Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


PATRIMONIALISMO E SEUS REFLEXOS NO ESTADO BRASILEIRO

Autores e infomación del artículo

Josenilda Aparecida Ribas Bueno *

UEPG, Brasil

jo_abueno@hotmail.com

RESUMO
Apesar dos crescentes esforços para extirpar a corrupção, observamos que no Brasil, ainda são bastante frequentes as práticas ilícitas e condutas indevidas. Em que pese a importância do resgate histórico na compreensão de fatos atuais, este artigo tem por objetivo buscar no passado alguns dos aspectos sócio-políticos predominantes na formação do Estado brasileiro. Aspectos esses que ainda influenciam e comprometem tanto a política como a probidade administrativa no país. Para tanto foram adotados como ponto de partida os conceitos de patrimonialismo e burocracia tal como apresentados por Weber, incorporados às peculiaridades brasileiras pelos autores aqui utilizados. O artigo contou com contribuições de Faoro (1989), Holanda (1978), Schwartz (1979), Franco (1997) entre outros. Verificou-se que os traços personalistas e patrimonialistas presentes desde a formação do Estado brasileiro ainda permanecem bastante prejudiciais às instituições brasileiras.

Palavras-chave: Patrimonialismo, Burocracia, Formação do Estado brasileiro, Corrupção, Instituições brasileiras.

ABSTRACT
Despite increasing efforts to root out corruption, we observed that in Brazil are still quite frequent malpractices and misconduct. Despite the importance of the historical rescue in understanding current events, this article aims to look past some of the socio-political aspects prevailing in the formation of the Brazilian state. Are aspects that still influence and undermine both the political and the administrative probity in the country. Therefore, they adopted as a starting point the concepts of paternalism and bureaucracy as presented by Weber, incorporated into Brazilian peculiarities by the authors used herein. The article includes contributions from Faoro (1989), Holanda (1978), Schwartz (1979), Franco (1997) among others. It was found that the personalist and patrimonial traits present since the formation of the Brazilian state still remain quite harmful to Brazilian institutions.

Keywords: Patrimonialism, Bureaucracy, Brazilian State of Formation, Corruption, Brazilian institutions.



Para citar este artículo puede uitlizar el siguiente formato:

Josenilda Aparecida Ribas Bueno (2016): “Patrimonialismo e seus reflexos no estado brasileiro”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (abril-junio 2016). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/02/patrimonialismo.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/CCCSS-2016-02-patrimonialismo


1. INTRODUÇÃO

Toda sociedade tem suas raízes no sistema que a originou. Assim sendo, o Brasil não escaparia das influências de seu passado e da dificuldade de extirpar certos hábitos há séculos incorporados na sociedade em geral.
Nesse sentido, o resgate histórico se apresenta como uma importante ferramenta na compreensão de muito do que vivenciamos no presente, pois através dele, cada questão pode ser analisada dentro de um processo histórico e não apenas como um recorte, mas como uma abordagem que considera todo um contexto.
Destarte, para compreendermos as transformações atuais na ordem política e social brasileira torna-se necessário revisitar alguns antecedentes na formação das instituições brasileiras, bem como as relações sociológicas derivadas desse processo.
Em que pese a importância da impessoalidade e da ética tanto na política, como na administração pública, esse artigo tem como objetivo promover, através de um breve resgate histórico dos processos de formação do Estado brasileiro, uma discussão acerca as principais limitações ainda existentes para se possa lograr de um espaço público efetivamente impessoal e aparelhado.
            Com relação à estrutura do artigo, este contempla inicialmente uma sucinta abordagem sobre a questão do patrimonialismo na formação do Estado brasileiro. Nas seções seguintes são colocadas algumas questões referentes às relações pessoais, que por várias vezes prevaleciam em relação à burocracia que se pretendia instituir. São apresentadas também algumas situações na gênese da política brasileira. Por fim apresenta-se brevemente uma reflexão acerca de determinadas vícios e desvios na contemporaneidade brasileira.

2. O PATRIMONIALISMO NA FORMAÇÃO DO BRASIL

Primeiramente é imprescindível ilustrar o conceito de patrimonialismo teorizado inicialmente por Max Weber, que pode ser tomado como ponto inicial para muitos dos estudos acerca dessa temática nas ciências sociais, inclusive para autores como Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, José Murilo de Carvalho, Maria Sylvia de Carvalho Franco entre outros, cujas contribuições foram fundamentais para esse artigo.
De acordo com a teoria weberiana, o patrimonialismo pode ser caracterizado como uma manifestação de poder político fundamentado na “dominação tradicional”, onde um chefe político tem sua dominação assegurada por um dos três tipos do que Weber chamou de “dominação legítima”, que pode ser assim dividida: “dominação carismática”, “dominação racional-legal” e “dominação tradicional”, sendo a última a forma a que mais diretamente interessa para este estudo.
A dominação tradicional segundo Weber (2000), é caracterizada basicamente pela crença cotidiana nas tradições vigentes que sempre existiram, ou seja, o chefe é nomeado em razão do respeito, da devoção, aos costumes que sempre existiram. Difere da dominação racional-legal, pela qual predomina a ordem impessoal e legal e também da dominação carismática, a qual se caracteriza pela obediência a um líder carismático.
A dominação tradicional, no entanto necessita da formação de um quadro administrativo de funcionários. Para tal o governante encarna a legitimidade e a autoridade e passa a distribuir cargos não por merecimento, mas por critérios particulares. Os ocupantes desses cargos por sua vez, agem como se eles fossem de sua propriedade, agindo, portanto de acordo com seus próprios interesses (WEBER, 2000).
Destarte, o patrimonialismo pode ser visto como uma forma resultante da dominação tradicional, que apresenta como característica marcante a indistinção entre a esfera pública e a privada. A coisa pública é tratada pelo governante como se fosse privada, resultando em confusão de patrimônio, com predominância dos interesses pessoais sobre os interesses públicos. “O chefe governa o estamento e a máquina que regula as relações sociais a ela vinculadas.” (FAORO, 1989, p. 739).
            Ao examinar fases da história brasileira, Raymundo Faoro em sua obra “Os Donos do Poder” destaca a relação do patrimonialismo e os “estamentos burocráticos” importados de Portugal com as problemáticas e com o atraso vivenciados até hoje no país. Relação essa que pode ser identificada na obra de outros autores aqui utilizados.
            A interpretação clássica do Brasil colocava todo o poder nas mãos da oligarquia de senhores de terra, ignorando, portanto o papel da burocracia patrimonial. Somente após as contribuições de Raymundo Faoro (1957/75) e José Murilo de Carvalho (1980), tornou-se claro o fato de que o poder político no Brasil estava concentrado em um estamento aristocrático de juristas, letrados e militares, cujos poder e rendas originavam do próprio Estado (Bresser-Pereira, 2008)
            Dessa forma, Breeser-Pereira (2008) assinala que entre 1822 e 1930, fase que vai do Império à Primeira República, a classe dominante era constituída também por um estamento de burocratas públicos patrimoniais e não apenas por uma oligarquia de senhores de terras e comerciantes de escravos. A sociedade era patriarcal e mercantil e o Estado por sua vez era politicamente oligárquico e administrativamente patrimonial.
Como observa Faoro (1989), a estrutura político-social brasileira resistiu a todos os desafios e transformações fundamentais em seis séculos de história. Isso ocorreu porque, de D. João I a Getúlio Vargas, moldou-se uma realidade estatal que se ajustava mais facilmente às transições, pois absorvia e incorporava mudanças, ou seja, o patrimonialismo. Uma forma de administração que se apresenta de maneira mais flexível que o patriarcalismo e menos arbitrária que o sultanismo.
Faoro (1989) explica que o patrimonialismo foi concebido a partir do surgimento do estado-maior de comando do chefe. As muitas unidades políticas subordinadas à casa real e ausência de um quadro administrativo efetivo, fizeram com que a chefia dispersa assumisse um caráter patriarcal, nas mãos dos senhores de engenho, dos fazendeiros e dos coronéis. Logicamente as oportunidades tais como, desfrute dos bens, das concessões e dos cargos, despertavam o interesse da manutenção dessa ordem, dando o tom de impenetrabilidade e resistência a mudanças característico dos estamentos.
A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam gradualmente. O súdito, a sociedade, se compreendem no âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos. Dessa realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder institucionalizada num tipo de domínio: o patrimonialismo, cuja legitimidade assenta no tradicionalismo – assim é porque sempre foi. (FAORO, 1989, p. 733).
Schwartz em sua obra “Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial” (1979), assim como Faoro (1989), evidencia o peso das relações estabelecidas no Brasil desde a colônia com a situação de subdesenvolvimento vivenciada atualmente, demonstrando que a herança patrimonialista e burocrática desse período ainda tem grande peso nas questões e conflitos da conjuntura brasileira atual.
            Analisando o modelo de desenvolvimento weberiano, Schwartz (1979) afirma que no caso brasileiro, os aspectos racionais destacados por Weber perdem o sentido, já que as relações impessoais e categóricas da burocracia davam lugar a relações justamente contrárias. E ainda, nenhum dos estágios ideais propostos por Weber (patriarcal, patrimonial e burocrática) se encaixam corretamente na análise brasileira, já quem em vários momentos estavam presentes elementos de pelo menos dois desses estágios, e nunca um estágio separadamente. Aqui, patrimonialismo e burocracia não pareciam ser excludentes entre si, mas ao contrário, coexistiam simultaneamente dentro da mesma organização.
Segundo o Schwartz (1979), os quatro pilares sobre os quais se assentavam as decisões acerca dos funcionários na burocracia colonial eram a antiguidade, o mérito, o precedente e o nepotismo, somando-se muitas vezes a essas o apadrinhamento, sendo os dois últimos, elementos primordiais da administração patrimonial.
Na visão do mesmo autor, a principal dificuldade em aplicar o modelo weberiano vem à tona quando analisada a questão dos desembargadores no Brasil colonial, que torna evidente a interpenetração do patrimonialismo na burocracia. A classe que deveria ser a mais profissionalizada e racional da burocracia e que, no entanto apresentava frequentemente comportamentos patrimonialistas, agindo de forma absolutamente pessoal, em detrimento do formalismo e do profissionalismo.
No mesmo sentido, Sergio Buarque de Holanda (1978) explica que, à medida que ocorre a racionalização e uma progressiva divisão de funções o funcionalismo patrimonial pode apresentar traços burocráticos, mas em sua essência continua diferindo do funcionalismo burocrático, principalmente quando se caracteriza com mais profundidade os dois tipos.
Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial” do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. (HOLANDA, 1978, p. 105).
De fato, quanto mais se caracteriza os modelos patrimonialista e burocrático propostos por Weber, mais perceptível fica que no Brasil presenciou-se a coexistência simultânea dos dois modelos. A burocracia1 brasileira nunca funcionou racionalmente como se esperava devido ao emaranhado de relações pessoais existentes desde sua formação.

3. AS RELAÇÕES PESSOAIS E “O ABRASILEIRAMENTO DA BUROCRACIA” 2

No Brasil, a burocracia escapou aos planos portugueses e acabou por ser “abrasileirada” e corrompida. Nesse aspecto cumpre recordar que “A experiência e a tradição ensinam que toda cultura só absorve, assimila e elabora em geral os traços de outras culturas, quando estes encontram uma possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida.” (HOLANDA, 1978, p. 11).
Portugal buscou fazer da colônia sua imagem e semelhança, inclusive utilizando a formação universitária, haja vista que inicialmente não restava alternativa senão a formação em Lisboa. O ambiente universitário se tornava o lugar preparatório para a entrada no governo, principalmente para os filhos dos senhores de engenho que depois de intelectualizados, tornam-se os bacharéis do império, prontos para servir à burocracia (SCHWARTZ, 1979).
No entanto, servir à burocracia não parecia ser tão interessante financeiramente quanto os “benefícios” ilícitos que podiam ser obtidos através de seus cargos. Nesse sentido, Schwartz (1979) relata a questão da classe dos desembargadores, que deveria ser a categoria mais profissional e burocrata da colônia, no entanto terminou por ser subornada por laços de parentesco e dinheiro. Menos ainda podia se esperar dos magistrados menos importantes, dos governadores, coletores de impostos e escrivães.
Os desembargadores tinham por missão cumprir os propósitos da Coroa, mas a burocracia depois de criada adquiriu vida própria e não foram raras as vezes que os magistrados frente às muitas possibilidades de enriquecimento disponíveis na colônia seguiam outros preceitos que não os previstos pela lei, cedendo à corrupção.
Como observa Schwartz, (1979), no caso brasileiro, o mais surpreendente foi que duas coisas supostamente adversas como a burocracia e as relações de parentesco pudessem coexistir. Todavia, com o passar do tempo, os magistrados tornaram-se parte da vida na colônia e passaram a sofrer as influências do local. Era uma incrível habilidade da sociedade colonial a de incorporar os burocratas aos sistemas de apadrinhamento, abrasileirando-os, assim como o fizeram com a burocracia em geral.  “As fórmulas burocráticas são muitas vezes escritas como se a população a ser servida (ou controlada) fosse ter pouca influência sobre os burocratas. No Brasil essa premissa era infundada.” (SCHWARTZ, 1979, p. 251).
            Como assinala o mesmo autor, não era raro que relações pessoais prevalecessem sobre os propósitos burocráticos. Com frequência os magistrados usavam de seu cargo para obterem vantagens pessoais ou proteção, para si mesmos, para seus familiares e até mesmo para seus escravos, quando esses infringiam as leis.
            É nesse período histórico que a semente do “homem cordial 3” começa a germinar dentro das instituições políticas e jurídicas brasileiras. Começam a despontar as consequências das “relações de simpatia” nas quais o brasileiro foi moldado anteriormente no meio patriarcal e rural. Relações que dificultavam ou impediam o cumprimento das determinações de impessoalidade representativas da burocracia.        
            A “cordialidade” do brasileiro se evidenciava na aparente afetividade das relações que deveriam ser impessoais. Somente em raras exceções predominou no Brasil um sistema administrativo e um corpo de funcionários, cuja fundamentação e interesses fossem puramente objetivos e impessoais. Um universo dos “contratos primários”, dos laços de sangue e de coração (HOLANDA, 1978).
            Independente do tipo de relação pessoal presenciada, a corrupção ganhava espaço por todos os lados, como pode ser inferido no trecho da carta do governador da Bahia de 1799, mencionado por Schwartz (1979) onde o governador relata que um fazendeiro de açúcar local, assim como também faziam outros, enviava anualmente algumas caixas de açúcar a todos os desembargadores.
Dentre os abusos mais praticados, constava o uso indevido do cargo, bem como a venda da justiça e a influência das relações pessoais no julgamento de algumas causas. Para o autor, o aparato burocrático jamais prevaleceu sobre o paternalismo existente, situação que persistiu no Brasil o que explica muito do que se presencia hoje nos campos político, social e administrativo brasileiro.
Burocracia e sociedade, no Brasil, formavam dois sistemas de organização que se entrelaçavam. A administração dirigida pela metrópole, caracterizada por elações impessoais e categóricas, servia de esqueleto básico para o governo imperial, de estrutura soberana que amarrava politicamente a colônia à Coroa, como carne e osso. Como no desenho de um livro de textos médicos, contudo, a pele da estrutura formal do governo podia ser levantada para revelar um complexo sistema de veias e nervos criado pelos relacionamentos primários interpessoais baseados em parentesco, amizade, apadrinhamento e suborno. (SCHWARTZ, 1979, p. 292)
Como aponta Faoro (1989, p. 633), as relações eram de fundamental importância, desde os tempos de colônia e na República Velha mantiveram o mesmo peso. O compadrio sempre se fazia presente e as trocas de favores eram as mais variadas, até porque “quem tem padrinho não morre pagão”. Esta frase colocada pelo autor, expressa perfeitamente até onde as mais diversas dificuldades poderiam ser amenizadas quando se podia contar com uma pessoa de influência. Desde lidar com a polícia, com a justiça, com os cobradores de impostos, solicitar uma estrada, uma ponte, entre outras coisas tornavam-se bem mais fáceis com a ajuda de um padrinho. As relações eram extremamente importantes e continuavam apresentando a mesma relevância na República.

           
4. DAS ELEIÇÕES

É impossível falar sobre o compadrio sem mencionar um dos objetos mais diretos de sua influência, o âmbito eleitoral.
Em se tratando de eleições, tudo era válido contanto que fosse possível manter-se no poder, o que pode ser depreendido nos relatos inusitados, indignantes e até cômicos trazidos por Faoro (1989), Carvalho (1993) e Franco (1997).
Patrimonialismo e patriarcalismo caminhavam juntos pelas terras e organizações brasileiras. No que tange a influência patriarcal no Brasil, destaca-se a figura simpática do coronel que continua presente na fase republicana e que segundo Faoro (1989), exerce ainda maior influência nesse período, no qual a dinâmica e a estrutura do regime permanecem inalteradas e o eixo decisório se volta para os Estados.
O coronel era figura indispensável na função eleitoral, ou seja, no aliciamento das minorias necessário para a manutenção das oligarquias. “Dentro de tal sequência é que afirma o coronelismo, num casamento cujo regime de bens e relações pessoais será necessário para determinar, com as oligarquias estaduais.” (FAORO, 1989, p. 621).
            O termo coronel da República remonta à época de Império, ou seja, o fenômeno coronelista já existia. O que muda é seu novo direcionamento, agora estadualista. O coronel do Império, que era pessoa socialmente qualificada e em regra possuidora de riqueza e que recebia tal denominação da Guarda Nacional, deu origem ao “coronel tradicional” da República, também chefe político e possuidor de meios capazes de sustentar os luxos decorrentes de sua posição (FAORO, 1989).
            Assim os coronéis conquistavam a obediência e exerciam poder político sobre todos os que viviam em suas terras e que consequentemente estavam sob seu domínio. A liderança antes de ser política era econômica, embora nem sempre a riqueza fosse requisito essencial. O fato é que o coronelismo florescia domesticando os sertões na nova fase republicana, através da função eleitoreira dos coronéis e as eleições continuavam uma após a outra sendo fraudadas e sem que o povo nada pudesse fazer, devido principalmente à sua dependência econômica (FAORO, 1989).
Mais uma eleição, outra eleição como as demais de outros tempos, sem que a República trouxesse, como prometera, a sonhada soberania popular. Esta dançava entre os senhores, sem condições para expandir-se, desamparada da independência econômica do eleitor. (FAORO, 1989, p. 624).
            A Lei Saraiva de 1881, embora estabelecesse a eleição direta, proibia o voto para analfabetos e dificultava a comprovação de renda necessária ao voto censitário. Tal lei demonstra perfeitamente prevalência dos interesses das classes dominantes já que as únicas mudanças que ocorriam no processo eleitoral eram sempre para beneficiar alguns e mantê-los no poder. A predominância da política paternalista, com relações de dependência dos coronéis por parte dos trabalhadores justificava a redução dos votantes com a Lei Saraiva, afinal é mais fácil controlar um número menor de votantes (CARVALHO, 1993).
            Relata Faoro (1989) que na base do bico-de-pena e da degola, ou ainda imbuídas no mais puro patriarcalismo coronelista, as eleições seguiam sendo fraudadas a fim de manter uma ordem. Império e República se equivalem, portanto, no desrespeito a eleições. As coisas continuavam como antes, tudo inalterado e tranquilo embalando o velho estamento dos “donos do poder”. “Obviamente a linha entre o interesse particular e o público, como outrora, seria fluída, não raro indistinta, frequentemente utilizado o poder estatal para o cumprimento de fins privados.” (FAORO, 1989, p. 631).
            Além da grande dificuldade com relação à expropriação do servidor público dos meios materiais da administração, bem como a efetiva distinção entre os recursos oficiais e os bens particulares dos funcionários, necessária para o desenvolvimento da burocracia na administração pública brasileira, a situação de penúria a que estavam expostos os órgãos públicos era tanta que acabou por suplantar a burocracia pretendida (FRANCO, 1997).
            Os recursos oficiais eram escassos e muitas vezes insuficientes até mesmo para os gastos mínimos, não sendo raras as vezes que o administrador teve que dispor de recursos próprios nas questões do Estado. Da mesma forma era natural para ele usufruir do erário público quando possível. “[...] ele os podia controlar autonomamente, pois se ele os possuía. Seu era o dinheiro com que pagava obras; seu, o escravo cujos serviços cedia; sua a casa onde exercia as funções públicas.” (FRANCO, 1997, p. 131)
            A troca de proveitos entre o chefe político (coronel) e o governo estadual era fundamental para a manutenção do sistema. Aquele ficava incumbido do atendimento das reinvindicações do eleitorado e consequentemente com as despesas decorrentes da eleição utilizando para isso seu patrimônio pessoal. Este disponibilizava em troca, empregos públicos municipais ou estaduais que seriam ocupados de acordo com as indicações do coronel. Ocorria desde o controle de cargos públicos que eram direcionados a famílias dominantes até mesmo à criação de cargos exclusivamente para tal finalidade (FAORO, 1989). “As coisas públicas continuaram a ser usadas diretamente pelo grupo no poder e de acordo com o tipo de relações básicas na organização social: a dominação pessoal.” (FRANCO, 1997, p. 140).
            A dominação pessoal era elemento essencial nas relações. Lembremos, porém que para ser legítima requer a disposição em obedecer por parte dos dominados. Disposição que não se manifestava gratuitamente, mas em função de interesses.
            Ao abordar a questão da dominação pessoal, Franco (1997) chama atenção para a aparente indiferenciação social que ocultava os verdadeiros princípios da dominação. O compadrio, que aparentemente quebrava as barreiras sociais, era um dos vínculos mais fortes entre os mais e os menos favorecidos, sobrepondo-se muitas vezes inclusive aos laços sanguíneos, ou seja, “um patrocínio do superior e uma decorrente submissão do inferior”. O padrinho tinha por dever encaminhar na vida o afilhado que tanto lhe prestava favores, para isso convinha dar-lhe um cargo público, sendo necessário algumas vezes criar tal cargo, caso o mesmo não existisse.
Como relata a mesma autora, o caráter paternalista de apadrinhamento entre o coronel e seus “afilhados” dava um tom pacífico que ocultava as relações de opressão e exploração de direitos. Não imperava especificamente a brutalidade entre o coronel e o eleitor, mas sim a tradição e o respeito que faziam com que o eleitor votasse no candidato do seu padrinho.
Plenamente desenvolvida, a dominação pessoal transforma aquele que a sofre numa criatura domesticada: proteção e benevolência lhe são concedidas em troca de fidelidade e serviços reflexos. Assim, para aquele que está preso ao poder pessoal, se define um destino imóvel, que se fecha insensivelmente no conformismo. (FRANCO apud FAORO, 1989, p. 634).
            Existia, portanto um grande respeito aos compromissos celebrados entre padrinho e afilhado, que não se enxergavam como “essencialmente diferentes, mas como potencialmente iguais”. “Nas suas origens, o batismo estabelece ritualmente um parentesco e isto entre seres que se reconhecem, também originalmente, como da mesma ordem natural, como pessoas.” (FRANCO, 1997, p. 86).
Além do coronel, outra figura interessante na barganha de votos que envolvia o processo eleitoral era o “fósforo”. Como explica Carvalho (2010), o “fósforo” era alguém que mediante pagamento se passava por eleitores falecidos ou que estavam impedidos de votar, ocorrendo inclusive o disparate de um mesmo “fósforo” votar várias vezes, visto que era vedada a fiscalização. Como argumenta o autor, o voto era resultado de obediência forçada, ou na melhor das hipóteses um ato de lealdade e gratidão. Evidentemente à medida que o votante ia se dando conta da importância do voto passava a barganhar mais e vende-lo cada vez mais caro.
            Não menos indignante é o relato apresentado por Faoro (1989, p. 652), ao reproduzir a fala de Campos Sales ante a queixa contra a deturpação da obra republicana pelo bico-de-pena: “Seu Defreitas, a coisa é a mesma – depois, as autênticas feitas assim, clandestinamente, são melhormente escritas, com boa caligrafia, podendo-se lê-las com facilidade”.
            Franco (1997) explica que embora o bico-de-pena, junto a outros meios violentos no processo de fraude eleitoral, desempenhasse importante papel, era um recurso que muitas vezes encontrava obstáculos no poder exercido pelo chefe político local, por isso o mecanismo de fraude mais utilizado pelo governo era a distorção direta do processo eleitoral.       
            Patrimonialismo, compadrio, nepotismo e corrupção foram elementos extremamente presentes na formação das instituições brasileiras, estando incorporados em sua história desde o período colonial, seja burlando todo o aparato estatal trazido pela burocracia ou na própria manutenção de estamentos.  O peso desses elementos é tal que infelizmente, eles conseguiram de certa forma e em certo grau atravessar os séculos e manterem-se enraizados nas organizações sociais, políticas e administrativas brasileiras.

5. DOS VÍCIOS E OS DESVIOS NA CONTEMPORANEIDADE BRASILEIRA

  Analisando o período de formação brasileira é notável como o criador tentou fazer da criatura sua imagem e semelhança. Isso em todos os aspectos, já que até os vícios e desvios foram transportados para a Colônia. A corrupção há muito já estava presente nas leis e no aparato burocrático de Portugal, conforme evidenciado por Schwartz (1979), na observação de Lord Tyrawley 4, que pode ser transferida paras as colônias, com o mesmo encaixe.
Mais que qualquer outro povo, os portugueses aderem à regra da Escritura que diz que um presente consegue lugar para um homem e é incrível como um presente minora as dificuldades de um apelo; não somente isto, mas eles até o esperam e apesar dos presentes necessários não precisarem ser muitos grandes, já que umas poucas dúzias de garrafas de vinho estrangeiro ou alguns metros de bom tecido são suficientes, a repetição frequente disto equivale a dinheiro. (BOXER apud SCHWARTZ, p. 261).
Bem se vê que vícios e desvios até hoje presenciados no Brasil tem raízes seculares e alguma explicação na história. Raízes que resistiram à burocracia e que até hoje persistem.
No tocante à administração pública no Brasil, Bresser Pereira relata que a mesma passou por duas grandes reformas: a burocrática (1936), visando eliminar a confusão patrimonialista que até então existia, que buscava o Estado liberal e a reforma gerencial (1995), objetivando o Estado social.
Os esforços em busca de uma administração mais técnica e racionalizada e a necessidade de dicotomia entre o público e o privado resultaram na primeira reforma em 1936 no governo de Vargas.
Em 1940, com o decreto-lei 2.848, muitos dos vícios, que de tão costumeiros e arraigados, nem apresentavam mais seu verdadeiro caráter de ilegalidade puderam ser tipificados como crimes contra a administração pública.
Não obstante, o referido decreto embora instituído em um período de florescimento da gestão burocrática implantada por Getúlio Vargas, não conseguiu extirpar o patrimonialismo existente, que permaneceu entrelaçado e incorporado nas estruturas e espaços públicos, como sempre esteve.
A crise na administração burocrática começou já no regime militar. A sobrevivência da patrimonialismo e enrijecimento burocrático centralizador, assim como o nepotismo e o empreguismo eram notáveis, evidenciando assim a necessidade de uma nova reforma.
De forma que a busca pelo Estado social, pela descentralização e desburocratização, dá origem em 1995, à segunda reforma da administração brasileira, a reforma gerencial, que ocorre com a publicação do Plano Diretor da Reforma do Estado, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Bresser Pereira (2008), explica que através da nova reforma, foram possíveis grandes alterações no recrutamento, na remuneração de cargos públicos de Estado. É uma característica dessa reforma a busca pela eficiência e não apenas a efetividade nos serviços públicos de saúde, educação e previdência social, requisitos necessários ao Estado social.
Como complementa o autor, a Reforma da Gestão Pública de 1995-98 não subestimou os elementos patrimonialistas e clientelistas ainda existentes em um Estado como o brasileiro, mas deixou de se preocupar exclusivamente com eles, como fazia a reforma burocrática desde que foi iniciada em 1930.
De fato, a reforma gerencial ensejou mais licitude aos atos públicos, não obstante, observamos que séculos se passaram e o mecanismo político administrativo do país ainda continua funcionando de forma inadequada, permitindo corrupção, desvio do dinheiro público, abuso de poder, nepotismo e uso indevido de cargos, para citar apenas alguns.
Não tem sido fácil separar os interesses individuais dos coletivos, assim como não é fácil proceder corretamente diante da norma geral, afinal “[...] fomos criados numa casa onde, desde a mais tenra idade, aprendemos que há sempre um modo de satisfazer nossas vontades e desejos, mesmo que isso vá de encontro às normas do bom senso e da coletividade em geral [...]” (DA MATTA, 1986, p. 59).
Como bem coloca Da Mata (1986, p. 60) persiste “[...] um verdadeiro combate entre leis que devem valer para todos e relações que evidentemente só podem funcionar para quem as tem”.
O resultado, segundo o autor é um sistema sociológico dividido entre duas unidades sociais básicas: o indivíduo (o sujeito das leis universais que modernizam a sociedade) e a pessoa (o sujeito das relações sociais, que conduz ao polo tradicional do sistema). Nesse contexto o famoso “jeitinho” e o antipático “sabe com quem está falando?” acabam se apresentando como forma de mediação pessoal entre a lei e a situação onde ela deveria aplicar-se e as pessoas nela implicadas.
Não sem razão, observamos frequentes as práticas indevidas, apesar de todos os esforços para combatê-las. Não sendo raro que se prevaleçam os interesses particulares em detrimento dos interesses públicos, evidenciando uma não injustificada descrença na política e no Poder público e produzindo graves consequências para o país.  
São necessárias grandes transformações na sociedade brasileira, caso queiramos de fato suplantar certos traços de subdesenvolvimento. É preciso mudança, não apenas nas instituições brasileiras e em quem está no poder, mas no povo, na forma de pensar e principalmente de agir das pessoas. Não se pode cobrar do outro o que não se pratica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Resgatando as origens da formação do Estado brasileiro através das contribuições dos autores utilizados, este artigo procurou identificar onde estão fincadas raízes de muitas das práticas de corrupção hoje presentes na organização política, jurídica e administrativa do estado brasileiro, bem como a dificuldade do brasileiro em atuar na esfera pública.  
Os conceitos de patrimonialismo e burocracia da teoria weberiana serviram de base entender principalmente através das perspectivas de Faoro e Schwartz, entre outros, o que realmente ocorreu no Brasil desde sua fase colonial. As relações de dominação calcadas nas relações de compadrio, as relações de parentesco, de amizade e conveniência, que se sobressaíam às leis e as normas, tiveram impregnadas nas páginas da história do Brasil por séculos e o peso dessas relações ainda pode ser sentido diariamente nos noticiários. Não apenas entre os políticos e funcionários públicos, mas em várias situações cotidianas, nas quais a aparente “cordialidade” de alguns serve de instrumento para se atingir objetivos das mais diversas ordens.
É urgente uma cultura contrária ao “jeitinho” e ao “Você sabe com quem está falando?”. É crucial a percepção de que, age errado não apenas aquele que alimenta paraísos fiscais com o erário público, mas também aquele utiliza qualquer bem público para fins particulares. Ou aquele que se utiliza da influência pessoal para conseguir uma posição. Ou ainda aquele que oferece ou aceita suborno em situações cotidianas.
São as pequenas atitudes que iniciam as grandes transformações.

REFERÊNCIAS

BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Burocracia pública na construção do Brasil. 2008. Disponível em: <http://www.bresserpereira.org.br/Books/Livro-BurocraciaConstru%E7%E3oBrasil.6.pdf> Acesso em: 26 jul. 2014.

DA MATTA, Roberto. O modo de navegação social: a malandragem e o “jeitinho”. In: O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986. p. 93-106.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 2 vol. 8 ed. São Paulo: Globo, 1989.

FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata, 4 ed. São Paulo: UNESP, 1997.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 12 ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1978.

SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. A Suprema Corte da Bahia e seus Juízes: 1609-1751. São Paulo: Perspectiva, 1979.

WEBER, Max. Economia e sociedade. v. 1. Brasília: Editora UnB, 2000.

* Mestranda em Ciências Sociais Aplicadas (UEPG); membro do grupo de pesquisa Agenda social do Mercosul e proteção social no Brasil (UEPG – CNPQ); Bolsista CAPES; e-mail: jo_abueno@hotmail.com

1 Destaca-se que a burocracia aqui mencionada não se refere ao sentido pejorativo de lentidão e ineficiência hoje atribuído a essa palavra, mas ao conjunto de procedimentos descritos por Weber, no qual predomina justamente a eficiência e a eficácia, agilidade, hierarquia, e principalmente impessoalidade.

2 Expressão utilizada por Stuart B. Schwartz, 1979.

3 Conceito desenvolvido por Sergio Buarque de Holanda em sua obra Raízes do Brasil, em referência à característica de aparente “cordialidade” do brasileiro e ao predomínio das relações interpessoais sobre as normas.

4 Lord Tyrawley, enviado da Inglaterra a Lisboa em 1730.


Recibido: 22/03/2016 Aceptado: 12/05/2016 Publicado: Mayo de 2016

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