Camila Parmezan Olmedo*
Munirah Muhieddine**
Centro Universitário Dinâmica das Cataratas, Brasil
adv_camila@outlook.comRESUMO
Os direitos sociais estampados na Constituição Federal de 1988 possuem status de direitos fundamentais, e assim, são indispensáveis a todos os cidadãos brasileiros, devendo ser garantidos com a máxima efetividade. Dentre o rol dos direitos sociais tem-se o direito à saúde, o qual assegura a vida humana. A constitucionalização do direito a saúde trouxe uma força normativa direta a este direito, fazendo com que o poder público busque políticas públicas no intuito de efetivá-lo. O problema surge quando não há políticas eficientes, ou quando as Políticas Públicas existentes não atendem questões peculiares, o que dá ensejo à necessidade da busca de concretização da norma constitucional através do Poder Judiciário. Assim, o presente trabalho tem como objeto de estudo a judicialização de medicamentos com enfoque nos posicionamentos doutrinários sobre o tema, especialmente no que tange à demanda judicial por fornecimento de medicamentos e a dificuldade do Estado em provê-los devido à limites orçamentários.
Palavras-Chave: saúde, medicamentos, judicialização, economia, limites orçamentários.
The RIGHT TO HEALTH AND THE JUDICIALIZATION OF MEDICINAL PRODUCTS
ABSTRACT
The social rights stamped in the Federal Constitution of 1988 have status of fundamental rights, and therefore, are indispensable to all brazilian citizens, that’s why they should be secured with maximum effectiveness. Among the ranks of social rights is the right to health, which ensures the human life. The constitutionalisation of the right to health has brought a normative power that requires that public authorities seek public policies with the purpose of the enforcement of such right. The problem arises when there is no efficient policies, or even when existing public policies do not meet quirky questions, which gives rise to the necessity of searching for effectuation of the constitutional norm through the Judiciary. Thus, the present work has as its object of study the judicialization of medicinal products with a focus on the doctrinarian positions on the topic, especially regarding the judicial demand for provision of medicines and the State difficulty in provide them due to budgetary constraint.
Key-words: Health, medicines, judicialization, economy, budgetary limits.
El derecho a la salud y la judicialización de los MEDICAMENTOS
RESUMEN
Los derechos sociales estampado en la Constitución Federal de 1988 han estado de derechos fundamentales y, por lo tanto, son indispensables a todos los ciudadanos brasileños y debe ser asegurado con la máxima eficacia. Entre las filas de los derechos sociales tiene el derecho a la salud, lo que garantiza la vida humana. La constitucionalización del derecho a la salud ha traído un poder normativo directo a las autoridades públicas que buscan políticas públicas con el propósito de la aplicación de ese derecho. El problema surge cuando no hay políticas eficientes, o cuando las políticas públicas existentes no responden a preguntas peculiares, que da lugar a la necesidad de buscar la realización de la norma constitucional por el Poder Judicial. Por lo tanto, el presente trabajo tiene como objeto de estudio la judicialización de los medicamentos con un enfoque en la doctrinarian posiciones sobre el tema, especialmente en lo que se refiere a la demanda judicial por la provisión de medicamentos y la dificultad del Estado en les proporciona debido a restricciones presupuestarias.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Camila Parmezan Olmedo y Munirah Muhieddine (2016): “Direito à saúde e a judicialização de medicamentos”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (abril-junio 2016). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/02/medicamentos.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/CCCSS-2016-02-medicamentos
1. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 tem como princípio fundamental oferecer à população condições para que viva uma vida digna. Para tanto, confere direitos que podem tanto proteger os cidadãos contra o arbítrio do Estado quanto exigir a intervenção estatal; os últimos são os denominados direitos sociais que requerem a atuação positiva do Poder Executivo para serem plenamente exercidos.
Assim, os direitos sociais se diferenciam por necessitar do auxílio do poder público para que sejam concretizados, não bastando a mera menção no texto constitucional. Dentre estes direitos, dispostos no art. 6º da Lei Maior, se destaca a saúde, um direito reconhecido nacional e internacionalmente como um direito fundamental.
A Constituição Federal dispõe no artigo 196 que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, dessa forma, confia-se ao Estado a efetivação do direito ao acesso à saúde no Brasil.
Esta constitucionalização do direito a saúde trouxe uma força normativa direta que faz com que o poder público busque políticas públicas no intuito de efetivá-lo. O problema surge quando não há políticas eficientes ou quando as Políticas Públicas existentes não atendem questões peculiares, o que motiva o cidadão a buscar a concretização da norma constitucional através do Poder Judiciário.
O Estado enfrenta desde 1988 uma série de contrastes jurídicos, pois embora a norma constitucional garanta a efetivação da saúde, esta nem sempre é atendida como o cidadão espera, surgindo assim a figura do juiz como protagonista na garantia do fornecimento de tratamentos e medicamentos que nem sempre são disponíveis a todos, o que dá abertura para questionamentos acerca da eficiência do Estado.
Os magistrados têm utilizado da ampla interpretação sobre a norma constitucional e a eficácia dos direitos fundamentais para fornecer medicamentos e tratamentos, por vezes de alto custo, acabando por, em determinados casos, atribuir de forma bilateral o que deveria ser coletivo.
Este impasse entre a economia do país e a necessidade de efetivação dos direitos sociais vem se tornando cada vez maior nos tribunais que se tornam palco para o questionamento: até que ponto o direito de um cidadão pode sobressair ao direito de todos?
2. Direito a Saúde: constitucionalização e judicialização
Além de sua previsão no capítulo dos direitos sociais, o direito à saúde recebeu uma seção própria na Constituição Federal (art. 196 ao art. 200), no qual é fixado como um dos elementos da seguridade social, junto à previdência e a assistência social. 1
Em vista disso, a saúde teve algumas coordenadas previamente traçadas pelo legislador, tais como seus objetivos, os quais se caracterizam por incluir a busca pela universalidade e equidade no fornecimento desse direito, isto é, a prestação do direito à saúde a todos de forma igualitária.
Ao prever constitucionalmente este direito, o legislador determinou ainda que a prevenção e o tratamento de doenças dependem da atuação do Estado, o qual deve proteger os cidadãos através da medicina curativa e preventiva 2, sempre tendo em vista que deve proteger a saúde e seu acesso por todos.
Para Emerson Gonçalves (2011:103), o direito à saúde é um dos direitos sociais mais importantes e o que mais requer o envolvimento do Estado, razão pela qual afirma que ele jamais deve ser negado.
Ocorre que, como um direito social, a saúde tem duas dimensões, uma individual e outra coletiva, que impossibilitam a plena concessão desse direito, especialmente no que tange à distribuição dos recursos econômicos do Estado. Isto porque, ao conceder tratamentos ou medicamentos mais onerosos a um só cidadão, poder-se-á estar privando os demais dos mesmos direitos em razão dos custos aplicados, o que poderia infringir a igualdade pretendida pela Constituição.
Como qualquer direito fundamental, a saúde não tem caráter absoluto frente a outros direitos, de forma que em determinados casos, pode ser relativizada, como ocorre em demandas por medicamentos que são negadas pelo Estado.
Em razão disso, o direito à saúde vive um momento de polêmica acerca da questão referente à concessão de medicamentos de alto custo: será um direito que tem o condão de ultrapassar a capacidade econômica do Estado ou pode ser reduzido em certas situações em prol do bem comum?
Para considerar as respostas para essas perguntas é importante entender como são determinados os medicamentos essenciais à saúde da população.
A Portaria nº 3.916, de 30 de outubro de 1998, aprovou a Política Nacional de Medicamentos que trata da segurança, eficácia, qualidade e do acesso aos medicamentos considerados essenciais à população, os quais são aqueles básicos e indispensáveis para atender a maioria dos problemas de saúde da população, conforme dispõe a citada Portaria.
Com base nas diretrizes dadas pela norma, o Ministério da Saúde define a lista de medicamentos essenciais através Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) que é referência para as listas estaduais e municipais.
Os medicamentos listados são concedidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e todos podem ter acesso, na medida da capacidade financeira do ente federado. Ao faltar um dos remédios listados, o ente deve realocar recursos para garantir a sua oferta.
De acordo com o art. 23, II, da Constituição Federal, é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde, portanto são solidariamente responsáveis pela oferta de medicamentos, manutenção dos hospitais, dentre outros, assim, do ponto de vista da legislação, é indiferente para o cidadão quem garantirá seu direito à saúde, desde que seja capaz de exercê-lo.
Ao tratar de medicamentos listados pelo Sistema Único de Saúde, o argumento de que há dificuldade orçamentária em provê-los é reprovado por alguns autores, tais como Wal Martins (2008: 65) que afirma que:
Não poderá qualquer ente da federação eximir-se da responsabilidade de assegurar às pessoas desprovidas de recursos financeiros o acesso à medicação ou congênere necessário à cura, controle ou abrandamento de suas enfermidades, sobretudo as mais graves, alegando ser responsabilidade de outro ente federado, ou ainda, de que este atendimento está vinculado a previsão orçamentária, pois o SUS é composto pela União, Estados-membros e Municípios.
Mesmo havendo a garantia constitucional de recebimento dos meios necessários para uma vida saudável, o qual deve ser proporcionado entre os entes federados de forma comum, o acesso à saúde e a medicamentos encontra obstáculos, especialmente a limitação do orçamento público.
3. Recursos financeiros da Administração Pública e Judicialização
Quando o litígio se refere a um remédio ou insumo que está na lista, mas não está disponível para a sociedade, o problema é tem menos debates, uma vez que o próprio Poder Executivo se submeteu àquela situação e deverá buscar uma forma de realocar recursos e prover aquilo que definiu como essencial.
Por outro lado, ao tratar de medicamentos ou insumos não previstos pela lista do Sistema Único de Saúde, surgem inúmeras discussões doutrinárias, estando de um lado os defensores da intervenção do Poder Judiciário na atividade administrativa e de outro os que condenam o ativismo judicial.
A judicialização é a maneira que o cidadão tem de obter um direito que deveria receber administrativamente, valendo-se da justiça.
As demandas requerendo medicamentos não suportados pelo SUS fundamentam-se na responsabilidade constitucional do Estado em assegurar o direito à saúde, apontando a responsabilidade solidária dos entes públicos para garantir o medicamento ao cidadão.
Ao diagnosticar uma doença, o cidadão tem direito de buscar o Poder Público para ajudá-lo na medicina preventiva, concedendo-lhe gratuitamente serviços médicos, quartos em hospitais, medicamentos, etc. Esta situação deveria se repetir a todos de forma igualitária independentemente da situação, no entanto, a universalidade característica do direito à saúde garante o atendimento a todos, nacionais e estrangeiros, abrangendo uma grande quantidade de pessoas que necessitam do serviço, no entanto, o Estado tem restrita capacidade econômica de provê-lo de forma satisfatória a todos. 3
Esta situação ocorre especialmente em decorrência de doenças raras, as quais geralmente têm um custo elevado, ou também dos casos de eventuais medicamentos experimentais que ainda não têm base científica para serem introduzidos livremente no mercado e, por essas e outras razões, não foram listados pelo Ministério da Saúde, embora tenham indícios de que seriam significativos para o tratamento de determinadas doenças.
Assim, no momento em que o indivíduo se depara com o alto custo do tratamento de uma doença e não tem condições de arcá-los por si mesmo, tenta requerer o auxílio do Estado que nega sob o argumento de falta de recursos orçamentos. Frente à negativa, o cidadão tenta assegurar seu direito através de ações judiciais, o que tem acontecido cada vez mais, visto que com a difusão da informação e a melhoria no acesso à justiça os cidadãos têm maiores conhecimentos sobre seus direitos e mais condições de buscarem a tutela jurisdicional.4
Atingir o Poder Judiciário para concretizar um direito é uma das formas de exercer a cidadania e não há dúvidas de que a inércia da administração pública não pode ser um obstáculo às necessidades da população.
Porém, não se pode esquecer que o funcionamento do Estado depende da harmonia entre os três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, de maneira que um não pode interceder nas atribuições do outro.
Ao decidir o caso concreto, o Judiciário não deve intervir na discricionariedade do Executivo, sob pena de que uma ocorrência individual influencie negativamente na dimensão coletiva. Esta é a posição de quem condena a judicialização dos direitos sociais, amparando-se nos conceitos de democracia para afirmar que não pode um juiz ou um tribunal definir os caminhos a serem traçados pela sociedade, uma vez que os julgadores não são representantes eleitos pelo povo e, por isso, não atendem a vontade da maioria.
Com este argumento, os críticos à judicialização impõem que o Poder Judiciário tenha limites em sua atuação quanto à livre concessão de medicamentos e tratamentos de saúde em nome da tripartição dos poderes.
De outro lado, há defensores da judicialização no sentido de que mesmo a maioria não pode se sobrepor à um direito fundamental como a saúde, sendo assim, ao analisar um direito constitucional e garantir justiça ao caso concreto, ainda que seja para proteger um único indivíduo, o Poder Judiciário estaria agindo em prol da democracia, já que estaria defendendo valores e direitos fundamentais.
É a posição de Luiz Vianna (1999: 25):
Isto é judicialização, buscar através do judiciário o que deveria ser oferecido de forma “amigável” pela administração pública. Entende-se por judicialização a valorização do Poder Judiciário como uma entidade que preencha um vazio e devolva a sociedade um sentimento de justiça. A Judicialização é um mero indicador de que a justiça se tornou o último refúgio de um ideal democrático.
Com relação ao direito à saúde, por ter correlação com o direito à vida e à dignidade da pessoa humana, há uma tendência em aprovar a judicialização e o ativismo judicial, sendo considerado como um direito mais importante que supera a limitação econômica do Estado.
Mas, não há como negar que a escassez de recursos (e sua justa distribuição) é de grande relevância para o atendimento de doenças excepcionais e para a disposição de medicamentos de alto custo.
Para Luis Roberto Barroso (2008: 89), nos últimos anos a Constituição Federal conquistou verdadeira força normativa, no entanto, a dificuldade em determinar a responsabilidade de cada ente federativo na prestação da saúde pode também interferir no modo como este direito tem recaído sempre na mesma impossibilidade justificada pela questão financeira. Ainda, critica a judicialização excessiva que interfere na distribuição do direito.
O sistema, no entanto, começa a apresentar sintomas graves de que pode morrer da cura, vítima do excesso de ambição, da falta de critérios e de voluntarismos diversos. Por um lado, proliferam decisões extravagantes ou emocionais, que condenam a Administração ao custeio de tratamentos irrazoáveis – seja porque inacessíveis, seja porque destituídos de essencialidade - , bem como de medicamentos experimentais ou de eficácia duvidosa, associados a terapias alternativas. Por outro lado não há um critério firme para aferição de qual entidade estatal – União, Estados e Municípios – deve ser responsabilizada pela entrega de cada tipo de medicamento. Diante disso, os processos terminam por acarretar superposição de esforços e de defesas, envolvendo diferentes entidades federativas e mobilizando grande quantidade de agentes públicos.
A Constituição Federal de 1988 tem como objetivo atender a todos, mas pela situação atual do país não há como atender a todas as demandas sem prejudicar a coletividade.
Há que ser levado em consideração a questão da possibilidade da Administração Pública gerir, de acordo com o orçamento destinado a saúde, o pagamento das condenações aos tratamentos acima descritos, de forma a evitar minorar o acesso a saúde dos demais.
O aumento das demandas judiciais vem trazendo prejuízos de grande escala ao Poder Público, que acaba não tendo recursos para criação de novas políticas públicas de efetivação do direito a saúde.
Nesta linha de averiguação, Jussara Soares e Aline Deprá 5 (2012) argumentam que “A transferência de recursos previamente designados ao provimento das políticas públicas, para o cumprimento de mandados judiciais, agrava a escassez de medicamentos na rede própria do SUS, haja vista a limitação dos recursos e a necessidade de planejamento baseado nas políticas de saúde, para sua utilização.”
Interessante no presente caso, o dado citado no trabalho acadêmico das mesmas autoras, onde trata da Audiência Pública Na Audiência Pública nº 4/2009, convocada pelo então Presidente do Supremo Tribunal Federal Ministro Gilmar Mendes, fala do posicionamento do Ministro da Saúde na época, José Gomes Temporão (2009, p. 2) 6:
Está nas mãos do Judiciário brasileiro a responsabilidade de julgar casos em que, em muitas vezes, prescrições médicas privilegiam medicamentos extremamente caros em situações em que o SUS oferece remédios eficazes para o mesmo tipo de tratamento a custo muito mais compatível. Impressiona e preocupa como a pressão pela incorporação de procedimentos experimentais, produtos não registrados no país, tecnologias sem forte consenso entre especialistas, que envolvem milhares de desdobramentos judiciais, têm distorcido a imagem da gestão do SUS, incorretamente tratada como dificultadora do acesso a procedimentos e medicamentos. Transferir para o SUS a responsabilidade por atendimento realizado fora de suas normas operacionais pode gerar conseqüências como a desregulação do acesso assistencial, perda da integralidade e redução de controle e avaliação da atenção prestada.
Octavio Ferraz (2010: 9) expõe suas considerações sobre quanto aos gastos públicos na implementação do direito à saúde:
A partir das considerações acima expostas, verifica-se que o acolhimento pelo Poder Judiciário de ações que visam obrigar o Poder Público a custear prestação de saúde não abrangida pelas políticas públicas tem provocado efeitos que afetam diretamente a programação orçamentária e financeira do Estado, que, por sua vez, prejudicam a formulação de políticas e o provimento de bens e serviços em outras áreas demandadas pela sociedade. 7
Ao decidir a ação judicial, o magistrado ou o tribunal pode incorrer em erro, já que na ação individual eles se atêm a uma visão exclusiva, sem analisar o panorama amplo que corresponde àquele direito, razão pela qual correm o risco de causar danos ao orçamento público, pois, em regra, não conhecem os elementos indicados pelo gestor público na implementação do direito.
Para Zélia, não há como existir proteção do direito sem a contrapartida financeira 8, por isso a judicialização de medicamentos e insumos quando ocorre de forma pontual e isolada, não é a forma ideal de concretizar o direito à saúde, haja vista que violaria os objetivos de universalidade e equidade 9 estabelecidos pela Constituição Federal.
Em contrapartida, o Conselho Nacional de Justiça tomou posição sobre o debate e se manifestou da seguinte forma:
Os ideais e estratégias de governo encontram‑se predominantemente ligados aos problemas e desafios que surgem no curso do mandato. Neste contexto de contingência dos programas e da necessidade de esta‑ belecer prioridades de ação no âmbito do governo, é comum que o Estado condicione sua efetivação aos limites financeiros fáticos e à escassez de recursos. O direito, portanto, passa não mais a ser visto de forma absoluta, podendo ser relativizado sob o argumento da insuficiência de recursos. Tanto em tribunais quanto no próprio âmbito dos juristas, o debate acerca da relação entre direitos e custos econômicos tem crescido e, inclusive, tem sido objeto de defesa do Estado em diversas ações judiciais. Observa‑se que os diversos profissionais do direito, estudantes, professores e doutrinadores tendem a “se apaixonar” por este argumento e a reproduzirem de maneira ingênua e superficial o que elas significam em seu cotidiano. Outro equívoco das discussões sobre argumentos econômicos restritivos é seu efeito perverso: a “luta entre cidadãos”. Abandona‑se a ideia de cidadania e de sujeito de direitos para colocar um cidadão contra o outro de maneira fortemente egoística. A “luta entre cidadãos” afasta o verdadeiro foco: o dever do Estado de efetivar direitos e promover políticas públicas ao máximo. Outro equívoco refere‑se à inexistência de ônus da prova de quem utiliza o argumento da reserva do possível. Ao ser reproduzida como um dogma, isto é, como um ponto de partida inquestionável, desaparece o dever do Estado de provar que realmente não possui recursos financeiros para determinada política. De fato, este argumento econômico de restrição de direitos tem sido amplamente utilizado com forte dose de senso comum e sem versar de maneira cuidadosa sobre seus efeitos. Ele tem sido equivocadamente propagado para causar um cenário de desobrigação do Estado sem qualquer dado concreto sobre a escassez de recursos ou sobre como são alocados. De modo algum se pretende negar a existência de municípios ou estados com sérios problemas de recursos financeiros, principalmente quando se trata de direitos sociais, mas isso deve ser visto e apreciado com bastante seriedade e cautela pelas instituições jurídicas.10
Contrapondo os argumentos, tem-se que deve existir um cuidado para não transformar o debate em algo sedimentado, impondo o mesmo argumento para todos os casos que se apresentam ao Poder Judiciário.
Desta forma, a controvérsia que envolve a questão de medicamentos assume um nível complexo, visto que contrapõe a efetivação do direito social fundamental à saúde e a limitação dos recursos financeiros que são ajustados para atender prioridades.
Contudo, ao defender a situação econômica dos entes federados como um obstáculo à concessão de medicamentos, a afirmação não pode ser genérica ou padronizada, há de se investigar a situação real da administração pública que justifica a negativa do direito para que assim, ao menos haja embasamento para questionar a legitimidade da ação do Poder Judiciário quando conceder um direito individual frente à situação coletiva.
4. As experiências da judicialização nos tribunais brasileiros
O Conselho Nacional de Justiça, no ano de 2012, realizou uma pesquisa nos tribunais brasileiros de grande porte a fim de analisar a questão da judicialização da saúde, buscando compreender que motivo estaria levando a população a buscar os tribunais, além de verificar a quantidade de ações ajuizadas.
Tendo em vista que a pesquisa pelo CNJ levou em consideração os anos de 2011 e 2012, os dados numéricos quanto aos processos em julgamento estão desatualizados, no entanto, as considerações de experiência acerca da integração (ou da ausência desta) entre Poder Judiciário e Poder Executivo na busca pela efetivação do direito à saúde continuam atuais e contribuem para o presente trabalho no intuito de ilustrar em experiências práticas a dimensão do debate apresentado:
Reconhecimento de que as instituições jurídicas podem influenciar a política pública, então é importante fazer de uma maneira responsável e dialógica: as experiências partem do pressuposto de que a passividade institucional pode ser equilibrada com uma atuação mais ativa e extrajudicial nas políticas públicas de saúde, com foco especial no estabelecimento de pactos e acordos com os gestores para a atuação em conjunto.
Compreensão de que o modelo adversarial não é o mais adequado: a valorização da extrajudicialidade aponta para a necessidade de se criar alternativas ao modelo adversarial do Judiciário; estas alternativas podem ser desenvolvidas pelo próprio Judiciário e pelas demais instituições jurídicas, sem prejuízo dos deveres relacionados à atividade judicante. Em todos os casos, observou‑se redução das ações judiciais que versavam sobre o conteúdo da experiência.
Valorização do diálogo institucional: observa‑se a aposta das instituições jurídicas em promover e desenvolver radicalmente o diálogo institucional entre si e com a gestão de saúde, o que possibilita o desenvolvimento de estratégias extrajudiciais para a efetivação desse direito e, além disso, possibilita que o diálogo e a alteridade sejam ferramentas essenciais para o agir em saúde.
Atuação preventiva e curativa: uma característica importante é que as experiências não tiveram atuação meramente curativa, isto é, buscando resolver problemas de efetivação do direito à saúde, mas também preventiva. Isto permitiu que, de modo extrajudicial, as instituições políticas e jurídicas pudessem atuar não somente de forma consequencialista no assunto, mas também nas causas e de maneira preventiva.
Resistência inicial e busca por sensibilização interna nas instituições jurídicas e políticas: em virtude do seu caráter inovador, as experiências encontraram resistência inicial nas instituições jurídicas e/ou na gestão para que pudessem ser iniciadas. As resistências foram superadas principalmente a partir de um processo de sensibilização dessas instituições. Algumas delas, inclusive, só acreditaram e aderiram ao projeto depois que presenciaram os primeiros resultados positivos.
Pouca articulação com os Conselhos de Saúde: um dado comum às experiências é que, apesar de privilegiarem o diálogo institucional entre as instituições políticas e jurídicas, não há uma incorporação cotidiana das instituições participativas, em especial os Conselhos de Saúde.11
A pesquisa do Conselho Nacional de Justiça demonstra a importância do diálogo entre o Poder Judiciário e o Poder Executivo na busca pela efetivação de direitos fundamentais a fim de manter a harmonia entre os poderes, isto porque, como foi explicado anteriormente neste trabalho, a atuação judicial não pode apressar a situação econômica do Estado, contudo, o Estado também deve fazer o necessário para realocar recursos e garantir o direito constitucionalmente protegido.
A experiência explicada pelo CNJ sobre a atuação preventiva e curativa realça essa necessidade da atuação conjunta das instituições políticas e jurídicas, tendo destaque a questão dos Conselhos de Saúde que têm sua participação nas políticas de saúde prejudicada, afetando a participação da população.
A situação da judicialização da saúde ainda é bastante questionada e mesmo com a demonstração do Conselho Nacional de Justiça sobre os reflexos daquela nas políticas públicas e nos limites orçamentários ela se mantém como um debate acalorado pela doutrina, de maneira que as pesquisas neste campo devem ser incentivadas.
CONCLUSÃO
Quando determina o aumento de despesas, o Poder Judiciário pode acabar desorganizando as políticas públicas de saúde, de maneira que situações individuais podem ter reflexos negativos na universalidade do atendimento.
Ao estabelecer no art. 196 que o acesso à saúde deve ser garantido mediante políticas sociais e econômicas, a Constituição Federal confere essa responsabilidade ao Poder Executivo, assim o Judiciário deve atuar excepcionalmente, certificando-se de que os demais poderes estão cumprindo suas obrigações constitucionais; caso elas estejam sendo cumpridas, na medida das possibilidades do Estado, o Judiciário deve estar atento para não cometer equívocos que possam comprometer a ordem pública.
O que deve ser levado em consideração é o caráter universal e igualitário do atendimento à saúde, não podendo existir privilégio para aqueles que têm condições de buscar o auxílio da Justiça.
A judicialização de medicamentos e tratamentos não abrangidos pelo Sistema Público de Saúde gera uma insegurança coletiva, pois os excessos comprometem o atendimento universal, dificultando a ampliação das políticas existentes e o acesso pela população.
Assim, é importante o diálogo e o trabalho conjunto entre Poder Executivo e Judiciário na maneira como deve ser efetivado o direito à saúde, a fim de que não ocorram distinções voltadas a quem tem acesso à justiça, tendo o devido cuidado com as situações individuais sem negligenciar a necessidade coletiva.
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* Mestranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná. Docente no Curso de Graduação em Direito no Centro Universitário Dinâmica das Cataratas. Advogada. Endereço eletrônico: adv_camila@outlook.com
** Mestranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Docente no Curso de Graduação em Direito no Centro Universitário Dinâmica das Cataratas. Advogada. Endereço eletrônico: munirahmr@outlook.com
1 No Brasil, a seguridade social é o conjunto de ações que visam a uma sociedade igualitária, buscando erradicar a pobreza e reduzir as desigualdade sociais. Ela compreende a previdência social, a saúde e a assistência social. A previdência social tem caráter contributivo e intenciona auxiliar os trabalhadores e seus dependentes; a saúde é direito de todos e não possui restrição de beneficiários e a assistência social é direcionada a quem dela necessita, ou seja, àqueles que não têm condições de prover a própria manutenção.
2 A medicina curativa se caracteriza por tratar a doença já instalada, utilizando-se, para tanto, de medicamentos. Por outro lado, a medicina preventiva tem o intuito de prevenir que as doenças apareçam, estabelecendo determinados cuidados para evitá-la através de informação, vacinas, entre outros.
3 Realizada a pesquisa no Ministério da Saúde no intuito de demonstrar em números as despesas e receitas relativas à saúde pública, não foi possível alcançar o resultado pretendido, haja vista que o site <www.portalsaude.saude.gov.br/> está temporariamente indisponível. Tentativa de acesso na primeira quinzena de Maio de 2016.
4 A afirmação sobre o aumento do número de ações judiciais que têm como objeto o requerimento de medicamentos é baseada em estatística realizada pelo Ministério da Saúde que constatou que o aumento da quantidade de ações, a nível federal, foi superior a 700% no período de 2005 a 2007 e que, com isso, os gastos com medicamentos aumentaram em cerca de 104%.
5 Ligações perigosas: indústria farmacêutica, associações de pacientes e as batalhas judiciais por acesso a medicamentos. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312012000100017> Acesso em: 16/05/2016
6 Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/artigo_ministro.pdf>.
7Disponível em: http://portal2.tcu.gov.br/portal/pls/portal/docs/2055752.PDF Acesso em: 10/05/2016
8 Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/Anais/sao_paulo/2307.pdf> Acesso em: 10/05/2016
9 O Princípio da Universalidade garante que todos no Brasil têm acesso aos serviços de saúde e o Princípio da Equidade busca diminuir as desigualdades no tratamento das pessoas que buscam a saúde pública, assim todos os cidadãos são iguais perante o sistema de saúde, devendo ser atendidos da mesma forma em todos os serviços.
10 Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/destaques/arquivo/2015/06/6781486daef02bc6ec8c1e491a565006.pdf> P. 133 Acesso em: 16/05/2016
11 Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/destaques/arquivo/2015/06/6781486daef02bc6ec8c1e491a565006.pdf> P. 129-130 Acesso em: 16/05/2016
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