Camila Damasceno de Andrade*
Juliana Lobo Camargo**
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
camila_damasceno17@hotmail.comResumo: Este artigo apresenta a justiça restaurativa como uma possibilidade de enfrentamento à violência doméstica e alternativa ao paradigma punitivo. Utiliza-se o método indutivo para demonstrar como as práticas restaurativas auxiliam a transformação das relações de gênero nos casos de violência contra mulheres. Considerando que a violência doméstica resulta de uma estrutura patriarcal que constrói subjetividades violentas e as associa à definição da masculinidade, o enfoque na figura individual do agressor ignora que a violência decorre de relações hierarquizantes que constituem a organização social de gênero. A violência também é produto do sistema penal, que, através de processos de criminalização e vitimização, estigmatiza agressor e vítima. O paradigma punitivo é incapaz de administrar a violência e a justiça restaurativa se apresenta como alternativa viável à judicialização dos conflitos e ao aprisionamento massivo.
Palavras-chave: gênero, justiça restaurativa, punição, prisão, violência.
The Restorative Justice as tackling the domestic violence
Abstract: This paper introducing the restorative justice as a possibility of tackling the domestic violence and as an alternative to the punishment paradigm. The inductive method is used to demonstrate how the restorative practices help the transformation of the gender relations in the cases of violence against women. Considering that the domestic violence results from a patriarchal structure that constructs violent subjectivities and associates them to the definition of masculinity, the focus on the individual figure of the aggressor ignores that the violence stems from hierarchical relations which constitute the social organization of gender. The violence is also a product of penal system, which, through processes of criminalization and victimization, stigmatizes the aggressor and victim. The punishment paradigm is incapable of managing the violence, and the restorative justice is presented as a viable alternative to the judicialization of conflicts and the massive imprisoning.
Keywords: gender, restorative justice, punishment, prison, violence.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Camila Damasceno de Andrade y Juliana Lobo Camargo (2016): “A justiça restaurativa como enfrentamento à violência doméstica”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (abril-junio 2016). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/02/violencia-genero.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/CCCSS-2016-02-violencia-genero
INTRODUÇÃO
A violência simbólica do androcentrismo legitima, no imaginário coletivo, discursos sexistas e misóginos que inferiorizam a mulher e a colocam numa posição de submissão em relação ao homem. Os processos de socialização irrogam, nas dominadas, as categorias de pensamento construídas e geridas pelos dominantes, naturalizando as agressões e violações dos corpos femininos. Verifica-se, então, que a violência patriarcal integra a própria organização social, sendo o gênero uma das formas primárias de articulação das relações sociais de poder. O corpo feminino, embora marcado pelas cicatrizes da violência, é invisível ao grande público, porque confinado ao ambiente doméstico. A disponibilidade do corpo feminino é moldada concomitantemente à sua reificação, tornando a mulher mera extensão das propriedades do homem.
O espectro estrutural da violência de gênero em muito ultrapassa a matriz individual da agressão. O enfoque do discurso punitivista na figura do agressor, por sua vez, apenas encobre as verdadeiras causas da violência, dado que esta decorre de uma estrutura patriarcal construtora de subjetividades individuais violentas. Com isso, o sistema de justiça penal exclui de seu horizonte as violências institucional e estrutural que ele próprio produz e sustenta.
Considerando, pois, que o sistema penal passa por uma profunda crise de legitimidade, o paradigma punitivo se revela inapto para solucionar a problemática da violência doméstica. Incapaz de cumprir suas funções declaradas de prevenção do crime, ressocialização do agressor, defesa dos bens jurídicos e, em última instância, de proteção da sociedade, torna-se evidente que a prisão, já saturada, precisa dar lugar a novos paradigmas na seara do enfrentamento à violência.
Nos trilhos dessa proposição, esta pesquisa tem o escopo de apresentar a justiça restaurativa como alternativa ao seletivo e, ao mesmo tempo, massivo encarceramento que está em curso no Estado brasileiro. Os referenciais teóricos adotados integram o pensamento criminológico crítico feminista, maturado pelo diálogo entre a sociologia criminal de Alessandro Baratta e a contribuição das teorias críticas feministas sobre os estudos de gênero. Toma-se como base, também, a literatura sociológica e jurídica referente à justiça restaurativa, especificamente, o pensamento de Howard Zehr. Outrossim, utilizando-se do método indutivo, busca-se demonstrar como as práticas restaurativas podem colaborar para a desconstrução do paradigma punitivo reinante, ainda que aparentemente inseridas num horizonte utópico.
1 VIOLÊNCIA E MASCULINIDADE
Elemento constitutivo das relações sociais fundadas nas diferenças percebidas entre os sexos, o gênero é o campo primário mediante o qual se articula o poder. Numa cultura androcêntrica, a organização social de gênero evoca a violência como forma habitual de manifestação da masculinidade e agrega aos indivíduos identidades subjetivas através da sujeição feminina (SCOTT, 2008, p. 64). A agressividade e a violência passam a ser características do "eu" masculino, porque suas condutas e suas próprias vontades são condicionadas por processos de socialização que alimentam a estrutura patriarcal.
Logo, a perpetuação da ordem social depende da diferenciação dicotômica de gênero, que, ao mesmo tempo em que atribui ao feminino o papel social da submissão, da castidade e da sensibilidade, designa o masculino como viril, dominador e violento. Observa-se que a dominação masculina, naturalizada e sustentada por uma aparente cientificidade, concretiza o seu controle sobre os corpos femininos com o alastramento da ideia de superioridade do homem sobre a mulher, transformando os laços afetivos em relações de poder hierarquizantes que se consolidam no interior dos núcleos familiares.
Não há que se falar, entretanto, em uma natureza masculina violenta, compreendida como dado ontológico e apriorístico (BARSTED, 1997, p. 74). A essencialização da masculinidade peca ao lhe descrever como categoria homogênea, atribuindo-lhe uma estereotipia determinista que sugere a sua invariabilidade. Destarte, a violência nada mais é do que símbolo cultural do papel de gênero atribuído ao homem enquanto corpo sexuado, o que não somente cumpre a função de caracterizar a masculinidade, mas legitima a agressão contra os corpos femininos e subordina a mulher ao objetificá-la e torná-la disponível.
Ordinariamente confinada ao ambiente doméstico e encoberta pelo manto da normalidade, a violência contra a mulher é relevada por uma cultura que culpabiliza a vítima e, quando não incentiva a agressão, acaba por eximi-la ao conceber o agressor como um doente incapaz de discernir os resultados de seus atos. Desse modo, o androcentrismo se impõe como neutro, porquanto naturaliza as relações de dominação na psique das dominadas, que incorporam acriticamente as categorias construídas pelos homens (BOURDIEU, 2014, p. 46).
Nesse sentido, é de se notar que o poder estigmatizante da mídia e das instituições informais de controle social não recai sobre as formas rotineiras de violência contra a mulher, cometidas no interior dos lares familiares. Enquanto a violência doméstica permanece minuciosamente negligenciada, o pânico midiático se direciona a infrequentes crimes atrozes que retiram o foco das formas mais representativas de violência (WACQUANT, 2007, p. 357). Coberturas sensacionalistas se aliam à exploração eleitoral da violência, gerando no público uma compaixão seletiva que, ao mesmo tempo em que se escandaliza com determinadas agressões de gênero, ignora e até estimula a maior parte delas.
Todavia, sendo a violência um símbolo cultural representativo da construção social do masculino, o mero enfoque na conduta individual danosa ou no sujeito que perpetrou a agressão é incapaz de perfazer qualquer mudança estrutural nas relações de dominação que estão na gênese da violência doméstica. Conforme Wacquant (2007, p. 361), a luta contra a violência não pode ser encarada como uma batalha moral entre o bem e o mal, personificados, respectivamente, nas figuras da vítima e do agressor. Tal retórica maniqueísta oculta as relações de poder que justificam e incitam a violência doméstica, mascarando o seu caráter de elemento constitutivo do sistema de organização social de gênero. Consequentemente, é através de processos de socialização que geram e delimitam as subjetividades humanas que o sistema sexo-gênero constrói culturalmente a masculinidade, encontrando na violência o seu eixo norteador.
2 A INEFICÁCIA DA PUNIÇÃO
Sabendo que o patriarcado se mantém e se reproduz por meio de instituições que operam a partir da transmissão das desigualdades entre os gêneros, percebe-se que a dominação patriarcal estrutura o próprio controle social formal, convalidando a alegada inferioridade feminina (MENDES, 2014, p. 88). Assim, o sistema de justiça penal não só contribui para a manutenção da organização social de gênero, como reproduz os mecanismos de dominação que oprimem e subjugam as mulheres.
Sendo expressão de um sistema capitalista e racista que criminaliza seletiva e desigualmente a juventude negra e pobre, o cárcere é, também, resultado de um sistema patriarcal que se fundamenta no domínio do homem sobre a mulher através do recurso à violência. Construída no cerne do controle social difuso da família e da moralidade, a violência generificada é posteriormente institucionalizada e promovida pelo Estado. Ela simboliza as relações sociais entre os sexos e aquilo que se entende por masculino, atravessando transversalmente os métodos punitivos contemporâneos (MENDES, 2014, p. 92).
O viés criminalizante e punitivista, ao centrar-se na violência individual, corporifica, no agressor, a própria estrutura patriarcal que rege as relações de gênero, revigorando os ideais de prevenção do crime e ressocialização do criminoso. Desconsidera, então, que os processos de criminalização e vitimização1 estão umbilicalmente atrelados ao poder de definição pertencente a específicos grupos sociais, cujos interesses são protegidos pela legislação penal em contraposição aos interesses dos indivíduos criminalizados e das próprias vítimas do delito, que são rotuladas e estigmatizadas pela violência institucional do direito repressivo (BARATTA, 2011, p. 118-119).
O recurso à punição é alimentado pela crença de que a pena efetivamente cumpre as funções oficialmente atribuídas a ela. Nessa perspectiva, a pena não apenas promoveria a reprovabilidade da conduta desviada, mas teria o condão de expiar o "pecado" cometido pelo delinquente, com o intuito de purificá-lo. Além disso, tal reprovação atuaria como uma consumação social da pena, objetivando vingar as vítimas diretas do crime e a sociedade de maneira geral. A pena, nesse contexto, pretenderia prevenir a reincidência, isto é, a ocorrência de novas condutas criminalizadas. Buscaria, portanto, neutralizar o criminoso, porque a segregação de sua liberdade o impediria, a priori, de cometer novos delitos. Tal prevenção também se traveste de um suposto caráter ressocializador e reeducativo, cujo norte estaria em educar o aprisionado de modo a convencê-lo de que cometera um pecado ou uma anormalidade e que não poderia mais fazê-lo a partir de então (SANTOS, 2010, p. 421-425).
Por fim, a pena preveniria não somente o criminoso propriamente dito, considerado sob o ponto de vista individual, mas intimidaria o restante da sociedade a não cometer condutas desviantes, tendo em vista que a certeza da punição teoricamente a inibiria a não delinquir. A pena, ainda, reafirmaria a norma violada e o próprio direito contrariado, uma vez que a conduta desviante teria afrontado a ordem jurídica e os interesses que a promovem, de maneira que a punição revalidaria tais normas e a certeza da obrigatoriedade de sua observância (SANTOS, 2010, p. 426-428).
Contudo, as supostas finalidades da pena criminal se caracterizam por uma trajetória de profunda ineficácia, pois a reprimenda corporal, além de dificilmente lograr êxito na tarefa de ressocializar o encarcerado, é pautada num regime de excessiva desigualdade e seletividade. Por conseguinte, como bem aduz Andrade (2015, p. 291-294), mais do que ineficaz, a pena e o próprio direito penal apresentam funções reais de eficácia invertida em relação às suas funções declaradas. Isso significa que o projeto penal não só descumpre suas promessas, mas faz exatamente o contrário. Desse forma, percebe-se que as funções enunciadas não passam de idealismo normativo irrealizado na prática e nela substituído por funções latentes opostas. A ideologia satisfaz, no entanto, o objetivo legitimador do discurso aparente do sistema de justiça penal, essencial ao seu funcionamento e inerente à sua estrutura, já que, por trás da contradição entre as suas funções declaradas e aquelas efetivamente cumpridas, está o intuito real de conservar e reproduzir as desigualdades que lhe estruturam.
Nesse diapasão, o programa ideológico imanente à normatividade penal e a sua constante violação no plano prático seguem uma lógica de cunho estrutural e apresentam uma eficácia simbólica de legitimação e sustentação do sistema que está em sua fundação. Essa lógica invertida demonstra a seletividade do sistema formal e a sua extensão repressiva, representada pelo controle social difuso. A clara afronta que a sua eficácia real faz ao princípio da igualdade, não incriminando condutas de forma igualitária e perpetuando relações de dominação social, promove não apenas injustiça e desigualdade, mas insegurança jurídica e ainda mais violência.
Ademais, os processos de criminalização são seletivos, direcionando-se aos indivíduos subalternizados por sua classe e raça. A própria catalogação das condutas definidas como crime já demonstra a seletividade do sistema, porque direcionada aos grupos sociais mais vulneráveis. Na sequência da definição de quais comportamentos são ofensivos aos bens jurídicos elencados como essenciais, encontra-se a escolha concreta dos indivíduos que serão, efetivamente, criminalizados entre todas as pessoas que, por ventura, praticarem aqueles comportamentos. De acordo com Andrade (2015, p. 277-278), os "não conteúdos" do direito penal também revelam que a eleição de bens jurídicos pelo legislador atende a interesses que podem não ser tão importantes para todos, deixando de fora outros interesses que, para determinados grupos sociais, são fundamentais e necessitam de proteção estatal.
Porém, a denúncia da falseabilidade do projeto penal pelo discurso criminológico crítico não foi suficiente para reduzir a demanda pelo cárcere, sendo incorporada pelos movimentos feministas, que corriqueiramente clamam por intervenção penal. O pleito pela ampliação do rigor das penas e pelo aumento do rol de delitos elencados nos códigos repressivos sustenta a ideologia penal dominante e ignora a função criminogênica do cárcere e a singular ineficácia do sistema penal no que diz respeito à proteção das mulheres contra a violência (ANDRADE, 2012, p. 131).
Visto que o sistema penal não previne novas situações de violência, não atende aos particulares interesses das vítimas - que, muitas vezes, não desejam o encarceramento de seu agressor, mas somente encontrar uma forma de fazer cessar a violência - e, inclusive, agrava a dominação masculina nas relações de gênero - considerando que é um sistema masculinizado, composto por homens e que, historicamente, já se voltou contra as mulheres 2 -, a demanda punitiva se revela absolutamente estéril para a proteção da mulher. Dessa maneira, além de não proteger a vítima já violentada pelo crime ao não cumprir os objetivos que declara, acaba submetendo-a a uma nova agressão, multiplicando a violência exercida contra ela ao desmoralizá-la, desacreditá-la e culpabilizá-la, sujeitando-a à violência institucional do aparato punitivo. O sistema de repressão penal não age unicamente sobre os acusados e encarcerados, mas também estende a sua cultura de estereotipia para as vítimas dos delitos (ANDRADE, 2012, p. 131-132).
Ademais, levando em conta as precárias e cruéis condições dos cárceres brasileiros, chega a ser falacioso e desonesto afirmar que o método punitivo, fator de reprodução criminógena, é a única forma capaz de administrar a violência. É, pois, profundamente inconsequente e irresponsável pleitear o aprisionamento de ainda mais pessoas num ambiente repressivo tão desumano e hostil, a não ser que se conceba o sistema penal como mera institucionalização das vinganças privadas e do regozijo com a dor do outro.
Logo, considerando que o sistema penal não cumpre os objetivos a que se propõe, o apelo ao cárcere se revela insensato e inócuo, porquanto o enclausuramento do agressor acaba por gerar mais violência. Nessa senda, é preciso construir espaços não punitivos, nos quais as consequências da agressão possam ser repensadas e reavaliadas pelas partes envolvidas. A justiça restaurativa se apresenta como uma possibilidade para essa reflexão, tomando como base um paradigma não punitivo alternativo à judicialização dos conflitos e, por sua vez, à violência da prisão.
3 POR UM PARADIGMA NÃO PUNITIVO
A justiça restaurativa surge como opção ao modelo formal punitivo, em resposta à crise de legitimidade que atinge o sistema penal. Mais do que uma teoria ainda em construção, tem se caracterizado como um conjunto de práticas em busca de uma consolidação teórica. Howard Zehr (2012, p. 48) questiona a necessidade e a utilidade de uma definição demarcada do tema, em razão do risco de cristalização dos seus conceitos e de engessamento do seu aprimoramento teórico.
Não obstante, o autor sugere uma definição para fins operacionais, entendendo a justiça restaurativa como um processo que envolve, na medida do possível, todas as partes integrantes de um determinado fato ofensivo. Esse processo é identificado de forma coletiva e tem o condão de tratar os danos, as necessidades e as obrigações resultantes da ofensa, promovendo o restabelecimento dos elos interpessoais rompidos pelo conflito (ZEHR, 2012, p. 49).
Entretanto, a divulgação do paradigma restaurativo e a sua integração ao sistema de justiça formal fizeram surgir um senso comum equivocado acerca de seus atributos, que enxerga as práticas restaurativas como demasiado utópicas e fantasiosas, o que lhes retira a credibilidade. Zehr explica, desse modo, o que não é a justiça restaurativa:
A justiça restaurativa não tem como objeto principal o perdão ou a reconciliação; não é mediação; não tem por objetivo principal reduzir a reincidência ou as ofensas em série; não é um programa ou projeto específico; não foi concebida para ser aplicada a ofensas comparativamente menores ou ofensores primários; [...] não é uma panaceia, nem necessariamente um substituto para o processo penal; não é, necessariamente, uma alternativa ao aprisionamento; não se contrapõe, necessariamente, à justiça retributiva (ZEHR, 2012, p. 18-23).
E apresenta dez valores mínimos a serem respeitados para que se considere um procedimento como sendo restaurativo:
1. Foco nos danos causados pelo crime ao invés de focar nas leis que foram infringidas. 2. Ter igual preocupação com vítimas e ofensores, envolvendo ambos no processo de fazer justiça. 3. Trabalhar pela recuperação das vítimas, empoderando-as e atendendo às necessidades que elas manifestam. 4. Apoiar os ofensores e ao mesmo tempo encorajá-los a compreender, aceitar e cumprir suas obrigações. 5. Reconhecer que, embora difíceis, as obrigações do ofensor não devem ser impostas como castigo, e precisam ser exequíveis. 6. Oferecer oportunidades de diálogo, direto ou indireto, entre vítima e ofensor, conforme parecer adequado à situação. 7. Encontrar um modo significativo para envolver a comunidade e tratar as causas comunitárias do crime. 8. Estimular a colaboração e reintegração das vítimas e ofensores, ao invés de impor coerção e isolamento. 9. Dar atenção às conseqüências não intencionais e indesejadas das ações e programas de Justiça Restaurativa. 10. Mostrar respeito por todas as partes envolvidas: vítimas, ofensores e colegas da área jurídica (ZEHR, 2012, p. 52).
Nesse sentido, as práticas restaurativas se estruturam sobre três pilares: o foco no dano cometido, surgindo uma preocupação inerente com as necessidades da vítima e seu papel no processo, sem olvidar a repercussão do dano na vida do ofensor e da comunidade; a consciência de que males ou danos resultam em obrigações, devendo o ofensor ser estimulado a compreender o dano que causou; e, enfim, a promoção de engajamento ou de participação, sugerindo que vítimas, ofensores e membros da comunidade desempenhem papeis significativos no processo (ZEHR, 2012, p. 36).
Os círculos de diálogo são práticas restaurativas que oportunizam às partes envolvidas falar com o outro e ouvi-lo, a fim de que o elo rompido pela agressão possa ser resgatado por meio da comunicação. Quando as partes adentram num círculo, devem ser tratadas como seres multidimensionais, deixando de lado a estereotipia do autor e vítima para que possam ser lidos como esposas e esposos, mães e pais, filhas e filhos. Ademais, os círculos restaurativos possuem como princípios a participação voluntária, o respeito à diferença, a confidencialidade e a segurança. São espaços nos quais os participantes se sentem seguros para compartilhar suas histórias e são ouvidos respeitosamente.
Uma das iniciativas sociais implementadas a partir da década de 1970 e que pode ser identificada como um processo restaurativo foi o surgimento de grupos de defesa dos direitos das vítimas. Esses grupos se iniciaram, inclusive, a partir das lutas dos movimentos feministas, os quais defendiam a necessidade de maior atenção do sistema de justiça às mulheres vítimas de violência, ressaltando a importância de se restituir o dano, a necessidade de qualificar a participação das vítimas nos processos judiciais e de aumentar a segurança nas comunidades (ACHUTTI, 2014, p. 55).
É importante salientar que a violência doméstica se manifesta no espaço privado de intimidade entre vítima e ofensor, frequentemente permeado por laços de afeto que ocultam as relações generificadas de poder. Nesse contexto, é corriqueiro que as mulheres vítimas das agressões se recusem a noticiar a ocorrência do crime e até mesmo a abandonar o relacionamento violento em virtude de fatores como medo, dependência financeira e submissão, mas também em razão do afeto que ainda creem existir. Considerando os princípios, valores e diretrizes da justiça restaurativa, esta se apresenta como uma alternativa viável ao enfrentamento das questões que atravessam a violência doméstica, porque mais branda do que o aprisionamento - dado que autoriza acordos que não incluam a prisão, em atenção à vontade de grande parte das vítimas, que não desejam ver seu agressor aprisionado -, mas ao mesmo tempo mais intensa e profunda do que ele, porque busca nas emoções a resolução do conflito.
Enquanto o sistema de justiça criminal está centrado no autor do crime e na aplicação da pena, a justiça restaurativa se preocupa com os sentimentos e com as necessidades de todos os envolvidos, inclusive da comunidade3 , conferindo-lhes protagonismo durante o processo por se caracterizar como um espaço democrático de diálogo. A justiça restaurativa permite que a vítima 4 conheça os motivos que levaram o agressor a perpetrar o dano, outorgando-lhe a prerrogativa de interferir no processo de resolução do conflito, atendendo à sua carência de informações e lhe permitindo reaver a autonomia que a agressão lhe retirou. A vítima assume o papel de protagonista do procedimento restaurativo, pois tem os espaços de fala e de escuta resgatados. Assim, ao retomar o conflito para si, tem a possibilidade de se empoderar.
Ressalta-se a importância da participação das mulheres vítimas de violência nas práticas restaurativas, que, por desenvolverem um espaço de acolhimento, permitem que a mulher agredida possa efetivamente falar e refletir sobre a sua dor e perceber que não é responsável pela agressão. Evidencia-se, com isso, a necessidade de entender o contexto de dominação em que a violência contra as mulheres ocorre, bem como a existência de disparidades de poder nas relações de gênero. Sem reforçar a culpabilização da mulher, tampouco multiplicar a sua vitimização, a justiça restaurativa rejeita o modelo adversarial que constrange, humilha e amedronta, entendendo que cada vítima vivenciará singularmente a sua dor, devendo ser acolhida e compreendida em sua particular experiência de violência.
No tocante ao ofensor, a justiça restaurativa permite a sua reincorporação à vida comunitária, por meio do cumprimento dos compromissos acordados nos círculos restaurativos. Estimulando o reconhecimento espontâneo da responsabilidade do ofensor, essa medida incentiva a reparação da ofensa. Além disso, a partir do diálogo com a vítima, quando possível, o ofensor pode descobrir emoções e sentimentos de empatia, o conhecimento dos impactos de seus atos e, até mesmo, seu autoconhecimento.
Estando o agressor inserido numa estrutura patriarcal e androcêntrica que o induz a reproduzir os comportamentos sexistas e misóginos que lhe são lecionados desde a tenra idade, as práticas restaurativas devem ser pensadas como um caminho para a transformação das relações de gênero. Ao refletir sobre a violência perpetrada, o agressor tem a oportunidade de perceber que a destrutividade de sua conduta se volta não só para a vítima, mas para ele próprio, que, se encarcerado, tornar-se-á vulnerável a um sistema penal genocida e estigmatizante.
Já a comunidade tem o papel de apoiar e facilitar o processo restaurativo e as decisões tomadas pelos envolvidos, resgatando, com isso, o seu lugar de fala, hoje ocupado pelo Estado. Ela detém o ônus de se responsabilizar, juntamente com o poder público, pela construção de respostas adequadas ao conflito, pela transformação das condições sociais que colaboram para o comportamento do ofensor, por sua inclusão social e pelo fomento de políticas públicas (TIVERON, 2014, p. 339-342).
Nessa perspectiva, a justiça restaurativa traz os envolvidos ao centro do processo, oferecendo-lhes autonomia para expor seus sentimentos e necessidades, bem como a possibilidade de fala e escuta, por meio de um diálogo equilibrado. Diante dessa situação, os participantes deverão construir, conjuntamente, a melhor forma de reparação dos danos causados, sempre acompanhados por um facilitador que irá orientar a participação das partes no processo.
A justiça restaurativa tem foco na restauração das relações intersubjetivas e comunitárias afetadas pelo crime, na solução do conflito, na reparação do dano e dos traumas, na satisfação das partes – vítimas, infrator e comunidade –, as quais transforma em protagonistas do procedimento decisório, 'devolvendo-lhes o conflito' que o sistema penal tradicional 'confiscou' nas mãos do Estado: o conflito não pertence ao Estado nem ao sistema penal ou seus operadores, mas às partes. Este elemento participativo e democrático é considerado a pedra de toque do modelo (ANDRADE, 2012, p. 335-336).
Além disso, os núcleos de justiça restaurativa devem atuar em conjunto com a rede social de assistência, com apoio dos órgãos estatais, das organizações não governamentais e da comunidade, visando ao encaminhamento dos envolvidos aos programas indicados no plano resultante do acordo restaurativo, a fim de viabilizar seu cumprimento.
Outrossim, salienta-se a importância de trabalhar as práticas restaurativas nas comunidades, tendo em vista que os núcleos comunitários devem ser implementados com comprometimento e participação dos sujeitos. Por isso a relevância da percepção da autonomia e do empoderamento das partes, que, juntamente com o poder local, têm a prerrogativa de propor alternativas para o enfrentamento da violência.
A justiça restaurativa não pode ser imposta aos envolvidos, uma vez que se trata de uma ferramenta posta à sua disposição, cuja participação é sempre voluntária e a aceitação pode ser revogada a qualquer momento, sem qualquer prejuízo, pois é garantido o retorno aos meios ordinários de jurisdição. Todavia, sabe-se que os espaços ocupados pelo sistema de justiça não são democráticos, mas autoritários e coercitivos. As mulheres vítimas de violência doméstica frequentemente não são ouvidas nesses locais, mas desmoralizadas e violentadas. Por conseguinte, a intervenção estatal pode acabar por descaracterizar o paradigma restaurativo, devendo ocorrer apenas de forma construtiva, respeitando os princípios, as características, e o lugar de fala da justiça restaurativa. Atuando dessa forma, o Estado contribuirá com as práticas restaurativas, sem reproduzir seu autoritarismo, tornando-se um auxiliador da resolução multifacetária do conflito (SALM; LEAL, 2012, p. 221-222).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A organização social de gênero relega os corpos femininos ao âmbito privado, custodiando-os na intimidade do lar e controlando-os através do recurso à violência, que passa a simbolizar a própria definição culturalmente atribuída ao "eu" masculino. A dominação do homem anda, então, ao lado da crença na inferioridade da mulher, que vê o seu testemunho ser desvalorizado e mesmo desconsiderado quando procura se libertar das amarras do patriarcado. Destarte, a estruturação do poder na esfera privada está adstrita à organização de gênero e à violência enquanto instrumento de articulação do poder.
Contudo, as agressões e desigualdades do âmbito privado são projetadas no horizonte do controle social formal. Isso significa que o sistema estatal reproduz, ainda que singularmente, a estrutura patriarcal que desmoraliza, humilha e culpabiliza a mulher pela violência sofrida. Atuando através de processos seletivos de criminalização e vitimização, o sistema de justiça penal rotula e estigmatiza as camadas mais vulneráveis da sociedade, encarcerando e vitimizando em função da classe, da raça e também do gênero. Portanto, o controle social formal se alimenta intrinsecamente dos mecanismos de controle difuso presentes nos redutos familiares, perpetuando a subordinação feminina através da sua institucionalização.
O sistema de controle penal se revela produtor e legitimador das relações de dominação de gênero que convalidam as subjetividades e identidades violentas por ele próprio criadas e sustentadas. No entanto, os movimentos feministas permanecem recorrendo ao sistema penal e clamam pela juridicização das relações de violência, centrando-se na conduta individual de agressão e na figura subjetiva do ofensor, reforçando e legitimando o poder punitivo e as suas estereotipias.
Porém, ao se admitir a truculência da punição e a impotência de suas finalidades, é preciso formular alternativas não penalistas à problemática das violências de gênero. Em oposição à apelação indiscriminada ao paradigma punitivo, buscou-se nas práticas da justiça restaurativa uma resposta à violência generificada, a fim de compensar o histórico déficit na proteção das mulheres e, ao mesmo tempo, reduzir a amplitude do direito penal.
Repensando a resposta punitiva, a justiça restaurativa se apresenta como um paradigma do encontro, em oposição ao modelo adversarial do atual sistema de justiça, reprodutor de violências e rompimentos. Ao construir espaços que oportunizam a fala e a escuta empática, ela proporciona aos envolvidos a possibilidade de dialogar a respeito de seus sentimentos e de suas necessidades.
Pautando-se na multidimensionalidade do ser humano, na alteridade e no reconhecimento do outro, a justiça restaurativa não almeja ter o domínio do poder, da fala e de dizer o direito, mas é construída dentro da comunidade, horizontalmente, por pessoas e para pessoas, centrando-se no diálogo, no empoderamento e no respeito entre os envolvidos no conflito. É um convite à reflexão, à simplicidade, alteridade e empatia, capaz de resgatar e desvelar a humanidade fraturada pela violência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ZEHR, Howard. Justiça restaurativa. São Paulo: Palas Athena, 2012.
* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Graduada em Direito pela UFSC. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: camila_damasceno17@hotmail.com. Currículo: http://lattes.cnpq.br/5917338636063851.
** Mestranda do PPGD/UFSC. Especialista em Direito Processual Civil pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina (CESUSC). Graduada em Direito pela UFSC. E-mail: julobocamargo@gmail.com. Currículo: http://lattes.cnpq.br/6349710355418792.
1 Do mesmo modo que os criminalizados são selecionados no interior dos estratos sociais subalternos e das minorias étnico-raciais, o sistema penal também escolhe quem pode efetivamente ser tido como vítima de um crime. Nos casos de violência sexual, apenas a mulher "honesta" é lida como vítima, ao passo em que a prostituta tem seu testemunho desconsiderado e é, ainda, culpabilizada pela violência sofrida. Inobstante, quando a mulher "respeitável" é violentada na intimidade do lar, pelo marido, a seletividade atua igualmente sobre ela, excluindo-a do rol de vítimas. Assim, os processos de vitimização caminham paralelamente aos processos de criminalização: a mulher "honesta" é vítima quando violentada por um desconhecido homem negro periférico, mas não é vítima de seu marido branco; se casada com um negro, ainda que da mesma classe social, pode novamente ser vitimada.
2 Desde o período inquisitorial, com a redação do Malleus Maleficarum, até as políticas de higienização do século XIX, as mulheres foram perseguidas pelo sistema penal, que as enxergava como naturalmente pérfidas, maliciosas e predispostas ao crime. Perderam, posteriormente, o protagonismo nas análises criminológicas, mas até hoje permanecem custodiadas e controladas pelos processos de vitimização (MENDES, 2014).
3 A justiça restaurativa tem se focado nas “comunidades de cuidado” ou microcomunidades que, mesmo quando diretamente afetadas pela ofensa, são negligenciadas pelo sistema de justiça. Comunidade seriam, portanto, todos aqueles envolvidos no conflito que não possam ser caracterizados como partes imediatas, havendo questões que envolvem, inclusive, a sociedade como um todo, tais como segurança pública, direitos humanos e o bem-estar de seus membros (ZEHR, 2012, p. 39).
4 Salienta-se que a vítima não se confunde com o sujeito passivo da infração, pois, embora uma pessoa sofra a ofensa, várias outras podem ser afetadas pelo fato danoso, a exemplo dos filhos da mulher agredida. Por isso, inclui-se no conceito de vítima não apenas aquela pessoa diretamente atingida pelo crime, mas todas aquelas que foram tocadas por ele de alguma forma.
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