Annebelle Pena Lima Magalhães*
Marcia Auxiliadora Fonseca**
Centro Universitário UNA, Brasil
marciafonsecabio@hotmail.comRESUMO
O presente artigo visa descrever a importância da autonomia, junto as práticas educativas, tendo como objetivo, explicar a relação entre o sujeito que age e pensa sobre os objetos de seu próprio conhecimento. Para a metodologia aqui estabelecida fez-se necessário revisão de literatura, com consulta a artigos em revistas, livros didáticos, dissertações, índices de periódicos, bases de dados nacionais e internacionais, sobre autonomia e as práticas educativas. O objetivo geral desse artigo foi analisar a influência da autonomia do sujeito e sua intervenções nas práticas educativas, sendo o sujeito a chave fundamental nesse processo, já que é dotado de uma inteligência capaz de organizar os conhecimentos antigos e assimilar os novos conhecimentos. O referencial teórico está baseado em, Charlot, 2000, Correia, 2003, Freire, 1974 / 1996,Morin,2010, Piaget, 1997, Rosseto, 2005,, ente outros.
Palavras-chave- Autonomia, Práticas educativas, Desenvolvimento Cognitivo, Epistemologia Genética,
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo describir la importancia de la autonomía, con las prácticas educativas, con el objetivo de explicar la relación entre el sujeto que actúa y piensa acerca de los objetos de su propio conocimiento. Por aquí metodología establecida era necesaria revisión de la literatura, la consulta con los artículos de revistas, libros de texto, tesis, índices de publicaciones periódicas, bases de datos nacionales e internacionales sobre la autonomía y las prácticas educativas. El objetivo general de este estudio fue analizar la influencia de la autonomía del individuo y sus intervenciones en las prácticas educativas, siendo objeto de clave fundamental en este proceso, ya que está dotado de una inteligencia capaz de organizar el conocimiento antiguo y asimilar nuevos conocimientos. El marco teórico se basa en, Charlot, 2000 Correia, 2003 Freire, 1974/1996, Morin, 2010 Piaget, 1997 Rossetto, 2005 ,, siendo los demás.
Palabras teclados Autonomía , las prácticas educativas , el desarrollo cognitivo , Epistemología Genética ,
ABSTRAT
This article aims to describe the importance of autonomy, with the educational practices, aiming to explain the relationship between the subject who acts and thinks about the objects of their own knowledge. For here established methodology was necessary literature review, consultation with the magazine articles, textbooks, dissertations, periodicals indexes, national and international databases on autonomy and educational practices. The general objective of this study was to analyze the influence of the individual's autonomy and its interventions in the educational practices, being subject to fundamental key in this process, as it is endowed with an intelligence capable of organizing the ancient knowledge and assimilate new knowledge. The theoretical framework is based on, Charlot, 2000 Correia, 2003 Freire, 1974/1996, Morin, 2010 Piaget, 1997 Rossetto, 2005 ,, being others. Key- words Autonomy, educational practices, Cognitive Development, Genetic Epistemology.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Annebelle Pena Lima Magalhães y Marcia Auxiliadora Fonseca (2016): “A autonomia do sujeito e práticas educativas: contribuições teóricas”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (julio-septiembre 2016). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/03/autonomia.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/CCCSS-2016-03-autonomia
Falar de autonomia sem falar de Piaget é deixar um espaço em branco na história das teorias da cognição. Piaget desenvolveu a Epistemologia Genética, teoria que discorre detalhadamente sobre o aspecto evolutivo da cognição e da inteligência humana, de modo a explicar a relação entre o sujeito que age e pensa sobre os objetos de seu próprio conhecimento.
A inteligência é uma espécie de adaptação biológica que se constitui em um estruturado sistema de operações, que elucidam a origem do conhecimento e do desenvolvimento da criança. O autor concebe a inteligência a partir da esfera biológica, da moral universal estabelecida pela via da conscientização, cooperação, autonomia e do equilíbrio. Só um sujeito que desenvolveu a consciência moral é capaz de tais atos. Para o autor, a aprendizagem é um somatório das influências da experiência; a maturação é um desdobramento dos padrões biológicos que ocorrem em fases específicas e os estágios são a organização de pensamentos e comportamentos que se dão desde os períodos iniciais do desenvolvimento da criança.
2. A AUTONOMIA DO SUJEITO E PRÁTICAS EDUCATIVAS: contribuições teóricas
Piaget definiu os processos mentais da criança como processos cognitivos, realizados a partir da utilização da memória, da percepção, das imagens, do raciocínio lógico e abstrato. Contudo, para diminuir a lacuna entre o biologismo da epistemologia genética e a apropriação do sujeito em torno de seu desenvolvimento, o autor se aliou à Psicologia para explicar tais fenômenos. Desenvolveu, então, uma visão interacionista ancorada entre o meio ambiente e o organismo dentro de uma construção filosófica. Esta construção prima pelo desenvolvimento que cada sujeito mantém entre seu organismo e o meio com o qual interage. O sujeito é chave fundamental nesse processo, já que é dotado de uma inteligência capaz de organizar os conhecimentos antigos e assimilar os novos conhecimentos, utilizando-se de elementos como: a assimilação, que é o processo de adaptação à nova informação adquirida; e a acomodação, que altera as crenças anteriores em relação às novas experiências adquiridas.
As novas experiências adquiridas surgem do pensamento da criança sobre o meio ambiente, dando origem a um novo elemento. Este é incorporado à experiência anterior e, por sua vez, resulta em uma ação de ajuste entre o ambiente e o sujeito, numa tentativa de equilíbrio. O que o autor evidencia, é que quando um novo conhecimento surge, o organismo sofre um desequilíbrio até que ocorra uma nova acomodação e assimilação em etapas progressivas de equilibração. Assim, o sujeito se utiliza da interação – ele experimenta e elabora as aprendizagens adquiridas por meio das experiências vivenciadas.
A organização e a visualização também são termos utilizados para explicar como o sujeito se confronta com os conhecimentos recentes e àqueles anteriormente aprendidos. Há uma organização gradativa dos conteúdos, na qual as experiências são incorporadas e intensificadas na medida da interação com outras crianças ou por meio da convivência em grupo. Para que a criança ou o jovem chegue a um processo mais autônomo de desenvolvimento, o autor parte do princípio de que a maneira como o desenvolvimento moral e seus aspectos cognitivos ocorrem têm uma ligação muito estreita com a maturidade física e emocional da criança. A relação entre o meio e o organismo é realizada de maneira diferente entre as crianças mais novas e as mais velhas. As inteligências se constituem gradativamente em níveis diferentes. Modificam-se com o tempo, devido ao processo de maturação gradativo que também é individual, mas que se dá sempre por meio das operações intelectuais até chegar ao desenvolvimento concreto do raciocínio lógico.
2.1 O DESENVOLVIMENTO DA INTELIGÊNCIA ESTRUTURADO POR PIAGET
O conceito de desenvolvimento da inteligência estruturado por Piaget é representado em um conjunto de fases ou estágios. Este desenvolvimento se dá a partir de construções sucessivas que passam pelo egocentrismo da criança até alcançar o processo de autonomia, realizado por meio de uma evolução natural-cognitiva. Nela, a criança e o jovem utilizam a capacidade intelectual para compreender o que as regras podem expressar dentro de uma racionalidade equilibrada em si mesma. Quatro estágios coordenam este processo (PIAGET, 1971, p.104):
- Sensório-motor: do nascimento até os dois anos de idade. Forma-se um nível de equilíbrio biológico e cognitivo em que ocorre a formação da estrutura linguística e da permanência do objeto 1.
-Pré-operatório: dos dois anos aos sete anos. Também conhecido como estágio egocêntrico devido à consciência que a criança desenvolve ao perceber que existem outras pessoas, mas ainda não se preocupa com as regras. Nesse estágio a criança desenvolve o uso da linguagem e dos símbolos;
- Operatório concreto: dos sete anos aos onze anos. Estágio em que já existe a capacidade de coordenar ações mais estruturadas e no qual a criança conserva e compreende sua identidade. Neste estágio o egocentrismo natural da criança possivelmente já se resolveu, dando lugar ao pensamento lógico, à formação de esquemas conceituais. Aqui a realidade passa a ser estruturada pela razão;
- Operatório formal: dos doze anos em diante. Fase em que o sujeito atinge um estado de equilíbrio próprio, principalmente por volta dos quatorze/quinze anos de idade. Nesta fase os esquemas conceituais abstratos já podem ser compreendidos, como amor, liberdade, justiça, equidade, entre outros. É o ápice da estruturação das relações sociais, nascidas de uma autonomia moral e intelectual.
Nesse último estágio, em que os esquemas conceituais são mais elaborados, a criança se preocupa com as regras e concorda com a mudança delas. Trata-se de um estabelecimento um pouco mais consciente da autonomia. A autonomia ganha, a partir de então, importância fundamental no processo de aprendizagem. Piaget defende a aquisição da autonomia como causa intermediária no processo de amadurecimento e construção do conhecimento. É aqui que o sujeito autônomo elabora normas próprias, que se constituirão nas relações de cooperação. A possibilidade real da autonomia começa no entendimento sobre os conceitos de “justiça, reciprocidade e cooperação”.
A autonomia para Piaget (1977) se dá em dois aspectos, que são o moral e o intelectual. Contudo, para se avançar uma discussão em torno da autonomia, existe outro aspecto muito valorizado por Piaget e que antecede a consolidação da formação da autonomia. Trata-se da relação que a criança mantém com as regras, os jogos e as figuras de autoridade com as quais convive.
Na formação do Juízo Moral, na Criança, existem "(...) critérios de avaliação, objetivos conscientes de conduta". A criança vive, desde o início, uma socialização de sua atividade e afetividade. Portanto, pensar a autonomia com Piaget é pensar, antes de tudo, na "articulação da moralidade com os demais aspectos do universo psicológico" (PIAGET, 1997, p.17). Assim, as primeiras formas de interpretação (assimilação) que a criança faz da moral adulta são decorrentes das estruturas mentais que possui. Embora estas ainda não lhe permitam uma apropriação intelectual racional do porquê das regras, ainda assim permitem à criança acreditar que são boas porque foram impostas por seres vistos como poderosos e amorosos (os pais ou outras pessoas de maior vínculo afetivo). Elas são levadas a se apropriarem mais conscientemente das "verdades" emitidas pelos adultos num jogo de interações sociais, do qual a cooperação sempre é parte. Este novo tipo de interação exige um trabalho de acomodação e de modificação das estruturas anteriores já formadas pela criança. Se essas modificações não acontecem na vida da criança, ela mantém o absolutismo das regras morais legitimadas apenas pela autoridade de quem as impõe. Faz-se, então, necessário que haja uma ênfase no desenvolvimento do juízo moral e não nos comportamentos ou sentimentos morais. Trata-se da representação do mundo pela criança: "A moral infantil esclarece de certo modo, a do adulto", pois, "toda moral consiste num sistema de regras, e a essência de toda moralidade deve ser procurada no respeito que o indivíduo adquire por suas regras" (Ibidem,1997, p.23).
Desde o nascimento, a criança está imersa em um mundo de regras, de múltiplas disciplinas e, somente aos poucos, vai adquirindo consciência de muitas obrigações. A elaboração e apropriação das regras do jogo são condições de seu amadurecimento. São realidades classificadas, elementares e espontâneas, apreendidas pela criança.
Segundo Piaget (1997), dois grupos de fenômenos explicam as regras: a maneira prática, na qual as crianças explicam as regras; e a consciência das regras, nas quais as crianças representam o caráter obrigatório das regras, que consiste na autonomia ou heteronomia do jogo.
O desenvolvimento da criança sempre se dá primeiro no individual para depois alcançar o social. As regras constituem uma realidade social pois, são sancionadas pela coletividade. Os sujeitos se adaptam, pouco a pouco, às regras, dependendo de sua maturidade. Eles se apropriam da consciência das regras e das obrigações que cada jogo e cada regra representam, individualmente, mesmo que dentro de um sistema social. As regras, portanto, são dominadas progressivamente e este processo caminha lado a lado com a maturidade intelectual do sujeito, que percebe gradativamente e, em estágios sucessivos, a origem e a perenidade dos jogos e a sua importância.
2.2 OS EATAGIOS DE CONSCIÊNCIA ALCANÇAR AS REGRAS DO SOCIAL
As regras, segundo Piaget (1997, p.33) possuem quatro estágios sucessivos:
a) Motor e individual - a criança realiza atividades motoras, individualizadas, estabelecendo esquemas ritualizados. A regra não é coercitiva nesse estágio;
b) Egocêntrico - estágio que se inicia a partir do momento em que a criança recebe, do meio, as regras já codificadas, entre dois e cinco anos. A criança utiliza da imitação e ainda que jogue sozinha e não se preocupe com a manutenção das regras, já as considera sagradas. Nesse estágio, ela já percebe quando a regra é transgredida;
c) Cooperação nascente - estágio que ocorre por volta dos cinco a sete anos de idade, no qual a criança procura vencer o oponente, existindo a necessidade mútua de controlar e unificar as regras. A lei aqui é sempre imposta;
d) Codificação das regras - a partir dos onze ou doze anos, a criança regulamenta os jogos minuciosamente, mas respeita as inumeráveis variações dos jogos e de seus “adversários”.
No quarto estágio, as regras, desde o início, possuem um caráter coletivo e são percebidas como algo que é exterior ao próprio sujeito. Gradativamente, a criança vai se apropriando das regras e passa a adotá-las como "livre resultado do consentimento mútuo e da consciência autônoma". É a germinação das relações de cooperação e autonomia, ainda que:
Ora, no tocante à prática, é natural que ao respeito místico pelas leis, correspondam um conhecimento e uma aplicação ainda rudimentar de seu conteúdo, enquanto, ao respeito racional e motivado, corresponde uma observância efetiva e pormenorizada de cada regra (Ibidem, 1997, p.34)
Piaget admite que os jogos possuem uma importância fundamental no desenvolvimento infanto-juvenil, pois suas regras não apenas estimulam a consolidação da cooperação, mas desenvolvem a intelectualização do sujeito. Representam uma relação do exercício sensório-motor e de seus simbolismos a uma espécie de assimilação da necessidade da coletividade, que tanto ajuda a consolidar o sujeito para a cidadania quanto para o desenvolvimento da consciência ética.
O quarto estágio é, de fato especial, por se tratar de um "deslocamento de interesses (...): não só esses meninos procuram cooperar, "combinar", (...), parecem ter um prazer particular em prever todos os casos possíveis e codificá-los” (1997, p.49). O que leva à suposição de que é justamente desse tipo de "acordo" que nasce a cooperação. Piaget reforça essa tese ao citar Bovet, sobre a gênese da obrigação consciente, em que diz que "o sentimento de obrigação só aparece quando a criança aceita imposições de pessoas pelas quais demonstra respeito" (Ibidem, 1997, p.52).
Nessa última afirmação, está a importância de se discutir tanto a relação de heteronomia nascida nas relações com os adultos que representam a autoridade desde o nascimento, quanto a relação construída com seus pares a partir dos jogos e de suas regras. Ambas representam a germinação das relações de cooperação, nas quais "veremos, realmente, que a cooperação entre iguais não só vai mudar pouco a pouco a atitude prática da criança, mas, ainda, fato essencial, vai fazer desaparecer essa mística da autoridade" (Ibidem, 1997, p.58).
O que se percebe nessa construção é que a heteronomia antecede a autonomia. Mas é apenas na autonomia que as regras se apresentarão como possível resultado de uma livre decisão, mutuamente consentida e, não mais, com um caráter puramente sagrado e místico das relações de poder. Ou seja, a criança passa a ter uma compreensão mais consciente das regras e das relações de poder que lhe cercam, para assim, escolher o caminho da cooperação que é o que vai possibilitar o exercício da autonomia.
Ainda assim, é necessário compreender que o sujeito que aprende a lidar com as normas e as figuras de autoridade, desfruta de uma autonomia que o insere em um “conceito universal de humanidade e de racionalidade”. Este sujeito não é dono das regras, ele é alguém que passa a compreendê-las e respeitá-las de maneira mais consciente.
A própria realidade, em que as etapas do desenvolvimento cognitivo e social se estabelecem, dá origem às relações de cooperação ou de autonomia, com possibilidades de ampliar as relações sociais, permitindo a inclusão de novos companheiros e a formação de outras novas relações. As regras, portanto, deixam de ser imutáveis e unicamente impostas para se tornarem objetos de avaliações, reflexões e mudanças que envolvem a participação de todos. As regras e os jogos passam a ser motivo de discussão, de elaboração de diálogos e de relacionamentos.
Por mais contraditório que pareça, é na relação com as regras dos jogos que as sementes tanto da cooperação quanto da autonomia florescem. Principalmente, porque as crianças e os jovens constroem-se, criativamente, a partir de suas relações e experiências advindas do social. Discutir todos os estágios sucessivos do desenvolvimento, portanto, é uma maneira de compreender como a criança chega ao caráter da reciprocidade, da "universalidade moral e da generosidade em suas relações com os companheiros" (Ibidem, 1997, p.64). A autonomia e heteronomia são dois fenômenos postos em relação. Contudo, é a autonomia o ápice do fenômeno, uma vez que surge da
internalização da norma, do desenvolvimento racional para apreender a racionalidade dessa norma e da competência lógica para operar, por conta própria, com a moral como logicidade da ação humana no mundo. É nesse contexto que os conceitos piagetianos devem ser compreendidos. É nesse âmbito que cooperação, respeito ao ditame grupal, distinção do que é (lei física) do dever ser (lei moral) ganham sentido. Autonomia como participação na heteronomia racionalmente justificada, válida e hegemônica no grupo (...) (CORREIA, 2003, p.136).
Para Jean Piaget ter autonomia significa ser governado por si mesmo, tomar decisões próprias, agir de acordo com a verdade e respeito às regras, passando de um estágio de heteronomia para o de cooperação. No tocante ao aspecto intelectual, ter a autonomia representa o interesse dos sujeitos por pensamentos, idealizações e atividades que envolvem o estudo e o raciocínio. Portanto, a autonomia começa no desenvolvimento infantil e culmina no momento em que o sujeito começa a entender as regras e a sua importância para o social, construção que se dá sempre na relação da criança com o adulto. É o que Piaget denomina de educação moral.
Para sintetizar, no início existe o estado de anomia, que representa a ausência de regras - o que é muito natural em crianças nas idades iniciais que vivenciam a fase radical do egocentrismo. Em seguida, surge a heteronomia, no qual “hetero” significa "outro". Na heteronomia as regras já são percebidas, embora de forma muito variada dependendo de cada sujeito. Nessa fase, a criança entra no estágio moral, no qual ela obedece somente quando está sob o olhar do outro, não quando longe deste; obedece mais por medo do que por compreender a importância do respeito às regras e o respeito à cooperação. Na autonomia propriamente dita, há não só o entendimento das regras, mas o esforço consciente para mantê-las.
A presença educativa de um adulto que representa figura de autoridade para a criança se constitui em uma relação fundamental que oportunizará o primeiro estado de heteronomia, que culminará, lá na frente, no estado de autonomia. Os adultos, nesse processo, devem “flexibilizar” tanto a sua presença, quanto o seu poder, autoridade e saber. Nessa construção inicial, as relações interpessoais giram em torno da coação - que é um elemento de respeito unilateral e que conduz à heteronomia, implicando em submissão, autoridade e depois em cooperação. Giram, também, em torno da troca entre os indivíduos, do respeito à igualdade de direitos, o aprender a se colocar no lugar do outro e merecer o seu respeito, amizade e consideração. É, nesse último aspecto, que a educação tem seu maior ganho, pois ela é um espaço privilegiado para a construção cooperativa. A escola é território de convívio entre os pares, é ambiente de trocas de saberes coletivos e individuais. Por isso, se justifica a preocupação dos Parâmetros Curriculares Nacionais com a autonomia, como a seguir:
a autonomia refere-se à capacidade de posicionar-se, elaborar projetos pessoais e participar enunciativa e cooperativamente de projetos coletivos, ter discernimento, organizar-se em função de metas eleitas, governar-se, participar da gestão de ações coletivas, estabelecer critérios e eleger princípios éticos, etc. (...). A Autonomia fala de uma relação emancipada, íntegra com as diferentes dimensões da vida, o que envolve aspectos intelectuais, morais, afetivos e sociopolíticos. Ainda que na escola se destaque a autonomia em relação ao conhecimento - saber o que se quer saber, como fazer para buscar informações e possibilidades de desenvolvimento de tal conhecimento, manter uma postura crítica comparando diferentes visões e reservando para si o direito de conclusão, por exemplo —, ela não ocorre sem o desenvolvimento da autonomia moral (capacidade ética) e emocional que envolvem auto-respeito, respeito mútuo, segurança, sensibilidade, etc (PCN,1997, p.59).
Na perspectiva dos PCNs, valorizar a ampliação da autonomia dos alunos na escola também significa desenvolver ações cooperativas e de afetividade que perpassam o social, cognitivo e ético.
(...) A capacidade de relação afetiva está estritamente ligada à capacidade de relação interpessoal, que envolve compreender, conviver e produzir com os outros, percebendo distinções entre as pessoas, contrastes de temperamento, de intenções e de estados de ânimo. O desenvolvimento da inter-relação permite ao aluno se colocar do ponto de vista do outro e a refletir sobre seus próprios pensamentos. (...)
Quanto à capacidade de inserção social, refere-se à possibilidade de o aluno perceber-se como parte de uma comunidade, de uma classe, de um ou vários grupos sociais e de comprometer-se com questões que considere relevantes para a vida coletiva. Essa capacidade é nuclear ao exercício da cidadania, pois seu desenvolvimento é necessário para que se possa superar o individualismo e atuar (no cotidiano ou na vida política) levando em conta a dimensão coletiva. (...).
A capacidade ética é a possibilidade de reger as próprias ações e tomadas de decisão por um sistema de princípios segundo o qual se analisam, nas diferentes situações da vida, valores e opções que o envolvem. (...). (Ibidem, 1997, p.45).
Se, para Piaget (1977), não é possível uma autonomia intelectual sem uma autonomia moral e ambas se sustentam no respeito mútuo, representando uma consciência ética do sujeito, para Paulo Freire (1996), “a prática educativo-crítica” está a favor da autonomia do ser, pois respeitar a autonomia e a dignidade de cada um é um imperativo ético. Freire (2009) acredita que a autonomia é uma capacidade de viver em democracia, compreendendo a realidade e intervindo nela. Por isso, educar é um exercício de alteridade que exige uma “dialogicidade verdadeira, em que os sujeitos aprendam e cresçam na diferença, sobretudo, no respeito a ela”. Para o pensador, a educação é o caminho para que o homem possa intervir na realidade. Autonomia e liberdade são condições norteadoras do trabalho educativo. É, sobretudo, no exercício da dialogicidade de Freire, que essas condições se ampliam, pois “ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai se construindo na experiência de várias, inúmeras decisões que vão sendo tomadas”. Por isso:
[...] A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade (FREIRE, 1996, p. 107).
Morin (2010, p.118) traz outra complementação à discussão sobre autonomia, ao afirmar que,
[...] nós, seres culturais e sociais, só podemos ser autônomos a partir de uma dependência original em relação à cultura, em relação a uma língua, em relação a um saber. A autonomia não é possível em termos absolutos, mas em termos relacionais e relativos.
O que os autores trazem, em comum, é que a autonomia do aluno não é algo independente, que se forma solitariamente mas, sim, algo relacional. Desenvolver a autonomia é se relacionar; é promover diálogos; intercâmbios de ideias construídos a partir da vivência dos alunos na realização de suas práticas escolares, que se dão, progressivamente, por meio de conquistas cotidianas autônomas.
O exercício da autonomia ocorre, em situação real, por meio de relações que o aluno enquanto sujeito constrói, subjetivamente e socialmente, com os objetos de seu meio, sejam eles naturais e ou culturais, com os outros sujeitos. A autonomia é sempre relacional e não é absoluta, uma vez que, para se realizar, caminha na interdependência de múltiplos fatores subjetivos, sociais e educacionais. Portanto, para que se efetive a construção da autonomia no campo educacional, é necessário que ela seja tratada não apenas como pressuposto técnico, mas principalmente ético. Ela representa uma relação direta com o valor das ações sociais, tanto no âmbito individual quanto coletivo, um exercício reflexivo e crítico da ação do aluno em seu meio.
Ao colocar a autonomia do aluno em um campo ético, é possível considerar as potencialidades que podem ocorrer nas práticas dos alunos e dos demais sujeitos escolares. Esta possibilidade acena para uma democratização do espaço escolar que se reflete diretamente na qualidade da educação, no fortalecimento e na apropriação dos educandos sobre a autonomia que constroem para si, contrapondo-se à heteronomia, que representa uma sujeição a uma lei exterior ou à vontade de outrem, ou seja, a uma ausência de autonomia.
Rossetto (2005, p. 59) apresenta uma discussão sobre a autonomia do aluno que envolve a escola tradicional e a escolanovista: de um lado, os métodos tradicionais de educação são questionados e, de outro lado, a pedagogia é centrada no aluno, que é percebido como um sujeito ativo do processo ensino-aprendizagem, pois
o modelo escolar predominante fazia o aluno trabalhar de forma a automatizar procedimentos; por sua vez, a Escola Nova sugere a colaboração entre os alunos num grupo de trabalho, considerando esta atividade um suporte à autonomia do aluno. Na escola tradicional todo desenvolvimento intelectual e moral do aluno tem sua origem nas relações heterônomas, porque ligadas à pressão contínua do professor; ao contrário, na Escola Nova, o desenvolvimento moral e cognitivo, podem, em muito, ser facilitados pela relação respeitosa e recíproca estabelecida em sala de aula entre professor e aluno. Nessa relação, os sujeitos são incentivados à descentração de seus pontos de vista, isto é, a diminuição do egocentrismo natural da criança, e as relações que se estabelecem o mais próximo possível da vida real facilitam um trabalho espontâneo e cooperativo, constituído a partir das necessidades e interesses de um grupo formado por indivíduos com histórias diferentes (ROSSETTO, 2005 p.59).
A autora afirma que, se os alunos desenvolvem um trabalho espontâneo e cooperativo, a partir das necessidades e interesses do grupo heterogêneo, há a possibilidade de se construírem práticas mais autônomas, que fazem a escola avançar além das práticas pedagógicas conservadoras ou mesmo heterônomas. Pois como defende Freire, a autonomia possui um aspecto social, político e pedagógico, que ultrapassa o conservadorismo e representa uma espécie de condição histórica de libertação de um povo, de uma sociedade – ainda que nesse contexto, seja uma sociedade escolar de que se fala. No tocante a esta fala política, social e educacional de Freire, pensa-se que as práticas escolares devem se situar para além das práticas pedagógicas, pois têm a capacidade de abranger a qualidade dos mais variados “processos formativos que se desenvolvem pela convivência humana em diferentes espaços, o familiar, o institucional, do trabalho, da cultura, entre outros”.
É na escola e a partir dela, que a educação ganha maior possibilidade de alargamento, de ampliação. Ela é um espaço em que o sujeito pode adquirir condições de se libertar e de se autogovernar. A escola pode promover muito mais do que o “conteúdo escolar” e a “formalização do saber”. A escola, o ser escola e o estar na escola representa um compromisso com a cidadania.
O artigo 35 da LDBEN/96 trata da autonomia como parte desse saber formalizado, elevando-a ao status primordial de todo processo formativo do sujeito. Para a LDBEN, a autonomia, além de ser o “resultado de um processo que se conquista ao longo de toda a escolarização”, também “reflete dados qualitativos da própria escolarização”, o que é extensivo à qualidade das “relações interpessoais” nos espaços escolares. A cidadania é, justamente, esse processo autônomo, essa conquista social e política do homem – algo há muito defendido por Freire.
Em resumo, para Piaget, a autonomia é uma construção sucessiva que se dá por meio de estágios específicos que se inicia no convívio das crianças com as regras dos jogos e as figuras de autoridade com as quais convive desde a mais tenra idade, que vai representar o alicerce social e moral que baliza as relações socialmente desenvolvidas.
Outra contribuição para a discussão do tema vem de Castoriadis (1982). Para o autor, a autonomia é sempre o domínio do consciente sobre o inconsciente, um discurso que deixa de ser meu para ser do outro e assim deixar de negá-lo. As referências desse autor sobre a autonomia nascem da discussão dos teóricos psicanalistas sobre a formação do sujeito. Contudo, da mesma forma que o autor acredita que a autonomia nasce, primeiramente, em um sujeito singular, ela só se efetiva nas relações sociais que se dão via compartilhamento com o outro. Não é interesse desta pesquisa negar o sujeito do inconsciente descoberto por Freud, mas ampliar a discussão sobre esse mesmo sujeito, relacionando-o à saída do estado egocêntrico de heteronomia para conviver com as regras, a hierarquia e a autoridade embora dentro de uma relação de alteridade.
Ampliando a discussão do sujeito autônomo, Castoríadis (1982) reforça que existe uma espécie de saber simbólico nascido da linguagem do sujeito, mesmo que este esteja em um estado de alienação causado pela instituição em que está. E, embora as instituições procurem manter o status quo das relações de heteronomia, algo sempre escapa dessas relações heterônomas, deixando fluir as vicissitudes que se refletirão no grupo social.
Charlot (2000), que também dialoga com a psicanálise sem a adotar efetivamente, reforça que o aluno é um sujeito singular, portador de desejos, de uma singularidade ímpar, intransferível. Mesmo dominado e alienado, continua sujeito: convive com diversas maneiras particulares de se construir e se constituir enquanto tal e, ainda que se encontre em uma situação de heteronomia, possui capacidade de resistir, de interpretar e de reinventar criativamente o seu mundo.
Para Castoríadis (1982, p.131), a instituição em que o sujeito está influencia sobremaneira a sua relação com a autonomia, pois, fazer parte de qualquer instituição, é viver diariamente entre uma união e tensão da sociedade instituinte e da sociedade instituída, de uma história já feita e que se faz o tempo todo. Solo este, para o autor, “nada fértil para a alteridade” devido à alienação causada pelo sistema capitalista e pelas relações de hierarquia e de poder, pois, quanto menos estimuladora da autonomia, mais a instituição se manifesta como “massa de condições de privação e de opressão” ou como “estrutura solidificada global, material e institucional de economia, de poder e de ideologia, como condução, mistificação, manipulação e violência”.
Ainda assim, para o autor, mesmo que em um ambiente institucionalizante e de tendências mais heterônomas, o sujeito sempre será um sujeito, portador de uma autonomia individual, capaz de driblar criativamente e até de superar as consequências desse “estado de coisas”. Como sujeito, ele pode vencer a anulação dos efeitos da instituição sobre a sua vida, negociando para dar conta das relações de cooperação no grupo em que está. O sujeito precisa lutar, negociar para não fazer “(...) o outro desaparecer no anonimato coletivo, na impessoalidade dos “mecanismos” (Ibidem,1982, p.131). Esse tipo de realidade, pode se fazer presente no ambiente escolar – mesmo que se defenda, no discurso das leis da educação ou no discurso da ação pedagógica, que a autonomia é objeto de extrema pureza ou constância no desenvolvimento educativo.
A educação autônoma deve ser uma prioridade. No entanto, a instituição educativa pode se pautar por uma tendência à heteronomia, que produz a alienação incapaz de reconhecer a autonomia, a subjetividade e a existência do outro. Ou, ainda, se pautar pela viabilização de relações de autonomia ou de cooperação. Castoríadis tem uma preocupação constante com o que a instituição pode fazer com o sujeito, alertando quanto aos “descaminhos” que esta pode dar à autonomia:
Não lidamos com sujeitos que seriam pura vontade de autonomia e responsabilidade total; se assim fosse não haveria nenhum problema em nenhuma área. Não é somente porque a estrutura social é “estudada para” instilar desde antes do nascimento passividade, respeito à autoridade etc. É que as instituições estão presentes, na longa luta que cada vida representa, para colocar a todo momento impecilhos e obstáculos, impelir as águas em uma direção, finalmente reprimir tudo o que poderia manifestar-se como autonomia. (...) (Ibidem, 1982, p.132).
Portanto, na escola, tem-se que tomar o cuidado de não deixar a autonomia ser apenas algo situado no campo do discurso. De forma que o “meu discurso autônomo” não seja o disfarce de uma realidade já alienada e que o que promove na realidade, negando o discurso do outro. Lembrando que:
A autonomia não é pois elucidação sem resíduo e eliminação total do discurso do Outro não reconhecido como tal. Ela é a instauração de uma outra relação entre o discurso do Outro e o discurso do sujeito. A total eliminação do discurso do Outro não reconhecido como tal é um estado não-histórico. O peso do discurso do Outro não reconhecido como tal, pode ser visto mesmo nos que tentaram mais radicalmente atingir o fundo da interrogação e da crítica dos pressupostos tácitos – quer seja Platão, Descartes, Kant, Marx e o próprio Freud – jamais pararam nesse movimento; e existem os que pararam, e que às vezes, por isso, se alienaram em seu próprio discurso tomado outro. Existe a possibilidade permanente e permanentemente atualizável de olhar, objetivar, colocar a distância e finalmente transformar o discurso de Outro em discurso do sujeito (Ibidem, 1982, p.127).
A relação da instituição escolar entre a heteronomia e a autonomia e a capacidade criativa do sujeito escolar neste processo; a autonomia relacional e relativa e suas interações culturais e sociais; e a autonomia como instrumento de diálogo, de interação, libertação, decisão, responsabilidade e alteridade.
3. CONCLUSÃO
Para Piaget, a autonomia pressupõe a existência de um sujeito que vivência diversas experiências, assimiladas e acomodadas, de acordo com o estágio da vida em que se encontra. São experiências pautadas na capacidade de julgamento da criança e do jovem, na tomada de consciência sobre as regras e na aprendizagem de codificação e internalização destas. A autonomia é intermediária no processo de amadurecimento e construção do conhecimento, pois constitui as relações de justiça, reciprocidade e cooperação. Para outros autores como, Castoríadis, a autonomia tanto pressupõe o reconhecimento de si para si, quanto de si para o outro, em uma luta constante contra a alienação e a massificação do humano. E para Charlot, a autonomia pressupõe a capacidade criativa do sujeito singular de se impor em seu meio por meio de seu saber. Finalizando, em Freire, a autonomia é sempre uma inter-relação, uma capacidade dialógica de interação e libertação. É um processo que não ocorre em data marcada e no qual a pedagogia se engaja numa ação autônoma centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, que conduzam o sujeito à liberdade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASTORIADIS, Cornélius. A instituição imaginária da sociedade. Tradução Guy Reynoud. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.
CORREIA, WILSON. Que diabo de autonomia é essa? Currículo sem Fronteiras, v.3, n.2, pp.126-145, Jul/Dez 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974 / 1996.
MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Trad. Eloá Jacobina. 18ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. 128 p.
PIAGET, Jean. O desenvolvimento do pensamento: equilibração das estruturas cognitivas. Lisboa: Dom Quixote, 1977.
_____________. O juízo moral na criança (2ª ed.). São Paulo: Summus. 1932/1994.
_____________. Seis estudos de Psicologia (24ª ed.). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1964/1971/2004.
ROSSETO, Maria Célia. A construção da autonomia na sala de aula: na perspectiva do professor. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005.
* Mestrado Profissional em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local do Centro Universitário UNA.
** Mestrado Profissional em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local do Centro Universitário UNA.
1 Na permanência do objeto, a criança aprende a ter a consciência de que um objeto continua a existir, ainda que não possa visualizá-lo naquele dado momento.
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