Arthur Ramos do Nascimento
Fagno da Silva Soares
Universidade Federal de Goiás
arthurramosdonascimento.adv@hotmail.comResumo: As reflexões presentes neste artigo estão arquitetada em 3 seções, dedicadas à análise do conceito de trabalho escravo contemporâneo, das dimensões dos direitos humanos e da responsabilidade do Estado brasileiro à baila dos estudos jurídicos no âmbito dos direitos humanos, cujo escopo é analisar a responsabilidade do Estado e o compromisso internacional no combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Com o intento de contribuir para o aprofundamento de estudos e reflexões futuras.
Palavras-chave: Trabalho Escravo Contemporâneo, Direitos Humanos, Estado.
Abstract: The reflections presented in this article are architected into 3 sections, dedicated to the analysis of the concept of contemporary forced labor, dimensions of human rights and the responsibility of the Brazilian state to the forefront of legal studies in the field of human rights, whose purpose is to analyze the State responsibility and international commitment in the fight against modern-day slavery in Brazil. With the intent to contribute to the further studies and future considerations.
Keywords: Contemporary Slavery. Human rights. State.
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Arthur Ramos do Nascimento y Fagno da Silva Soares (2016): “Trabalho escravo rural no Brasil contemporâneo e as dimensões dos diretos humanos: A responsabilidade do Estado no combate à escravidão hordiena”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (enero-marzo 2016). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/01/rural.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/CCCSS-2016-01-rural
O trabalho escravo rural contemporâneo se apresenta no debate jurídico como o resultado e manifestação de uma complexa cadeia que envolve aspectos como, por exemplo, a pobreza, as desigualdades regionais e sociais, existência de redes criminosas que instrumentalizam o tráfico interno (e externo) de pessoas para a exploração de mão de obra, ausência de efetivas punições aos infratores, bem como a constatação da notável carência de fiscalização, de políticas públicas preventivas (que existem, mas em pouca quantidade se comparadas ao tamanho do problema) e, também, da ineficácia do Estado no sentido de combater a prática1 .
Há que se observar que a precarização do trabalho humano no espaço rural, agravado em regiões onde prepondera o latifúndio e o poder oligárquico dos donos da terra corrobora para criar um ambiente fértil para a coisificação do indivíduo reduzindo-o à condição de escravo. Tais espaços usurpam do trabalho todos os elementos de sua atividade que conferem dignidade ao homem. O valor do trabalho já foi amplamente debatido (Hegel e Marx, por exemplo) e ainda que a compreensão do trabalho enquanto exercício produtivo humano dotado de valor tenha merecido diversas teorias, pontos de vista e análises, a questão é que em toda a existência do trabalho nunca se dá apartada de significância, significância essa que nos conduz à compreensão que o trabalho é elemento de composição (ainda que não exclusiva) da dignidade humana.
Já foi levantado, não sem razão, que ainda que a expressão “direitos humanos” seja de fácil identificação, a apresentação de um conceito exato passa a ser uma proposta complexa em função da abordagem ampla e multidisciplinar que o tema exige. Mesmo não sendo a busca de um conceito a proposta desse trabalho é importante que ofereçamos uma ideia básica, o que facilitará a compreensão do assunto. Uma das grandes dificuldades que envolvem o estabelecimento de um conceito coeso para os direitos humanos se justifica pela multiplicidade de perspectivas possíveis de se considerar esses direitos. Conforme José Carlos Vieira de Andrade (1987, p.12-30) essas perspectivas se dividem em: (i) filosófica ou filosófica jusnaturalista, onde se traduzem os direitos humanos pelo direito natural, como direitos absolutos, atemporais, imutáveis, portanto direitos esses de todas as pessoas humanas e em todos os tempos e lugares; (ii) universalista ou internacionalista, onde se concebem os direitos humanos como pactuados e convencionados para a promoção e proteção internacional, reforçando uma ideia de coobrigação internacional, pois essa proteção deve se dar por se tratarem de direitos de todas as pessoas e em todos os lugares 2; e (iii) visão constitucionalista,
Ao contrário do que já foi sustentado em outros tempos, é preciso hoje compreender que os direitos humanos são direitos positivos, históricos e culturais, que encontram nas relações sociais seu fundamento e conteúdo de acordo com cada momento histórico (cf. SILVA, 1991, p.157). Podemos dizer que são produtos da civilização humana, mutáveis enquanto direitos históricos, o que lhes permite transformação e ampliação (BOBBIO, 1992, p.17-32).
Podemos dizer que os direitos humanos surgiram, em relação à figura do Estado (enquanto ente político) e da sociedade internacional, com dupla função. Por um lado surgiram como uma defesa em face do Estado e também como provocação para a atuação desse Estado em uma perspectiva nacional, e, no que tange à sociedade internacional, representaram um dever de cooperação e responsabilidade coletiva perante seus pares e todos os indivíduos.
Os direitos humanos e suas dimensões 3 surgiram como direito de defesa, delimitando a atuação/intervenção do Estado, se revelando um direito de resistência, em certa medida (cf. SARLET, 2002, p.50; BONAVIDES, 1997, p. 50). Sua normatização passa a ser uma preocupação das sociedades contemporâneas “que consolidaram a tendência de introduzir em suas constituições as dimensões de direitos humanos que norteariam a vida comunitária.” (SANTOS, 2007, p.82)
A prática do trabalho escravo atravessou milênios, por toda a história da humanidade, e ainda hoje é um mal que assola os direitos e garantias fundamentais. O Brasil, legalmente livre da odiosa propriedade de um humano por seu semelhante, ainda hoje convive com a perpetuação da prática com contornos novos e ainda mais desumanos. Muito tem se produzido em nível acadêmico para compreender o trabalho escravo e conceituá-lo. Temos percebido que hoje já há uma preocupação em não se limitar a configuração da escravidão contemporânea ao aspecto da privação da liberdade (que existe, mas que não pode ser o único elemento) e que nesse sentido deve preocupar “não só o cerceamento da liberdade do trabalhador, mas a garantia de sua dignidade” (COSTA, 2010, p.43).
Diversas são as denominações dadas ao fenômeno de exploração ilícita e precária do trabalho, ora chamado de trabalho forçado, trabalho escravo, exploração do trabalho, semiescravidão, trabalho degradante, entre outros, que são utilizados indistintamente para tratar da mesma realidade jurídica. Malgrado as diversas denominações, qualquer trabalho que não reúna as mínimas condições necessárias para garantir os direitos do trabalhador, ou seja, cerceie sua liberdade, avilte a sua dignidade, sujeite-o a condições degradantes, inclusive em relação ao meio ambiente de trabalho, há que ser considerado trabalho em condição análoga à de escravo. (BRASIL, 2011, p.12)
A despeito das divergências doutrinárias sobre a conceituação dessa modalidade de exploração, consideramos que o melhor conceito geral de trabalho escravo contemporâneo como sendo aquele
trabalho, urbano ou rural, que submete o indivíduo (seja por nascimento, compra e venda, rapto, fraude ou ameaça) a outrem que sobre ele passa a exercer os poderes de propriedade, total ou parcialmente, com ou sem fins econômicos, de modo a privá-lo de sua dignidade, com ou sem restrição do direito de locomoção, ainda que com o consentimento da vítima. (NASCIMENTO, 2012, p.83)
E por trabalho escravo rural contemporâneo, entendemos ser
aquele trabalho rural, que submete o indivíduo por meio de fraude ou ameaça (ainda que de forma indireta, seja por meios físicos, psicológicos, morais, sobrenaturais e ainda econômicos) a outrem que sobre ele passa a exercer os poderes de propriedade, total ou parcialmente, com fins econômicos, de modo a privá-lo de sua dignidade, com ou sem restrição do direito de locomoção, ainda que com o consentimento da vítima. (NASCIMENTO, 2012, p. 106-107)
Os direitos humanos de primeira dimensão (chamados comumente de direitos civis e políticos) englobam o direito à vida, à liberdade, propriedade, liberdade de expressão, liberdade de religião, direitos de participação política. Essa dimensão se relaciona com o indivíduo como forma de garantir a liberdade individual, limitando a intervenção do Estado nesse espaço, e, em razão disso, há acerto em chamar tias direitos de Direitos de Liberdade. Historicamente esses direitos foram reconhecidos na Revolução Francesa, instruindo o teor ideológico da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, mas também presente nas revoluções liberais norte-americanas, marcando a Constituição dos Estados Unidos da América (1787) e normatizados no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da Organização das Nações Unidas4 (cf. BONAVIDES, 1998; SARMENTO, 2006)
Poder-se ia pensar que essa dimensão de direitos, por versar muito mais sobre defesas contra os arbítrios governamentais, não está ligada com a questão da perpetuação do trabalho escravo contemporâneo. De fato essa dimensão de direitos apresentou ao Estado um dever de não intervir, e nesse sentido foram chamados de direitos “negativos”, já que determinavam a abstenção do Estado. Porém, é preciso saber que o Estado deveria garantir esses direitos, e sua abstenção se limitava a arbítrios do próprio governo, sendo imprescindível que o Estado garantisse a liberdade de seus cidadãos quando esta estivesse sob algum risco. Dito de outra forma eram concebidos como limites para atuação do Estado em defesa da liberdade dos súditos desse Estado, e, nesse sentido há que se reconhecer que essas liberdades não são apenas em relação à autoridade estatal, mas em todos os seus desdobramentos.
Um dos principais bens jurídicos atacados e vilipendiados pela perpetuação do trabalho escravo contemporâneo (seja rural ou não) é a subtração da liberdade (principal direito da primeira dimensão). As liberdades essenciais do indivíduo submetido a condição de escravo lhes são subtraídas: não há direito de ir e vir, não há liberdade de expressão, nem liberdades de associação, entre outras. Os indivíduos têm todas as formas de liberdade cerceadas pelo neoescravagista e pelo sistema que articula essa situação, empregando várias formas de violência contra o trabalhador 5. Esse cerceamento se dá através daquela “condição em que às vezes o trabalhador é mantido [preso] por situações várias: por coação, coação moral, coação psicológica, violência.” (MELO, 2009, p.4) (chaves nossas).
Como observado o direito de propriedade também foi uma das grandes bandeiras levantadas por essa dimensão de direitos. Assim como o direito à liberdade e seus desdobramentos 6, o direito de propriedade é afrontando na prática do trabalho escravo rural contemporâneo. O “empregador”, ao receber os trabalhadores em sua propriedade apropria-se dos documentos pessoais dos trabalhadores “tais como carteira de trabalho e documentos de identidade” (COSTA, 2010, p.90 ss), quando não o faz com dinheiro, ou objetos pessoais 7 do indivíduo submetido à condição de escravo.
Com a dinâmica social e os reflexos do Estado Liberal, os direitos de primeira dimensão se mostraram insuficientes para atender às necessidades de proteção da dignidade humana. Nesse sentido no fim do século XIX passou-se a exigir o reconhecimento de uma série de direitos que, então, passaram a ser elevados como direitos humanos. Com uma característica de cunho mais trabalhista, o que para muitos passa a ter uma forte influência da ideologia marxista (cf. SARLET, 2002, p.51). Esses novos direitos humanos buscavam estimular agora um Estado mais atuante, que agisse positivamente para atendimento das necessidades sociais, visto que, como menciona Sarlet (2002, p.51) a consagração formal dos direitos de primeira dimensão já não gerava a garantia de seu efetivo gozo.
Podemos afirmar que tais direitos teriam relação com a igualdade material entre os seres humanos, por meio da garantia de liberdades positivas, concretas ou reais. Se os direitos de primeira dimensão tiveram como grande marco histórico a Revolução Francesa, podemos apontar a Revolução Industrial como sendo o dos direitos da segunda dimensão, exatamente por isso seu condão ligado às garantias trabalhistas. Muitas das exigências surgiram da luta de classes (nesse caso o proletariado) na defesa de direitos sociais, considerados como essenciais e básicos à população, que lhes conferissem melhorias nas condições materiais de vida. A presença dos direitos de segunda dimensão, ou direitos sociais, se faz notar na Constituição do México (1917) Tratado de Versalhes (1919) e pela Constituição de Weimar (Alemanha, 1919).
Trata-se de uma nova dimensão de compreensão dos direitos humanos fundamentais, que se constitui de direitos econômicos, sociais e culturais. Essa nova compreensão, portanto, passa a exigir do Estado a satisfação de necessidades como: direito ao trabalho, saúde, educação, habitação e lazer, ou seja, o bem estar da sociedade. Dito de outra forma passa-se a reconhecer a necessidade do Estado em intervir quando houver situações de desequilíbrio e disparidade (CANÇADO TRINDADE, 1997, p.26).
Como afirmado, essa dimensão de direitos tem um cunho fortemente marcado pelos anseios trabalhistas e esses, por certo, são os que mais se encontram ofendidos com a prática do trabalho escravo contemporâneo. Se podemos entender que o direito do trabalho surge (no contexto da segunda dimensão de direitos) para agregar valores éticos ao capitalismo, no sentido de humanizá-lo (SARMENTO, 2006, p.19), então mais claro ainda se mostra a ofensa promovida pela redução do trabalhador à condição de escravo.
Essa dimensão de direitos exige prestação de políticas públicas (direitos positivos) impondo uma obrigação de fazer, de forma a promover a justiça social, correspondendo aos anseios das classes menos favorecidas. E, mais uma vez, claro se mostra que a odiosa prática do trabalho escravo afronta também essa dimensão de direitos, por impor, estimular e fortalecer a desigualdade entre classes (e nesse caso do trabalhador, em menor grau de poder econômico (SARLET, 2006). Se busca, nessa dimensão, uma melhor qualidade de vida e maior dignidade, desenvolvimento humano. O trabalho escravo contemporâneo perpetua-se pela ineficiência do Estado em promover ações que previnam ou combatam a prática. Essa ineficiência do Estado não é recente, apontando-se, inclusive, o período da Ditadura Militar quando a prática floresceu em diversas regiões, de forma que “o trabalho escravo contemporâneo não só foi tolerado pelo Estado, mais foi incentivado pelo mesmo” 8.
Se pessoas são aliciadas pela rede de tráfico humano é em razão da ausência de políticas públicas, por parte do Estado, portanto, que possam (de fato) garantir o direito ao emprego (ou ao trabalho), que garanta condições básicas de bem estar em regiões camponesas que acabam por se tornar polos de exportação de mão de obra escrava.
Consagrando os princípios da fraternidade e/ou solidariedade, essa dimensão de direitos busca proteger interesses de titularidades coletivas ou difusas, “mostrando uma grande preocupação com as gerações humanas, presentes e futuras” (DIÓGENES JÚNIOR, 2012). Nesse sentido podemos também dizer que esses direitos estão dotados de alto teor de universalidade (BONAVIDES, 2006, p.569).
Seu marco histórico, por assim dizer, é a da Terceira Revolução Industrial, também conhecida como revolução tecnocientífica 9, por se relacionar com a revolução dos meios de comunicação. Relacionam-se também nessa dimensão de direitos: direito ao desenvolvimento, direito ao progresso, direito ao (meio) ambiente, à autodeterminação dos povos, direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e à paz (DIÓGENES JÚNIOR, 2012).
Seguindo a doutrina de Sarlet (2007, p.58) temos que esses direitos surgem como resultado das reivindicações geradas pelo impacto tecnológico, beligerância (em estágio/estado crônico), reflexos do mundo pós-guerra (em especial a descolonização do mundo) entre outros. Acrescentamos ainda que são direitos transindividuais, exigindo esforços e responsabilidades em escalas mundiais para sua efetividade (cf. MEDEIROS, 2004, p.74-75). É interessante observar que, nessa dimensão, há uma preocupação não com o homem como um ser singular, mas sim numa perspectiva da coletividade ou grupo humano como sujeito desses direitos (cf. DIÓGENES JÚNIOR, 2012).
Nesse sentido quando pensamos em direito ao (meio) ambiente, é importante observar que não há observância desse direito nas relações de submissão do trabalho à condição de escravo. Esse direito abrange, por certo, também o direito ao (meio) ambiente do trabalho 10, que precisa ser sustentável e equilibrado. Ora, uma relação (e local) de trabalho que agride a dignidade do trabalhador, obrigando-o ao esforço extremo, gerando até mesmo mortes por exaustão, não alcança (nem mesmo se aproxima) essa dimensão de direitos.
As condições aviltantes, degradantes e doentias de trabalho a que os trabalhadores reduzidos à condição de escravos são submetidos ameaçam e ferem esse direito ao (meio) ambiente de trabalho saudável, sustentável e equilibrado11 . Cumpre observar que internacionalmente esse direito foi estabelecido em 1972 pela Declaração de Estocolmo, que estabelecia o direito à liberdade (primeira dimensão), à igualdade (segunda dimensão) e o gozo de condições de vida em um (meio) ambiente que lhe proporcionasse e permitisse uma vida digna, gozando de bem estar12 . Sabemos que na situação “a que são submetidos esses trabalhadores, não há como falar em ambiente saudável, ao menos nos padrões exigidos pelas normas de higiene, saúde e segurança do trabalho. Isso acaba por reduzir-lhes a expectativa de vida” (ABREU; ZIMMERMANN, 2003, p.141).
Nesse mesmo sentido, ao tiranizar o indivíduo suprimindo sua liberdade, sua dignidade, sua humanidade, é forçoso reconhecer que a prática do trabalho escravo usurpa do indivíduo e de sua coletividade o direito de participar do processo de desenvolvimento ou de progresso.
Ainda que não haja uma orientação unânime na doutrina, já se posicionam alguns autores pela existência de uma quarta (e até mesmo uma quinta) dimensão de direitos humanos. Sobre a quarta dimensão de direitos, podemos apontar que há uma preocupação com questões bastante atuais. Para alguns trata-se de responder e resguardar direitos “relacionados à engenharia genética” (BOBBIO, 1992, p.6), ou, sob outra perspectiva, resguardar direitos relacionados à democracia, informação e ao pluralismo, como resposta à globalização política, no sentido de concretizar uma sociedade aberta do futuro, universal indicando o ápice dessa pirâmide de direito (no decorrer das dimensões já mencionadas) sendo a democracia (BONAVIDES, 2006, p.571-572).
Ainda mais controversa é a discussão da existência de uma quinta dimensão de direitos humanos fundamentais. Para alguns autores seria a Paz um direito de quinta dimensão (como uma resposta aos atentados terroristas, bem como aos conflitos no oriente) como forma de ressaltar e destacar esse direito que já se encontrava entre os direitos de terceira dimensão (BONAVIDES, 2006; HONESKO, 2008, 195-197). Ainda podemos observar autores que apontam que esses direitos que compõem, ou que vierem a compor (visto que ainda são direitos em reconhecimento), os direitos dessa dimensão devem se ocupar ao tratamento de cuidado com todas as formas de vida. Podemos ainda incluir como possíveis direitos dessa dimensão a proteção ao patrimônio genético e a bioética.
Como afirmamos no início esses direitos (humanos) são mutáveis e passíveis de ampliação, sempre na busca do pleno alcance da dignidade da pessoa humana (SANTOS, 2007, p.84).
Dada a importância dos direitos humanos, é compreensível que há uma busca, em escala internacional, para que tais direitos sejam garantidos e tutelados, inclusive no âmbito constitucional de cada Estado, visto que a dignidade da pessoa humana deve ser prioridade. Conforme observa Enoque Ribeiro dos Santos (2007, p.83) o problema não é o reconhecimento dos direitos humanos (que o são “virtualmente” por todos os povos, com raras exceções), a grande questão é torná-los efetivos.
É de conhecimento geral que a sociedade internacional tem colocado o combate ao trabalho escravo contemporâneo como um compromisso global. Assume-se que ninguém pode ser mantido em escravidão ou servidão, se proibindo a escravatura e o tráfico de escravo desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que ainda previu proteção do direito ao trabalho digno, em condições favoráveis e justas (com liberdade de escolha de emprego, inclusive).
Quando falamos de responsabilidade do Estado e, como no caso do presente debate, envolvendo uma perspectiva internacional, é importante analisar que esta se dá quando um Estado Soberano descumpre uma obrigação internacional (e esse descumprimento independe de culpa ou dolo). Nesse sentido podemos dizer que quando se trata de direitos fundamentais da pessoa humana, se relativiza a soberania estatal para a proteção máxima desses direitos com o peso de norma constitucional (SANTOS, 2007, p.85). A própria definição de soberania passa a ser redefinida, incorporando compromissos e obrigações de alcance internacional para a proteção dos direitos humanos, sendo previsto até sanções econômicas e militares impostas pela sociedade internacional aos Estados que violem tais obrigações (cf. PIOVESAN, 1996, p.134).
Os direitos humanos são verdadeiras prerrogativas que todo indivíduo (e especialmente aquele em situação de hipossuficiência ou desamparo) possui frente ao Poder Estatal para que tenha sua dignidade preservada, como ser humano, tornando função desse Estado intervir devidamente em áreas específicas para assegurar tais garantias (cf. PINHEIRO, 2008, p.117).
Observemos no quadro abaixo os principais documentos internacionais assinados e ratificados pelo Brasil, demonstrando a amplitude da responsabilidade assumida pelo Estado nesse sentido.
Como se observa do quadro a perpetuação do trabalho escravo contemporâneo se configura como uma violação de regra de caráter internacional. Seguindo a doutrina de Carla Noura Teixeira (2008, p.38) a responsabilidade internacional deve abranger a compreensão de quatro elementos caracterizadores: ação ou omissão do Estado; existência de dano; imputabilidade e nexo causal. Essa transgressão ocasiona danos pessoais (sobre o indivíduo escravizado) e universais (sobre toda a humanidade por se tratar de ofensa a virtualmente todas as consagradas dimensões de direitos humanos).
A responsabilidade pode ser imputada ao Estado por omissão (cf. CANÇADO TRINDADE, 1992), vez que não há um efetivo e eficaz combate, bem como não há suficientes políticas públicas preventivas. Nesse sentido
cumpre destacar que a obrigação de respeitar/fazer respeitar ou assegurar/garantir todos os direitos humanos consagrada em alguns tratados internacionais, pode ser interpretada como o dever da devida diligência dos Estados-Partes para prevenir e evitar que os direitos de uma pessoa possam ser violados por outrem; e em caso afirmativo pressupõe-se a obrigação de punir. Desta forma, uma violação de direitos humanos por indivíduos ou grupos pode ser sancionada indiretamente, quando o Estado não cumpre seu dever de dar a devida proteção e de tomar as medidas necessárias para prevenir e punir os responsáveis (...) a negligência na prevenção do delito e na aplicação da punição constitui uma violação das obrigações assumidas pelo Estado em matéria de direitos humanos. (PINHEIRO, 2008, p.119).
E como bem leciona Cláudio Finkelstein (2013, p.51) o Estado é responsável pelo cumprimento dos deveres que assume frente à sociedade internacional, sejam esses deveres oriundos de tratados, costumes ou do fato de causar danos ou prejuízos a outros Estados (voluntária ou involuntariamente).
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente análise chega às considerações finais reconhecendo que há muito ainda a ser feito, visto que nossa intenção foi apenas modestamente relacionar as dimensões de direitos humanos com a prática do trabalho escravo contemporâneo como sua antítese. Ademais, reconhece-se que as investigações feitas não são exaurientes, podem ainda ser complementadas por outras verificações importantes. Nosso enfoque quanto à compreensão das normas de caráter internacional, sua existência e importância numa perspectiva de combate global e local, e, especialmente, por servir de sustentáculo e motivação para políticas públicas de combate ao trabalho escravo, no intuito de mostrar que as ações governamentais são a principal ferramenta de combate e prevenção da escravidão rural. Essa compreensão nos permitiu tecer algumas considerações, mas, em proporção muito maior, levantou dúvidas novas e abriu um novo horizonte de pesquisa e questões a serem trabalhadas futuramente. Há o desejo de continuar esses estudos, partindo do que foi levantado e considerado, com o cruzamento de dados estatísticos e/ou o estudo caso a caso, de modo mais específico e aprofundado, das políticas de promoção de um trabalho decente.
Podemos concluir dessa forma que a solução do problema não se alcançará facilmente, sendo resultado de um árduo processo de aperfeiçoamento das políticas públicas de combate e prevenção, não só do trabalho escravo propriamente dito, mas de toda uma realidade de pobreza e marginalização do homem do campo e de regiões vulneráveis como o Centro-Oeste, Norte e Nordeste. Não basta somente haver previsão, seja nacional ou internacional que assegure o trabalho decente, é preciso que se dê efetividade e eficácia para essas normas. Há fiscalização por parte dos organismos internacionais, mas há, ainda, uma falta de conscientização do próprio Governo Brasileiro em assumir esses compromissos internacionais. Temos que esse compromisso perpassa pelo combate à pobreza que garante e realimenta o ciclo de exploração e escravidão, somente com o seu combate é que as mazelas dela oriundas poderão ser efetivamente enfrentadas em busca e defesa dos direitos humanos em todas as suas dimensões.
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2 Essa perspectiva universalista ou internacionalista foi adotada no período do pós-guerra (ao fim da Segunda Grande Guerra Mundial), quando passou-se a ter uma preocupação com as atrocidades cometidas contra o gênero humano, numa noção de que a proteção do ser humano deve transcender limites territoriais ou meramente nacionais.
3 Para conhecer a justificativa da adoção do termo “dimensão” e não “geração” sugere-se a leitura de nosso trabalho de dissertação (NASCIMENTO, 2012) em que, ao tratarmos da questão do trabalho escravo rural contemporâneo, analisamos (rapidamente) também a construção dos direitos humanos.
4 O Pacto foi aprovado na XXI Assembleia Geral da ONU (16/12/1966) ganhando validade internacional no ano seguinte (23/03/1967).
5 Nesse sentido também o “isolamento da fazenda em relação a qualquer tipo de transporte dificulta as possibilidades de fuga. Somado a isso, para que as fugas sejam evitadas, os trabalhadores são constantemente vigiados e ameaçados por funcionários armados, evidenciando a existência de uma situação de coerção e privação da liberdade.” (COSTA, 2010, p.32)
6 “é claro que a liberdade é importante. Mas, ainda sobre esse viés, é importante dizer. Não é só a liberdade de ir e vir. É a liberdade de contratar. Em determinados momentos, o trabalhador pode sair do local onde está prestando serviços. Pode sair andando. Nem sempre há corrente, nem sempre há capangas armados. Mas, na maior parte das vezes, há uma dívida. Na maior parte das vezes, há uma humilhação a que é submetido o trabalhador, e essa situação faz com que ele, trabalhador honesto, trabalhador orgulhoso, permaneça para pagar a dívida e não saia. E se ele não consegue sair, vai permanecer submetido a essas condições. Então, é preciso observar a liberdade sim. Mas não é só aquela liberdade de ir e vir, aquela liberdade de ambular porque, em determinados momentos isso pode ser observado. Mas, principalmente, não deixem de pensar nisso, a liberdade de contratar, a liberdade de assumir uma obrigação de prestar serviços, mas a liberdade também de abandonar aquele local em todos os momentos, em todas as situações em que o trabalhador estiver sendo absurdamente explorado.” (MELO, 2009, p.6)
7 Tal como prevê o Art. 149, CPB.
8 “Recorre-se à breves considerações, para trazer à baila e destacar o posicionamento do Estado. Este, de maneira ostensiva, fomentou o capital. Perpetrou intensa repressão aos movimentos dos trabalhadores e não esteve presente, por meio de sua estrutura repressiva (magistratura, ministério-público, polícia, aparelhos de Estado de modo geral), para coibir a utilização da mão-de-obra escrava e a subversão à ordem contratual. Acresce-se a esse quadro, a perversa estrutura fundiária, elemento de suma importância nesse contexto. Nessa linha de raciocínio, o trabalho escravo contemporâneo não só foi tolerado pelo Estado, mais foi incentivado pelo mesmo.” (CRISTO, 2008, p.111)
9 Também chamada de Revolução Técnico-científico-informacional, surge na segunda metade do Séc. XX, para alguns especificamente a partir dos anos 70, com o avanço (e descoberta) no campo tecnológico. Essa inserção tecnológica e de informação se liga também à robótica, novos materiais, biotecnologia, engenharia genética, entre outros aspectos. Podemos dizer que essa fase impulsionou o desenvolvimento do capitalismo contemporâneo e a globalização, dando dinamismo para a circulação de mercadorias e capitais.
10 O direito ao (meio) ambiente do trabalho é um direito constitucionalmente garantido. A CRFB/88 em seu Art. 7, XXII, dispõe (caput:) “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social” (XXII:) “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”. Além disso, a CLT (Cap. V, Título II) dedica-se à segurança e medicina do trabalho. Somam-se, ainda, as Normas Regulamentadoras do MTE, bem como a Lei 8.080/90 (que regula o SUS). Além disso, para configuração de um (meio) ambiente de trabalho nos termos constitucionais se adota a conceituação da Organização Mundial de Saúde, para quem a saúde (e ambiente saudável) envolve estado completo de bem estar físico, mental e social.
11 Nesse sentido “o trabalho escravo contemporâneo, na zona rural, é aquele em que o empregador sujeita o empregado a condições de trabalho degradantes, inclusive quanto ao meio ambiente em que irá realizar a sua atividade laboral, submetendo-o, em geral, a constrangimento físico e moral, que vai desde a deformação do seu consentimento ao celebrar o vínculo empregatício, passando pela proibição imposta ao obreiro de resilir o vínculo quando bem entender, tudo motivado pelo interesse mesquinho de ampliar os lucros às custas da exploração do trabalhador.” (SENTO-SÉ, 2001, p.27)
12 A Declaração estabelecia que (Art. 1º) “O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao gozo de condições de vida adequadas num meio ambiente de tal qualidade que lhe permita levar uma vida digna de gozar do bem-estar, e tem solene obrigação de proteger e melhorar o meio-ambiente para as gerações presentes e futuras.”
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