Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


RITOS DA ORALIDADE PENTECOSTAL
Reflexões sobre práticas litúrgicas e sentidos narrativos da história oral testemunhal

Autores e infomación del artículo

Leandro Seawright Alonso*
Universidade de São Paulo, Brasil

Fagno da Silva Soares **
Universidade Federal Fluminense, Brasil

leandroneho@gmail.br

Resumo: Consideramos os ritos da oralidade pentecostal como sustentadores dos sentidos narrativos que vinculam a Palavra às práticas litúrgicas. Concomitantemente, os imaginários religiosos pentecostais são organizados pela lógica dos mitos em suas narrativas. Podemos analisar a história oral testemunhal considerando as palavras: conversão e testemunho. Avaliamos a possibilidade de fazer entrevistas convencionais de história oral.

Palavras-chave: História oral testemunhal, história, mito.
Abstract: We consider the rites of pentecostal orality as supporters of the senses narrative linking the word to liturgical practices. Meanwhile, the pentecostal religious imaginary are organized by the logic of myths in their narratives. We can analyze the testimonial oral history considering the words: conversion and testimony. We evaluated the possibility of conventional oral history interviews.

Keywords: oral testimonial history, history, myth.



Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Leandro Seawright Alonso y Fagno da Silva Soares (2016): “Ritos da oralidade pentecostal. Reflexões sobre práticas litúrgicas e sentidos narrativos da história oral testemunhal”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (abril-junio 2016). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/02/ritos.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/CCCSS-2016-02-ritos


INTRODUÇÃO

O protestantismo pentecostal, desde suas origens, fundamentou-se nas narrativas do homo religiosus estabelecendo seu principal meio de comunicação das experiências sagradas. Sabemos, contudo, que grande parte das pesquisas acadêmicas sobre o pentecostalismo brasileiro restringiu-se à documentação estritamente textual. Consideramos, no entanto, que a história oral é uma importante alternativa disciplinar para as pesquisas sobre o pentecostalismo. 1 Nisto reside a nossa hipótese de trabalho, a saber, em se estudar as narrativas pentecostais por meio de entrevistas de história oral como produtora de ‘documentação viva’ na busca pelas narrativas testemunhais. Não obstante, a Palavra ritualizada pela narrativa torna-se ‘fonte de estudos’ sobre as místicas religiosas pentecostais como proposta pentecostal ao problema do trauma.
ORALIDADE PENTECOSTAL
O λόγος (palavra) divino – transcrito na Bíblia Sagrada – foi traduzido para as línguas vernáculas europeias e, com a invenção da imprensa, materializou-se no papel escrito. Com base sólida no ‘papel do escrito’, tornou-se, por isso, acessível aos leitores europeus em um processo moderno de letramento e de distanciamento em ‘longa duração’ da ‘substância medieval’. No ambiente tensivo, entre católicos e protestantes, na transição para o moderno, os escritos bíblicos foram difundidos entre as pessoas comuns do universo letrado durante o Século XVI. A Bíblia, traduzida do hebraico e do grego para o latim, assim como do latim para as línguas modernas, ficou inteiramente acessível às inovações negociadas no modus vivendi do povo letrado. Além da Bíblia, outros documentos escritos pelos protestantes, tais como as 95 teses de Martinho Lutero, foram impressos e distribuidos para as pessoas comuns da Alemanha, da Suíça e dos demais países europeus.2
Sacramentaram-se, portanto, os princípios educaioncais escriturísticos como alternativas protestantes para recondução dos religiosos às ‘experiências salvacionistas’ pictoricamente semelhantes às da Igreja Primitiva das páginas do Novo Testamento. No âmbito reformado, revalorizou-se a autoridade escriturística como axioma primordial dogmático dos mitos de origens neotestamentárias. Por isso, o “crente, individualmente, seria agora seu próprio sacerdote e o mentor de sua própria vida religiosa em comunhão com Deus, depois de aceitar Seu Filho como seu Salvador, pela fé somente” – como preconizou Earle E. Cairns (CAIRNS, 1995, p. 223).
Basicamente, dos cinco princípios teológicos reformados, destacou-se Sola Scriptura como fundamento para os demais. Os outros quatro princípios – Solo Christus, Sola Gratia, Sola Fide e Solo Deo Gloria – resultaram do embasamento escriturístico preponderante da Reforma Protestante. Disse Hegel que “com a Reforma os protestantes fizeram sua revolução” (apud. BONI, 2000, p. 7). Acrescentamos apenas mais uma palavra à frase: com a Reforma os protestantes fizeram sua revolução textual. Inscreverem-se nas tramas vivenciais a partir da leitura dos textos bíblicos ao mesmo tempo em que suas “texturas experienciais” atravessaram profundas modificações de “longo alcance” na mentalidade, na prática e nas “operações religiosas” modernas.
Concomitantemente, a tradição textual – na perspectiva protestante – assegurava o direito das pessoas à salvação do espírito. Por isso, o conhecimento letrado se tornou desejável para capacitação na compreensão da Bíblia como palavra de Deus. João Calvino, com essa convicção teológica, inaugurou as primeiras escolas públicas em Genebra, no ano de 1536 (CARVALHO, 2000, p. 17). Decorreu disso que temas acerca da educação salvacionista se tornaram interesses nacionais na Suíça. Porque a Bíblia foi passada às mãos do povo que deveria lê-la com autonomia para fundamentar novas interpretações.
Na objetividade dos escritos bíblicos estava presente certa tendência subjetiva do sacerdócio universal dos crentes no invólucro hermenêutico da palavra. Logicamente, os leitores das escrituras poderiam interpretá-las segundos seus próprios crivos intelectuais regidos pelas convergências ou divergências teológicas protestantes. Derivou-se, daí, determinada “disposição cismática”, multiplicadora, no interior do protestantismo histórico. Mantiveram-se os núcleos resistentes escriturísticos, mas as identidades protestantes foram negociadas segundo os diferentes contextos teológicos, históricos, geográficos e culturais. Sublinhamos, contudo, que as igrejas – luteranas calvinistas e reformadas – surgiram como vertentes baseadas no “princípio de subjetividade” interpretativa (HEGEL, 2001, p. 458). Originou-se a ‘tendência cismática’, divergente e multiplicadora, do protestantismo histórico 3.
Consideramos que, dessemelhante do protestantismo histórico, o pentecostalismo priorizou as “verbalizações das experiências religiosas” nos testemunhos de vidas, de obras e de grandes proezas dos mundos fantásticos. Na Reforma Protestante a Bíblia “desceu dos altares e ficou nas mãos do povo”, porém no pentecostalismo do Espírito as escrituras cristãs foram depreendidas como “complexas e de difícil entendimento”. As pessoas ordinárias tementes comumente dizem: “a Bíblia é um livro muito difícil”. Reforçamos, entretanto, que para os protestantes pentecostais a Bíblia também é considerada como Palavra de Deus. Mais, no protestantismo do Espírito “a Bíblia tem apenas um lugar diminuído” que, ao mesmo tempo, desloca-o da textualidade à oralidade porque “não é mais livresco” (GODOY; NAJARÍ, 2004 p. 55).
As práticas do pentecostalismo não estão embasadas na ‘mediação do papel impresso’, mas na oralidade como hábito religioso fundamental. Instaura-se, portanto, a oralidade pentecostal em substituição da ‘textualidade exclusiva’ dos protestantes históricos. Trata-se, assim, de um processo histórico de maior duração entre a imprensa dos dias de Lutero e os púlpitos das igrejas locais, até às modernas mídias radiofônicas e televisivas da sociedade contemporânea brasileira. A oralidade religiosa, no entanto, é prática corriqueira comum no dia-a-dia do pentecostal, pois os feitos maravilhosos do Espírito Santo são testemunhados constantemente por orientação dos pastores e líderes das comunidades locais.
Durante seus cultos, os pentecostais tomam parte da oralidade na subjetividade envolvente das experiências religiosas. Muitas manifestações litúrgicas são demonstradas por expressões corporais e, no ‘corpo pentecostal’, falado, estão as possessões do Espírito em oposição do Diabo. Os murmúrios, resmungos, gritos ou gemidos baixinhos, bem como as expressões proféticas testemunhais, são características do pentecostal possuído pelo Espírito Santo. Semelhantemente, os pentecostais batizados no Espírito Santo falam línguas angelicais que (des)abrigam significados semânticos, coesão e coerência para “aquele abençoado” que tem dons de interpretação de línguas. C. Williams descreve as línguas dos anjos, ou línguas de mistérios, como resmungos, gemidos, sons incompreensíveis, sons fabricados com fragmentos de palavras, misturas de fonemas estrangeiros e indígenas, falas em línguas estrangeiras (WILLIAMS, 1970).
Daí, a glossolalia, língua(s) estranha(s), é percebida por meio de expressão verbal aparentemente ininteligível, mas – tomando parte de toda a narrativa pentecostal – os símbolos linguísticos idiomáticos podem conferir-lhe sentido. É por isso que o pentecostal, depois do batismo com o Espírito Santo, torna-se falante de, ao menos, duas importantes línguas intercambiáveis, a saber: seu idioma e, respectivamente, o idioma dos anjos invocados/avocados diante dos mistérios espirituais.
Sobrenaturalmente, um pentecostal – segundo sua crença – pode irromper seu discurso piedoso com outros idiomas que nunca tenha estudado anteriormente. Por exemplo, um pentecostal falante da língua portuguesa pode falar qualquer outra língua se a divindade quiser se revelar para os ouvintes estrangeiros, segundo suas crenças. Este último fenômeno, distinto da glossolalia, é denominado tecnicamente de xenoglossia – como fenômeno espiritual miraculosamente possível ao crente pentecostal.
Há, portanto, uma entrega do crente pentecostal à divindade possuidora na mesma medida em que a divindade, com todos os seres angelicais, significa os símbolos linguísticos da glossolalia ou da xenoglossia. Os mirabolantes feitos narrativos da divindade estão explícitos ou implícitos, entre dizíveis e indizíveis, nos meandros litúrgicos dos cultos religiosos extraordinários. Por conseguinte, os corpos dos crentes pentecostais permanecem em estado de transe e de êxtase que se expressa nas orações, nas narrações de visões extramundanas e nos sinais referidos por meio das prédicas.
É certo que, nos tombos durante as possessões, os “corpos pentecostais” são abolidos para tornarem-se linguagem repleta de significados e de significantes. Depois da abolição, os corpos pentecostais entram em “terapia de cura divina”, mas o Espírito encontra novamente seu lugar na subjetividade humana para ser novamente falado nos testemunhos dos crédulos. Os testemunhos dos fiéis podem ser realizados por meio da Palavra falada ou da Palavra cantada. Natanael Francisco de Souza situou as diferentes fases da música evangélica no Brasil, porém a indústria gospel se fortaleceu ao valorizar as experiências religiosas fantásticas dos pentecostais (SOUZA, 2008). A cantora gospel Elaine de Jesus canta:
Sinto grande emoção/Ao ver os irmãos cantando na igreja/ Os anjos passam entre nós/ Em uma só voz cantam glória a Deus/Um mistério glorioso envolve este povo numa brisa suave/E afasta todo mal/ É um grande sinal que Deus está aqui/ Deus vai tocar em você, Jesus Cristo vai te usar/ Fale em línguas estranhas, porque essa chama não pode apagar/ Canta, chora e profetiza/ Deixa o fogo te queimar/ Quanto mais o fogo queima/ Mais perto de Deus nós vamos ficar/ Sinto grande emoção/Ao ver os milagres acontecerem/ Mudo fala, surdo ouve, paralítico anda e o cego vê. (DE JESUS, 1996).
Salientamos, na canção acima, as descrições dos transes e dos êxtases vivenciados no campo da subjetividade pentecostal que vincula o crente ao sagrado. Parece não ser possível resistir ao Espírito Santo que quer batizar o “corpo pentecostal” para recodificá-lo sublimemente. Notamos, com isso, que Elaine de Jesus denota a subjetividade experimentada em meio à possessão narrativa do Espírito Santo. Cantar, chorar e profetizar – em meio aos anjos – é “um mistério glorioso que envolve este povo numa brisa suave” que conduz aos caminhos de milagres em que até o “mudo fala, o surdo ouve, o paralítico anda e o cego vê”. Por Palavra pregada, testemunhada ou cantada, os pentecostais são contadores de histórias fundadoras de tradições religiosas que legitimam as experiências trans humanas com o sagrado narrativo.
Concebemos, pois, que a oralidade é singular a todo ser humano saudável, embora desenvolvida em movimentos, culturas e tradições distintas. Qualquer ser humano, mesmo que não saudável, desenvolve linguagens que significam de formas distintas seus pensamentos. Para Walter Ong, existem dois conceitos importantes: “oralidade primária” e “oralidade secundária” (ONG, 1982). A oralidade primária, guardiã da pureza das sociedades ágrafas, passou por processos de dissolução, porém foi negociada com o advento da escrita que denominamos, com Ong, de “tecnologia da escrita”. Essa negociação intensa produziu a intrincada oralidade secundária que se sustenta com base no núcleo textual conhecido pela sociedade moderna. Os resquícios de oralidade primária, com sua magia mística, apoiam suas relações com a complexa “tecnologia da escrita”. No caso pentecostal, as elaborações da oralidade resguardaram certa tradição oral moderna, mas seus pronunciamentos textuais foram apenas os inícios que impulsionaram experiências religiosas nas categorias ritualísticas da Palavra. Desse modo, o pentecostalismo se inscreve no universo da oralidade secundária, mas resguarda resquícios distantes da oralidade primária.
Em outra perspectiva, a Bíblia é lida no começo das prédicas ou dos cultos, mas não é soberanamente decisiva nos processos hermenêuticos. Quer dizer, as letras sagradas não se sobrepõem ao ‘corpo pentecostal’ em experiência sobrenatural. Se no protestantismo histórico os textos são legitimadores das experiências subjetivas, no pentecostalismo do Espírito as experiências religiosas são legitimadoras das hermenêuticas textuais. Neste último caso, os textos são servos da Palavra. A Palavra reina. O Espírito possui.

MÍSTICA, ORALIDADE E RITUAL.
Da mítica grega à mística das sociedades tradicionais, até aos modernos mitos das sociedades letradas, estão os processos históricos de constantes atualizações dos imaginários religiosos das sociedades (BARTHES, 2003). Percebemos, na história das religiões, que os mitos adaptados às diferentes realidades atualizam os ideários religiosos repercutidos nas experiências dos crentes com seus deuses. Evidentemente, no caso do cristianismo não é diferente porque existem mitos de origens que são compartilhados por diferentes denominações na vigência da tradição oral nos moldes letrados da modernidade. 4 As mudanças sociais, entrementes, oferecem novos sentidos místicos às religiões por meio de adaptações das histórias fantásticas.
Dessa forma, as “mudanças sociais produzem, nos fiéis, modificações de idéias e de desejos tais que os obrigam a modificar as diversas partes de seu sistema religioso”. Essas alterações implicam em três decorrências básicas: a primeira se refere às modificações dos ‘fenômenos religiosos’; A segunda diz respeito à ‘posição do indivíduo no interior da sociedade’; Na terceira consideramos as modificações nos “sentimentos religiosos destes indivíduos” (JULIA, 1974, p. 106).
No pentecostalismo, não raras vezes, percebe-se que a imitatio dei é decorrente das modificações nas elucubrações místicas dos imaginários religiosos. Consideramos, com Mircea Eliade, que o mito “conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento que teve lugar no começo do Tempo, ab initio” (ELIADE, 1992, pp. 50 – 51). Além disso, os mitos representam, nas narrativas, as lutas por visões de mundo díspares ou não, por interpretações e por significações dos eventos experienciais relevantes. James Barr disse que
a mitologia não é uma manifestação periférica, nem um luxo, mas uma tentativa séria de integração de realidade e experiência, consideravelmente mais séria do que hoje chamamos casualmente de ‘filosofia de vida’. Seu objetivo é a totalidade do que é significativo para as necessidades humanas, materiais, intelectuais e religiosas. Possui, portanto, aspectos que correspondem a ciência, a lógica e à fé, e seria errado ver o mito como um substituto distorcido de qualquer uma destas. (BARR, 1959, p. 3).
Com isso, os mitos fundamentam os começos, os decursos e os fins escatológicos redentores. As coisas que acontecem durante os tempos – começo, meio, fim ou os movimentos cíclicos – são preenchidas por “atos heroicos” salvadores e, às vezes, politicamente messiânicos. Corriqueiramente, os tempos de “paz-paraíso” são substituídos por tempos “catastrófico-infernais” que, pelo chamado heroico de um homem, ou de um conjunto de pessoas, são alterados por tempos redimidos soteriologicamente5 . Os mitos são vinculados processualmente às narrativas redentoras do homo religiosus como “sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas” que se compõem em narrativa com impulsos bem articulados na oralidade (teo)lógica (DURAND, 2002, pp. 62 – 63).
Os ciclos persistentes da mística materializada no tempo podem resultar em novas catástrofes espirituais que desestruturam realidades pessoais ou coletivas. Subjaz nisto a busca do oralista pela memória coletiva dos pentecostais como vinculadora dos mitos estruturais às crenças messiânicas religiosas – que agrega pessoas em “escala ampliada” dos “laços sociais” como abalizado por Renato Ortiz (ORTIZ, 2001, pp. 65 – 66).
Mitos e Ritos são, respectivamente, “agentes estruturais” que servem “para conformar a ordem humana à celestial” e se constituem em um “mesocosmo” por meio do qual os religiosos sustentam relações com o “macrocosmo” (CAMPBELL, 1959, p. 149). No caso pentecostal, e em outros casos religiosos, concebe-se que o “mesocosmo” hierofânico se torna realidade apodítica: funda a verdade absoluta do imaginário às irrupções do sagrado no mundo em escala de modificações históricas.
Para Eliade, os religiosos dos modelos trans humanos só se conhecem quando imitam os deuses, para quem “o homem religioso não é dado: faz-se a si próprio ao aproximar-se dos modelos divinos. Estes modelos, como dissemos, são conservados pelos mitos, pelas histórias das gestas divinas” (ELIADE, 1992, p. 52).
Há, portanto, na imitatio dei, certos vieses comportamentais religiosos com expressões narrativas das suas experiências fantásticas. Cabe aos oralistas, então, buscar apreender os mitos fantásticos como caminhos possíveis à compreensão das suas narrativas nas entrevistas de história oral até o estabelecimento de textos. Podemos considerar que as integrações entre realidades com experiências míticas são partes imprescindíveis da memória religiosa, tanto nos êxtases e nos transes, quanto nas audições e nas visões, mas – principalmente – na ritualística da Palavra que transpassa os fiéis pentecostais.
Que é um rito? Campbell disse que um ritual é uma organização de símbolos mitológicos e, participando do drama do rito, o homem é colocado diretamente em contato com eles (CAMPBELL, 1959). Eliade, complementarmente, disse que rito é rememoração e conservação da experiência religiosa primordial porque “toda vida religiosa é comemoração” (ELIADE, 1992, p. 53). Se os mitos impulsionam os crentes aos ritos, são os ritos que remetem os devotos de volta aos mitos. Por conseguinte, os ritos resistentes organizam, sistematizam, rememoram e conservam as experiências religiosas que significam as próprias histórias religiosas.
O verbo divino ritualizado, ou a Palavra de Deus, passa necessariamente pela estruturação mística dos imaginários pentecostais. Consequente à estruturação mítica, ritualiza-se a Palavra nas liturgias dos cultos até a sua comunicação aos demais fiéis. Os crentes sentem, na ritualística da Palavra, os poderes fantásticos dos testemunhos, das pregações, das revelações, das profecias, das visões enunciadas, das glossolalias e das glossolalias interpretadas, bem como dos movimentos repetidos das canções extáticas.
Na subjetividade ritualizada é que os mitos se sustentam como organizadores lógicos das crenças e das visões de mundo dos crentes. Segundo Stanley Krippner e David Feinstein, os mitos são historias ou crenças organizadoras com princípios orientadores (KRIPPNER; FEINSTEIN, 1988). Os pentecostais, assim como os demais religiosos, não acreditam nos mitos porque são mentecaptos ou alheados, tampouco porque são isolados da realidade, mas porque – na estrutura das suas crenças – subjazem certos organizadores lógicos responsáveis por suas identidades e memórias.
Para Campbell, os mitos religiosos não são mentiras ou ilusões. São, ao contrário disto, organizações de “imagens e narrativas simbólicas, metáforas das possibilidades da experiência humana” e as realizações de “uma dada cultura num determinado tempo”. Além disso, os mitos possuem ‘função psicológica’ por meio da qual se pode “lidar com os vários estágios do nascimento à morte” (CAMPBELL, 2002, pp. 17 – 18; 96).
Ressaltamos, contudo, os equívocos dos críticos convencionais que consideram os mitos como crenças alucinadas, e alucinantes, produtoras de histórias mentirosas ou incoerentes. Não procuramos, numa pesquisa de história oral, as “exatidões históricas” ou os “testemunhos de verdades” e, ainda, de “realidades comprovadas e sim de visões, construções narrativas, idealizações, que são definidas na exposição dos fatos”. Interessa aos oralistas as falhas da memória, os desvios, os erros, as camuflagens, as distorções e as invenções. Disse Sebe Meihy, ademais, que “o respeito à empiria expressa no fazer do documento é o tesouro buscado pela história oral capaz de revelar a subjetividade contida nas variações do parâmetro dado pelo estabelecido como verdade” (MEIHY; HOLANDA, 2007, p. 124).
Cumpre-nos, portanto, fazer ressalvas à teologia de Rudolph Bultmann que propôs determinada desmitologização hermenêutica não somente do texto sagrado, mas também das experiências cristãs transmitidas oralmente às comunidades religiosas (BULTMANN, 2000)6 . Jacques Le Goff, ao contrário, demonstrou-nos – discorrendo sobre ‘Idade Mítica’ – a presença estruturada do imaginário místico fundamental nas tradições judaico-cristãs e nas culturas indígenas (LE GOFF, 2008, pp. 283 – 321). A “desmitologização” como hermenêutica histórica ou teológica, dessa forma, invoca a desventurada mania do julgamento como exorcizou Marc Bloch. Desde os Annales, Bloch disse que a questão “não é mais saber se Jesus foi crucificado, depois ressuscitado. O que agora se trata de compreender é como é possível que tantos homens ao nosso redor creiam na Crucificação e na Ressurreição.” (BLOCH, 2001, p. 58).
Não nos surpreende, todavia, que “tantos homens ao nosso redor creiam” na ressurreição de Jesus Cristo, mas que tantos acadêmicos ao nosso redor provoquem a ressurreição da antiga “mania do julgamento” acerca da veracidade dos relatos. Deve existir, e existe, certa lógica na estrutura mística que encaminha os ideários religiosos às figuras dos diversos modelos imagéticos de Jesus Cristo. Outrossim, os pentecostais acreditam no batismo com o Espírito Santo como habilitação para testemunhar profeticamente sobre as realidades espirituais ou sobre suas posições político-religiosas assim como no caso do pentecostalismo renovado no ambiente da Ditadura Militar no Brasil7 . Nesse sentido, sabemos, com Campbell, que a mitologia tem quatro funções importantes: a primeira é de esconjurar um sentimento de espanto ante aos mistérios traumáticos do ser; A segunda é de fazer cosmologias; Subsequentemente, a terceira se refere ao apoio, ou não, a uma ordem social vigente; Por fim, a quarta é conduzir as pessoas em direção ao seu enriquecimento e realização espiritual (CAMPBELL, 1959).
Por essas razões, os pentecostais, assim como os outros crentes, se estruturam miticamente, tanto no seu imaginário experiencial religioso, quanto na sua oralidade reproduzida pela ritualização do sagrado. Por isso, a oralidade pentecostal está preenchida com mitos – organizadores lógicos – das narrativas que completam os sentidos experienciais subjetivos da Palavra na condução do testemunho religioso.

HISTÓRIA ORAL TESTEMUNHAL

Entre os gêneros de história oral, tais como: história oral de vida, história oral temática e tradição oral, emerge outro conceito definido por Meihy como historia oral testemunhal. O gênero de história oral testemunhal está “ligado às questões traumáticas, marcadas por pessoas que vivem dramas em suas vidas ou relações” (FILHO; ROVAI, 2010) 8. Para entender sucintamente o gênero de história oral testemunhal, no caso pentecostal, consideramos três importantes expressões: trauma, conversão e testemunho.
Em primeiro lugar consideramos a expressão “τραύμα” (trauma), em sua raiz etimológica grega, como ferida, lesão ou machucado provocado pelos agentes dos mundos externos 9. Disto decorre que, em perspectiva histórica, os traumas podem ser marcados por eventos que machucam a memória coletiva nacional ou a memória de uma comunidade de destino específica, bem como a memória pessoal dos afetados por dramas experienciais com diferentes feições.
Discorrendo acerca dos “traumas no Brasil”, em sua entrevista para Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho e para Marta Gouveia de Oliveira Rovai, Meihy considera alguns exemplos relevantes:

temos 3 milhões de nordestinos em São Paulo, essa migração pode ser caracterizada como uma espécie de trauma, mas com feições próprias. Pela sutileza histórica, por não termos casos explícitos como o Holocausto, a qualificação do que é trauma nos é diferente, sutil, muito mais “histórico” e de “longa duração. (FILHO; ROVAI, 2010).
Complementarmente, Meihy disse que “estamos em fase de caracterização do que seria trauma no coletivo brasileiro”. Consideramos, assim, a importância do conceito de trauma histórico de “longa duração”, mas nos preocupamos também com os traumas psicológicos pessoais. Escolhemos, portanto, evidenciar duas perspectivas diferentes sobre os traumas em história oral testemunhal, são elas: macrotrauma e microtrauma.
 Os macrotraumas são eventos que machucam a memória coletiva nacional ou a memória coletiva das comunidades de destino estudadas. Esses traumas induzem consequências de impacto nacional. Não obstante, os microtraumas são eventos que afetam psicologicamente as pessoas machucadas por dramas peculiares. Na esfera da cultura social, os microtraumas machucam as memórias individuais em razão das dores particulares dos afetados. Por isso, os macrotraumas acontecem nos níveis coletivos e os microtraumas acontecem nos níveis individuais com diferentes intensidades de consequências coletivas.
São característicos dos microtraumas – dos traumas individuais – os diferentes ritmos na ordem dos acontecimentos da intimidade pessoal. Os macrotraumas, ou traumas coletivos, são resultados dos acontecimentos que, em ritmos alternados, atingem diretamente a memória coletiva. Para Paul Ricoeur, as noções de “trauma ou de traumatismo, de ferida e de vulnerabilidade pertencem à consciência comum e ao discurso ordinário” da mesma forma que podem ser “doenças da memória” individual ou catástrofes históricas que afetam a “memória coletiva” (RICOEUR; In: HENRIQUES, 2005).
Por lógico, os macrotraumas não se dissociam das individualidades traumatizadas e, inversamente, os microtraumas não se descolam da memória coletiva – nas categorias de Maurice Hallbwachs (HALLBWACHS, 1990). É possível, por exemplo, estudar a Ditadura Militar no Brasil por meio dos seus machucados catastróficos à memória coletiva nacional e, com distinção, é possível estudar os traumas pessoais dos torturados que foram obviamente vilipendiados (e individualmente).10 As duas formas de estudos, no entanto, são plausíveis à história oral testemunhal, mas ambas partem de um colaborador, ou de vários colaboradores, para compor o “todo” das redes pretendidas no projeto de pesquisa inicial.
Salientamos, com Michel Pollak, que “se a análise do trabalho de enquadramento de seus agentes e seus traços materiais é uma chave para estudar, de cima para baixo, como as memórias coletivas são construídas, desconstruídas e reconstruídas, o procedimento inverso”, daqueles que com a história oral partem “das memórias individuais, faz aparecer os limites desse trabalho de enquadramento e, ao mesmo tempo, revela um trabalho psicológico do indivíduo que tende a controlar as feridas, as tensões e contradições entre a imagem oficial do passado e suas lembranças” (POLLAK, 1989, pp. 3 – 15). Interessa-nos, no caso pentecostal, essa dimensão psicológica traumática, ou como denominamos anteriormente – microtraumática.
Sigmund Freud abalizou que os traumas psíquicos são causados por “afluxos de excitações excessivas” que traspõe a tolerância, a resiliência emocional e a dominação situacional da pessoa afetada (FREUD, 1992)11 . Por isso, os traumas são invasões de estímulos para os quais o ‘eu’ não está preparado e, por conseguinte, os eventos traumáticos ficam ‘encapsulados’, ou enquistados, na vida psíquica – sem ser elaborados. Os traumas psíquicos, portanto, se constituem como desorganizadores dos mundos interiores. Além disso, os traumas se concretizam na medida em que as pessoas afetadas por eventos potencialmente desorganizadores não conseguem suportá-los e tampouco apaziguá-los nos seus “mundos interiores”. Na mesma direção de Freud, disseram Jean Laplanche e Jean-Bertrand Pontalis que
O afluxo de excitações é excessivo relativamente à tolerância do aparelho psíquico, quer se trate de um só acontecimento muito violento (emoção forte) ou de uma acumulação de excitações cada uma das quais, tomada isoladamente, seria tolerável; o princípio de constância começa por ser posto em xeque, pois o aparelho não é capaz de descarregar a excitação. (LAPLANCHE; PONTALIS, 1967, p. 501).
Em perspectiva complementar, assinalamos que os traumas psicológicos são conceitualmente vacilações da “organização subjetiva” como afirmou Felícia Knobloch (KNOBLOCH, 1998, p. 136). Um tempo traumático “configura-se como tempo do presente absoluto de estupor e paralização” permitindo que as experiências sejam captadas pela histórica oral – que ocorre, evidentemente, no tempo presente. (MORENO, 2009, p. 144). Sintomaticamente, outrossim, os traumas conduzem os afetados para “fora de si” num presente absoluto. Segundo Sándor Ferenczi, os imediatos absolutos das dores que provocam a impressão de superação “do tempo e do espaço” presentificam os machucados da alma (FERENCZI, 1990, p. 65).
As noções de “afluxos de excitações excessivas”, de vacilações da ‘organização subjetiva’, de tempo traumático repleto de paralização existencial e do salto para ‘fora se si’ como condição traumática, devem significar os microtraumas desorganizadores lógicos das pessoas afetadas. No salto para fora de si, todavia, os traumatizados perdem os encantos que organizam seus ‘sonhos pessoais’ e, às vezes, seus projetos de vida. O salto para ‘fora de si’ é, ao mesmo tempo, desespero de conviver com as vacilações da ‘organização subjetiva’ e desesperança na possibilidade de superação das perplexidades do ‘eu’ desorganizado.
No documentário: Sobreviventes, Miriam Chnaiderman e Reinaldo Pinheiro demonstram as implicações dos traumas nas memórias individuais e coletivas12 . Partindo de traumas pessoais, Bell Marcondes conta sua experiência – num salto para ‘fora de si’ – de desorganização dos seus mundos interiores com consequências significativas na sua história de vida. No salto para ‘fora de si’, Marcondes disse:
O que me levou para a rua foi uma série de razões. A primeira delas foi não querer saber quem eu era. Eu queria esquecer tudo o que estava acontecendo comigo. Não queria sentir. A violência maior foi a que eu cometi contra mim. É uma sensação de alívio. De não ter mais que ser [...] Minha situação limite vem desde a minha infância porque quando uma criança sofre um abuso sexual... [...] Eu tento carregar essa menina no colo pra ela não sentir mais dor, mas é difícil. Eu não consigo esquecer essa coisarada toda.(CHNAIDERMAN; PINHEIRO, 2008).
Nas vicissitudes dos traumas pessoais de Marcondes estão enraizadas as lembranças concretas do abuso sexual sofrido na infância como propulsionador das desorganizações subjetivas do “eu”. Não se trata de memória reminiscente com vagas lembranças, mas de uma memória resistente do trauma de quem não consegue “esquecer essa coisarada toda”. Nenhum trauma, portanto, acontece logicamente fora da história de vida, mas qualquer trauma pode ser testemunho vivo no interior da história narrada. Se for plausível que os traumas culminam em vacilações da “organização subjetiva”, então é possível que, no caso dos pentecostais, as mitificações do imaginário religioso sejam partes constitutivas na conversão espiritual da pessoa traumatizada como solução religiosa provisória para as reorganizações da vida. Assim, consideramos em segundo lugar a expressão conversão como crença pentecostal na possibilidade de superação das experiências traumáticas por meio das mistificadas hierofanias divinas.
As conversões acontecem, na maioria das experiências pentecostais, durante os cultos emocionantes repletos de pregações, de canções e de testemunhos que comprovam as irrupções poderosas da divindade. É verossímil que, conforme Campbell, os rituais cristãos são organizações dos símbolos mitológicos que induzem ao drama do rito salvador de Jesus Cristo na sua morte e ressurreição. Para Eliade, como dissemos anteriormente, os ritos são rememorações das experiências religiosas primordiais. Num culto pentecostal, entretanto, os microtraumas pessoais – dos mundos interiores – são preenchidos pelo sentido mítico, histórico e narrativo do trauma cristão original – que é a crença fundamental na violenta morte de Jesus Cristo na cruz. Nesse direcionamento, reconhecemos os cristãos como religiosos que acreditam no trauma crístico como vicário aos traumas pessoais13 . Trata-se, então, da substituição mítica, mística e imagética dos dramas pessoais pelos dramas crísticos.
Os pentecostais, segundo suas crenças, não aceitam enfermidades físicas ou psicológicas duradouras porque acreditam que Jesus Cristo enfermou pelos convertidos à sua cruz. Repudiam, ainda, as desestruturas traumáticas psíquicas e da cultura social porque, segundo suas doutrinas, Jesus Cristo morreu em função substitutiva dos pecados de todas as pessoas afetadas por experiências dramáticas. No centro das enfermidades psíquicas, tais como a depressão, está o próprio Diabo como agente perturbador do indivíduo convertido. “São as lutas espirituais” que provocam grande parte dos males, conforme pregam. Enfermidades persistentes são rejeitadas, pois recitam: “o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã”. Em alguns casos permanecem as tensões entre a fé, suas consequências e a ciência médica como sendo “obra de homens” ou mero conhecimento humano: “Jesus é o médico dos médicos” – creem.
Por isso, os traumas pessoais, como desorganizadores dos mundos interiores, oferecem lugar aos modernos mitos pentecostais transmitidos oralmente como provisórios reorganizadores lógicos, ou mistificadores (teo)lógicos, que impulsionam processos de conversão à nova vida como solução espiritual. Daí, a proposta desmitologizadora de Bultmann encontra fragilidade analítica na vivência comemorativa dos pentecostais do Espírito Santo. Ao invés de esvaziar os mitos, propomos uma interpretação situacional das “histórias maravilhosas”. Caso Bultmann tenha buscando as “verdades da concretude histórica convencional”, os pentecostais – num tempo de oralidade secundária – procuraram nas narrativas míticas os preenchimentos subjetivos interiores como alívio para a “memória machucada”. Assim, ao oralista cabe encontrar elementos analíticos, exegéticos, no interior dos dramas e das tramas experienciais dos pentecostais.
 A Palavra, que desceu dos altares na Reforma Protestante, e que foi textualmente diminuída pelos pentecostais, ritualizou-se na oralidade dos crentes durante as performances litúrgicas da conversão mediada pelo Espírito. Wiliam James disse que, no momento da conversão religiosa, os ritos significam convicções singulares das realidades espirituais e harmonizam as crises psicológicas traumáticas. Segundo James, as pessoas convertidas no decurso dos ritos
ouvem amiúde vozes; vêem-se luzes; presenciam-se visões; ocorrem fenômenos motores automáticos; e tem-se sempre a impressão, após a renúncia da vontade pessoal, de que um poder estranho, mais elevado, inundou o íntimo do indivíduo e tomou posse dele. (JAMES, 1995, p. 148).
Conversão é, com isso, mudança de sentido, ou de direção, segundo novas convicções místicas que encorajam os crentes à nova vida. Segundo Rubem Alves, na conversão está a “articulação entre a racionalidade que será construída socialmente depois e as exigências emocionais da personalidade” (ALVES, 1979, p. 54). Para Prócoro Velasques Filho, no entanto, a conversão cumpre certa função social porque contribui para uniformização dos comportamentos de santidade e justiça por meio da transformação dos crentes. Consideramos que a conversão pentecostal encaminha novos estados afetivos de ser que fundamentam, amiúde, por meio da oralidade mitificada, os testemunhos fantásticos do trauma crístico como resolução para os traumas pessoais, do drama crístico às amenizações dos dramas pessoais – até à iluminação do Espírito na subjetividade reorganizada.
No âmbito pentecostal, prega-se constantemente sobre a cura divina das dores físicas e das dores da alma, mas fala-se também acerca da cura interior como possibilidade de libertação das influências psíquicas – às vezes classificadas como diabólicas – que provocam desorganização na vida. O pastor David Seamands escreveu um livro de cura divina, intitulado Traumas emocionais, no qual estabelece alguns procedimentos espirituais para a libertação dos traumatizados. Seamands disse que, para ser liberto, é necessário “encarar o problema de frente”, “aceitar nossa responsabilidade no fato”, “perguntar a nós mesmos se desejamos realmente ser curados”, “perdoar a todos os que estão envolvidos em nosso problema”, “perdoar a si mesmo” e, finalmente, “pedir ao Espírito Santo para nos mostrar qual é realmente nosso problema, e como devemos orar a respeito dele” (SEAMANDS, 1995, p. 25 – 29).
Em terceiro lugar, perguntamo-nos pelo sentido etimológico da expressão testemunho. Do grego “μάρτυρας” (mártir), a palavra testemunha tem significado intrincado para a história oral14 . Por definição, mártir é todo aquele que sofreu, ou até mesmo morreu, para sustentar suas crenças diante de algozes intolerantes15 . Quem testemunha está sempre disposto a morrer. Contar um testemunho é, portanto, fazer uma narrativa com sentido duplo: busca-se sepultar lembranças anteriores à conversão e ressuscitar esperanças redentoras da memória pós-traumática. É a morte, a abolição, dos microtraumas do “eu” subjetivo como forma de ruptura terapêutica com os machucados passados. Uma espécie de cura da histórica de vida e da memória por meio da “morte do velho estado traumatizado”. Nesse sentido, os “mártires testemunhais”, que foram marcados anteriormente pelos microtraumas, reorganizam suas lembranças individuais segundo a crença na “morte da velha vida, da velha história”. As narrações dos traumas, e principalmente das conversões religiosas, são as alternativas pentecostais para as curas das doenças da memória na afirmação de uma “nova vida”. São “vinhos novos em odres novos”, dizem os pentecostais. Para Ricoeur, as “doenças da memória” devem ser tratadas segundo as categorias do perdão que “propõe a cura” e conduz ao esquecimento. Diz Ricoeur, ainda, que o perdão “tem início na região da memória” e “continua na região do esquecimento” (RICOEUR; In: HENRIQUES, 2005). Assim, os pentecostais dizem se lembrar da velha vida no momento da conversão e nos momentos testemunhais em que comemoram os pecados perdoados – ‘lançados no fundo do mar’– como pregam.
Por esses motivos, os crentes pentecostais acreditam que as conversões acontecem no momento derradeiro em que a antiga vida morre. Subsequentemente, o batismo – por imersão nas águas – demonstra, como rito de passagem, que o crente morreu para uma velha vida (no momento da imersão), e nasceu para uma nova vida (no momento da emersão). Paralelamente, contudo, é no batismo do Espírito que os significados míticos são aperfeiçoados no consolo divino para os machucados da memória. O Diabo, para os pentecostais, está ligado à batalha pela memória: “quer jogar o passado traumático na cara”. Essa dualidade demonstra, por sua vez, a permanência do moderno “maniqueísmo” da luta entre boas memórias e más memórias. De Deus e do Diabo16 .
Na medida em que o trauma crístico é vicário aos antigos traumas psicológicos, consolida-se na conversão como superação das desorganizações subjetivas. Depreendemos, então, que a palavra do testemunho resulta em testemunho da Palavra – falada, cantada, profetizada, glossolálica ou simplesmente “visionária”. Importa-nos, portanto, seguir as tendências ritualísticas da Palavra para ouvirmos os pentecostais por meio da disciplinaridade da história oral. Testemunhar, para os pentecostais, é conduzir os outros à nova vida e, ao mesmo tempo, firmar um lugar grosso modo terapêutico da memória. Disso resulta que, entre o passado traumático e a conversão, instaura-se uma intensa negociação pós-traumática de identidades.
Dos púlpitos, por exemplo, ouvimos narrativas de pessoas que, na velha vida, eram alcoólatras, dependentes químicos ou vítimas de outros desajustes socioculturais, e que na nova vida deixaram suas ‘concupiscências pecaminosas’ – segundo dizem. Ouvimos relatos de antigos criminosos, e de ‘outros pecadores’, como abaliza Camila Caldeira Nunes Dias em sua dissertação de mestrado intitulada “A igreja como refúgio e a bíblia como esconderijo? Conversão religiosa, ambiguidade e tensão entre presos evangélicos e massa carcerária”, ou como assinala Mariana Magalhães Pinto Côrtes em sua dissertação de mestrado: “O bandido que virou pregador: a conversão de criminosos ao pentecostalismo e suas carreiras de pregadores”.
As dissertações descritas acima, de Dias e Côrtes, apontam para as conversões como oportunidades, ou oportunismos, dos criminosos, por exemplo, para reinserção “do pecador” nas malhas sociais. Ao invés disso, consideramos compreensivamente a crença pentecostal segundo a qual pode acontecer – no momento da conversão – uma reorganização nas histórias de vida dos convertidos com vistas à reorganização pós-traumática. Ressuscitar a “antiga mania de julgamento”, como se a academia fosse detentora da verdade absoluta sobre os comportamentos, é se esquivar das aproximações possíveis aos colaboradores pentecostais em projetos de história oral. Não é o caso dos oralistas que buscam ouvir respeitosamente crentes, e não crentes, almejando o sentido democrático, experiencial, empírico e político da história oral.  

CONSIDERAÇÃO FINAIS

A história oral testemunhal é, portanto, um gênero emergente que procura ouvir as pessoas afetadas pelos macrotraumas e pelos microtraumas. Oralidade, mitificação e, subsequentes conversões ao pentecostalismo, significam as vidas dos que sofreram dramas pessoais desencadeados pelos microtraumas nas suas múltiplas relações sociais. As alternativas – oferecidas pelos pentecostais – resultam no preenchimento mítico como organizadores lógicos das narrativas dos protestantes. Os testemunhos são fundamentais, tanto para os pentecostais, nos seus cultos ou na vida cotidiana, quanto para os oralistas que se preocupam com os procedimentos disciplinares da história oral. Com a Reforma os protestantes fizeram sua revolução textual, mas com o Espírito da Palavra os pentecostais fizeram sua revolução testemunhal.
Os dramas pessoais ganham dimensão social na busca por alternativas. Daí, o que define os sentidos coletivos dos microtraumas são as fabricações de soluções religiosas para os machucados traumáticos da memória pessoal. Logo, os protestantes cujos conflitos psicológicos foram amenizados procuram testemunhar como ‘mártires’ face aos seus ‘algozes traumáticos’. Nesse sentido, as expressões trauma, conversão e testemunho são essenciais para os pressupostos teóricos dos ‘ritos da oralidade pentecostal’ como elementos para uma história oral testemunhal.

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* Pos-doutorando e Doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Membro do Núcleo de Estudos de História Oral (NEHO/USP). Professor da Faculdade Sumaré. E-mail: leandroneho@gmail.br

** Doutorando em Geografia Humana pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) e em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre e especialista em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), professor de história do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA/Campus Açailândia). Líder do CLIO & MNEMÓSINE Centro de Estudos e Pesquisa em História Oral e Memória (IFMA). Pesquisador do Núcleo de Estudos de História Oral (NEHO/USP) e do (GPTEC/UFRJ). E-mail: fagno@ifma.edu.br

1 Referimo-nos ao pentecostalismo por meio de algumas características universais em todas as vertentes: oralidade, mística e testemunho. Não pretendemos realizar um diálogo estrito com a bibliografia especializada sobre pentecostalismos. Reconhecemos que existem diferentes vertentes do pentecostalismo brasileiro, mas, neste artigo, prescindimos das problematizações sobre clivagens, rupturas, tensões identitárias internas e outros elementos igualmente possíveis.

2 Para os protestantes livrescos os textos sagrados eram axiomas de salvação. Por isso, qualquer ser humano – para ser salvo – deveria ler os textos que demonstravam a justificação por meio da fé (e não das obras). Atualmente, os protestantes históricos sustentam a fundamentação livresca da fé com base na herança hermenêutica protestante.

3 Evidentemente, a multiplicação pode ser concebida, em perspectiva divergente, como uma “tendência fracionária”.

4 Refiro-me à “moderna tradição oral”.

5 A “soteriologia” é uma vertente da teologia sistemática que se dedica grosso modo ao estudo da salvação e suas consequências.

6 Tais ressalvas partem da descrença no esvaziamento da mística narrativa como condição de obtenção da “verdade histórica”.

7 Atualmente, estamos desenvolvendo pesquisas de doutoramento sobre “Ritos da oralidade: a tradição messiânica de protestantes brasileiros na ditadura militar brasileira entre 1964 e 1985”..

8 História oral testemunhal, memória oral e memória escrita e outros assuntos. Entrevista com o professor José Carlos Sebe Bom Meihy. A entrevista, publicada na Revista História Agora, pode ser encontrada na íntegra como consta nas “Referências bibliográficas”.

9 Utilizamos, pois, os termos “mundos externos” para designar as realidades exteriores concretas que tem potencial para afetar traumaticamente qualquer pessoa. Os termos “mundos internos” se referem aos estados subjetivos da pessoa.

10 Consideramos, apesar das graves violações de direitos humanos constatadas no período da Ditadura Militar no Brasil, que não temos nenhum trauma nacional da magnitude catastrófica do Holocausto – como preconizou Meihy.

11 Os conceitos psicológicos expostos neste texto carecem naturalmente de maiores aprofundamentos teóricos, pois estamos abordando especificamente a história oral testemunhal dos pentecostais a partir do trauma e da conversão.

12 Para conhecer um pouco do trabalho de Chnaiderman, assista o testemunho de Bell Marcondes no documentário Sobreviventes:  1http://www.youtube.com/watch?v=sV8QorvlaB01. Acesso em 05 de julho de 2011.

13 O termo “crístico” é amplamente utilizado nos textos teológicos para se referir ao Cristo.

14 A palavra grega “μάρτυρας” pode ser traduzida do grego de duas formas: como mártir mesmo ou como testemunha.

15 O primeiro mártir do cristianismo, segundo tradição neotestamentária, foi Estevão. Depois do seu testemunho aos judeus, Estevão foi fortemente possuído pelo Espírito Santo e, no decurso da sua narrativa, foi apedrejado por Saulo de Tarso. Ver Atos dos Apóstolos 7: 1 – 60.

16 As boas memórias são lembranças das “doenças da memória”, dos microtraumas, que foram perdoadas e curadas no momento da conversão. No entanto, as más memórias são atribuídas aos processos diabólicos de acusações pelo passado indesejado.


Recibido: 18/04/2016 Aceptado: 27/06/2016 Publicado: Junio de 2016

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