
Neste curso, a imprensa desenvolveu novas técnicas narrativas e expandiu seu campo de atuação, passando a relatar fait divers (fatos diversos), com intuito seduzir leitores da baixa burguesia e operariados a comprar os jornais, tendo em vista a necessidade de expandir o mercado para além da tradicional elite burguesa. Por serem em geral pessoas de menor erudição, os periódicos adaptaram-se às classes menos abastadas com a inserção de fait divers com apelos ficcionais.
Os fait divers expandiram-se pela maioria dos periódicos no final do século XIX, pois além de trazerem leitores de menor poder aquisitivo, estimulavam a vinda de novos anunciantes, tendo em vista a maior vendagem dos periódicos.
Entre informação e ficção, os fait divers do século XIX eram uma “literatura cotidiana” (THÉRENTY, 2007) baseada em acontecimentos reais. A literatura e o jornalismo convergiram-se criando um novo discurso ao jornalismo, articulado em enunciados simbólicos, reflexo da demanda de consumo e venda de periódicos. Com efeito, a eficácia discursiva dos fait divers em interface com “ficcionalização” da realidade, impulsionou a popularização dos periódicos e, com isto, os fait divers passaram a ocupar importante espaço nos periódicos do século XIX. Através da construção deste novo discurso jornalístico, os periódicos passaram a cobrir com maior intensidade fatos diversos da sociedade, momento em que surgiu os escândalos jornalísticos, altamente rentáveis.
Por meio deste “novo” jornalismo, deu-se origem a uma criminologia mediática voltada ao “apelo de uma criação da realidade através de informação, subinformação e desinformação em convergência com prejuízos e crenças, baseada em uma etiologia criminal simplista assentada em uma causalidade mágica”.2 (ZAFFARONI, 2012, p. 216, tradução do autor).
De acordo com Eugénio Raul Zaffaroni, a criminologia mediática foi detectada pelos sociólogos no final do século XIX, momento em que os fait divers ganhavam espaço nos periódicos, através de notas policiais e cenas de sangue compostas de contornos literários. Neste sentido, a manipulação dos media atuais em muito deriva dos fait divers do século XIX, pois enquanto o leitor do século retrasado situava-se entre a realidade e a ficção por meio da literatura, hoje, o leitor se coloca entre a realidade e a ficção por meio do entretenimento sensacionalista.
Dessa forma, o presente estudo sobre criminologia mediática e direitos humanos tem por finalidade analisar a transformação do discurso jornalístico da criminologia mediática. No que tange aos direitos humanos, coloca-se em questão aspectos como os direitos coletivos e difusos, em especial o direito à informação verdadeira, no sentido de compreender como este direito relaciona-se, ontem e hoje, com os discursos da criminologia mediática. Sob a premissa de que a ética jornalística impõe a construção de fatos noticiosos a partir do mito da objetividade, pretende-se levantar a hipótese do dever dos media em observar o direito à informação verdadeira como algo além ao direito de ser informado. Para alcançar o objetivo proposto, propõe-se metodologia de indutiva, com emprego da técnica de análise documental e bibliográfica.
Dessa forma, o presente trabalho se coloca como uma proposta interdisciplinar comungando conhecimentos do Direito, da Criminologia e da Ciência da Comunicação no intento de analisar as primeira relações entre a criminologia mediática e os direitos humanos.
1 Criminologia mediática, os fait divers e o caso Dreyfus
Para a compreensão do quadro atual da análise discursiva dos media modernos é preciso uma retomada histórica no sentido de entender quando a criminologia mediática inseriu-se nos discursos jornalísticos. Ao logo do século XIX, a imprensa mudou e transformou-se em algo muito semelhante ao que há na atualidade, a produção jornalística antes mensal começou a acontecer semanalmente e, depois diariamente, as redações jornalísticas cresceram, reuniões de pautas, divisão de tarefas e coberturas tornaram-se cada vez mais comuns.
Por meio do crescimento da imprensa, a sociedade iniciou a ter contato com a realidade construída dos media, pois se antigamente a transmissão dos fatos diversos eram feitos boca-a-boca, após os periódicos esta troca de informações passou a ser mediada textualmente, através da construção literária dos fatos diversos. Com efeito, o texto passou a contar histórias da realidade, se nos livros as histórias eram lendas ou acontecimentos da vida traduzidos em romance, nos fait divers dos periódicos tratavam-se da realidade imediatamente antecedente reproduzida de forma ficcional.
Assim, os periódicos perceberam que os fait divers vendiam e traziam novos leitores voltados à leitura de acontecimento do cotidiano, tendo em vista o desinteresse destes para assuntos até então comumente nos periódicos, como política e literatura. Dessa forma, a inclusão de fait divers se tornou o carro-chefe dos periódicos, pois propiciavam dois fundamentais retornos, público e audiência.
O cotidiano de violência, brigas, mortes e escândalos, passou a figurar textualmente na vida de muitas pessoas através dos periódicos e, neste período de ebulição social e novos padrões de comportamento, deu-se origem a criminologia mediática. No final do século XIX, o sociólogo e criminólogo Gabriel Tarde, já denunciava o poder de manipulação da imprensa, ao ser capaz de criar discursos de sedução voltados à formação da opinião pública (TARDE, 1989, p. 76). De acordo com ZAFFARONI (2012, p. 216), Gabriel Tarde desvelou a existência de uma criminologia mediática nos idos de 1900, notadamente no “Caso Dreyfus”3 , por denunciar a extorsão mediática e a sua capacidade de influenciar a opinião pública, mesmo quando a informação é construída sob pilares não fidedignos ou flagrantemente inverídicos.
No caso Dreyfus, para além da criação de uma (não-)realidade, a imprensa abusou de aspectos antissemitas, pré-julgando Dreyfus ao sustentar ser evidente sua culpa por ser judeu (SHIRER, 1969). Assim, Dreyfus converteu-se em um chivo expiatorio (ZAFFARONI, 2012, p. 216), pois para parte da sociedade francesa, a imprensa tinha razão em culpar Dreyfus de traição, já que ele era judeu. Posicionando-se como um outsider, Dreyfus foi publicamente condenado antes de seu julgamento. O destino de Dreyfus já era certo, por cinco votos contra dois, em um primeiro julgamento Dreyfus foi considerado culpado, sendo solto somente cinco anos mais tarde, após ter sido reconhecido que ele havia sido condenado por engano e injustamente (SILVA, 2012, p. 11).
Para ZAFFARONI (2012, p. 218) a criminologia mediática cria um mundo de pessoas decentes diante de uma massa de criminosos, em que a única solução para o conflito é a punição e a violência. No caso Dreyfys a criminologia mediática revelou ao mundo a sua capacidade de influenciar a sociedade e, pior, de condenar publicamente alguém sem provas. Neste caso, havia ainda uma qualificante, Dreyfus era judeu, enquadrando-se na condição de criminoso “estrangeiro”, alimentando a causalidade desejada pela imprensa, canalizando o ódio à determinados grupos de humanos que, para a perspectiva das “pessoas decentes”, seriam aqueles a serem retirados do corpo social.
Diferente dos dias de hoje, em que a imagem impacta a esfera psicológica-emocional da pessoas, no século XIX, a imprensa dependia unicamente da linguagem e da escrita para atingir às pessoas, de modo que o texto ficcionalizado dos fait divers era usado com objetivo de seduzir e convencer o leitor. No caso Dreyfus, como tratava-se de uma suspeita de traição militar, a construção jornalística esforçou-se em aproximar Dreyfus de sua condição judia e afastá-lo de sua origem francesa. A partir da construção de discurso antissemita parte dos periódicos franceses criaram a ficção de que Dreyfus, oficial da artilharia do exército francês seria um traidor.
Como resultado desta criminologia mediática, a violência antissemita que rodeou o caso Dreyfus na França vez com que uma parte da população judaica emigrasse para os Estados Unidos e Argentina para escapar do antissemitismo na Europa (HERZL, 2003, p. 4), portanto, o que havia se iniciado com uma denúncia de traição de um oficial do exército francês, em determinado momento tornou-se um terror nacional, em que não somente o personagem central fora afetado pela desnaturalização da realidade promovida pelos discursos da criminologia mediática, como também toda população judaica residente na França.
Segundo ZAFFARONI (2012), os chivos expiatorios variam muito com o tempo mas, notadamente, neste período do caso Dreyfus, os judeu eram “eles” na relação entre “eles” e “nós”. Para a criminologia mediática se Dreyfus fosse condenado à morte ou se fosse encontrado morto na prisão isto seria um produto natural das consequências de seus atos, ainda que não existentes, pois a “criminologia mediática desnaturaliza estas mortes [...] assumindo um discurso de higiene social: ‘eles’ são para a criminologia mediática as fezes do corpo social”. 4 (ZAFFARONI, 2012, p. 223, tradução do autor).
Nesta análise, a criminologia mediática do século XIX, ocupou lugar na construção social da realidade, pois a partir de seus discursos, para além do punitivismo, surgiram o antissemitismo e a xenofobia, com vias a “eliminar” Dreyfus e os judeus. Gabriel Tarde ao denunciar as forças extorsivas da imprensa, sabia da dificuldade em neutralizar o efeitos da criminologia mediática, pois ainda que não fosse verdadeiro o que veiculasse os periódicos, lá estavam, e de lá o público não imaginaria que pudesse nada além da “verdade”.
Ainda longe do tempo em que surgiria uma cultura dos direitos humanos 5, mas influenciados pela Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, as pessoas do século XIX viviam uma transição de mundos, a caminho da sociedade contemporânea. Se os direitos humanos no século XIX ainda eram incompletos na medida em que não haviam parâmetros “universais”, como na Declaração dos Direitos Humanos das Organizações Unidas, ao menos não caiam naquilo que Boaventura Souza Santos viria a chamar de “globalização de-cima-para-baixo”, em que os países ricos do ocidente legitimariam os direitos humanos a partir de sua legitimidade local, num “localismo globalizado”. (SANTOS, 1997, p. 111).
Neste sentido, durante o caso Dreyfus, portanto, cerca de 50 anos antes do genocídio de judeus no Holocausto, a sociedade ainda não tinha noção do que viria no decorrer da história, contudo, o antissemitismo pregado pela criminologia mediática na França de Dreyfus, sinalizava a tensão social e, notadamente, a facilidade da infiltração do discurso de ódio contra minorias por via da imprensa.
A criminologia mediática do século XIX ampliou consideravelmente o escândalo Dreyfus e proporcionou um pré-julgamento sem qualquer oportunidade de defesa, o que revelou o poder de manipulação dos periódicos em um momento em que a sociedade ainda não tinha consciência crítica em relação à imprensa, e nem condição de tê-la. Mister lembrar que antes do século XIX, a imprensa se limitava à periódicos que em pouco ou nada tratavam de assuntos da atualidade, dessa forma, a sociedade do século XIX fez florescer a relação entre a sociedade e a imprensa que, num primeiro momento deu-se de forma ingênua, como se tudo que dela viesse fosse o retrato cristalino da realidade.
Neste momento, por conta da ebulição do mercado, os periódicos publicavam aquilo que mais vendesse, ainda não havia ética jornalística, se as pessoas queriam notícias enquadradas em perspectivas antissemitas, seriam estas as notícias que estariam disponíveis na próxima edição do periódico. Sem a compreensão dos direitos universais dos direitos humanos, e sem a noção da eminência de um genocídio de cerca de 6 milhões de judeus 6, os periódicos do final do século XIX, perseguiram e condenaram inescrupulosamente Dreyfus, influenciando que o mesmo acontecesse com os demais judeus.
2 Criminologia mediática, 2ª Grande Guerra e os direitos humanos
A criminologia mediática no século XX, pode ser dividida em dois momentos: Antes do surgimento do rádio e da televisão e depois destes divisores de águas. Se no século XIX, as pessoas informavam-se através de periódicos em que fait divers reconstruíam a realidade daquele tempo a partir de textos escritos sem qualquer tipo de interação imagética; com o rádio a interação passou a ser sonora, enquanto, pela televisão, sonora e visual.
Durante o século XX, os periódicos não perderam sua influência no sentido de informar as pessoas, pelo contrário, foram importantes construtores social da realidade ao passo que, na primeira metade do século, os jornais ainda detinham não só prestígio como uma grande penetração em todos estratos da sociedade. Como influenciadores da sociedade, os jornais participaram dos caminhos traçados pela humanidade no século XX, pois se a propaganda política levou à Revolução Comunista, ao fascismo e ao nazismo, isto só foi possível por intermédio dos media da época, notadamente, os periódicos.
A publicidade, surgida ainda no final do século XIX, ao contrário da propaganda 7, de caráter ideológico, atuou como um mecanismo crucial para o crescimento dos periódicos naquele período pois, ainda que o jornais arrecadassem com a venda, o custo da produção crescente necessitava de incremento financeiro para o desenvolvimento. Neste sentido, no começo do século XX, a “propaganda e publicidade integraram-se, passando a atuar conjuntamente como mecanismo crucial de demanda, elemento vital do mercado capitalista – emoliente que tornava tudo mais fácil, em favor do crescimento do consumo”. (MARTINS, p. 254, 2001).
Assim, com o tempo, os media começaram a depender mais da propaganda (política) e da publicidade do que da comercialização de periódicos, instalando um completo servilismo da imprensa ao capital e ao Estado. Com isso, o controle estatal dos canais de difusão permitiu a assunção de governos totalitários na Europa, tendo em vista a permeabilidade da propaganda naquele ambiente formado por uma sociedade inocente e fascinada com os novos media.
Os periódicos foram os primeiros instrumentos para os regimes totalitaristas divulgarem sua propaganda política, naquele momento da história os periódicos tinham o monopólio da credibilidade, diferentemente dos governos em que o disse-me-disse e a boataria levavam às pessoas a desacreditar em seus governantes; no caso da imprensa, a sociedade tinha plena confiança, e neste jogo de influências, a opinião pública deixava-se levar pela opinião dos jornais, pois “ao mesmo tempo em que aumentam as tiragens, bem como sua influência, os jornais tornam-se ‘negócios’ a serviço do capitalismo ou do Estado e dependem de agências de Informações, igualmente controladas”. (DOMENACH, 1963, p. 6).
Aliado aos periódicos, o rádio surgiu como a grande revolução no campo da informação ao dar aos iletrados a possibilidade de se informarem tão como faziam quem pudesse diariamente ler os jornais. O espectro de difusão de conteúdos com a chegada do rádio alcançou parâmetros até então imensuráveis para a sociedade da época, a palavra, antes escrita, passou à oralidade, transformando o rádio no principal instrumento de difusão de opinião.
Os Estados totalitários europeus, então, sabendo da possibilidade de seduzir a população a partir da propaganda política inserida nos media, passou maciçamente usar deste expediente. Segundo DOMENACH “nem Hitler nem o General de Gaulle teriam tido, sem o rádio, o papel histórico que lhes coube.” (Ibidem). O rádio ampliou consideravelmente o raio de difusão da propaganda política, permitindo que governos totalitários como de Hitler se expandissem, em muito pela incompreensão da sociedade no modo de interpretar aquilo que vinha do rádio.
Neste contexto, momento ao qual a informação era direcionada ao ódio a determinados grupos sociais, a imprensa manteve-se complacente ao Estado criminoso, fortalecendo o poder e ampliando o raio de penetração da propaganda política na sociedade. Q Quando analisa-se a perseguição, tortura e assassinatos dos chivos expiatorios no século XX, nota-se a grande influência dos media, pois sem a propaganda política nos jornais e rádios, mais difícil seria a capacidade de qualquer governante direcionar o ódio e os problemas de toda uma nação à grupos específicos da sociedade.
Com o advento dos periódicos e do rádio, os discursos de ódio deixaram de caminhar horizontalmente do boca-a-boca, para assumir contornos verticais, em que os media, sob a égide do discurso jornalístico voltado à cobertura da realidade, transformaram a informação em opinião, transmitindo de forma monofônica uma realidade construída, com vias de atingir o maior número de pessoas. Nisto, a sociedade passou a padecer de uma criminologia mediática, pois toda noção de que as pessoas tinham sobre a questão criminal era mediada pelos media que, de posse dessa noção, e reféns do Estado totalitarista, direcionavam a culpa de todos os males a grupos humanos específicos, naquilo que ZAFFARONI (2012, pp. 215-227) chama de “causalidade mágica”.
Ao canalizar todo o ódio à grupos humanos específicos, ainda que sem motivo, devido a credibilidade dos media, parte das pessoas não se perguntavam o porquê daquilo acontecer, até porque a sociedade só iria ter essa percepção anos depois, ao fim à Segunda Grande Guerra. Segundo ZAFFARONI “o poder punitivo não seleciona sem sentido” 8 (2012, p. 234, tradução do autor), dessa forma, quando vê-se que no século XIX, no caso Dreyfus, sua condenação fora realizada, notadamente, pelo fato de ser judeu, isto abre a hipótese de que este grupo humano vinha, repetidamente, sendo alvo de uma política de ódio, mas, o que possivelmente ninguém pudesse imaginar é que anos depois, cerca de seis milhões de judeus seriam mortos, justamente por aquela “embrionária” política de ódio.
Inegável que a noção de direitos humanos no presente provém das graves consequências promovidas pelos governos totalitários ao longo do século XX. O poder punitivo extremo do Estado promoveu banhos de sangue orientados para o extermínio de povos, em que os media atuaram como atores sociais centrais nesta construção histórica. Ao lado dos Estados totalitários, os media serviram de instrumento para propagação da propaganda política direcionada ao ódio, em que a discriminação levou à extinção dos direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais dos grupos humanos subjulgados.
De acordo com BARATA (2003, p. 45) com o surgimento dos mass media (como os jornais, o rádio e a televisão) o tratamento de qualquer acontecimento criminal adquiriu papéis desconhecidos, abrindo espaço para discursos punitivistas, de ódio e de higienismo social. Se estes discursos ocuparam os media de formas tão penetrantes, isto ocorreu, em parte, porque antes mesmo dos mass media divulgarem a propaganda de ódio, o desejo de estigmatizar determinados grupos humanos já estava aflorado em parte da sociedade.
Acontece que com os media, o desejo de subjulgar até então neutralizado no indivíduo ou restrito a pequenos grupos, permitiu com que a propaganda política nazista orientada à perseguição a grupos humanos específicos, expandisse a novos lugares, ampliando suas vozes, promovendo a reverberação das vozes de ódio. Como produto dessas vozes, a criminologia mediática ao desnaturar a realidade, impôs às pessoas um mundo polarizado onde à “nos”, cabe todo o bem, e a “eles”, o mal. Notadamente em relação ao início do século XX, segundo BARATA (2003, p. 13, tradução do autor) “eram tempos em que a rádio aparecia como uma grande máquina de moldar pensamento”9 .
Neste sentido, os media ocuparam um lugar importante na relação entre oprimido e opressor, pois, se antes o ataque aos oprimidos se dava diretamente por nações, governos e exércitos contra grupos humanos pré-definidos, após o aparecimento dos media essa relação passou a ser intermediada, de modo que a voz do “ataque” fez-se presente nos media, até então percebido como um instrumento inócuo, imparcial.
Apesar de o discurso da criminologia mediática fazer-se vigoroso, sobretudo em momentos de conflito, como foi em grande parte do século XX, é através do uso das angústias do opressor onde reside o poder de influência da criminologia mediática. Neste sentido, ZAFFARONI (2010, p. 15, tradução do autor) aponta que “quando a angústia se converte em medo renascem os projetos existenciais, pois a aniquilação do inimigo (vindicação paranoica) passa ser o primeiro passo de todo projeto existencial.”10
A propaganda política nazista inserida num contexto de criminologia mediática, usou de todos estes expedientes, a ponto a levar à desumanização “(d)eles”, abrindo espaço para as atrocidades cometidas durante a Segunda Grande Guerra. Dessa forma, falar em direitos humanos durante a Segunda Grande Guerra seria o mesmo de falar de plantio sustentável durante um incêndio florestal, pois nunca antes na história mundial tantas pessoas foram subjulgadas por serem de uma determinada etnia, religião, posição política ou preferência sexual.
Mas, depois do fim da guerra, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, inegavelmente, simbolizou um avanço hipotético no campo formal e informal, e mesmo que ainda hajam críticas a maneira como foi confeccionada, a Declaração Universal dos Direitos Humanos influenciada diretamente pelos acontecimentos da Segunda Grande Guerra, abriu espaço para discussões sobre direitos humanos como nunca antes havia acontecido.
3 Direitos humanos e o direito à informação (verdadeira)
Ainda sem recuperar do trauma da Segunda Grande Guerra, as Organizações das Nações Unidas, elaboraram a Declaração Universal dos Direitos Humanos com intuito de promover a “paz mundial” (ONU, 1948), a partir do respeito à direitos e liberdades. Como documento emergencial, a Declaração trouxe como primeiro efeito o falso apaziguamento temporário no que se refere à Alemanha, o que não durou muito, tendo em vista as divergências estadunidenses e soviéticos sobre a Alemanha.
De acordo com Boaventura Souza Santos (1997, p. 112), “se observarmos a história dos direitos humanos no período imediatamente a seguir à Segunda Grande Guerra, não é difícil concluir que as políticas de direitos humanos estiveram em geral ao serviço dos interesses econômicos e geopolíticos dos Estados capitalistas hegemônicos.”
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, apesar de constituir-se como uma declaração una, universal, para Boaventura Souza Santos era “um discurso generoso e sedutor [...] que permitiu atrocidades indescritíveis, as quais foram avaliadas de acordo com revoltante duplicidade de critérios. (Ibidem).
Neste sentido, Boaventura Santos cita Richard Falk por identificar uma “política de invisibilidade” e uma ”política de supervisibilidade” (Ibid., p. 113), pois ao mesmo tempo em que as nações ricas criaram um texto promovendo os direitos humanos, estas ignoraram outros genocídios que não aconteciam no raio da riqueza, como foi o genocídio de mais de 300 mil pessoas do povo Maubere, no Timor Leste.
Sendo assim, a Declaração Universal dos Direitos Humanos coloca-se como uma simbólica proteção aos direitos humanos, sobretudo porque, desde sua confecção, ela se dirigiua parte da sociedade mundial, tendo em vista que efetivamente poucos povos atuaram em sua elaboração. E, ainda que se diga universal, após a declaração das Nações Unidas muitos outros conflitos ceifaram milhões de vidas, a tragédia africana e todas guerras civis decorrentes do fim formal do colonialismo na África simplesmente foram cuidadosamente ocultadas, no intento de não se desvelar a simbólica universalidade da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Os media, novamente, ocupam posição de relevância nesta relação, pois tão como desnaturalizavam as mortes de judeus, desumanizando-os, o mesmo fazem com as mortes subsequentes à Declaração Universal dos Direitos Humanos, desde que não sejam na Europa ou Estados Unidos. Em nível decrescente de relevância, as mortes na África são desprezadas, tendo em vista que a “política dos direitos humanos é basicamente uma política cultural” (SANTOS, 1997, p. 107) em que a cultura do ocidente branco ocupa lugar de destaque.
Dessa forma, o direito à informação, ainda que um direito fundamental, depende de atores sociais para sua construção, sendo assim, a depender de quem o maneja, a informação verdadeira pode torna-se caluniosa, criminosa. E, ainda que esta não seja a intenção, pode acabar acontecendo, pois nenhum acontecimento resiste à objetividade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A sociedade mudou consideravelmente do século XIX até à atualidade. As relações humanas sofreram traumas incalculáveis nestes período, milhões de pessoas foram mortas, novas tecnologias surgiram, e os direitos assumiram formalidades antes inexistentes. Neste contexto, novos atores sociais fizeram-se presentes, como os media, por exemplo.
O século XIX foi marcado por grandes acontecimentos, talvez os mais importantes na história dos povos. Nunca antes a humanidade havia se desenvolvido tão rapidamente em um espaço temporal tão curto, seja no que se refere a sua população, ou à economia. Pela industrialização, a vida das pessoas tornou-se mais acelerada, se antes uma peça têxtil levava quinze dias para ficar pronta, depois das máquinas este prazo caiu para horas. Neste novo ritmo, muitas coisas mudaram na vida das pessoas, contudo, a adaptação para a mudança não alcançou a todos.
A primeira parte do presente artigo propôs mostrar um panorama dessas mudanças no século XIX, sobretudo aquelas referentes aos media. Como uma mistura de realidade e ficção, os fait divers ocuparam boa parte dos espaço dos periódicos da época, principalmente após a chegada da publicidade. Ainda que nem todos tivesse acesso aos jornais (os analfabetos e os pobres), estes periódicos revolucionaram a maneira de “contar história”, pois onde antes havia um boato boca-a-boca, depois do periódico a “informação verdadeira” passou a lá estar.
No sentido de desvelar a imagem de “informação verdadeira” dos periódicos da época, este artigo pretendeu apresentar o caso Dreyfus como paradigma da criminologia mediática, com o objetivo de romper com a ideia de que tudo que está nos periódicos é verdade. Isto foi necessário para abrir espaço à discussão sobre a seletividade operada contra determinados grupos humanos, como o caso dos judeus (Dreyfus era judeu), e de como os media podem induzir a sociedade a achar que determinado sujeito ou grupo social é a causa de seus problemas.
Neste caminho, este artigo passou a tratar da propaganda política presente nos periódicos do início do século XX que, sob conjecturas contestáveis, conseguiu colocar boa parte da população alemã contra determinados grupos humanos, ao ponto de desumanizá-los, exterminando seis milhões deles. O problema que se colocou, portanto, foi o da inocência das pessoas no trato com os media, cumulado com desejo reprimido e já existente de subjulgar minorias (caso Dreyfus serve como conexão). As pessoas no século XIX e começo do século XX não tinham experimentado qualquer situação semelhante à chegada dos media, a rapidez com que a informação entrou na vida da sociedade, causou um choque da qual a compreensão levou anos a acontecer (e que talvez ainda tenha se chegado a este tempo).
Dessa forma, percebe-se que as pessoas não souberam lidar com essa informação, e ela foi consumida como “verdade absoluta” por grande parte da população. Acontece que, sobretudo nos governos totalitários, a informação era manipulada com a intenção de subjulgar grupos humanos e, as pessoas, acabaram por seguir este chamado.
Com o fim da Segunda Grande Guerra, e o saldo de milhões de mortes, as Organizações das Nações Unidas decidiram promulgar a Declaração Universal dos Direitos Humanos que, sob o ponto de vista formal, trouxe certo avanço se pensado o mundo a partir da perspectiva eurocêntrica, mas no geral, apenas escancarou as veias abertas de uma humanidade em que nem todos têm os mesmos valores e direitos.
Portanto, este artigo pretendeu explorar este contexto em que os direitos humanos são ignorados, e onde a criminologia mediática, assumindo contornos de fait divers, de publicidade, de propaganda política e de informação verdadeira, foi colocada com vistas a subjulgar, desumanizar e exterminar determinados grupos humanos.
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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La Cuestión Criminal. 4ª ed. Buenos Aires: Planeta, 2012.
2 Tradução livre do autor: “[...] apela a una creación de la realidade a través de información, subinformación y desinformación en convergencia con prejuicios y creencias, basada en una etiologia criminal simplista asentada en causalidad mágica.
3 O Caso Dreyfus, segundo SILVA (2012) foi um equívoco do judiciário francês culminando em um escândalo político. Alfred Dreyfus, oficial de artilharia do exército francês, de origem judaica, foi acusado de vender segredos militares, sendo condenado com base em documentos falsos. A imprensa e a opinião pública contribuíram sobremaneira à condenação de Dreyfus.
4 Tradução livre do autor: La criminologia mediática naturaliza estas muertes [...] la criminología mediática asume el discurso de la higiene social: ellos son para la criminología mediática las heces del cuerpo social.
5 Entende-se como cultura dos direitos humanos o processo hodierno em que eles explicitamente foram reconhecidos à nível mundial. Após a 2ª Guerra Mundial, em decorrência dos horrores produzidos naquele momento da história, as Organizações da Nações Unidas redigiram a Declaração Universal dos Direito Humanos, positivando, assim, conteúdo normativo tutelando aos direitos humanos. Para Boaventura Souza Santos, todavia, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi ”a marca ocidental liberal do discurso dominante [...] elaborada sem a participação da maioria dos povos do mundo, no reconhecimento exclusivo de direitos individuais, com a única exceção do direito coletivo à autodeterminação, o qual, no entanto, foi restringido aos povos subjulgados pelo colonialismo europeu”. (SANTOS, 1997, p. 113).
6 Dados obtidos pela Encyclopedia Britannica. Disponível em: http://global.britannica.com/event/Holocaust. Acesso em 10 mar. 2016.
7 Para DOMENACH (1963, p. 4), “a propaganda confunde-se com a publicidade nisto: procura criar, transformar certas opiniões, empregando, em parte, meios que lhe pede emprestados; distingue-se dela, contudo, por não visar objetos comerciais e, sim, políticos: a publicidade suscita necessidades ou preferências visando a determinado produto particular, enquanto a propaganda sugere ou impõe crenças e reflexos que, amiúde, modificam o comportamento, o psiquismo e mesmo as convicções religiosas ou filosóficas.”
8 Tradução livre do autor: “El poder punitivo no seleciona sin sentido [...]”.
9 Tradução livre do autor: Eran tempos en los que la radio aparecía como un gran máquina capaz de moldear el pensamento.
10 Tradução livre do autor: Cuando la angustia se convierte en miedo renacen los proyetos existenciales, pus la aniquilación del enemigo (vindicación paranoica) passa a ser el primer passo de todo proyecto existencial”.
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