Fagno da Silva Soares
Norberto Osvaldo Ferreras
FFLCH/USP / UNICAMP, Brasil
fagno@ifma.edu.brResumo:O presente artigo centra sua analise na categoria conceitual identidade, para compreender como os trabalhadores submetidos à condição de trabalho análogo ao de escravo na Pré-Amazônia Maranhense se reconhecem. A metodologia da história oral nos permitiu acessar às narrativas dos sujeitos históricos filigranadas por suas memórias e identidades. Deste modo, concluímos que estes trabalhadores não se consideram escravos e sim escravizados.
Palavras-chave: história, memória, identidade, escravizado.
Abstract:This article focuses his analysis on the conceptual category identity, to understand how workers subjected to similar working conditions to slavery in Pré-Amazônia Maranhense recognize. The methodology of oral history has enabled us access to the narratives of historical subjects filigree for their memories and identities. Thus, we conclude that these workers do not consider themselves slaves, but slaves.
Keywords:history. memory. identity. enslaved.
Para citar este artículo puede uitlizar el siguiente formato:
Fagno da Silva Soares y Norberto Osvaldo Ferreras (2016): “Ser ou não ser escravo? Eis a questão”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (abril-junio 2016). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/02/escravo.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/CCCSS-2016-02-escravo
As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno. [...] ‘crise de identidade’ [...] está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.
Stuart Hall, 2005: 08.
INTRODUÇÃO
Neste artigo, discutiremos a categoria identidade que demandou um esforço sui generis dado à complexidade deste conceito tão caro ao discurso dos historiadores e como os trabalhadores ex-escravizados na Pré-Amazônia Maranhense se classificam enquanto identidade ou identidades. Por isso buscamos travar um diálogo com teóricos como Stuart Hall e Tomaz Tadeu para compreender como se constroem as identidades a partir não só das diferenças, mas da experiência e das memórias por eles forjadas.
Os entrevistados deste estudo, não são denominados depoentes, o que nos parece soar demasiadamente policialesco, por conseguinte, tomamos emprestado o termo colaborador empregado pelo historiador oralista Sebe Bom Meihy para quem o colaborador em história oral está para além de “transmissor de informações ou testemunho”, (MEIHY, Meihy; Salgado, 2011: 23), ressaltando o caráter humanizado e ético desta prática. Nos termos deste autor, a decomposição do termo na forma de co-labor-ação (Idem), pressupõe um trabalhado pactuado na confiança ao doar suas memórias para que sejam imortalizadas pelo pesquisador, considerando os interesses das partes envolvidas. Ademais, optamos na não utilização de imagens fotográficas do nosso colaborador com o intento de preservá-los. Vale ressaltar, que o protagonista de nosso estudo denominado de Carvoeiro, cognome escolhido pelo próprio narrador para manter sua identidade em sigilo. Portanto, não se trata de uma identidade nominal pela qual ele seja reconhecido por seus pares.
Ao escolhermos poucos colaboradores para as entrevistas, referenciamo-nos em Sônia Maria de Freitas (2006: 86), para quem devemos deter atenção “[...] com a qualidade e não com a quantidade de entrevistas a serem realizadas”. Há que ressaltarmos que não se trata de um estudo micro-histórico, por razões óbvias, muito embora tenhamos buscado uma redução da escala de análise, o que possibilitou uma descrição da realidade de modo a esmiuçarmos os relatos orais auferindo relevo em nossa análise.
Compreendemos, pois, estes trabalhadores como legítimos protagonistas ao esquadrinhar suas memórias traumáticas e o seu cotidiano experienciado em cativeiro, bem como suas percepções quanto ao ser ou não ser escravo, ao passo que cotejamos os conceitos e as relações entre memória e identidade destes trabalhadores, no transcurso deste artigo.
(Re)Construindo Memórias e fractando identidades
Memória e identidade são conceitos centrais nas ciências humanas e sociais, estando presentes em muitas reflexões que vão desde Henri Bérgson, Pierre Nora, Jacques Le Goff, Maurice Halbwachs, passando por Norbert Elias, Stuart Hall até Paul Ricoeur. Historiar memórias e identidades é romper com as velhas identidades que definem quem somos, de modo a despedaçar nossas individualidades em meio ao ‘eu’ coletivo. É por meio das lembranças, ou seja, da memória que o sentimento de pertencimento vai dando lugar à construção de nossas identidades. Quando, por exemplo, comemora-se o dia 13 de maio estamos na verdade atualizando as memórias que guardamos, do que aprendemos sobre este fato, e assim novas identidades são criadas a cada rememoração. Por outro lado, os motivos dos esquecimentos são tão relevantes quanto à seleção das memórias, correspondendo ao seu oposto, visto que existem intencionalidades não só na omissão quanto no esquecimento, ainda que involuntariamente. No entanto, decidimos não levar o debate a esse campo, embora reconheçamos que estamos atrasados nesta discussão, valoramos o seu relevo para os estudos da memória e, por conseguinte, da identidade.
Noutros tempos, fala-se hoje, em identidades líquidas por desmanchar-se no ar, à sombra da globalização com formações cambiantes e sempre híbridas, numa justaposição parafraseal assinalada pelas correntes marxista e pós-moderna. 1 Assim sendo, memória e identidade estão intrinsecamente ligadas, o que requer uma acuidade metodológica no fazer historiográfico ao relacioná-las. A esse respeito, notemos, portanto, que a memória enquanto elemento forjador de identidades é capaz de dar coesão e coerência à identidade. (POLLAK, 1992: 206).
Apesar disso, vivemos uma ‘crise de identidades’ afirma Hall (2000: 7). Assim, a construção de identidades perpassa a noção de diferença. Como propõe Tomáz Tadeu (2000: 75), a identidade “é simplesmente o que eu sou, a diferença é aquilo que o outro é”. Ao dizer o que somos, significa o que não somos. Já para Pesavento (2004: 89) a identidade é “[...] uma construção simbólica de sentido”, portadora das ideias de pertencimento, portanto, de um grupo, do sentimento de pertencer a algo. Assim, a memória “é essencial a um grupo porque está atrelada à construção de sua identidade [...] de um trabalho de organização e de seleção do que é importante para o sentimento de unidade, de continuidade e de experiência, isto é, de identidade.” (Alberti, 1989: 45).
Diante do exposto, para pensar o conceito de identidade tomamos emprestado elementos do discurso pós-moderno, embora esta não seja nossa corrente teórica. Afinal, nosso parco amadurecimento intelectual impede que percebamos que às vezes os diálogos são mais possíveis do que pressupõe o nosso vão sectarismo. Por isso, valemo-nos da célebre epígrafe de Monteiro Lobato (1966: 45) “um país se faz com homens e livros [...]”. Para dizermos que não só de homens, tampouco de livro se constrói um país, mas de homens que leem e escrevem livros sobre suas histórias, memórias e identidades. Um povo que não preserva seu passado perde sua identidade e aos poucos vai deixando de existir. Afinal, não podemos ser ingênuos ao pensar que exista uma identidade etérea, pois são simultaneamente una e múltipla. Por isso elegemos o termo identidades, por defender que esta não se constitui no singular, mas sempre pluralizada e multifacetada, como arremata Hall (2005: 12-13) para quem a
identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente, e não biologicamente [...] à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis.
Identidades são construções mutáveis e não-fixas, em um constante processo de transformação forjada no plural e na capacidade de se desnaturalizar. É um fenômeno histórico social e não biológico. Assim para Hall, existem três concepções de identidade: o sujeito do Iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno. Sendo o primeiro “um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação [...]”. (2005: 10) Já o segundo, a identidade “é formada na interação entre o eu e a sociedade”. (Ibid., 11) A terceira e última concepção é a do “sujeito pós-moderno, o sujeito assume identidades diferentes, em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente”. (Ibid., 13) Assim, comungamos com este autor, que o sujeito pós-moderno, assume determinadas identidades em diferentes momentos, segundo o seu contexto, portanto, a identidade una e pura é quimera, o que existem são as identidades múltiplas como diria o poeta Raul Seixas, “eu prefiro ser/essa metamorfose ambulante/do que ter aquela velha opinião/formada sobre tudo [...]”. 2 O trecho desta música representa bem a nossa compreensão acerca da categoria identidade neste estudo, como uma construção que intercruza o social e o individual ininterruptamente. Este enlevo faz-nos lembrar da obra Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente 3 em que autor destaca que forjamos identidades para o outro, geralmente sob o signo da inferioridade, tal como o Ocidente para como o Oriente, enquanto invenção cultural com intencionalidades políticas e econômicas.
A despeito das configurações identitárias de nossos sujeitos históricos, fomos como a um círculo concêntrico, buscando pistas para compreendê-las. Diante disso, perguntamos ao representante do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos/Carmem Bascarán CDVDH/CB, entrevistado capital à nossa pesquisa: - Como os trabalhadores se definem ao chegar ao Balcão de Direitos do Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos?
Muitos não se consideram escravos, talvez em certa medida escravizados. Pela experiência que temos no acolhimento dos trabalhadores ao longo desses anos e ouvindo suas histórias é fácil perceber que ao chegarem até nós estes trabalhadores se definem como sujeitos-escravos. A constatação é que o trabalho escravo dentro das carvoarias para a produção do carvão vegetal é pior do que dentro das fazendas pelas condições de trabalho, por que exige muito mais da questão física do trabalhador. Se agente for comparar um escravo, que esteja em condições de trabalho escravo numa carvoaria durante seis meses e um que esteja seis meses numa fazenda, na juquira, o que está na carvoaria sofre muito mais ta entendendo. Pelas condições de trabalho, pela exposição que ao carvão, calor causando problemas de saúde. A exploração é muito pior, e mais perversa. (Filho, 2012: A)
Segundo recente pesquisa da Organização Internacional do Trabalho - OIT, acerca do que os trabalhadores entendem por trabalho escravo, dos entrevistados 38,8% afirmou ser a ausência de remuneração; 36,3% os maus tratos e a humilhação dos trabalhadores e a jornada exaustiva; 28,9% as condições precárias de trabalho, isto é, o alojamento, a alimentação, a água e os equipamentos de proteção e segurança e jornada exaustiva; 24,7% a privação da liberdade e 4,1% a ausência de carteira assinada. (OIT, 2005: 7-8). Deste modo, verifica-se que para os trabalhadores entrevistados a ausência de remuneração caracteriza o trabalho escravizante, o que não é vicariante, e só faz sentido, quando somada às características anteriores para confazer uma situação notadamente escravizante, ou seja, isoladamente nenhuma destas características é capaz de denotar tal prática. Por isso é preciso cautela por parte de estudiosos, agentes pastorais e principalmente dos juristas para analisar o mérito a partir de um ou doutra característica.
Nossos narradores sofrem um processo contínuo de fragmentação identitária para além do comportamento. Durante as entrevistas foi possível perceber que muitos dos trabalhadores não são conhecidos por seus nomes oficiais, mas por alcunhas, geralmente associadas a características que vão desde traços físicos, da pessoalidade até a sua naturalidade. É comum atribuir-lhes, apelidos como: Pequeno, Grandão, Cabeludo, Risca-faca, Bruto, Pedra 90, Maranhão, Açailândia, Piquiá, Capeloza entre outros. De modo geral, estas denominações são bem aceitas entre eles, o que evidencia um maior entrosamento, facilitando a aceitação no grupo, de modo que, essa dimensão está diretamente relacionada às categorias identidade e pertencimento. Ao saírem de casa, esses trabalhadores assumem um novo papel na luta pela sobrevivência, e cambiam suas identidade (Hall, 2005: 7-8), para suportarem ao triste e sofrido submundo da escravização contemporânea na Pré-Amazônia Maranhense.
Ser ou não ser escravo? Eis a questão
Ser ou não ser escravo? Eis a questão, norteia esta seção do artigo. Identificamos na fala do coordenador do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Açailândia a seguinte constatação:
O que pudemos presenciar é que estas pessoas assim não têm a dimensão do que está acontecendo, portanto muitas delas não se consideram escravos, sequer sabem o que são neste processo. Muitos acreditam que o empregador está oferecendo, é como se tivesse ajudando aquela pessoa entendeu. Então vários dos que conversamos, não têm noção disso. - Não, eu não tinha emprego ele foi e me buscou e trouxe e to aqui trabalhando e tal. (Filho, 2012: A)
O trabalhador não tem a dimensão que ele é peça importante, porém não valorada da grande engrenagem de lucros altíssimos, de envolvimentos de empresas multinacionais, de empresas de grande porte, de interesses dos mais variados setores da sociedade e da economia no mundo inteiro. Talvez ele não reconheça que parte daquele trabalho que ele desenvolve de maneira exploratória volte depois para o Brasil, transformados em carros, aviões e navios. O carvão vegetal que ele produz vai para a indústria siderúrgica como matriz energética na produção do ferro-gusa que por sua vez gera o aço, utilizado na indústria moderna na construção de bens duráveis.
Assim, estes trabalhadores são tratados como cidadãos de segunda classe ou mesmo sub-cidadãos, o que fere contundentemente nossa Carta Magna de 1988, quando prevê a isonomia, ou seja, a igualdade de direitos e deveres perante a lei e que todos os cidadãos devem ter o tratamento idêntico, em consonância com os critérios albergados nos princípios da igualdade e da liberdade, como estabelece o artigo 5, inciso III:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; (Brasil, 1988)
Neste contexto, José de Souza Martins lança uma alerta ao pesquisador, para quem segundo ele, “deve estar atento ao seu ingrediente principal, que é a coerção física e moral que cerceia a livre opção e a livre ação do trabalhador. Neste sentido, pode haver escravidão mesmo onde o trabalhador não tem dela consciência”, (Martins, 1999: 162), como dito alhures. Portanto, é comum que mesmo os estudiosos no afã de suas teorias etiquetam todo tipo de atividade degradante em trabalho escravizante, o que não deve ocorrer. A exemplo disto, o autor relata ter encontrado “professores que ainda usam nas salas de aula a palmatória, um instrumento de castigo que os fazendeiros do século XIX costumavam usar para punir seus escravos” (Martins, 1999: 163), no interior do Estado do Maranhão, mais precisamente na região do Vale do Pindaré onde “tudo o que escapasse à tosca ordem [...] era devidamente disciplinado com uns tantos bolos nas mãos do aluno”. (Martins, 2004: 711).
Portanto, ratificamos que a escravização contemporânea é resultado da soma do trabalho degradante ao cerceamento do direito de ir e vir,4 do contrário, por mais degradante que seja, sendo o trabalhador o senhor de sua liberdade, não configura a nosso ver, escravização contemporânea. Para José de Souza Martins defende que o Brasil vivencia sua terceira e quiçá última escravidão, sendo a primeira a escravidão indígena, a segunda a escravidão negra5 e por fim a atual a escravidão da peonagem ou da dívida. Neste contexto, em entrevista concedida à revista Ciência Hoje pelo sociólogo José de Souza Martins, é relevante ao estabelecer relações entre trabalho degradante e a escravização contemporânea, para ele
nos dias atuais, nem todos os escravos são diretamente trabalhadores escravizados. Uma criança empregada na indústria de tapetes, na Índia, é muito provavelmente uma escrava, vendida ao patrão não raro pelos próprios pais. Uma noiva vendida pelo pai a um camponês chinês, uma provável sobrevivente do infanticídio de meninas, é escrava, mas não diretamente, trabalhadora escrava. [...] Um peão empregado para trabalhar na derrubada da mata na região amazônica, recrutado mediante engodo e convertido em trabalhador forçado, submetido à escravidão por dívida, cativo porque deve ao patrão, é um escravo. No essencial, para nós, é escravo quem foi privado de sua liberdade de ir e vir e, não raro, foi transformado em equivalente de mercadoria, pois tem um preço. Muitos casos de trabalho doméstico na Europa, nos Estados Unidos e, certamente no Brasil podem ser classificados como trabalho escravo. (Martins, 2001: 7-8, grifo nosso).
A propósito deste entendimento, importa destacarmos a tênue diferença entre trabalho escravo de trabalho degradante, de modo que, todo trabalho escravo é degradante, mas nem todo trabalho degradante é escravo. Com efeito, grifamos que o elemento diferenciador seja exatamente o cerceamento da liberdade do trabalhador. Ainda nestes termos, eis a fala de Martins (2001: 7-8),
O que distingue a sociedade capitalista da sociedade escravista é o fato de que, nesta última, o próprio trabalhador é equivalente de mercadoria: sua pessoa é comprada e vendida como qualquer outra mercadoria, como um par de sapatos, uma camisa ou uma cadeira [...] Em São Paulo, há muito trabalho na indústria de confecções. São os bolivianos que trabalham para os coreanos, ganhando um salário muito reduzido, trabalhando em desacordo com a lei.
Constatamos, pois, que assim como Martins, entendemos que a sociedade escravista tratava o trabalhador como mercadoria, mas destacamos ainda, que o capitalismo atual apresenta uma forma ainda mais cruel, ao categorizar o trabalhador escravizado numa condição inferior ao de uma mercadoria, por se tratar na visão dos neoescravocratas de uma mão de obra abundante, gratuita e desqualificada, portanto, descartável. Deste modo, o sentimento de desprezo e de descaso com as vítimas da escravização contemporânea por parte de setores da sociedade torna-se ainda mais evidente.
Entendemos o conceito de identidade que aqui definimos não como determinista, tampouco historicista, mas como em construção permanente e ativa caracterizada na ação e na reação, forjada no interior dos processos em que “estava presente ao seu próprio fazer-se”. (Thompson, 2001: 9) Deste modo, a noção de identidade perpassa um todo complexo entre o local e global, o individual e o coletivo balisadas pelo tempo e o espaço embora os atravesse, é também um reflexo de imagens como em um espelho, as identidades “referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si próprios, para acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros”, (Pollak, 1992: 206) a partir das memórias individuais e/ou coletivas que fazem emergir um sentimento de coerência, coesão e de pertença social.Assim, “a memória é um dos elementos constituintes do sentimento de identidade”(Pollak, 1992: 205), demarcado pelo grau de admissibilidade, do indivíduo ao grupo e deste ao indivíduo. Logo, os conceitos de memória e identidade estão estreitamente ligados. Logo, “a imagem do nós e o ideal do nós de uma pessoa fazem parte de sua auto-imagem e seu ideal do eu tanto quanto a imagem e o ideal do eu da pessoa singular a quem ela se refere como eu”. (Elias; Scotson, 2000: 42) Assim quando um trabalhador afirmar ‘sou carvoeiro’, refere-se aos aspectos de caráter essencialmente sociais e não necessariamente pessoal.
Contudo, a presente pesquisa aponta para a compreensão da realidade histórica fundada na oralidade do tempo presente e memória, rompendo com a cultura positivista documental, valorizando o diálogo, a inter-oralidade e a relação entre pesquisador/objeto de estudo, lançando outro olhar sobre a escravização contemporânea no Maranhão, para além deste ‘campo de disputa’ eminente entre os combatentes a este flagelo contra os que se valem dele para lograrem ainda mais lucro, o que traz à tona outra discussão ainda incipiente sobre os conflitos de interesse. O que não nos resta aqui é perscrutar [o papel dos agenciadores e empregadores no processo de escravização contemporânea]. Como nem tudo é Zeus ou Hades, ou seja, céu ou inferno. Caberia uma análise prudente acerca dos papéis destes outros sujeitos históricos, aqui não compreendidos como anti-herois, pois o próprio gato é quase tão vítima quanto o trabalhador escravizado, uma vez que outrora já fora escravizado, a exemplo de um de nossos narradores, o Sr. J. N. Ribeiro.
Noutros termos, para Thompson (1992: 208), “recordar a própria vida é fundamental para nosso sentimento de identidade”, por sua vez, este conceito está intrinsecamente relacionado ao pertencimento deste para com os grupos sociais com os quais se relaciona, considerando que recordar desvela através das manifestações, cognições entre o vivido e o sentido do passado individual e da experiência atual coletivizada, fruto de um conjunto simbiótico de lembranças que nunca são somente nossas, mas do grupo social do qual pertencemos.
Com efeito, à medida que adentrava o universo da pesquisa, mais complexa a tarefa do historiador se tornava. As identidades apresentadas desses trabalhadores pesquisados através das memórias revelam que alguns não se reconhecem como trabalhadores escravizados por dívida, afirmando ser escravo somente o negro, mas de modo geral, nossos entrevistados disseram terem sido escravizados. Como asseverado por eles, o fenômeno da escravização contemporânea como propõe o nome é do tempo presente e como tal requer adaptação lexical e aportes teóricos próprios para o fenômeno em estudo, tornando necessárias novas reflexões no sentido de melhor perscrutá-lo. Atentemos ao relato de A. S. Carvoeiro (2012: 1), “eu na verdade não me achava um escravo não, pensei que essa coisa de escravo era só os negros nas senzalas com eu vi nas novelas e filmes, mas hoje não vejo mais assim.”
Ao que se percebe, nosso narrador foi aos poucos se reconhecendo como parte deste processo truculento e vil de dominação e exploração. Como dito alhures, em sua maioria, os trabalhadores quando em contato com instituições de enfrentamento a esta prática, passam a se identificar não como trabalhadores explorados tampouco escravos, mas escravizados, ou seja, a identidade é transmutada.
Assim sendo, cabe ao historiador que lida com a metodologia da história oral reconhecer o relevo e a singularidade de cada entrevista realizada, como nos adverte Khoury (2001: 84),
cada pessoa, valendo-se dos elementos de sua cultura, socialmente criados e compartilhados, conta não apenas o que fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora pensa que fez. As fontes orais são únicas e significativas por causa de seu enredo, ou seja, do caminho no qual os materiais da história são organizados pelos narradores para contá-la. Por meio dessa organização, cada narrador dá uma interpretação da realidade e situa nela a si mesmo e aos outros e é nesse sentido que as fontes orais se tornam significativas para nós.
Neste sentido, também valemo-nos de Portelli (2001: 10), para quem um discurso é sempre uma construção dialógica e “não somente pelo que os entrevistados dizem, mas também pelo que nós fazemos como historiadores – por nossa presença no campo e por nossa apresentação do material”. Logo, o papel do historiador oralista é de interpretar as fontes orais fazendo usos das ferramentas de Clio. É preciso fazer as fontes nos falarem ou até mesmo gritarem aos nossos olhos e ouvidos para além do que esperamos, assim como propõe Portelli (1997: 31), para quem “[...] o único e precioso elemento que as fontes orais têm sobre o historiador, e que nenhuma outra fonte possui medida igual é a subjetividade do expositor”. O autor complementa afirmando que as “[…] fontes orais contam-nos não apenas o que o povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora pensa que fez”, (Portelli, loc cit.) trazendo à baila os estudos do presente em sua relação com o passado demarcado pela subjetividade, matéria ainda pouco valorada e por isso nos parece obnubilada.
Destarte, a memória nos serve não só como atualização de passado individual e coletivo “ao mesmo tempo que nos modela, é por nós modelada [...] dialética da memória e da identidade, que se conjugam, nutrem-se mutuamente, se apoiam uma na outra para produzir uma trajetória de vida, uma história, um mito, uma narrativa”. (Candau, 2011:11) Outros historiadores buscaram estudar as classes tidas como subalternas a partir das memórias como Christopher Hill, Edward Thompson e Eric J. Hobsbawm. Assim, queremos conhecer “o modo como os trabalhadores pobres viviam, agiam e pensavam”. (Hobsbawn, 2000: 21)
Faremos agora uma breve digressão pelos canteiros da pós-modernidade, defendido por Bauman, por acreditarmos que assim compreenderemos uma das mais correntes configurações teóricas acerca da identidade. Reiteramos ainda, que não significa dizer que somos pós-modernos, mas que esta nos ajuda a entender o processo de justaposição das identidades, nos permitindo afirmar que um indivíduo convive com diferentes identidades conflitantes ou não ao longo de um mesmo dia e em variadas situações.
Assim, conhecidamente tenaz, a sociedade do século XXI gestou o homo tecnologus na era do caos informacional. Vivemos em tempos líquidos (Bauman, 2007: passim) e tudo que era sólido se desfez em face da era do consumismo, das celebridades instantâneas, do acúmulo de dívidas e do desapego. Será que estamos fadados ao infortúnio e à banalização? A sociedade contemporânea está no loop das grandes transformações em que tudo que parecia sólido se liquefaz. O atual capitalismo levou a cabo muitas ideologias que tanto povoaram o imaginário do século passado, deslocando identidades e forjando novas, permeadas de insegurança e incertezas. (Soares, Castelo Branco, 2012: 15) Para explicar uma nova sociedade para além da modernidade, resta-nos a modernidade líquida como prefere o brilhante e perspicaz sociólogo polonês, pensador da sociedade contemporânea, Zygmunt Bauman (2014: passim) ao referir-se a esta realidade ambígua e multiforme. Visto nestes termos, afirmamos que estamos na transição da modernidade mais ou menos sólida a uma sociedade totalmente líquida, no dizer de Bauman.
Neste sentido, a modernidade líquida traz indeléveis marcas de ‘crise’, sendo a identitária a mais significativa para as sociedades atuais, logo temos uma sociedade multicultural em que as verdades postas, já não dão conta de explicar os novos tempos, cada vez mais líquidos, marcados por uma realidade cambiante, multifacetada e dispare. Na história e na sociologia, a utilização do termo pós-modernidade é cara e própria dos que defendem rupturas epistemológicas solapadoras dos arcabouços teóricos dominantes da historiografia, de modo que somos despedaçados em nossas individualidades em meio ao ‘eu’ coletivo. Fala-se, hoje, em identidades líquidas por desmanchar-se no ar à sombra da globalização com formações híbridas onde nada é perene, tudo é transitório. Somos a sociedade do imediatismo, do virtual e do fluido, tudo passou a ser efêmero, o amor, a vida, a arte, o tempo e a morte. 6
Assim, nossos sujeitos históricos foram fragmentados em um mundo de fronteiras dissolvidas, em que a globalização parece desterritorializá-lo, num caleidoscópio de culturas e interesses. Nesses termos, a sociedade do século XXI parece ter perdido toda a sua solidez, colocando em cheque o marcos ético e morais, onde o medo e a insegurança roubaram a cena da vida urbana, a ansiedade, o terrorismo, o desemprego, a falta de amor fazem do cidadão, um ser solitário em seus carros de vidros blindados, condomínios fechados, chácaras, resorts, favelas e ruas com câmeras por toda parte.
Outrossim, estamos cada vez mais convencidos de que esta é, a sociedade líquida de que tanto fala Bauman onde o amor, a vida, o medo, o tempo, foram todos diluídos em nome da liberdade dos tempos líquidos sob o signo da transitoriedade e do fugidio, numa ciranda com “redemoinhos de permanente mudança e renovação, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia”, (Berman, 1996: 17), trazendo a lume arroubos de indiferença absoluta, marca maior destes tempos. Assim, somos prisioneiros de nós mesmos, portanto, incapazes de exercer nossa própria liberdade. Assim aponta Galeano (1999: 7-8), ao fazer duras críticas ao mundo contemporâneo com seus caracteres, asseverando,
quem não é prisioneiro da necessidade é prisioneiro do medo: uns não dormem por causa da ânsia de ter o que não têm, outros não dormem por causa do pânico de perder o que têm. O mundo ao avesso nos adestra para ver o próximo como uma ameaça e não como uma promessa, nos reduz à solidão e nos consola com drogas químicas e amigos cibernéticos.
Com base nos termos supracitados, somos prisioneiros do consumismo, amordaçados e muitas vezes alienados pelas religiões e drogados pelas mídias que nos levam a uma overdose de informações. Deste modo, o ter sobrepuja o ser, tudo foi mercadologicamente forjado, tendo sido mercantilizado os sentimentos que ora materializam-se em presentes para representar o valor afetivo que temos com as pessoas, resta-nos como subterfúgios a realidade virtual, onde somos o que queremos ser, como em uma espécie de escapismo de uma lógica insólita, como esta que o capital nos impõe em um império do consumismo e da indiferença.
Vivemos num tempo/mundo cada vez mais tempo líquido que se caracteriza pelo consumismo desenfreado, o culto às celebridades, o acúmulo de dívidas até a instabilidade dos relacionamentos amorosos. É um mundo marcado por incertezas e inseguranças acachapantes. Em sua obra, Bauman sublinha que somos hospedeiros deste sistema vil e truculento movido a cartões de crédito pelo consumismo exacerbado e a perda da identidade em nome do capital. Se antes éramos uma sociedade de produtores, hoje somos essencialmente meros consumidores, em que tudo é descartável e efêmero, acabamos por ser de certo modo uma mercadoria na vitrine virtual das redes de relacionamento como o facebook. Assim, entendemos que o que há não é uma perda de identidade, mas, uma mutabilidade identitária no fulgaz mundo contemporâneo.
Em certa passagem da entrevista com Carvoeiro, quando perguntado de sua identidade enquanto trabalhador, disse: “eu era carvoeiro, já fui escravo, mas hoje sou livre, trabalhador da construção civil. Mas eu sei que eu não era escravo, mas estava escravo”. (Carvoeiro, 2012, 2).
Portanto, o que se percebe, é uma transitoriedade identitária de nossos sujeitos históricos em franca mutação, visto que, em sua maioria tinha o trabalho forçado como prática naturalizada, porém muitos após o contato com as instituições de enfrentamento passaram a desnaturalizar tal prática. De modo geral, nossos narradores passam por uma mudança de identidade de trabalhador-escravo-escravizado. Afinal, nunca somos os mesmos, parafraseando a máxima de Heráclito ‘não podemos nunca evoca as mesmas lembranças, pois como as lembranças, nós mesmos já somos outros’. Assim, a identidade está em constante processo de transformação. A identidade uma construção é movente e continuamente resignificada, numa relação incessante de trocas culturais e não imanente ao ser. Logo, o modo como o sujeito se reconhece identitariamente é resultado do confronto com a alteridade.
Segundo o sociólogo Zygmunt Bauman, a precificação da vida social e as células autodestrutivas do capitalismo suscitam uma condição humana na qual predominam o desapego ao amor, à realidade e à família em nome da aventura, do virtual e da solidão, gerando na sociedade um mal-estar traduzido em crises existenciais e depressões, tão comuns na era digital. Impera a sensação de um eterno recomeço, transformando a vida numa experiência sem profundidade, fazendo do consumismo um falso alento. Face ao simulacro da realidade líquida, declaram alguns o fim da história, 7 posto o máximo da economia com o capitalismo, da sociedade com o consumismo e da política com o neoliberalismo e democracia. Será um presente eterno? Isso só a sociedade e a história dirão... Estamos todos marcados por nossa época, pelos signos com os quais ela se traduz, o mesmo ocorre com o processo de escravização contemporânea, um fenômeno aparentemente recente com velhas e antigas características que tomam o trabalhador e sua força de trabalho como mercadorias, assim são etiquetados pelos signos impressos do novo capitalismo velho, ou seja, a escravização contemporânea é uma nova marca do velho capitalismo.
Buscamos assim com Ginzburg na obra O Queijo e os Vermes, 8 consubstanciar uma narrativa histórica palatável sem, contudo, perder a profundidade teórica tampouco a acuidade metodológica, menos ainda o trato com as fontes. Pois acreditamos que é possível fazer ciência desencastelada e menos aristocrática e mais acessível para além dos muros da academia, porém não menos comprometida com o rigor próprio do fazer científico.
Assim, valemo-nos de Lima Barreto que com sagacidade e brilhantismo revela a realidade social da República Bruzundanga que não consegue se libertar de práticas vilipendiosas advindas de velhos e novos ranços a que o país imaginário está submerso, para afirmar que mesmo o Brasil do início do século XXI, parece ainda não ser capaz de livrar-se de tais amarras. Eis como Barreto define em tom quase trágico a corrupção de seu Brasil-Bruzundanga:
Não há lá homem influente que não tenha, pelo menos, trinta parentes ocupando cargos do Estado; não há lá político influente que não se julgue com direito a deixar para os seus filhos, netos, sobrinhos, primos, gordas pensões pagas pelo Tesouro da República. No entanto, a terra vive na pobreza; os latifúndios abandonados e indivisos; a população rural, que é a base de todas as nações, oprimida por chefões políticos, inúteis, incapazes de dirigir a cousa, mas fácil desta vida. Vive sugada; esfomeada, maltrapilha, macilenta, amarela [...] 9
O texto acima funciona, como uma espécie de libelo contra os homens que exercem seus podres poderes 10 e a inércia da plebe que mesmo portadora do maior de todos os poderes, permanece ainda subjugada à espera de dias melhores. Por outro lado, é preciso entender que embora com papéis completamente diferentes, escravizados e escravizadores são sujeitos de uma mesma história. No contraponto, existem ações conjuntas empreendidas por ONG’s e sociedade civil organizada de grande sucesso no enfrentamento à escravização, patologia em estágio metástase no país, como traduzidos nos relatos e descrito no corpo deste trabalho.
Parafraseando incontidamente Robert Darnton, ‘como historiador convicto, estou com aqueles que fazem a história como um brado, uma construção social amealhada ao longo do tempo, que ao escavar’ 11 os monturos em busca de fontes, técnicas e metodologias, por acreditar que esta de alguma forma contribuirá com a sociedade. Assim fomos convocados neste estudo a fazer uso das fontes orais visando dar respostas à história do tempo presente, por isso buscamos ambicionadamente compreender o trabalho escravizante pela memória, através das fontes orais intercruzadas com outras, fazendo uma crítica social com o comprometimento ético, próprio do pesquisador e com valor historiográfico aos nossos pares. Deste modo, negamos a expressão academicista ‘publish or perish’, publique ou pereça. Pois acreditamos que mais importante do que publicar açodadamente, é fazer ciência compromissada com a sociedade, não somente com os nossos pares. E assim fugir dos clichês acadêmicos que nos levam quase sempre aos mesmos lugares.
Ademais, compusemos um discurso por meio desta construção narrativa que visa desnaturalizar o tempo, solapando a cronologia e fugindo do determinismo causa e efeito, que costumeiramente forjam uma linearidade acadêmica, aqui urdida na concatenação da narrativa e não dos fatos, pois o tempo nos parece ressignificado e o discurso uma prática social. Amparados na assertiva de Marc Bloch (2001: 55), ao nos alertar quanto à história não ser o estudo do passado, mas “[...] a ciência dos homens no tempo”, seja ele passado ou presente, que intentamos fazer uma história dos invisibilizados no presente, propondo uma viagem ao centro de uma carvoaria através das singelas e profundas narrativas eternizadas pela mão do historiador. Assim como os alquimistas que querem transformar tudo em ouro, nós historiadores fazemos dos documentos, pedra filosofal. Com nossas metodologias e técnicas produzimos uma espécie de elixir da longa vida, capaz de imortalizar nossos sujeitos na história.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.12
A epígrafe acima serve de mote para esta derradeira parte de deste artigo ao fazer referência ao tempo da travessia e os desdobramentos advindos desta. Assim como a nona sinfonia de Beethoven representou um romper de paradigmas para a música clássica ocidental, este trabalho também o foi para o seu autor como dito alhures. Pois é voz corrente entre os sarcedotes de Clio, que só se faz pesquisador pesquisando, ou seja, historiador historiando. Deste modo, a soma de um rico diálogo teórico e uma escuta sensível, nos foi possível trazer à lume as experiências narradas por nossos sujeitos e fazê-las história.
Aos neo-escravocratas, deixamos um alerta, pois ao considerarem os trabalhadores a plebe rude da sociedade, esquecem-se de que estes intrépidos cidadãos poderão um dia voltar de seu sono letárgico e sublevar-se contra os seus algozes e seu sistema vil de exploração. E assim, as águas entorpecentes da história mudarão seu curso. E neste enlevo, façamos em versos nossos o fragmento do texto em prosa do escritor Fernando Sabino (1984: 154), O encontro marcado, “de tudo, ficaram três coisas: a certeza de que está sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sonho uma ponte, da procura um encontro”. (Sabino, 1984: 154). E foi com este cipoal de sentimentos que construímos este estudo, tomados por um ‘desassossego da travessia’13 inicial de um aprendiz de historiador que cumpre seu rito de passagem ao debutar na sociedade dos herdeiros de Clio com este estudo, sua maior epifania acadêmica.
Por fim, parodiando um trecho de uma certa canção reggae-rock, lê-se ‘valeu a pena, somos todos pescadores de ilusões,’ 14 movidos exclusivamente por um certo diletantismo15 que beira a poesia, fomos capazes de sentir e reviver as emoções de cada narrador ao alinhavarmos os fios de suas memórias tecidas e retecidas para fazê-las história, irrompendo as barreiras do tempo. Somos historiadores, aprendizes de Cronos, habilidosos com os usos do passado, mas, sem perder de vista o presente. Dito isto, voltemos ao ponto em que começamos esta seção: Ser ou não ser escravo? É uma questão subjetiva de ordem identitária, portanto, cambiante. Assim podemos constatar, no entanto, que nossos heróis não eram escravos, mas sim escravizados por este sistema vil, que como rolo compressor tenta esmagar as identidades, apagar as memórias e destituir o indivíduo do maior de seus direitos, o direito à liberdade e à vida.
Referências
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1 “Tudo o que é sólido e estável se volatiliza” MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. 9. ed., Petrópolis: Vozes, 1999, p. 69. Revistado por BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
2 Vide, SEIXAS, Raul. Metamorfose Ambulante. In: SEIXAS, Raul. Krig-ha, Bandolo! São Paulo, Philips - Phonogram, 1973. 1. disco sonoro. Lado B, faixa 3.
3 Vide, SAID, Edward W. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo, Cia, 1990. passim.
4 Somamos a estas, outras características secundárias como: retenção de documentos pessoais, dívida fraudulenta, condições subumanas de alimentação e alojamento.
5 Sobre a escravatura no continente africano, ver a obra: MEILLASSOUX, Claude, Antropologia da escravidão: o ventre de ferro e dinheiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995.
6 Tese defendida pelo sociólogo polaco Zygmunt Bauman pai da expressão modernidade líquida utilizada para se referir a pós-modernidade, um dos mais profícuos e influentes intelectuais da atualidade.
7 Teoria postulada no início do século XIX por Georg Wilhelm Friedrich Hegel e posteriormente retomada, no século passado no contexto da crise paradigmática apontada na obra de FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
8 Vide, GINZBURG, Carlo. O Queijo e os vermes. São Paulo: Cia das Letras, 1986.
9 Trata-se de um país ficcional criado por Lima Barreto em analogia ao Brasil que crítica ardilosamente aspectos da cultura, economia e, sobretudo da política, desvelando os vícios e práticas assentadas nas falácias e falcatruas políticas que enseja o continuísmo em Bruzundangas. O autor escancara através de sua literatura os favorecimentos e privilégios, o oligarquismo e nepotismo, o racismo e outras mazelas. De modo geral, o livro constitui-se em uma mordaz crítica, por vezes, caricata da sociedade brasileira no início da República. Ver, BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. Belo Horizonte: Garnier, 1998, p. 52.
10 VELOSO, Caetano. Podres poderes. In: VELOSO, Caetano. Velô. São Paulo, Philips - Phonogram, 1984. 1. disco sonoro. Lado A, faixa 1.
11 “Como historiador, estou com aqueles que veem a história como uma construção imaginativa, algo que precisa ser retrabalhado interminavelmente [...] Não podemos ignorar os fatos nem nos poupar ao trabalho de desenterrá-los, só porque ouvimos falar que tudo é discurso”. DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e televisão. São Paulo, Cia. Das Letras, 1995, p. 69.
12 Poema atribuído ao poeta e escritor português Fernando Pessoa, considerado um dos mais importantes nomes da língua portuguesa, depois de Luís Vaz de Camões.
13 Expressão utilizada por Antônio Montenegro ao refere-se ao percurso de desconstrução do historiador natural para fazer-se um historiador profissional. MONTENEGRO, Antônio Torres. Desassossego das travessias. Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 5, nº 58, Rio de Janeiro, jul., 2010, p.98.
14 Vide, YUKA, Marcelo. Pescador de Ilusões. In: O RAPPA. Rappa Mundi. São Paulo, Warner Music, 1996, Disco sonoro, faixa 6.
15 Termo aqui empregado para expressar o sentimento de prazer e não de obrigação presente em toda construção desta obra.
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