Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


HIV E DIREITOS HUMANOS: Aspectos Interdisciplinares dos Profissionais da Saúde no Resgate da Dignidade da Pessoa Humana

Autores e infomación del artículo

Ivandro Marcelo Kukul

UDC/Facemed, Brasil

ivandromarcelo@yahoo.com.br

RESUMO
O surgimento do vírus HIV no início dos anos 80 trouxe ao mundo uma nova doença, que ultrapassou a esfera física e foi atingir a esfera moral do ser humano. Com o advento da AIDS, o Estado Democrático de Direito precisou estabelecer normas garantidoras de dignidade aos doentes, para que questões sócio-culturais e morais não prevalecessem sobre a prevenção, o tratamento e a reinserção social dos indivíduos contaminados. Nesse contexto, a abordagem profissional no processo saúde doença exige o implemento de práticas interdisciplinares na condução do tratamento e no alcance da dignidade da pessoa humana. O presente artigo pretende analisar como a interdisciplinaridade pode contribuir nas ações de todos os profissionais que lidam com a prevenção e o tratamento dos portadores da doença, visando precipuamente o aspecto da dignidade da pessoa humana, numa sociedade que perpetua o preconceito e a discriminação, em função dos estigmas que imperam no meio social.
Palavras chaves: Aids, Estado Democrático, Dignidade, Interdisciplinaridade, Práticas interdisciplinares.
RESUMEN
La aparición del VIH en la década de los 80 trajo al mundo una nueva enfermedad, que excede el ámbito físico y estaba llegando esfera humana moral. Con el advenimiento del SIDA, la legislación de un Estado democrático tuvo que establecer normas garantes de la dignidad de los pacientes, por lo que los temas socio-culturales y morales no prevalecen sobre la prevención, tratamiento y reinserción social de las personas infectadas. En este contexto, el enfoque profesional en la enfermedad de salud requiere el implemento práctica interdisciplinaria en la realización de un tratamiento y el alcance de la dignidad humana. Este artículo pretende analizar cómo la interdisciplinariedad puede contribuir en las acciones de todos los profesionales que se ocupan de la prevención y el tratamiento de portadores de la enfermedad, apuntando principalmente el aspecto de la dignidad humana en una sociedad que perpetúa el prejuicio y la discriminación en debido al estigma que prevalecen en el entorno social.
Palabras clave: SIDA, Estado Democrático, Dignidad, Interdisciplinaridad, Prácticas Interdisciplinares.



Para citar este artículo puede uitlizar el siguiente formato:

Ivandro Marcelo Kukul (2016): “HIV e Direitos Humanos: Aspectos Interdisciplinares dos Profissionais da Saúde no Resgate da Dignidade da Pessoa Humana”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (abril-junio 2016). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/02/hiv.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/CCCSS-2016-02-hiv


1. INTRODUÇÃO
O surgimento da Aids no início dos anos 80, que caracterizou-se inicialmente por acometer indivíduos de determinados grupos específicos foi e continua sendo responsável pela mudança de comportamento de pessoas do mundo inteiro.
Tais modificações comportamentais ocorreram em função daquela que seria considerada anos depois como uma pandemia que fulminou e continua dizimando milhares de pessoas em todo o universo.
O HIV (Human Immunodeficiency Virus), responsável pelo surgimento da AIDS (Acquired Immune Deficiency Syndrome), tem mudado drasticamente a vida das pessoas, principalmente dos portadores assintomáticos, assim entendidas as pessoas que convivem com o vírus, sem, no entanto, manifestar quaisquer tipos de sinais ou sintomas.
Preocupação de autoridades sanitárias de todas as esferas de governo, tanto nacional quanto internacional, a doença, por ser silenciosa em seus estágios iniciais, apresenta, além das complicações de ordem física e psíquica no indivíduo, danos que ultrapassam a esfera da saúde, repercutindo na esfera moral individual dos portadores, afetando a dignidade da pessoa humana.
Muitas vezes, esse direito fundamental tem sido relegado a segundo plano em função da discriminação e preconceito enfrentado na sociedade, próprios dos estigmas que foram criados desde o surgimento da doença.
A Dignidade da pessoa humana é direito humano indisponível, tutelado pela Constituição Federal Brasileira, estando elencada no artigo 1º, inciso III, premissa de garantia a todos os indivíduos.
Assim, a dignidade pode ser definida como
A palavra que define uma linha de honestidade e ações corretas baseadas na justiça e nos direitos humanos, construída através dos anos criando uma reputação moral favorável ao indivíduo. Respeitando todos os códigos de ética e cidadania e nunca transgredindo-os, ferindo a moral e os direitos de outras pessoas.
Neste contexto, o enfrentamento das DST/HIV/Aids não pode ser dissociado dos direitos humanos. Desde o início da pandemia, uma importante bandeira dos direitos humanos foi o reconhecimento do direito ao acesso universal à prevenção, diagnóstico e tratamento da doença.
Infelizmente, o estigma e a discriminação mantêm-se como sérios oponentes ao acesso universal no que tange a prevenção, diagnóstico e tratamento da doença, embora o desenrolar de três décadas desde o seu surgimento demonstram grandes avanços nesta seara.
A pretensão do presente artigo é compartilhar com a comunidade acadêmica e comunidade em geral, as questões concernentes aos direitos humanos das pessoas que convivem com HIV/Aids, analisando  de que maneira a interdisciplinaridade pode contribuir nas ações de todos os profissionais que lidam com a prevenção e o tratamento dos portadores da doença, visando precipuamente o aspecto da dignidade da pessoa humana, numa sociedade que perpetua o preconceito e discriminação, em função dos estigmas que imperam no meio social.

2. DOS DIREITOS HUMANOS
O Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC, de 1966, ratificado pelo Brasil em 1992, dispôs a respeito do direito de todas as pessoas gozarem do melhor estado de saúde física e mental possível a ser atingido.
Artigo 12.º 1. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas de gozar do melhor estado de saúde física e mental possível de atingir. 2. As medidas que os Estados Partes no presente Pacto tomarem com vista a assegurar o pleno exercício deste direito deverão compreender as medidas necessárias para assegurar: a) A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o são desenvolvimento da criança; b) O melhoramento de todos os aspectos de higiene do meio ambiente e da higiene industrial; c) A profilaxia, tratamento e controle das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras; d) A criação de condições próprias a assegurar a todas as pessoas serviços médicos e ajuda médica em caso de doença.
Neste sentido, mister reforçar que o Estado, enquanto entidade formada para a organização da sociedade e responsável pela manutenção dos seus indivíduos, tem a responsabilidade pelo controle, tratamento e profilaxia de doenças epidêmicas, além de garantir à população a completa informação e a garantia da dignidade humana.
O Protocolo de San Salvador, 1988, ratificado pelo Brasil em 1996, estabelece, além do bem estar físico e mental, o direito à saúde social.
Artigo 10. Direito à saúde. 1. Toda pessoa tem direito à saúde, entendida como o gozo do mais alto nível de bem‑estar físico, mental e social. 2. A fim de tornar efetivo o direito à saúde, os Estados Partes comprometem‑se a reconhecer a saúde como bem público e, especialmente, a adotar as seguintes medidas para garantir este direito: a. Atendimento primário de saúde, entendendo‑se como tal a assistência médica essencial colocada ao alcance de todas as pessoas e famílias da comunidade; b. Extensão dos benefícios dos serviços de saúde a todas as pessoas sujeitas à jurisdição do Estado; c.Total imunização contra as principais doenças infecciosas; d. Prevenção e tratamento das doenças endêmicas, profissionais e de outra natureza; e. Educação da população sobre prevenção e tratamento dos problemas da saúde; e f. Satisfação das necessidades de saúde dos grupos de mais alto risco e que, por sua situação de pobreza, sejam mais vulneráveis.

Neste enfoque, cumpre salientar que as pessoas que convivem com HIV/Aids, não obstante as demais agressões sofridas no convívio em comunidade, possuem um diferencial, quando vistas no meio em que vivem, em função de seu estado, ou seja, como são percebidas pelos seus semelhantes.
Merece trazer à baila das discussões o Decreto 678, de 06 de novembro de 1992, que promulgou a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969, que em seus artigos 5º e 11 elenca os direitos à integridade pessoal e à proteção da honra e dignidade das pessoas, o que deve ser levado em consideração quanto à dignidade das pessoas que vivem com HIV/Aids.
Artigo 5º - Direito à integridade pessoal
1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.
(...)
Artigo 11 - Proteção da honra e da dignidade
1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.

Forçoso lembrar que atualmente não mais se fala em grupos de risco, como outrora se denominavam as pessoas que apresentavam uma tendência aumentada de disseminar a infecção em relação aos demais semelhantes (prostitutas, homossexuais, usuários de drogas, profissionais da saúde, etc.). Hoje, tem-se o que se convencionou chamar “atitude de risco”, ou seja, as pessoas cujo comportamento em relação aos meios de transmissão da doença são capazes de torná-las mais ou menos suscetíveis ao evento danoso (infecção).
Preocupada com a tutela de seus destinatários, a Constituição Federal de 1988 cuidou da saúde nos artigos 196 a 200, ocasião em que o legislador expressamente definiu que a saúde é um direito de todos e dever do Estado, e que objetiva em seu fim principal, a redução de riscos de doenças e outros agravos.
Quer o legislador constituinte, dessa maneira, que os indivíduos gozem de plena saúde física, mental e social, porém, caso não possam gozar de tais atributos, tenham a proteção garantida do Estado quando da ocorrência de danos.
Na mesma esteira, a Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990, trouxe os princípios norteadores do Sistema Único de Saúde, instituindo que compete às três esferas de governo seguir as diretrizes previstas nos princípios elencados no artigo 7º da citada lei, em especial ao que estabelecem os incisos III e IV, que asseguram a preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral e a igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie.
PIOVESAN (2006), com brilhantismo esclarece o tema a partir da Declaração de Direitos Humanos, nos seguintes termos

Cabe realçar que a Declaração de 1948 inovou extraordinariamente a gramática dos direitos humanos ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade desses direitos. Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade. Indivisibilidade porque, ineditamente, o catálogo dos direitos civis e políticos é conjugado ao catálogo dos direitos econômicos, sociais e culturais.

E reforça suas conclusões no sentido de que
Torna-se, contudo, insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral e abstrata. Faz-se necessário a especificação do sujeito de direito, que passa a ser visto em sua peculiaridade e particularidade. Nessa ótica determinados sujeitos de direitos, ou determinadas violações de direitos, exigem uma resposta específica e diferenciada.

Assim, apropriando-se dos dizeres de COMPARATO (2010), temos que “a proteção da dignidade da pessoa é a finalidade última e a razão de ser de todo o sistema jurídico”.

3. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA VIVENDO COM AIDS

Atrelada ao fato de Direito Humano Fundamental, surge a ideia de dignidade do ser humano, enquanto pessoa que é destinatária de uma das maiores garantias constitucionais, marco do surgimento do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, para o qual foi criado.
Pela análise do artigo 1º da Constituição Federal, em seu inciso III, possível entender a intenção do legislador constituinte, quando coloca a questão da dignidade da pessoa humana logo no início dos artigos que descrevem os fundamentos de uma nova ordem Constitucional.
Nesse contexto, ao artigo 3º da Constituição Federal competiu estabelecer a não discriminação entre os seus destinatários, ou seja, uma garantia de forma a assegurar a todos os direitos humanos fundamentais, a supremacia do princípio da dignidade enquanto pessoa no seio da sociedade, livre de quaisquer formas de preconceitos, oriundos de estados diversos, como saúde, condição sexual, nível socioeconômico, escolaridade, sexo, cor, raça, entre outros.
Relacionada com a própria condição humana, a dignidade é a origem de todos os direitos fundamentais. Conforme preleciona Alexandre de Moraes (2005), ela
Concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.

Neste sentido, Roxana Cardoso Brasileiro Borges (2008) afirma que,
Constando a dignidade da pessoa humana de preceito constitucional, seu valor torna-se, explicitamente, um princípio, uma norma de dever ser, com caráter jurídico e vinculante, cuja carga axiológica tem caráter obrigatório e, por estar no topo do ordenamento jurídico como princípio fundamental, vincula todas as esferas jurídicas, informando, em especial, os direitos de personalidade, salientando a necessidade de se fazer uma interpretação civil-constitucional das normas presentes no Código.

A condição de estar vivendo com o HIV/Aids é enfrentada por muitos como um desafio, desde o momento do diagnóstico, por se insurgir uma completa mudança de atitude quanto às atividades do dia a dia, principalmente no que tange a prevenção da transmissão.
O papel dos profissionais da saúde, neste momento de transição na vida do portador é de suma importância. Há necessidade premente de poder compartilhar os anseios e angústias que surgem com essa nova condição. Embora as equipes de saúde estejam capacitadas para atender os indivíduos na sua universalidade, necessária a participação e compreensão pelos demais atores sociais, como, por exemplo, a família, o que representa uma abordagem interdisciplinar que facilita a adesão e o tratamento do indivíduo.
Como não existe cura, embora possua medicamentos altamente eficazes no bloqueio da replicação viral, o diagnostico de HIV/Aids ainda será encarado por muitos como sinônimo de morte. Não há como encarar com naturalidade um diagnóstico que provocará mudanças importantes no organismo do ser humano.
Em função do medo, e principalmente ante a falta de informação das pessoas, muitos indivíduos são discriminados no meio onde vivem. Relações familiares, relações de amizade, trabalhistas e socioafetivas sofrem em determinado grau, alguma forma de preconceito.
Neste momento, fundamental o entendimento pelo grupo social acerca da doença, e principalmente do tratamento natural que deve ser dispensado ao portador, pois em nada ajudará a segregação e a falta de atenção que surgem pelo medo das pessoas. Respeito, solidariedade, amparo, não discriminação e informação são palavras chaves na dignidade das relações com os portadores do vírus na busca pelos direitos humanos fundamentais.
Como ensina Sueli Dallari (1987):
Cada grupo terá suas demandas e sua compreensão sobre dignidade, qualidade de vida e bem-estar. Cada experiência de vida determinará o que significa ter saúde, a partir das compreensões subjetivas do que significa qualidade de vida, dignidade humana, bem-estar e cidadania.

A sociedade deve compreender que as pessoas que vivem com o vírus possuem os mesmos direitos de qualquer outro cidadão. Não reconhecer esses direitos significa negar o direito à cidadania de determinado grupo de pessoas, o que invariavelmente faz nascer a marginalização e estigmatização de uma parcela da população.
Se tais direitos não forem respeitados, o que se vê como uma doença passa a ser encarado como uma forma de sanção, uma pena aplicada a um determinado grupo de pessoas, equiparando-as aos moralmente criminosos.
Historicamente se constata que, frente a situações de epidemia, as coletividades têm reagido com padrões irracionais de comportamento, até pela ignorância técnica sobre as formas de transmissão e prevenção.
Nesse sentido, é de fundamental importância a aplicação da interdisciplinaridade nos grupos, a trabalhar seu aspecto coletivo.
ALVARADO PRADA (2006) de forma brilhante e esclarecedora apresenta o conceito de coletivo como
Um conjunto composto por pessoas cujas características individuais são diferentes (heterogêneas, diferenciadas), sujeitas à contínua mudança e têm relações constituídas num contexto espaço-temporal, mediante ações, objetivos e outros elementos ideológicos, políticos, sociais e culturais comuns.

E conclui o autor no sentido de que
O coletivo, como interação tanto de complexas diferenças como de elementos comuns entre as pessoas que o compõem, constitui-se em uma estrutura de relações imensuráveis, cuja dinâmica lhe confere características próprias e identificadoras. Diante disso, assim como não existem pessoas iguais, não existem coletivos iguais, mesmo sendo constituídos pelas mesmas pessoas.

A partir dessas premissas, os profissionais de saúde devem encarar os portadores de HIV/Aids em suas dimensões não só individuais como também coletivas, na busca de um ponto de equilíbrio nas ações desenvolvidas, abarcando o ser humano em todas as necessidades e elevando a autoestima e dignidade dos doentes.
As práticas interdisciplinares não podem ser pensadas desvinculadas das ações coletivas. Isso porque, a ocorrência de uma nova pandemia revela mudanças comportamentais e transforma toda a sociedade. Neste sentido, Arletty Pinel e Elisabete Inglesi (1996) bem esclarecem acerca do tema, pois
O moralismo, a hipocrisia e o descaso com que a sociedade brasileira reagiu ao aparecimento dos primeiros casos de aids no país não foram prerrogativas exclusivas nem do Brasil nem do nosso tempo. A história da humanidade está cheia de exemplos ilustrativos da tendência das sociedades a, num primeiro momento, negar a ameaça de qualquer epidemia. Dependendo das circunstancias em que ocorrem, as autoridades dão-se o direito de negligenciar as pragas ou de manipulá-las, para aumentar ou diminuir seu impacto ou para atribuir sua origem a grupos marginalizados. Foi assim com a hanseníase (lepra), a peste bubônica, a sífilis e a gripe espanhola, que geraram reações de histeria coletiva, punições injustas e falsas atribuições das causas das doenças a grupos discriminados por suas crenças religiosas ou por sua origem social. Os erros cometidos por nossos antepassados não tiveram a virtude de nos tornar mais lúcidos no enfrentamento de uma nova ameaça. Os cartazes sobre a aids quase nada diferem dos elaborados sobre a sífilis no início do século, e muitos de nós ainda acreditam que ela é uma doença de homossexuais, drogados e prostitutas.

Em relação à Aids, a situação se torna ainda mais prejudicada, por envolver valores morais, religiosos, éticos, comportamentais, enfim, tantos tipos de valores que são comuns nas sociedades.
Infelizmente, nas entrelinhas da Aids é possível descobrir outro tipo de doença, a doença do preconceito, da falta de informação, da falta de respeito e de solidariedade ao próximo, que em nada contribuem para a obtenção de um padrão dito “normal” na convivência em sociedade, e, além do mais, afrontam a dignidade que qualquer cidadão.
Surge a necessidade de repensar o diálogo sobre o assunto que é posto na mídia e na educação dos jovens. Qual é o real impacto que as campanhas publicitárias fazem surgir na sociedade? É possível deixar de lado o preconceito e a discriminação que são automáticos quando se fala em HIV/Aids? De que forma o Estado, enquanto garantidor de direitos e deveres do homem tem capacitado os educadores e profissionais que trabalham com HIV/Aids?
Estas são questões que por muito tempo perpetuarão o meio social. Não há aqui o intuito de trazer respostas prontas para os questionamentos apontados. O que se pretende é despertar a curiosidade e principalmente a sensibilização do ser humano, para que compreenda que esta realidade está presente cada vez mais intensamente no seu cotidiano.
A doença é uma realidade. Está presente em todos os cantos do Brasil e do Mundo, pois a facilidade de transmissão e a característica silenciosa do vírus são fatores preponderantes a serem considerados por todos.
Nessa discussão acerca de direitos humanos fundamentais, cabe a pergunta: acaso ser portador do vírus HIV/Aids é ser indigno de viver em sociedade?
Tranquilamente é possível concluir que tal questão é eivada de preconceitos. O grande problema é que a questão que envolve o HIV/Aids, diferentemente de outras doenças, trás junto do seu contexto o tabu de que a infecção é sinônimo morte ante o fato de ainda não existir a cura.
Não bastassem tantos traumas e conflitos que cada ser humano carrega consigo em função de questões individuais, que nem mesmo a ciência consegue desvendar, o portador do vírus ainda tem a saga de suportar o comportamento hostil de parcela da população desinformada.
O maior risco está na própria sociedade. A doença, quando bem conduzida e esclarecida, não oferece riscos ao meio social, pois o maior risco é o preconceito.

4. ASPECTOS INTERDISCIPLINARES NA ABORDAGEM E TRATAMENTO DA PESSOA VIVENDO COM AIDS

As variadas complexidades que se apresentam na atenção à saúde dos seres humanos vivendo com HIV/Aids demanda o investimento na integralidade das ações e do cuidado na busca pela dignidade da pessoa humana, entregando às equipes multiprofissionais o desafio da construção de uma abordagem interdisciplinar.
Nesse sentido, há que se aferir o aspecto coletivo nas ações de promoção da saúde, numa perspectivo que alcance os objetivos da interdisciplinaridade, conforme é possível observar nos dizeres de ALVARADO PRADA (2006), para quem
As ações de inter-relação entre pessoas são de fato as que constroem o tecido das coletividades e, por sua vez, são a materialização do agir coletivo. As pessoas, em suas ações cotidianas, se relacionam consigo mesmas, constituindo relações num contexto que é determinado pelo coletivo. Esse contexto tem também elementos de caráter histórico, temporal e topológico. Também tem especificidades ideológicas, políticas, culturais, educacionais e particularidades que lhe dão identidade ao coletivo.

A complexidade do tema envolvendo ações em saúde coletiva voltadas à dignidade da pessoa humana vivendo com HIV/Aids  exige, nos dizeres de VILLELA (2003), a participação de diferentes campos de saber, além de diversas dimensões da experiência humana.
Não é suficiente que os profissionais envolvidos no trato das questões relacionadas ao HIV/Aids interajam cordialmente ou compartilhem abordagens pontuais para o alcance de uma equipe interdisciplinar. É necessário investir nos aspectos de proteção aos direitos humanos, ampliando a possibilidade de modificar os comportamentos e atitudes dos profissionais da área de saúde, o que pressupõe uma ampla concepção do processo saúde-doença.
MATOS (2003) afirma que não há integralidade onde não haja troca de conhecimentos. Nesse sentido, o autor deixa claro que “a interdisciplinaridade e a circulação do conhecimento são fundamentais para a construção de práticas integrais”.
No mesmo sentido, importante trazer à baila os apontamentos de PINHEIRO (2003) para quem “a interdisciplinaridade refere-se à solidariedade do conhecimento e à preocupação do profissional em contribuir com o seu conhecimento para resolver o problema”.
JAPIASSU (1976) esclarece que a interdisciplinaridade diferencia-se da multidisciplinaridade, na medida em que essa evoca a justaposição dos recursos de várias disciplinas, sem exigir um trabalho de equipe e coordenado. A interdisciplinaridade não pode ser construída pela simples adição de todas as especialidades. Deve fundamentar-se na negação e na superação das fronteiras disciplinares.
A partir das perspectivas apontadas, é possível inferir-se que a interdisciplinaridade é referida enquanto proposta de saúde coletiva em resposta à complexidade dos processos saúde e doença, especialmente no que toca ao cuidado dispensado pela equipe de profissionais aos portadores de HIV/Aids. Nos dizeres de MINAYO (2003):
Tal proposta envolve questões de saber e poder das diversas disciplinas, sendo um obstáculo significativo, a experiência institucional fragmentada e departamentalizada comum aos profissionais.
As dificuldades vivenciadas por alguns profissionais em se articularem de forma a oferecer uma assistência integral e a desenvolverem um trabalho que vá além da multidisciplinaridade, são uma realidade nos diversos serviços que atendem pessoas vivendo com HIV/Aids. Tais dificuldades vão na contramão da garantia da dignidade da pessoa humana e fragilizam os direitos humanos, principalmente porque a fragmentação da assistência tornam-se insuficientes para atender à complexidade da Aids.
A dignidade da pessoa humana, como fundamento de ordem constitucional do Brasil, torna-se fragilizada à medida que se demonstra que o trabalho dos profissionais em atenção à Aids é falho por inúmeras causas, a exemplo de falta de recursos humanos e principalmente pela falta de uma “cultura” para introduzir e manter o trabalho em equipe interdisciplinar.
Denota-se que a visão da saúde ainda é fragmentada, que não há uma visão do todo, o que possibilitaria a realização de uma ação mais ampliada.
Um dos principais aspectos que devem ser levados em consideração é o caráter antropológico do saber cotidiano. Nesse sentido, ÁGNES HELLER (1994) nos informa que nas ações do cotidiano há necessidade de aprender a perceber, a sentir e a pensar
En lo referente a esse aspecto del saber cotidiano, hay que poner de relieve ante todo que para interiorizar el saber de las generaciones adultas, para poder adquirir nuevo saber, se deben poseer primeramente percepción humana, determinadas actitudes sentimentales y el pensamiento linguístico. Resumiendo, hay que aprender a percibir, a sentir y a pensar.
Desta forma, a interdisciplinaridade contribui para uma resposta mais ágil às questões ligadas à dignidade da pessoa humana e aos direitos humanos daqueles que convivem com HIV/Aids. Quanto maiores os investimentos na abordagem interdisciplinar melhores serão as respostas dos usuários dos serviços de atenção ao HIV/Aids, na medida que a adequada organização dos serviços e a completude dos profissionais envolvidos no problema logrará o alcance dos direitos humanos em sua plenitude.
Uma grande falha dos serviços de saúde na abordagem ao HIV/Aids ocorre quando o trabalho dos profissionais é realizado de forma paralela, fragmentada, não interdisciplinar, traduzindo-se em uma oferta de serviços limitada e precária.
A proposta interdisciplinar deve ser pensada como um projeto de trabalho alcançável e desejável pelos profissionais, na medida em que nenhum trabalhador atuando isoladamente consegue ter resolutividade suficiente para atender às demandas das pessoas que sofrem o HIV/Aids. A interdisciplinaridade é o denominador comum desse trabalho, haja vista que oferece as ações e a integração dos saberes, viabilizando o desenvolvimento de ações conjuntas.
CONCLUSÃO
Faz-se necessário compreender a importância do trabalho interdisciplinar como forma de garantir a integralidade na assistência à saúde. Nesse sentido, a dignidade da pessoa humana vivendo com HIV/Aids está reforçada em consonância com os preceitos constitucionais do Brasil.
Entretanto, o processo de trabalho dos profissionais envolvidos na temática ainda carece de melhoras, pois mantém uma estrutura fragmentada, setorizada, com fragilidade de articulações, seja com o usuário do serviço, seja com outros prestadores de ações de saúde.
Percebe-se que prevalece uma tendência a seguir um modelo de atenção individualizado, voltado para o ultrapassado modelo biomédico, em que não é reconhecido o usuário como sujeito de sua própria vida e corresponsável pelo seu tratamento.
Não restam dúvidas acerca da importância de um trabalho interdisciplinar diante da complexidade da atenção à saúde das pessoas vivendo com HIV/Aids. Isoladamente atuando, os profissionais e setores de saúde não respondem às necessidades apresentadas pelos usuários. Dessa forma, a qualidade e a falta de adesão ao tratamento colaboram para a diminuição da auto estima e valorização do ser humano enquanto ser sujeito de direitos e dignidade nos moldes preconizados pelos fundamentos da República Federativa do Brasil.
Assim, as articulações e definições de papeis e formas de articulação dos profissionais da saúde são desafios ostensivos a todos os atores envolvidos no processo saúde doença, o que exige um empenho constante na mudança comportamental e efetiva transformação da realidade social.
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Recibido: 26/02/2016 Aceptado: 27/04/2016 Publicado: Abril de 2016

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