Alba Valéria Durães Milagres
João Batista Santiago Sobrinho
Centro Federal de Educação Tecnológica, Brasil
alba.duraes@hotmail.comResumo
Neste texto, faremos uma análise sobre a criação, na obra A Eva futura de Villiers de L’isle-Adam, com a intenção de evidenciar algumas questões envolvendo a técnica e seus desdobramentos. Faremos, neste sentido, alguns apontamentos sobre a passagem da vontade de criação da ciência para a técnica, notadamente no campo da biotecnologia que marca a condição contemporânea. Para tanto, utilizaremos, sobretudo, alguns conceitos heideggerianos relativos à questão da técnica.
Palavras-chave: Criação, Técnica, A Eva futura, Villiers de L’isle-Adam, Heidegger.
Abstract
In this text, we will make an analysis about the creation, in Villiers de L'isle-Adam's work The Future Eve, with the intention to point out some of the questions involving the technique and its unfoldings. We will make, in this sense, some notes about the passage of the will of creation from science to the technique, notedly in the field of Biotechnology which marks the contemporary condition. For such, we will use, above all, some Heideggerian concepts on the matter of the technique.
Keywords: Creation. Technique. The Future Eve. Villiers de L'isle-Adam. Heidegger.
Resumen
En este texto, haremos un análisis acerca de la creación en la obra La Eva futura (L’Eve future) de Villiers de L’isle-Adam, con el objetivo de evidenciar algunas cuestiones relativas a la técnica y a sus desdoblamientos. Haremos, en este sentido, algunos apuntamientos en lo que se refiere al pasaje de la voluntad de creación de la ciencia para la técnica, notablemente en el campo de la biotecnología presente en la condición contemporánea. Para eso, utilizaremos, principalmente, algunos conceptos de Heidegger relativos a la cuestión técnica.
Palabras clave: Creación. Técnica. La Eva futura. Villiers de L’isle-Adam. Heidegger.
Para citar este artículo puede uitlizar el siguiente formato:
Alba Valéria Durães Milagres y João Batista Santiago Sobrinho (2016): “Da técnica à utopia da criação: a inumana Eva de Villiers de L’isle-Adam”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (enero-marzo 2016). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/01/eva-futura.html
Introdução
Para alguns filósofos, vivemos há algum tempo na era da técnica. Acerca dessa temática, o pensador Umberto Galimberti (2006) elabora significativa contribuição com a obra Psique e techné, o homem na idade da técnica. Para esse estudioso italiano, vivemos na idade da técnica, de cujos benefícios usufruímos em termos de bens e espaços de liberdade. Somos mais livres do que homens primitivos, porque dispomos de mais campos de atuação. Na facilidade com que utilizamos os instrumentos e serviços que encurtam o espaço e o tempo, amenizam a dor. A influência da técnica, no entanto, vai modificar diretamente o modo de conceber os grandes conceitos que formataram o processo civilizatório da cultura ocidental, levando a uma revisão dos cenários históricos, dos conceitos como: razão, verdade, ética, natureza, religião e história. 1
Houve um tempo em que o homem vivia em conformidade com a ordem do cosmo ou com Deus; no entanto, a ordem do mundo não mais se configura assim, depende do fazer técnico, a eficácia se torna explicitamente o único critério de verdade. Segundo Galimberti, a técnica pode ser “tanto o universo dos meios (as tecnologias), quanto a racionalidade que preside o seu emprego, em termos de funcionalidade e eficiência” (GALIMBERTI, 2006, p. 8). Desse modo, a técnica pensa as próprias hipóteses como superáveis em princípio, e por isso não se extingue quando o seu núcleo teórico se revela ineficaz; não tendo ligado a sua verdade a esse núcleo, pode mudar e corrigir-se sem se desacreditar. Seus erros não a destroem, mas se convertem imediatamente em ocasiões de autocorreção. Assim, de acordo com Galimberti (2006), somos funcionários da técnica. Nesse sentido, estamos encaminhando nosso texto para o tema que desejamos problematizar: a hybris, o desejo humano de criar vida.
Naquilo que diz respeito à ética, como forma de agir em vista de fins, torna-se evidente a sua impotência no mundo da técnica, regulada pelo fazer como pura produção de resultados. Isso significa que não é mais a ética que escolhe os fins e encarrega a técnica de encontrar os meios, mas é a técnica que, assumindo como fins os resultados dos seus procedimentos, condiciona a ética, obrigando-a a tomar posição sobre uma realidade, não mais natural e sim artificial2 .
Desenvolvimento
Refletindo sobre aspectos contemporâneos, Lucien Sfez, em sua obra A saúde perfeita críticas de uma utopia (1995),faz uma significativa abordagem acerca da criação em A Eva futura, de Villiers de L’isle-Adam. Sfez inicia seu livro afirmando que
Adam meditou no nosso tema, o tema deste livro, que é dos anos 2000 e seguintes. Digamos que é o século XXI. Contemos a sua Éve future, dedicada aos “Sonhadores” e aos “zombeteiros”. Tudo parte de Edison, o inventor, “o homem que aprisionou o eco”, não obstante ser surdo, espécie de Beethoven da ciência. (SFEZ, 1995, p. 11).
Conforme o trecho acima, no século XIX, o escritor Villiers de L’isle Adam antecipa o tema do século XXI, ao refletir sobre o ideal de uma época que valorizava exclusivamente a racionalidade científica e técnica, criou o romance A Eva Futura (1886), no qual evidencia utopias da mecanização do homem. Por intermédio de seus personagens principais, Thomas Edison, o criador do fonógrafo, e Hadaly, a “Eva Futura”, uma ginoide perfeita, Villiers fornece uma visionária alegoria dos avanços científicos e de suas utopias.3
Tendo em vista estes aspectos é que propomos analisar a criação dessa Eva, pelos moldes de um Deus-cientista 4, que domina a técnica e a exalta. A personagem Thomas Edison afirma que a palavra divina foi registrada apenas na escrita, mas que ele, o cientista, tornou-a sonora através do fonógrafo. Assim, graças a sua técnica “em vez de se dizer: ‘Leiam as Santas Escrituras!’, tivesse dito: ‘Escutem as Vibrações Sagradas!’”. (VILLIERS, 200, p. 64).
Somando-se à exaltação ao poder de se criar um ser vivo, aquilo que foi pronunciado por Karl Marx no século XIX, relativo à técnica e à economia, mantém-se com incrível atualidade crítica. De acordo com Marx,
a máquina, triunfo do ser humano sobre as forças naturais, converte-se, nas mãos dos capitalistas, em instrumento de servidão de seres humanos a estas mesmas forças”; “(...); a máquina, meio infalível para encurtar o trabalho cotidiano, o prolonga, nas mãos do capitalista (...)”; “a máquina, varinha de condão para aumentar a riqueza do produtor, o empobrece, em mãos do capitalista. (MARX apud PARIS, 2002, p. 235).
No caso do romance de Villiers, é o poder econômico da personagem Lorde Ewald – cujo nome já possui Eva – que viabiliza todo o processo de fabricação da utópica-mulher-cybernética. 5
Com o uso aprimorado da técnica, o conceito de natureza também foi atingido. Na obra História da ideia de natureza, Robert Lenoble desenvolve a ideia de natureza como representação do entorno ser complexa e polêmica, pois está articulada uma atitude de consciência, seja ela individual ou coletiva, que, ao se transformar, induz a uma modificação da representação dessa mesma natureza. Em tal perspectiva, a definição do natural é sempre ambígua, pois é:
(...) simultaneamente ordem das coisas e hábito social, e toda mudança grave na ordem humana é também uma alteração da natureza, pois em cada período da história da humanidade forma-se uma Weltanschauung [cosmovisão ou mundividência; é a orientação cognitiva fundamental de um indivíduo ou de toda uma sociedade] da qual vão emergir as diferentes representações, científica, estética e moral de Natureza. (LENOBLE, 2002, p. 23).
Em um mundo, porém, sempre mais tecnizado, também o homem se submete ao domínio da técnica. Se ao menos na intenção a técnica deveria representar a consagração do homem como sujeito, na realidade o que se vê é a agonia do próprio sujeito. A esse sistema, Heidegger chama Gestell, “a maneira como as coisas são desveladas ou manifestadas na era tecnológica.” (ZIMERMAN, 1990, p. 322).
Neste artigo, o substantivo masculino texto qualifica a obra heideggeriana no sentido barthesiano. Segundo Barthes, o “texto”, diferentemente do caráter estático da obra, em seu movimento paradoxal, descentralizado, subversivo, sem fechamento, “não pode parar; o seu movimento constitutivo é a travessia.” (BARTHES, apud SANTIAGO SOBRINHO, 2011, p. 18). Desse modo, a obra A questão da técnica, Martin Heidegger, ao refletir sobre a técnica, deixa claro que ela é diferente do pensamento tecnológico. A técnica consiste no saber operatório de um determinado campo do fazer humano. A crença de que a técnica é capaz de tudo resolver representa o ideal fundamentalmente proposto pelo pensamento tecnológico. Dessa forma, a técnica não é apenas um meio, também não é neutra e sua verdade está no devir.6
Heidegger é um pós-humanista que se preocupa em alertar para a reflexão acerca de um processo histórico que tende a adquirir o seu estágio máximo nos próximos séculos. Tal progressão sócio-histórica não afastaria a possibilidade de que, em perspectiva futura, surgisse algum movimento que pudesse modificar o percurso desse processo, de maneira criativa e original. Diante do processo tecnológico que predomina nas coletividades modernas, Heidegger dispensa as visões extremas da fé incondicional ou do temor ingênuo pelo mundo das máquinas.
No ensaio Ciência e pensamento do sentido, Heidegger esclarece que a ciência não é propriamente um saber, mas faz parte do modo como o real se desvenda como disponível a partir de um projeto técnico-maquinador de regulação da natureza. Por sua força, em seu conjunto, transforma-se em conteúdo representativo, submetido à ação objetivante de um sujeito de conhecimento na medida em que esta realidade é tornada disponível pela intervenção de um experimento técnico. “Fica sempre em pé, portanto, o fato de as ciências não terem a possibilidade de apresentar a si mesmas, como ciência, só como recursos, métodos e procedimentos da teoria.” (HEIDEGGER, 2001, p. 56).
Assim, o homem tem acreditado na possibilidade de tudo ser resolvido pela técnica e tecnologia. Nesse sentido, o sociólogo português, Hermínio Martins, em seu livro, Experimentum humanum (2012) e Paula Sibilia, em O homem pós-orgânico: corpo e subjetividade e tecnologias digitais (2002), ao tratarem de questões prometeicas e fáusticas, âmbitos da técnica que, para efeitos meramente didáticos, é assim dividido. Os prometeicos seriam aqueles que estão mais próximos de um humanismo a exigir cuidados éticos, por exemplo, em relação à técnica. Os fáusticos, seriam aqueles que fazem o pacto com a técnica, não revelando nenhuma reserva em relação aos perigos que dela possam advir. A análise de Martins evidencia essa postura fáustica com relação à técnica:
[...] os fáusticos haveriam de afirmar que o modo de percepção da ciência moderna [aplicando-se também à contemporaneidade] dá-se de maneira a ver acessibilidade à manipulação experimental e ao controle prático. Assim, os procedimentos e os esquemas científicos pressupõem uma orientação técnica até mesmo quando não conduzem a verdadeiras experiências físicas ou a aplicações práticas bem sucedidas por longos períodos de tempo histórico. (MARTINS, 2012, p. 51).
Nesse sentido, considerando o excerto acima, podemos afirmar que o romance em análise retrata um pacto fáustico, evidenciando-se no jogo de valores da realidade social e da realidade utópica da criação tecnológica. Na obra francesa, de um lado, temos a personagem Alicia, namorada do personagem Lorde Ewald, cujo corpo legará a réplica de Edison, é o clone perfeito de Venus Victrix, é o contraste entre perfeição física e vazio de espírito. Assim, Alicia representa a síntese do “ideal” da sociedade moderna que Villiers critica em seu romance. Ela é o “verdadeiro” autômato que caracteriza o vazio do “real” da sociedade burguesa. Suas maneiras são falsamente polidas, situações e frases estereotipadas caem-lhe com a conveniência de um figurino adequado. Um ser que é capaz de comover-se às lágrimas com situações redundantes de folhetim, mas incapaz de responder a uma experiência estética: em suma, Alicia seria a personificação da “deusa burguesa”. Isso fica muito claro pelo olhar apaixonado de Lorde Ewald, “Não poderei deixar de me exprimir como homem apaixonado e até, se possível for, como poeta, já que essa mulher, acima de tudo e aos olhos do artista mais indiferente, seria considerada de beleza não só incontestável mas absolutamente extraordinária.” (VILLERS, 2001, p. 89).
De outro lado, está Hadaly, que em persa significa “ideal”, é um ente que, sendo uma réplica do ser humano, supera todas as imperfeições da natureza. Hadaly representa o ser ideal que concretiza a não contingência, encarna o absoluto, é a máquina que preencherá o vazio do real. O processo de criação de uma Eva ideal em oposição a uma mulher real fica claro nesse empenho de criação artificial. Dessa forma, Hermínio Martins, ao tratar da biotecnologia no mundo contemporâneo, ratifica essa vontade de criação que Villiers já criticava no século XIX: “As formas de vida artificiais iludem as fronteiras naturais e os limites da evolução biológica ‘normal’”. (MARTINS, 2012, p. 27), por parecer que a perfeição é possível.7
Da época moderna à contemporaneidade, podemos afirmar que esse desejo de criação se intensificou. Com os prenúncios nos campos da biotecnologia, engenharia genética, medicina, nanotecnologia, robótica etc., o futuro evolutivo obscuro e incerto que desponta revela os prováveis procedimentos efetivos de autodomesticação que a humanidade ou suas elites culturais utilizarão. Dessa forma, em relação ao caráter utópico da técnica que apontamos anteriormente, argumenta Sfez “Com efeito, um traço característico da utopia reside na pretensão de governar diretamente os espíritos por meio da ciência e da técnica que se impõem sem mediação. Pelo menos nas utopias tecnológicas que, segundo Ruyer, sucedem às utopias sociais depois de 1850.” (SFEZ, 1995, p. 28).
Nesse sentido, desde a década de 1930, a questão da possibilidade da produção industrial dos seres humanos ocupa o pensamento de Heidegger. A partir da distinção aristotélica das coisas que são por natureza (physei onta) das que são produzidas (poioumena), Heidegger pensa o perigo de a técnica se sobrepor à natureza, assim como quando formula a questão de se um ser humano produzido quimicamente nasceu ou se, pelo contrário, a produção torna o nascimento impossível, pois os seres humanos produzidos são entes que não nasceram. Assim, a criação de um homem biotecnológico vai além do que permite o natural. De acordo com Martins, “as formas de vida artificiais iludem as fronteiras naturais e os limites da evolução biológica ‘normal’.”(MARTINS, 2012, p. 27).
Essa constatação é uma das significativas reflexões que Hermínio Martins faz sobre as questões do ser humano e pós humano, na obra Experimentum humanum. O estudioso percorre alguns caminhos na relação biotécnica e a condição do homem, além de tecer algumas considerações, procurando caminhos:
Deveriam as tecno-espécies ser consideradas superiores ou mais conciliáveis com uma ética feminista do que as bio-espécies naturais ou as taxonomias comuns? É certo que todas as de categorização deveriam ser reconsideradas em termos de quadros categorias alternativas, e que a tecno-ontologia não deveria beneficiar de um estatuto privilegiado só porque a atenuação dos gêneros parece ter uma afinidade com a atenuação das distinções entre estes. É a própria capacidade de refazermos bio-espécies e criarmos tecno-espécies compósitas que reclama prudência, tanto como as implicações ecológicas mais vastas das tecnologias industriais avançadas. (MARTINS, 2012, p. 29).
Todas estas indagações e busca por um fio condutor que seja base para resposta acerca da construção do homem biotecnológico corroboram o trabalho de Paula Sibilia na obra O homem pós-orgânico. A autora parte de indagações fundamentais:
ainda é válido – ou sequer desejável – persistirmos dentro das margens tradicionais do conceito de homem? Ou, pelo contrário, seria talvez preciso reformular essa noção herdada do humanismo liberal e inventar outras formas, capazes de conter as novas possibilidades que estão se abrindo? Que é aquilo que estamos nos tornando? O que gostaríamos de nos tornar? (SIBILIA, 2002, p. 18).
Tendo em vista esses questionamentos, em seguida, Sibilia aponta como se compõe o cenário na contemporaneidade: “Hoje proliferam, entretanto, outros modos de ser. A figura do cyborg, misto de organismo e cibernética, poderia se tornar um emblema inspirador das novas configurações...” (SIBILIA, 2002, p. 18). Por esse direcionamento, podemos considerar que há uma expectativa positiva com relação ao uso da técnica.
No romance que estamos analisando, verificamos que a figura de Thomas Edison representa uma síntese da própria ciência moderna na tentativa de concretizar os velhos sonhos dos homens:
Vou demonstrar-lhe, matematicamente, e agora mesmo como, com os formidáveis recursos atuais da ciência – e isso de uma maneira fria, talvez, mas indiscutível – posso apoderar-me de sua graça, da plenitude de seu corpo, do odor de sua carne, do timbre de sua voz, da flexibilidade de sua cintura, da luminosidade de seus olhos, das características de seus movimentos e de seu andar, da personalidade de seu olhar, de seus traços, de sua sombra no chão, de sua aparência, do reflexo de sua Identidade, enfim – Serei o assassino de sua animalidade triunfante. Primeiramente, vou reencarnar toda essa exterioridade, que, para o senhor, é deliciosamente mortal, em uma Aparição cuja semelhança e encantos humanos ultrapassarão sua esperança e todos os seus sonhos! [...] Aniquilarei a Ilusão! [...] Forçarei, nessa visão, o próprio Ideal a manifestar-se, pela primeira vez, PALPÁVEL, AUDÍVEL E MATERIALIZADO [...] E o cientista jurou, levantando a mão.”. (VILLIERS, 2001, p. 140-141).
Apesar de o excerto acima ser, digamos, uma premissa da ciência do século XIX, o desejo da criação, dirigido por Edison, persiste na contemporaneidade. Podemos considerar que o desejo apenas se sofisticou com os novos dispositivos contemporâneos.
É importante ressaltarmos que para Villiers todo o aparato científico leva a uma falsa pista. Longe de conduzir a um fácil triunfalismo, a ciência garante o método, embora nunca o resultado final. Vale lembrar que, no período em que Villiers escreveu A Eva Futura, parte da Europa estava vivenciando o desenvolvimento industrial, e, consecutivamente, o surgimento e o aperfeiçoamento das técnicas de produção. Posteriormente, já no século XX, com a justificativa de multiplicar a força do operário com a que advinha da eletrônica, a mão-de-obra humana gradativamente foi substituída. A tendência é que cada vez mais os instrumentos eletrônicos substituam o trabalho manual, assim como o intelectual.
No ensaio As mutações do poder e os limites do humano (2008), Newton Bignotto discute as relações paradoxais do poder criar com o aparato técnico. Ao observarmos a postura do personagem Thomas Edison, podemos afirmar que se elucida a postura de Bignotto ao considerar que “A arte demiúrgica de produzir o próprio universo se transformou na arte de criar seu próprio inferno, no qual não existem leis da natureza, ou da divindade, mas regras da desrazão, travestida pela racionalidade técnica.” (BIGNOTTO, 2008, p. 107). Assim, a técnica torna-se seu próprio meio e fim.
Considerando o poder de criação por meio da técnica, podemos afirmar que com obra A Eva futura, Villiers nos oferece repertório significativo de representação da realidade, no que se refere ao inumano. No ensaio Máquinas utópicas e distópicas (2008), João Camilo Penna propõe que
A ficção científica nos expõe de maneira essencial à identificação com aquilo que nos produz estranheza, terror: a diferença, o inumano, como veremos: ela é bem sucedida precisamente quando fracassa. Esta a função do inumano: fazer com que o humano fracasse e assim inventar o humano. (PENNA. 2008, p. 188).
No final do romance, o fracasso da criatura perfeita ocorre com o naufrágio do navio. Ao ser consumida pelas águas do mar, a criatura Eva-Hadaly simboliza o impossível da perfeição. É através da ruptura com a utopia da criação de um ser perfeito que se evidencia o humano.
Considerações finais
Assim sendo, como devemos nos comportar diante da técnica? Entregarmo-nos completamente, permitindo simplesmente que ela seja extensão dos nossos corpos, parte de nossa alma/existir, conforme está proposto por Ewald e Edison, representantes das elites tanto do intelecto, da ciência, quanto do capital? É inegável que ela está incrustada no modo de operar o mundo, parecendo que somos incapazes de conceber a vidda sem ela. Aporia: esta é a única certeza. Talvez, em um quase delírio, possamos vislumbrar, ainda que no encaminhamento da condição humana ao projeto fáustico, possa ocorrer, por obra do acaso, condições outras para que o homem desista de brincar de “Deus” e se permita apenas ser.
Na verdade, Heidegger acredita que devemos pensar sobre essa “Aporia”. Se nosso destino é a técnica, conforme acredita Heidegger, pensá-la em sua essência, ou seja, naquilo que ela é, para além da tese “antropológica”, a técnica é uma atividade do homem e da tese “instrumental”, a técnica é um meio para um fim. Aspectos corretos, mas que para Heidegger não são “verdadeiros”. A Técnica é o modo como desvelamos o mundo e o desvelamos no modo de produção capitalística: reduzir custos e aumentar os lucros e isso ocorre em todos os âmbitos da vida, como uma espécie de mantra a guiar nossas ações. Assim, diria o resumo da técnica, estamos sendo eficazes. A questão é que, nesse modo de produção do capital, o planeta sucumbirá rapidamente. É preciso desvelar o mundo de outra maneira, mas outra maneira não há, nesse momento, de travessia do humano para o pós-humano.
Referências
BÍBLIA. Mensagem de Deus. São Paulo: Ed. Loyola, 1985.
BIGNOTTO, Newton. As mutações do poder e os limites do humano. In. NOVAIS, Adauto (org). Mutações. São Paulo: Agir, 2008.
GALIMBERTI, Umberto. Psiche e techne, o homem na idade da técnica. São Paulo: Paulus, 2006.
HEIDEGGER, M. A questão da técnica. In: M. HEIDEGGER, Ensaios e conferências. 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 12-38.
HEIDEGGER, M. Carta-resposta Revista Begegnung, 1965 de Heidegger ao professor da Universidade de Tóquio, dr. Takehiko Kojima. In: E. STEIN, Uma breve introdução à filosofia. Ijuí, Unijuí, 2002. 193-202 p.
HEIDEGGER, M. Ciência e pensamento do sentido. In: M. HEIDEGGER, Ensaios e conferências. 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 39-60.
SANTOS. Laymert Garcia dos. Humano, pós-humano, transumano. In. NOVAIS, Adauto (org). Mutações. São Paulo: Agir, 2008.
LENOBLE, Robert. História da ideia de natureza. Trad. Tereza Louro Perez. Lisboa: Edições 70, 2002.
MARTINS, Hermínio. Experimentum humanum: civilização, tecnologia e condição humana. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012.
PARIS, C. O Animal Cultural. São Carlos: Editora da UFSCAr, 2002.
PENNA, João Camilo. Máquinas utópicas e distópicas. In. NOVAIS, Adauto (org). Mutações. São Paulo: Agir, 2008.
SANTIAGO SOBRINHO, João Batista. Mundanos fabulistas: Guimarães Rosa e Nietzsche. Belo Horizonte: Crisálida/CEFET. 2011.
SIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico: corpo e subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relume Dumrá, 2002.
SFEZ, Lucien. A saúde perfeita críticas de uma utopia. Lisboa: Instituto Piaget.1995.
VILLIERS de L’isle Adam. A Eva Futura. Tradução de Ecila de Azeredo. Editora da Universidade de São Paulo: São Paulo, 2001.
ZIMERMAN, Michael E. Confronto de Heidegger com a modernidade: tecnologia, política, arte. Lisboa: Instituto Piaget, 1990.
2 Galimberti, 2006, p. 17-28.
3 Sfez, 1995, p.11.
4 Ideologicamente, o poder não vem mais de cima (de um Deus inventado) vem da ciência, dos grandes laboratórios, de um Deus-inventor. Cf. Sfez, 1995, p. 27.
5 Torna-se importante ressaltarmos que, nesta análise, esboçamos apenas o viés de reflexões sobre a técnica, não sendo objeto as questões de gênero. No entanto, não podemos nos esquivar de registrar que a necessidade (vital, uma vez que planeja se matar) de Lord Ewald conseguir obter a mulher dos seus sonhos, aos moldes da sociedade machista do século XIX, problematiza, além da subjugação da mulher com relação ao homem, o tema do amor. Evidencia-se a ideia de que ele também pode ser comprado, fabricado, ao se aglutinar em uma máquina toda a idealização acerca de uma mulher real. Com a possibilidade de se produzir artificialmente o amor, talvez o sentimento mais nobre e caro da e para a humanidade, a técnica potencializa-se na utopia do existir, ultrapassando as barreiras do humano.
6 Heidegger, 2008, p.11-19.
7 “Hadaly é perfeita porque, além da eletricidade, é feita de magnetismo. É um ser eletromagnético que vê à distância e através de todos os obstáculos, possui um modo de lógica diferente de nosso e tem noção do infinito, a ponto de se fazer passar por humana, de comover Lord Ewald e de suscitar nele o primeiro ‘doce e sublime instante de paixão’ eu seu modelo, Miss Clary, fora incapaz de provocar.” (SFEZ, 1995, p.20).
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