Larissa Siqueira de Alencar*
Maria Augusta de Castilho**
Universidade Católica Dom Bosco, Brasil
m.a.castilho@terra.com.brRESUMO
O artigo aborda uma pesquisa bibliográfica sobre a temática da mulher negra na sociedade brasileira contemporânea. Sua estrutura apresenta duas categorias de análise: gênero e relações étnico-raciais. O trabalho busca fazer uma reflexão acerca da mulher negra no Brasil com ênfase na desigualdade de gênero, racismo e discriminação racial. Pretende-se dessa forma desconstruir a ideia de democracia racial amplamente difundida e a igualdade de oportunidade entre as mulheres negras e não negras. As manifestações de suas demandas, lutas e resistências expressas no feminismo negro e movimento de mulheres negras ao possibilitar o surgimento de uma nova protagonista política, agora articulada e combatente de sua agenda política. Os avanços e desafios nesse cenário serão juntamente discutidos evidenciando possibilidades de novos rumos ao mesmo tempo do combate a antigas pautas para a promoção de uma valorização social de ser negra em uma sociedade inclusiva com mais equidades.
Palavras-chave: Gênero, relações étnico-raciais, mulheres negras, discriminação racial, feminismo negro.
(GENDER AND ETHNIC-RACIAL RELATIONS: A BLACK WOMAN BRAZILIAN DEBATE)
ABSTRACT
This article discusses a literature search on the subject of black women in contemporary Brazilian society. Its structure has two categories of analysis: gender and ethnic-racial relations. The work aims to reflect about the black women in Brazil with emphasis on gender inequality, racism and racial discrimination. It is intended that way deconstruct the widely held idea of racial democracy and equality of opportunity among black and nonblack women. Manifestations of their demands, struggles and resistance expressed in black feminism and movement of black women to allow the emergence of a new political actor, now articulated and fighter of his political agenda. Progress and challenges in this scenario will be discussed together showing possibilities of new directions at the same time fighting the old guidelines for the promotion of social value of being black in an inclusive society with more equities.
Keywords: Gender, ethnic and race relations, black women, racial discrimination, black feminism.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Larissa Siqueira de Alencar y Maria Augusta de Castilho (2016): “Gênero e relações étnico-raciais: a mulher negra brasileira em debate”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (abril-junio 2016). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/02/mulheres-negras.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/CCCSS-2016-02-mulheres-negras
Introdução
A pesquisa versa sobre as mulheres negras e as respectivas marcas designadas a essa população por meio da desigualdade de gênero e etnia, estruturantes da sociedade brasileira, juntamente com a luta e resistência efetuadas por essas respectivas mulheres. Cabe destacar que esse trabalho não pretende falar em nome da mulher negra, mas sobre sua realidade na sociedade brasileira.
A articulação de gênero e relações étnico-raciais conduz essas mulheres a sofrerem um duplo preconceito, que associada à classe social agrega mais desigualdade. Cabe destacar que a palavra raça será utilizada neste trabalho como “sinônimo” de relações étnico-raciais.
A busca por uma equidade de gênero para a mulher negra não se reduz apenas a desigualdade entre homem e mulher, a luta igualmente ocorre no mesmo gênero, principalmente entre brancas e negras.
Pinto (2006) ressalta que esse enfrentamento foi construído em diferentes espaços, por diferentes mulheres e de diversas formas, na tentativa de alterar essas relações de poder e questioná-las. Apesar de o movimento negro exigir demandas raciais, a pauta de gênero não era enfocada, ao mesmo tempo em que no feminismo a questão racial era suplantada por uma visão universalizante de mulher.
Hooks (2015) evidencia esse olhar ao destacar que o movimento feminista contemporâneo tem uma perspectiva unilateral do coletivo de mulheres, como se a realidade de todas as mulheres fossem iguais, excluindo raça e classe dos discursos, quando na verdade esses aspectos são pontos de diferenciação que acentuam o impacto do sexismo.
Tal situação fez emergir a voz das mulheres negras em uma tomada de consciência devido à falta de representatividade, conduzindo para uma luta e agenda específica a ser almejada por essas novas protagonistas políticas no interior de ambos os movimentos sociais. Para Carneiro (2003) foi uma conexão entre esses conceitos que colocaram novos e complexos desafios para concretizar a equidade de gênero e raça na sociedade.
É evidente que as mulheres negras não ocupam apenas espaços de subserviência, elas são encontradas em outros espaços, entretanto, mudanças mais profundas necessitam ser garantidas. A mídia, principalmente as novelas, ainda insiste em retratá-las em uma categoria de empregada doméstica, serviçal, a maioria das personagens negras encontra-se nessa condição.
Carneiro (2003) destaca que a agenda de políticas do movimento de mulheres negras visa discutir, refletir e desconstruir esses estereótipos e estigmas que afetam a afirmação e o valor social desse grupo. Busca romper com as imagens negativas dessas mulheres difundidas no seio de uma sociedade sem equidade marcada pelo racismo e pelo machismo.
A utilização das palavras machismo, sexismo e relações de gênero indicam a mesma relação, a dominação masculina na sociedade e a consequente desigualdade e privilégio de um gênero em detrimento de outro.
Vale salientar que ser negra envolve ir além de características físicas, é um reconhecimento pessoal como portadora dessa identidade e tomar para si a luta, as raízes, ancestralidade, história e cultura do grupo, “trata-se, também, de uma escolha política, por isso, é quem assim se define” (BRASIL, 2004, p.15).
Por se tratar de uma autodeclaração, é comum, que pessoas de pele mais clara, se declarem morena, mulata ou parda, mas é preciso entender que essa afirmação vai além da cor da pele, cabelo, anatomia (fenótipos), pois, envolve outros elementos, já mencionados anteriormente, entretanto, há uma redução dessa identidade apenas àquelas características.
Não se deve perder de vista a devida valorização da identidade negra e as ações de combate ao racismo, ao mesmo tempo em que não se autodeclarar negra e sim morena ou mulata, também é parte da lógica preconceituosa que estabelece como negra somente aquela de pele bem escura e possuidora de todas essas características fenotípicas.
As marcas impressas pelo racismo na subjetividade negra empregam tanto uma desvalorização da cultura de matriz africana, quanto dos aspectos físicos herdados pelos descendentes de africanos.
Essas concepções só contribuem para uma manutenção e cristalização das desigualdades entre todos os sujeitos, gera entraves na promoção de uma sociedade democrática e plural favorecendo uma cultura segregacionista dominante que ao envolver a sociedade como um todo nesse jogo, estipula diferenciados grupos a sofrerem preconceitos e discriminações. Suas diferenças, especificidades são tomadas e transformadas em desigualdades.
Desse modo, o artigo é estruturado em três tópicos; o primeiro é norteado pelo duplo preconceito que mulheres negras sofreram/sofrem ao longo da história em um processo de invisibilidade e silenciamento, juntamente a opressão resultante de uma sociedade patriarcal e o agravamento dessas relações ao inserir o aspecto raça e as implicações disto nas vivências dessas mulheres.
O segundo retrata a articulação das mulheres negras no interior do movimento feminista nacional e do próprio movimento negro para atender suas demandas e lutas que não foram suficientemente levantadas por tais atividades reivindicatórias.
Por fim, o terceiro remete a breves considerações acerca dos avanços e desafios da mulher negra no cenário brasileiro. Tais avanços, são representados por meio de alcances e conquistas políticas; já os desafios continuam no combate a questão racial, a discriminação, que apesar de se tornar um crime inafiançável e imprescritível pela Constituição Brasileira de 1988, ainda é alarmante na sociedade brasileira contemporânea.
1 Gênero e relações étnico-raciais: a existência de um duplo preconceito
Estudar tais categorias é dar ênfase a historicidade que atravessa essas concepções e o quanto ao presente é fruto de um antecedente longínquo que mesmo com as transformações pelas quais passaram e passa à sociedade suas mentalidades não são totalmente rompidas e reestruturadas.
Isto propicia uma perpetuação de noções, concepções que estando tantos anos no imaginário social tornam-se arraigada, formadora de opinião e engessada, dificultando muito mais as possibilidades de desconstrução. Desse modo, em outros contextos, determinados sujeitos continuam a sofrer com essas mesmas abjeções.
A herança deixada pela escravidão a toda à população negra é sentida na atualidade, independente do gênero. Contudo, o diálogo se estende a duas categorias subalternizadas ao longo da história do Brasil, são inegáveis as raízes históricas da situação atual da mulher negra brasileira, principalmente a trabalhadora. “[...] desigualdades são construídas historicamente, a partir de diferentes padrões de hierarquização constituídos pelas relações de gênero e raça, que, mediadas pela classe social, produzem profundas exclusões” (RIBEIRO, 2008, p. 988).
Giacomini (1988) apresenta o silêncio histórico acerca das mulheres, à dominação da figura masculina ao longo da produção historiográfica e a exclusão e invisibilidade designada às mulheres nos trabalhos desenvolvidos, sendo as mulheres quando retratadas, reduzidas ao espaço doméstico ou meros detalhes que nada contribuem com sua condição de vida na sociedade.
Como não existe a mulher geral e abstrata e sim mulheres concretas inseridas em um contexto histórico e pertencente a determinado grupo, observa-se que “[...] se é certo que em todas as classes de nossa sociedade a mulher é oprimida, não se pode, no entanto, esquecer que a intensidade e, sobretudo, a natureza dessa opressão são diferenciadas” (GIACOMINI, 1988, p. 17).
A opressão sofrida pela mulher negra difere em número e grau se comparada às mulheres brancas, existe uma contínua estigmatização de sua cor, desvalorização de traços fenotípicos característicos como: lábios, nariz e cabelos, ou seja, a discriminação étnica e racial que somada a sua condição social é intensificada, [...] Há muitas evidências que justificam o fato sobre identidade de raça e classe gerando diferenças no status social, no estilo e qualidade de vida, prevalecendo sobre a experiência que as mulheres compartilham [...] (HOOKS, 2015, p.197).
Dourado (2002) ao estudar a presença feminina na Guerra do Paraguai, assinala a existência desse duplo preconceito, de gênero e raça, ao mencionar uma mulher negra que saiu da invisibilidade por ações consideradas heróicas, denominada preta Ana. Ressalta ainda esta autora, que Ana só teve direito ao primeiro nome e sempre que abordado sua etnia era tratada com discriminação, apelidos e ironias, além da constante utilização do adjetivo referente à cor de sua pele. Era, portanto, um meio de mostrar que ela vinha de um grupo social humilde, enquanto que outras mulheres eram oriundas de famílias tradicionais, mostrando o protagonismo e a discriminação da mulher negra história.
Apesar disto, o patriarcado foi um componente estruturante da sociedade brasileira, pois mantém relações sociais desiguais de poder entre homens e mulheres, inclusive entre o mesmo gênero, e corrobora para uma lógica que resulta na opressão e dominação das mulheres, assim como, compõe papéis sociais a serem seguidos por ambos.
Para Scott (1989), o gênero de um ser humano é o significado social e político atribuído ao seu sexo, este seria o aspecto biológico, mais especificamente a designação de macho ou fêmea, assim, o processo de se fazer homem ou mulher é histórica e culturalmente construído.
Pinsky (2009) acrescenta que os estudos de gênero em sua concepção de masculino-feminino possuem historicidade e passaram a questionar essa prioridade dada ao homem na história. Tais estudos proporcionaram transformações histórico-historiográficas e passam a incorporar em sua análise outras categorias, como raça, classe, etnia, nação e como estas entrecruzadas conduzem a violentas desigualdades.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura afro-brasileira (Brasil, 2004), expressa as tensas relações oriundas da diferença na cor de pele e traços fisionômicos juntamente a raiz cultural da ancestralidade africana e sua divergência em relação à origem européia.
Convivem, no Brasil, de maneira tensa, a cultura e o padrão estético negro e africano e um padrão estético e cultural branco europeu. Porém, a presença da cultura negra e o fato de 45% da população brasileira ser composta de negros (de acordo como censo do IBGE, 2010) não têm sido suficientes para eliminar ideologias, desigualdades e estereótipos racistas. Ainda persiste em nosso país um imaginário étnico-racial que privilegia a brancura e valoriza principalmente as raízes européias da sua cultura, ignorando ou pouco valorizando as outras, que são a indígena e a africana (BRASIL, 2004, p. 13).
Esse desejo de uma identidade branca, de preferência em aspectos físicos, durante anos, foi reproduzido aos negros, inclusive pela Imprensa Negra, que no aporte de Bernd (1983) foi iniciada em 1915 e tinha como ideal, em um primeiro momento, integrar o negro a sociedade branca por meio da manifestação de valores, comportamentos e vestimentas, não havia uma valorização de ser negro pelos próprios negros.
As mulheres negras, desde a escravidão, pós-abolição e até os dias atuais, ainda ouvem termos depreciativos referente a seus cabelos, “cabelo ruim”, “duro”, “bombril”, tornam-se alvos para modificarem seus cabelos naturais no intuito de atingirem a textura do cabelo liso, considerado muito mais bonito e desejado. Vale lembrar a existência de termos designados a traços físicos e a cor da pele dos negros como “tziu”, “macaco”, “escravo”.
No decorrer do tempo essas concepções de integrar o negro a uma sociedade segundo os ideais brancos começaram a ser rompidas e os reflexos são expressos na mobilização negra – instrumento de resistência e afirmação - que passa a buscar uma identidade afro-brasileira para manter e garantir um reconhecimento de sua especificidade cultural, de sua história e de sua diferença.
“No Brasil, o “mito da democracia racial”, o mito de que não havia preconceito racial, retardou em alguns anos as manifestações da negritude brasileira” (BERND, 1983, p.46), pois trazia a ideia de que o Brasil por ser um país miscigenado não apresentava racismo.
Essa desconstrução foi iniciada por meio de luta e reivindicação por direitos iguais de cidadania, conjuntamente a difusão propagada pelo mito de que os negros não ascendem socialmente aos mesmos patamares que os não negros pela “falta de competência ou de interesse, desconsiderando as desigualdades seculares que a estrutura social hierárquica criou prejuízos para os negros” (BRASIL, 2004, p.12).
Oliveira e Paiva (1998) observam as expressões corriqueiras utilizadas na linguagem cotidiana relativa aos negros por meio das metáforas e esclarece que estas reproduzem implicitamente uma ideia de inferioridade da raça negra. Pode-se acrescentar que essas metáforas negativas são representações de experiências vividas e que o Brasil sempre foi um país que privilegiou sistematicamente os valores brancos ao propagar negativamente acerca da pessoa e cultura negra. “Não faça trabalho de negro”, “A coisa está preta” e “Ele é um negro de alma branca” são exemplos dessas expressões.
[...] exige que se questionem relações étnico-raciais baseadas em preconceitos que desqualificam os negros e salientam estereótipos depreciativos, palavras e atitudes que, velada ou explicitamente violentas, expressam sentimentos de superioridade em relação aos negros, próprios de uma sociedade hierárquica e desigual (BRASIL, 2004, p.12).
Ser negra é viver a experiência de saber que sua identidade já foi e continua a ser massacrada, moldada. Albuquerque e Filho (2006) afirmam que as barreiras, desde o Brasil pós-abolição, se erguem para aquelas mulheres de pele mais escura, em contrapartida, as de pele mais clara conseguem vencer essas barreiras, mas também com muito custo, pois ambas são subjugadas por sua cor e gênero.
Pinto (2006) identifica o racismo como um estabelecimento da inferioridade social da população negra em geral e das mulheres negras em particular, atua como elemento de divisão na luta coletiva das mulheres pela distinção instituída entre brancas e negras, assim, ligado a outros fatores, como classe e sexismo que produziu ao longo da história desigualdade entre elas.
Nesse sentido, a luta das mulheres negras é contra a opressão de gênero e de raça, produzindo novos diálogos na ação política feminista e anti-racista.
2 Feminismo negro: breve estudo
O feminismo como um movimento social organizado é remetido, no Ocidente, ao século XIX e no Brasil em meados do século XX. O movimento de mulheres no Brasil contribuiu decisivamente para mudanças no cenário e condição feminina. Conselhos, políticas públicas para promoção da igualdade de gênero, luta contra a violência doméstica e sexual, desigualdade salariais no mercado de trabalho em termos ocupacionais e demais ações visavam promover uma ampliação de seus direitos civis, sociais e políticos, como o fim da opressão e da discriminação da mulher no país.
“Nas últimas décadas o movimento brasileiro de mulheres vem ganhando novas características e se firmando como sujeito político ativo no processo brasileiro de democratização política e de mentalidades” (PINTO, 2006, p.03). Entretanto, a condição de mulher está ligada a uma condição que transcende esse aspecto, pois, encontram-se inseridas em um contexto e sua fala é proferida a partir do grupo que faz parte.
O feminismo, durante anos, esteve preso a uma visão eurocêntrica e universalizante de mulher. Carneiro (2003) notifica sua incapacidade de reconhecer as diferenças e desigualdades existentes no universo feminino, uma vez que desse modo, as mulheres vitimizadas por outras arbitrariedades que não apenas de gênero, continuaram invisibilizadas e a ausência do termo raça e outros fatores na promoção da igualdade foram silenciados, não favorecendo a manifestação de diferentes teorias e diversidade de vozes (HOOKS, 2015).
Um preceito central do pensamento feminista moderno tem sido a afirmação de que “todas as mulheres são oprimidas”. Essa afirmação sugere que as mulheres compartilham a mesma sina, que fatores como classe, raça, religião, preferência sexual etc. não criam uma diversidade de experiências que determina até que ponto o sexismo será uma força opressiva na vida de cada mulher (HOOKS, 2015, p. 197).
Giacomini (1988) exemplifica essa questão de falar do lugar que se ocupa, ao esclarecer que a sinhá, apesar de sofrer com a dominação patriarcal marcava sua condição de mulher da classe dominante, enquanto a escrava (mulher e negra) era submetida ao seu poder e de seu senhor, uma amostra das formas particulares de dominação e opressão segundo o lugar que se ocupava na sociedade da época.
Nessa universalização e silenciamento das diferenças emergiram a rearticulação do discurso e da pauta política do feminismo, entra então em cena o movimento de mulheres negras, elencando suas especificidades. Enegrecer o feminismo, expressão utilizada por Carneiro (2003), indica a trajetória das mulheres negras no movimento feminista brasileiro e a busca em destacar a identidade branca e ocidental constituinte do feminismo e sua incapacidade política e teórica de agregar uma sociedade multirracial e pluricultural, concentrado especificamente no gênero.
Ao politizar as desigualdades de gênero, o feminismo transforma as mulheres em novos sujeitos políticos. Essa condição faz com esses sujeitos assumam, a partir do lugar em que estão inseridos, diversos olhares, que desencadeiam processos particulares subjacentes na luta de cada grupo particular. [...] Essas óticas particulares, [...] ampliam a concepção e protagonismo feminista na sociedade brasileira, salvaguardando as especificidades (CARNEIRO, 2003, p. 119).
Observa-se que grupos de mulheres negras, indígenas, lésbicas, entre outras, possuem demandas específicas, não recaí apenas a questão de gênero, mas sim nas particularidades ligadas ao ser mulher em cada caso e o imaginário social histórico construído desde os antepassados acerca de cada uma e as diferentes realidades vivenciadas, as tornam excluídas do contexto da sociedade brasileira.
No caso das mulheres negras, o racismo produz uma desigualdade entre as próprias mulheres e acrescenta outro degrau na busca de uma equidade social – uma igualdade dentro do mesmo gênero, ou seja, o reconhecimento da diversidade existente entre as mulheres que não pode ser rebaixado e transformado em desigualdades.
Carneiro (2003) dimensiona que possuir a mesma identidade de gênero não é/foi sinônimo de uma solidariedade racial intragênero e exatamente essa percepção que conduziu as mulheres negras a se articularem mais efetivamente e enfrentar no interior do próprio movimento feminista, suas contradições e levantar a ausência da raça como pauta e recorte na luta feminista.
As mulheres negras ao demarcarem um posicionamento de gênero no interior do próprio Movimento Negro, o fator gênero não era discutido pelo movimento, mas deram voz as suas particularidades e determinaram que sua luta não se restringia ao racismo, ia além, era estendida ao machismo, operando-se assim, um combate duplo à opressão de raça e gênero em uma sociedade baseada na ideologia patriarcal, europeia e branca.
A formulação de uma agenda específica entre as mulheres negras, um discurso concentrado na e sobre a mulher negra no interior dos discursos feministas, desde meados de 1980, criou diversas organizações, fóruns de discussão que hoje se encontram espalhados a nível nacional e cada vez mais aglutina e promove o engajamento de mulheres negras.
Os temas da agenda feminista negra envolvem a superação do racismo e discriminação social no cotidiano e em muitos setores da vida da mulher negra, tais como: trabalho, saúde, educação e segurança. Como destaca Ribeiro (2008), o protagonismo das mulheres negras, até então invisibilizadas, conduziram a efetivação de novas agendas políticas, novos estudos e mobilizações.
Essas articulações permitem um (re) criar e estabelecer novos rumos pela ação e intervenção social e política desenvolvidas por essas mulheres representantes de si mesmas, um empoderamento de falar e ter um discurso sobre si mesma, seria sinônimo de autonomia. Contudo, não se trata de um processo simples e fácil, pois elas lidam com algo secular, e tampouco individual e independente, muito menos são ações que se reduzem a uma busca de ascensão social, mas sim romper e superar estigmas sociais e raciais.
A militância das mulheres negras pode ser entendida enquanto uma consciência, percepção e reflexão de sua imersão no conjunto das desigualdades de gênero e sócio-raciais existentes na sociedade brasileira. Essa consciência não foi fruto da visão feminista, mas sim compreensão da sua própria experiência de vida, um cotidiano de situações opressivas. (HOOKS, 2015),
A possibilidade de novos horizontes, respeito, direitos, reconhecimento e valorização de sua diferença (histórica, cultural, étnica) ainda permanecem nas demandas dessa luta coletiva e em suas estratégias de mobilização.
É essencial para a continuação da luta feminista que as mulheres negras reconheçam o ponto de vista especial que a marginalidade dá e faça uso dessa perspectiva para criticar a hegemonia racista, classista e sexista dominante e vislumbrar e criar uma contra-hegemonia (HOOKS, 2015, p. 208).
As ações devem exercer um papel primordial na composição das teorias feministas, mais especificamente no feminismo negro.
3 Avanços e desafios
As mulheres afro-brasileiras em suas mobilizações e luta político-social, paulatinamente vem conquistando melhorias políticas, mas o racismo e a discriminação social ainda são pautas que exigem intensa dedicação e combate, apesar da sistemática militância, a questão racial ainda é insuficiente no Brasil.
A conquista de políticas públicas de inclusão e igualdade racial surgiu por meio da militância do movimento negro e de mulheres negras na busca de uma reinvenção do espaço simbólico e desconstrução de discursos desvalorativos perpetuados na sociedade brasileira.
Uma forma de reconhecimento por parte das esferas governamentais de que a população negra continua a sofrer com o preconceito racial e o acesso precário aos serviços ofertados pelo poder público em todas as suas demandas como, saúde, trabalho, educação, cultura, política e direitos, precisam ser superados.
A transformação da medida provisória nº 111 em Lei nº. 10.678 originou a Secretaria de Promoção de Políticas da Igualdade Racial (SEPPIR) em 2003, resultado de um reconhecimento e valorização dos processos históricos de luta e resistência negra, desencadeada desde os tempos dos africanos escravizados até seus descendentes na sociedade contemporânea.
Políticas públicas específicas acerca da realidade da população negra são possibilitadas e têm se tornado visível em um país que nega existir racismo e prega o mito da democracia racial e igualdade de oportunidades.
A promulgação da Lei n°.10639/2003 que institui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africanas e afro-brasileiras se tornou outro aliado a evidenciar a participação desse povo na formação social e histórica do Brasil, saindo de uma visão unilateral eurocêntrica ensinada há muitos anos nos bancos escolares, para uma mais propensa a equidade.
O estabelecimento da data como 25 de julho - dia nacional da mulher negra latino-americana e caribenha é um marco internacional de visibilidade e reconhecimento da luta e resistência das mulheres negras do continente meso-americano contra a opressão de gênero, racismo e exploração de classe. O dia 20 de novembro – dia da consciência negra, relembra a resistência negra no Brasil desde a colonização e a sua luta antiga contra o racismo, concomitante a importância cultural desse povo (africanos e afro-brasileiros).
Segundo o Arquivo Público do estado de São Paulo, o jornal abolicionista “A Redempção” ao ganhar o título de patrimônio da humanidade pela UNESCO no Programa Memória do Mundo, reconhece como patrimônio da humanidade documentos e arquivos de grande valor internacional, regional e nacional, visando sua preservação para posterior disponibilidade e acesso a esse acervo. Identifica-se que além de proporcionar um patrimônio documental à humanidade, coloca em relevância internacional a luta contra a escravidão no Brasil pela imprensa popular, sua resistência e mobilizações.
Os desafios, mais complexos, ainda remetem ao combate do racismo, discriminação e preconceito racial e social até hoje enraizado na sociedade brasileira. No plano político é necessário efetivar ações que garantam essas conquistas, resultantes de negociações entre o movimento social representativo e o governo, bem como a administração pública (RIBEIRO, 2008).
A desigualdade ainda é grande quando se compara escolaridade (educação), mercado de trabalho (acesso e profissão), acesso a saúde e a garantia de oportunidades para busca de melhores condições de vida entre as mulheres brancas e negras.
Características fenotípicas, ênfase em atributos físicos, são subjugadas pela lógica da cultura dominante de cor branca, cabelo liso e traços finos, estipulando padrões e hierarquias de beleza depreciando em meios a essas práticas racistas a auto-estima da mulher negra, corroborando nas representações negativas sobre essas características e na desestruturação de uma promoção social de ser negra.
A naturalização do racismo no Brasil é percebido em múltiplas manifestações como brincadeiras, expressões pejorativas e piadas depreciativas. Ainda é necessário um avanço no imaginário social brasileiro para um maior alcance de mudanças positivas para a população negra, principalmente no tocante a discriminação.
A movimentação de mulheres negras igualmente acontece na internet, em diversos veículos de comunicação, tais como: facebook, blogs e sites, que atuam para promover mais visibilidade a sua agenda, evidenciando o quanto o Brasil ainda precisa mudar no tocante a discriminação racial, além de disponibilizar estudos, pesquisas e notícias que comprovam e discutem essa realidade e suas correlações com outros campos.
As mobilizações dessas mulheres no combate aos desafios e busca de novos avanços e conquistas se dão em todos os espaços, para que cada vez mais suas vozes, discursos e políticas ganhem longo alcance.
Considerações finais
A luta contra a opressão de raça e gênero levantada pela mulher negra resulta da dominação patriarcal e do preconceito, pois, se o gênero discrimina, o acréscimo da condição negra o intensifica.
A discriminação racial é agenciadora e mantenedora das significativas desigualdades entre negras e brancas, mantém as desigualdades sociais. Estas não se restringem ao passado, são processos reforçados atualmente por formas estereotipadas e preconceitos que legitimam essas ações.
As possibilidades de mudança emergem na aceitação da diversidade em compor a mulher, excluindo padrões e hierarquias, valorizando as especificidades de sua história e cultura.
Deve haver a condução a justiça social ancorada por uma sociedade que estabeleça uma cultura inclusiva e fomentadora de oportunidades a todos os indivíduos.
Desfazer ou minimizar a mentalidade patriarcal, racista e discriminatória secular, envolvendo concomitantemente um reconhecimento por parte da sociedade civil a uma luta e articulação conjunta do Movimento Negro, do Movimento de Mulheres Negras, organizações não governamentais e demais movimentos sociais para cada vez mais dar visibilidade a sua causa.
Setores do Estado devem promover ações de valorização da mulher negra, em sua totalidade, perpassando por políticas sociais e afirmativas, reconhecendo, valorizando e reparando as mazelas da história, cultura e identidade, como por exemplo, ações incisivas contra práticas racistas e sexistas, para que todas se realizem enquanto seres humanos.
O empoderamento das mulheres negras constrói um maior número de militantes e engrandece suas atuações políticas, sendo capazes de possibilitarem novos rumos, até mesmo uma nova história no tratamento das relações étnico-raciais e as respectivas demandas no cenário brasileiro.
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** Doutora em História e Professora do Curso de Graduação em História e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local - Mestrado/Doutorado da Universidade Católica Dom Bosco - Mato Grosso do Sul/Brasil.
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