Raquel Blankenheim de Brito Keller
Carolina Spack Kemmelmeier
Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil
kel_bk@hotmail.comRESUMO
O presente artigo tem por escopo a análise dos argumentos centrais quanto à inconstitucionalidade da terceirização das atividades-fim no âmbito empresarial, tendo em vista sua incompatibilidade com os princípios eivados na Constituição Federal. A pesquisa se desenvolveu, especificamente, por meio da análise do projeto de lei 4330/04, que visa a terceirização das atividades-fim nas empresas, também, através dos princípios constitucionais de proteção ao trabalhador, os quais integram o conceito de função social da empresa. Para tanto, em um primeiro momento, a pesquisa aborda o conceito de terceirização e sua relação com a precarização das relações trabalhistas, com ênfase no parâmetro histórico-conceitual dessa figura e na construção doutrinária e jurisprudencial da diferenciação entre atividade-fim e atividade meio. Em um segundo momento, identifica-se a desconstrução da relação trabalhista terceirizada e a inconstitucionalidade material da terceirização da atividade-fim com destaque para a não concordância dessa forma de prestação laboral com a função social da empresa e do prejuízo para a concretização dos direitos sociais trabalhistas. Conclui-se que a terceirização da atividade-fim nas empresas não possui amparo na Constituição Federal, constituindo uma forma de degradação da função social da empresa, desrespeitando o princípio da ordem econômica e os princípios trabalhistas.
Palavras-chave: terceirização, atividade-fim, função social da propriedade, direitos sociais, Constituição Federal.
ABSTRACT
This article has as a scope the analysis of the central arguments regarding the unconstitutionality of outsourcing the core activities in the business domain, in view of its incompatibility with the principles contained in the Federal Constitution. The research was developed, specifically through the analysis of the bill 4330/04, aimed at the outsourcing of core activities, also through the constitutional principles to worker protection, which integrate the concept of social function of the company. For this, in a first instance, the research addresses the concept of outsourcing and its relationship with the casualization of labor relationship, with emphasis on the historical and conceptual framework of this figure and the doctrinal and jurisprudential construction of the distinction between core activities and support activities. In a second instance, identifies the deconstruction of outsourced labor relationship and the material unconstitutionality of core activities outsourcing with a highlighting on the incompatibility of this method of labor supply with the social function of the company and the impairment of the fulfillment of social rights labor. It is concluded that core activities outsourcing within the contracting companies is not supported by the Federal Constitution, constituting a method of social function of the company degradation, disregarding the principle of economic order and labor principles.
Keywords: outsourcing; core activities; social function of property; social rights; Federal Constitution.
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Raquel Blankenheim de Brito Keller y Carolina Spack Kemmelmeier (2016): “A inconstitucionalidade da terceirização das atividades-fim no direito trabalhista brasileiro”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (enero-marzo 2016). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/01/direitos-sociais.html
INTRODUÇÃO
A abordagem do presente artigo tem por objeto a análise da terceirização da atividade-fim, como forma de contribuição para a precarização das condições de trabalho e, em uma perspectiva jurídica, para a não concretização de princípios e valores constitucionais como o da dignidade humana, da justiça social e, especialmente, da função social da empresa.
Esse enfoque se justifica ao considerar que o processo de terceirização se desenvolve na materialidade das relações de trabalho sobre uma defasagem jurídica, avançando gradativamente às margens do Direito do Trabalho e dos princípios constitucionais de proteção ao trabalhador, os quais integram o conceito de função social da empresa.
Devido à ausência de legislação específica que verse sobre essa forma de contratação da força de trabalho, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) editou Súmulas a respeito dessa questão específica, afirmando a licitude da terceirização apenas das atividades-meio e desde que ausentes os requisitos de pessoalidade e subordinação direta com o tomador de serviços.
Em contrario sensu ao entendimento sumulado, o Projeto de Lei nº 4.330/04 pretende regulamentar a terceirização, inclusive das atividades-fim, abordagem essa que levou à mobilização social contrária e ao debate no plano jurídico sobre a constitucionalidade dessa forma laboral.
Diante desse contexto, a análise desenvolvida tem como objeto central, a partir de pesquisa bibliográfica, a identificação e análise das linhas teóricas que tem por objeto a demonstração da inconstitucionalidade material da terceirização da atividade-fim, com destaque para a não concordância dessa forma de prestação laboral com a função social da empresa, diante da desconstrução da relação jurídica de emprego e, consequentemente, do prejuízo para a concretização dos direitos sociais trabalhistas.
1 A TERCEIRIZAÇÃO EM UMA PERSPECTIVA HISTÓRICO-CONCEITUAL
A terceirização, doutrinariamente, apresenta diversos conceitos devido à sua constituição multifacetada. Magda Biavaschi (2008, p. 73) destaca diferentes conceituações e classificações da terceirização, observando como elemento comum o fato de que um terceiro se insere na relação empregatícia.
Nesta mesma perspectiva da autora, a terceirização pode ser reconhecida, segundo José Dari Krein:
[...] a terceirização se manifesta de forma bastante distinta em diversos segmentos econômicos: desde a sub-contratação de uma rede de fornecedores com produção independente, passando pela contratação de empresas especializadas de prestação de serviços de apoio e pela alocação de trabalho temporário via agência de emprego, até a contratação de pessoa jurídica ou do autônomo nas áreas produtivas e essenciais da empresa [...] (KREIN, 2007, p. 188)
Conceitualmente, conforme Maurício Godinho Delgado, a expressão terceirização deriva da palavra terceiro, e surgiu na área de administração de empresas como forma de destacar a descentralização de uma atividade empresarial para outrem, um terceiro, ou seja, a “terceirização é um fenômeno através do qual se dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que lhe seria correspondente” (DELGADO, 2014, p. 452).
Na definição de Márcio Túlio Viana (1998, p. 72) a terceirização é um mecanismo que opera de maneira descentralizada na relação empregatícia, atuando no âmbito de uma relação tríade, que envolve: a empresa tomadora de serviços, a empresa terceirizada e os trabalhadores que prestarão serviços à empresa tomadora.
Conforme proposta de classificação construída por Viana (1998, p. 72-73), a terceirização pode ser interna ou externa e ampla ou restrita. Quanto ao sentido interno, está relacionada a uma figura que se coloca entre o empregado e o tomador de serviços e, em seu sentido externo, demonstra um fenômeno externo ao contrato de trabalho.
Caracteriza-se, por outro lado, como ampla quando realiza parte de suas atividades através de outras unidades, ou seja, integrando operações de terceirização ou descentralização no âmbito empresarial. Já em sentido estrito, abrange o mecanismo descentralizado de uma relação trilateral – uma empresa tomadora, uma empresa terceirizada e os empregados que prestam serviços à tomadora.
No presente artigo, diante da necessidade de delimitação da pesquisa e do próprio objeto do Projeto de Lei nº. 4.330/04 aborda-se apenas a terceirização em sentido estrito.
Sob uma perspectiva histórica, há estreita relação entre a terceirização e alterações no sistema capitalista decorrentes da transição da chamada “Era de Ouro” para a retomada de uma perspectiva liberal a partir das décadas de 80 e 90. Tais transformações repercutem diretamente no padrão de acumulação do capital e, consequentemente, na forma de organização produtiva e de gestão do trabalho. (BIAVASCHI, 2008, p. 08)
Mais especificamente, diante da abertura do mercado mundial, com a consequente redução das barreiras internacionais e da crescente concorrência empresarial, a terceirização passou a ser adotada como instrumento “otimizador” da produção e que desconstrói a relação tradicional de emprego em sua forma empregado-empregador. (BIAVASCHI, 2008, p. 08-09)
Vale ressalvar que essa intermediação laboral não era inédita e se fez presente desde a Revolução Industrial. Todavia, a terceirização da mão-de-obra se fortaleceu como prática no mercado de trabalho brasileiro somente na década de 90. (BIAVASCHI, 2008, p. 09)
A terceirização, no plano jurídico, possui alguns aspectos pontuais regulados na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), como por exemplo, a empreitada e a subempreitada, previstas em seu artigo 455, in verbis:
Art. 455 - Nos contratos de subempreitada responderá o subempreiteiro pelas obrigações derivadas do contrato de trabalho que celebrar, cabendo, todavia, aos empregados, o direito de reclamação contra o empreiteiro principal pelo inadimplemento daquelas obrigações por parte do primeiro.
Parágrafo único - Ao empreiteiro principal fica ressalvada, nos termos da lei civil, ação regressiva contra o subempreiteiro e a retenção de importâncias a este devidas, para a garantia das obrigações previstas neste artigo.
Na década de 1970, por meio da Lei nº 6.019/74 foi incorporado o conceito de trabalhador temporário ao ordenamento jurídico brasileiro, afastando-se do típico conceito de relação empregatícia preestabelecido pela CLT e adotando modelo em que há presença de um terceiro para relações laborais de duração limitada. Na década seguinte, através da Lei nº 7.102/83 o trabalho de vigilância bancária passou a ser terceirizado, no entanto, de forma permanente.
Essa admissão restritiva da terceirização também se fazia presente no âmbito jurisprudencial. A Súmula nº 256, publicada em 1986 restringia a legitimidade do trabalho terceirizado a duas situações, quais sejam, na hipótese de trabalho temporário expressa pela Lei nº 6.019/74 e no setor de vigilância.
No ano de 1993, foi editada a Súmula nº 331 do TST, a qual versa sobre os contratos de prestação de serviços. Em seu inciso III estabelece as formas de trabalho em que não existe a formação de vínculo empregatício, ampliando-se a admissibilidade da terceirização para atividade-meio em geral. A referida súmula possui o seguinte teor:
Súmula nº 331/93 do TST: I – A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974. II – A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988). III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta. IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial. V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada. VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.
Após a edição das Súmulas nº 256/86 e, sobretudo, a nº 331/93 do Tribunal Superior do Trabalho, consagrou-se no plano jurisprudencial um novo conceito para distinguir a licitude das atividades terceirizadas: a diferenciação entre as atividades-meio e atividades-fim em uma empresa. Entretanto, a diferenciação entre atividade-fim e atividade-meio não tem entendimento pacificado, sendo matéria de repercussão geral no STF, conforme analisam Carlos Alberto Molinaro e Ingo Wolfgang Sarlet:
[...] a tensão significativa entre as expressões “atividade-meio” e “atividade-fim” já foi objeto de produção literária especializada, seja no domínio do direito, seja nas searas da administração, da economia e até mesmo das ciências políticas e da sociologia. [...] já foi declarada matéria de “repercussão geral” pelo STF para definir os parâmetros do que representa a atividade-fim de uma empresa, entrevendo a probabilidade de terceirização. Em síntese, a Corte irá decidir sobre o conceito de “atividade-fim”. Ou, quiçá, decidir que é irrelevante se a atividade é fim ou meio e, por consequência, tudo pode ser terceirizado”. (MOLINARO; SARLET, 2014, p. 135)
Contudo, doutrinariamente, o entendimento é de que as atividades-fim são definidas como as atividades essenciais desenvolvidas, aquelas que definem a empresa e envolvem o núcleo da dinâmica empresarial; por sua vez, as atividades-meio não estão envolvidas no núcleo da empresa e não contribuem para definição de seu posicionamento, caracterizando-se como atividades periféricas. (DELGADO; M, 2014, p. 452)
Observa-se, desta maneira, que no sistema jurídico brasileiro, a terceirização em sentido estrito, segundo posição sumulada pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) é admitida unicamente na hipótese em que os serviços prestados pela empresa terceirizada não estejam vinculados com a atividade-fim da empresa contratante.
Portanto, conforme disposto na Súmula 331 do TST, somente a terceirização das atividades-meio é aceita. Além disso, há a exigência da ausência de subordinação direta e de pessoalidade do trabalhador com o tomador de serviços. Desta maneira, o enunciado da Súmula 331 do TST foi revisto no ano 2000, alterando-se o inciso IV da súmula, com a possibilidade de responsabilização de forma subsidiária da Administração Pública quando tomadora de serviços desde que evidenciada sua conduta culposa.
A ausência de uma lei em sentido formal a respeito da terceirização gerou diversos debates sobre a atuação do TST quanto à matéria, bem como sobre a necessidade de um sistema de proteção ao trabalhador na relação terceirizada.
Apesar de não existir legislação específica no Brasil que a regule, a terceirização tem seus limites impostos pela Súmula nº 331 do TST, permitindo que somente as atividades-meio sejam terceirizadas. O entendimento da Súmula 331 do TST foi fortemente criticado inclusive na época de sua edição, pelo setor empresarial, pelo motivo de não permitir a terceirização de maneira desenfreada, ou seja, em qualquer espécie de atividade. (BIAVASCHI, 2008, p. 32)
Nesse sentido, o Projeto de Lei nº 4330/04 visa atender aquela demanda do setor empresarial e expandir o conceito de terceirização e possibilitar também a terceirização das atividades-fim.
Inicialmente, no ano de 1998, o Poder Executivo propôs o Projeto de Lei nº 4.302/98, visando alterar dispositivos da Lei nº 6.019/74, que versam sobre as relações de trabalho temporário e de serviços prestados a terceiros.
O Presidente da República, através da mensagem nº 389/2003 endereçada aos membros do Congresso Nacional, solicitou o arquivamento do projeto. Entretanto a referida mensagem não foi apreciada, permanecendo em trâmite o projeto de lei. No ano de 2004, o Deputado Sandro Mabel propôs o Projeto de Lei nº 4.330/04 que dispõe sobre os contratos de terceirização e das relações de trabalho dele decorrentes, objetivando, ainda, legalizar a terceirização nas atividades-fim. (BIAVASCHI; TEIXEIRA, s.p, 2014)
Na época em que foi proposto, obteve apoio da maioria da bancada da Câmara dos Deputados, bem como da Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio (CDEIC) e da Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público (CTASP). Em oposição ao referido projeto, a Central Única dos Trabalhadores propôs o Projeto de Lei nº 1.621/07, o qual, no entanto, não foi apreciado.
O Projeto de Lei 4.330/04 permaneceu suspenso até o ano de 2015 – e está em pauta mais uma vez. No plano teórico, sua constitucionalidade é questionada por vários fatores. Neste viés, o enfoque do presente artigo se fundamenta na análise da inconstitucionalidade material do Projeto de Lei nº 4330/04, mais especificamente quanto a impossibilidade jurídica da terceirização das atividades-fim nas empresas, tendo em vista a ocorrência da desconstrução da relação jurídica de emprego; bem como com a incompatibilidade da terceirização das atividades-fim com a função social da empresa e da livre-iniciativa.
2 DA DESCONSTRUÇÃO DA RELAÇÃO JURÍDICA DE EMPREGO E INCONSTITUCIONALIDADE DA TERCEIRIZAÇÃO NAS ATIVIDADES-FIM
No que se refere ao amparo dos direitos trabalhistas, a Constituição Federal tem caráter humanista e não discriminatório, visando assegurar em seu artigo 7º a proteção do trabalhador. No mesmo sentido, a Consolidação das Leis do Trabalho, em seu artigo 3º caracteriza os elementos da relação empregatícia, objetivando a efetivação do caráter protecionista estabelecido pela constituição.
Art. 3º, CLT - Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário. Parágrafo único - Não haverá distinções relativas à espécie de emprego e à condição de trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual.
Ocorre que, o artigo supracitado apresenta os cinco elementos que tipificam a relação clássica de emprego, quais sejam: a subordinação, a pessoalidade, a onerosidade, a existência de pessoa física na contratação, e por fim, a não eventualidade.
Todavia, a eventualidade é característica principal da relação terceirizada. A própria definição de empregado da CLT desconfigura a legitimação da terceirização das atividades-fim, no sentido de que a terceirização da atividade essencial da empresa, o objeto a que se destina, não pode ser fruto de um trabalho temporário, ou seja, eventual.
No que tange à subordinação jurídica, esta é por definição, a relação de submissão e dependência do empregado ao empregador, que lhe infere ordens e comandos na esfera trabalhista.
Jorge Luiz Souto Maior destaca que a terceirização somente poderia ser compreendida de forma válida, no âmbito jurídico, como forma excepcional de contratação com o intuito de não afrontar os princípios constitucionais. (MAIOR, s.p, 2015)
Os princípios jurídicos são fonte do Direito do Trabalho e tem por acepção a proposição fundamental sobre a qual se fundamenta o Direito. Desta forma, ao longo do desenvolvimento do direito juslaboral, foram inseridos doutrinariamente diversos princípios específicos de tutela do trabalhador.
Isto posto, em confronto com a lacuna jurídica da terceirização das atividades-fim nas empresas, resta subsidiariamente, em benefício do trabalhador, a aplicação dos princípios juslaborais em detrimento da segurança jurídica da relação de emprego.
Gabriela Neves Delgado (2014, p. 75), destaca que os dispositivos constitucionais que regulam a terceirização da atividade-meio, quais sejam, os artigos 37, XXI e 170, §1º, III, bem como os princípios que regulam a proteção do regime de emprego, previstos nos artigos 7º a 11º, inferem que a terceirização somente se torna legítima de forma excepcional “na medida indispensável à promoção daquelas finalidades gerenciais, tornando-se ilegítima a sua prática além dessa medida, ou seja, na atividade-fim empresarial”.
Consequentemente, a terceirização da atividade-fim da empresa se contrapõe a própria terceirização lícita – a terceirização na atividade-meio -, tendo em vista que é utilizada de forma desenfreada, desviando a finalidade essencial a que se propõe. (DELGADO. G, 2015, p. 135)
Neste sentido, a terceirização das atividades-fim nas empresas contribui com a insegurança e vulnerabilidade da relação de emprego, reduzindo a eficácia dos direitos dos trabalhadores.
Corroborando com este entendimento, Jorge Luiz Souto Maior (2012, p. 06) defende o caráter humanista dos princípios do Direito do Trabalho como forma protecionista da relação de emprego e do trabalhador. Assim, conceitua que a terceirização das atividades-fim é um modo de fraudar as garantias trabalhistas que amparam o trabalhador.
Observa-se que a ideia de fraude na relação trabalhista terceirizada é estabelecida pela ligação direta com a finalidade protetiva do direito do trabalho, visto que a terceirização é uma maneira que o agente econômico tem de se esquivar de suas obrigações trabalhistas e previdenciárias. (DELGADO. G, 2014, p. 61)
Nesta feita, a terceirização das atividades-fim nas empresas é uma forma de desconstrução da relação de emprego, tendo em vista a não observância dos elementos que caracterizam a clássica relação empregatícia previstos no artigo 3º da CLT, bem como com os princípios trabalhistas estabelecidos pela Constituição Federal, nos artigos 7º a 11º.
Ainda, a terceirização das atividades-fim é incompatível com princípios constitucionais, principalmente com o princípio da ordem econômica, eivado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da função social da empresa.
3 A DELIMITAÇÃO DA LIVRE-INICIATIVA PELA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA
A terceirização das atividades-fim, conforme supra exposto, ainda que se admita sua aptidão para otimização dos resultados econômicos por parte do capital, é forma não compatível com a função social da empresa e de desconstituição da relação de emprego.
Ao terceirizar a atividade principal que se proporciona a desenvolver, o agente econômico, portanto atua em desconformidade com o sistema de proteção constitucional estabelecido ao trabalhador, afrontando o princípio constitucional da justiça social e da função social da empresa.
Tais princípios tem por função a proteção da finalidade empresarial concomitantemente com a proteção do trabalhador, tendo em vista que a atividade empresarial deve objetivar o bem comum, atendo-se a um fim social.
A terceirização das atividades-fim, nessa chave de leitura, contraria a previsão constitucional da função social da empresa, a qual compreende a promoção do emprego direto com o trabalhador – a relação terceirizada, por sua vez, é tríade, pautada pela ausência de relação direta com o empregador em seu viés econômico – desconstituindo o sistema protetivo trabalhista da máxima continuidade do vínculo empregatício, bem como da integração do trabalhador no próprio âmbito empresarial.
A atividade econômica pode se manifestar de duas maneiras distintas, na definição de Eros Roberto Grau (GRAU, 1981, p. 103-104): no sentido amplo, através da atividade econômica no setor público; e no sentido estrito, pela atividade econômica realizada pelo setor privado.
Ela é regulamentada pela Constituição Federal, salientando o dever empresarial de observar e preservar a justiça social legitimando o trabalho humano e a livre-iniciativa. O Ministro Eros Grau, delimitou ainda, que a livre-iniciativa é um termo que tutela tanto a empresa quanto o trabalho. (ARRUDA, 2014, p. 142)
Para ser compreendida, a delimitação da livre-iniciativa pela função social da empresa deve ser analisada sob o viés da função social da propriedade. A Constituição Federal preside a ordem econômica em seu artigo 170, que dispõe:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I – Propriedade privada;
II – Função social da propriedade;
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
Desta maneira, a ordem econômica, e consequentemente a livre-iniciativa, deve primar pela existência digna de todos, inclusive do trabalhador, atingindo através da justiça social o parâmetro da dignidade da pessoa humana. A empresa então, somente cumpre sua função, tornando-se plenamente responsável no âmbito social, no momento em que, ao realizar a atividade a que se propôs, proporciona benefícios sociais para a coletividade, utilizando-se dos recursos que dispuser. (ZANOTTI, p. 99)
Na visão constitucional, a função social da propriedade está diretamente atrelada à função social da empresa, devendo o proprietário zelar por um equilíbrio social ao usufruir do seu direito de propriedade, primando pelo interesse coletivo.
Assim, o Estado oferece a garantia constitucional da prestação jurisdicional quanto aos direitos subjetivos do proprietário sobre o imóvel que possui – quais sejam: usar, gozar e dispor – a partir do momento em que o proprietário devidamente cumprir a função social destinada à sua propriedade. (ZANOTTI, p. 102)
A Constituição Federal de 1988 assegura, além da livre-iniciativa, portanto, o amparo de princípios fundamentais ao trabalhador, como o princípio da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho.
Frazão salienta que, o foco empresarial – seu fim – é o de suscitar benefícios a todos que estão relacionados com ele de maneira direta ou indireta, não restando dúvidas quanto a importância da proteção ao trabalhador no desenvolvimento da função social da empresa: “[...] a proteção ao trabalhador é uma das mais importantes consequências da função social da empresa, [...] a própria empresa não deixa de ser uma associação entre capital e trabalho”. (FRAZÃO, 2014, p.143)
O entendimento de Jorge Luiz Souto Maior, na seara da relação de emprego, destaca que a função social da empresa é assegurar a proteção social do trabalhador, obedecendo aos ditames da justiça social, conforme os direitos sociais, fixados nos artigos 6º e 7º da Constituição. (MAIOR, s.p, 2015)
A constitucionalização da função social da empresa transforma, portanto, a própria conceituação de livre-iniciativa como princípio e, consequentemente, a compreensão da figura do empregador.
Conforme salienta Luciane Wambier (WAMBIER, 2013, p. 164), na idade moderna o modelo liberalista proporcionou a inserção no meio social de garantias externadas em princípios que asseguram a legalidade e a liberdade individual. Com o capitalismo crescente, as empresas adotaram a “internalização dos lucros e a externalização dos prejuízos”, gerando o consequente acúmulo de capital em função do interesse individual empresarial.
Entretanto, atualmente o próprio conceito de empregador é diverso, devendo a empresa atender a expressão tanto de sua vontade como a dos trabalhadores e da sociedade. Para a Consolidação das Leis do Trabalho, em seu artigo 2º, empregador é a empresa que assumiu os riscos da atividade econômica, devendo, portanto, assalariar e dirigir a prestação de serviços. Desta maneira, a atividade empresarial tornou-se mais complexa, ao estabelecer a obrigatoriedade da observância da função social no desenvolvimento da empresa. (WAMBIER, 2013, p. 165)
Portanto, a terceirização das atividades-fim acarretaria na degradação dos direitos sociais reconhecidos no texto constitucional e da tutela estabelecida pelo direito trabalhista, conquanto a relação de emprego tem por fim possibilitar que parcelas do capital produzido garantam a proteção social.
Para Gabriela Neves Delgado, a terceirização da atividade-fim corrobora com a deturpação do conceito da livre-iniciativa, no sentido de que, ao terceirizar a atividade essencial da empresa, esta se sujeita completamente ao capital, desvirtuando a função social da empresa. (DELGADO.G, 2015, p. 135)
Quando a empresa objetiva somente o lucro, exterioriza o interesse individual do empreendedor. Desta maneira, se opõe à função social estabelecida, que prima pelo bem e pelos interesses da coletividade, transgredindo os princípios constitucionais e a concepção de Estado Democrático de Direito. (DELGADO.G; AMORIM, 2015, p. 141)
A terceirização da atividade-fim, torna-se então, forma de flexibilização das normas do Direito Trabalhista e de precarização das relações de trabalho, de maneira que as empresas buscam pela viabilização do capital e otimização de seus resultados através da utilização da mão-de-obra mais econômica.
No entendimento de Gabriela Neves Delgado, a flexibilização das normas trabalhistas, a qual inclui a terceirização, constitui-se em uma maneira de desregulamentar a proteção garantida pelo Direito do Trabalho. (DELGADO.G, 2015, p. 134)
Sob este viés, a função social da empresa deve promover a proteção do trabalhador na atividade terceirizada, garantindo a tutela das diretrizes de emprego em toda modalidade empregatícia.
A Constituição Federal assegura em seus artigos 7º a 11 especificamente a proteção dos direitos sociais dos trabalhadores, objetivando a melhoria da sua condição social. Dentre eles estão a proteção contra dispensa sem justa causa, a irredutibilidade dos salários, o seguro desemprego, o fundo de garantia do tempo de serviço, o direito de representação dos trabalhadores na empresa e o direito de greve.
Tais princípios corroboram com a previsão da Súmula 331 do TST, promovendo o foco e o direcionamento central da empresa para a produção das atividades-fim, possibilitando que as atividades-meio sejam desenvolvidas por terceiros.
Assim sendo, a contratação de serviços terceirizados na atividade finalística da empresa, constituiria modalidade de degradação da função social da empresa, desrespeitando o princípio da ordem econômica primado no artigo 170 da Constituição Federal.
Luciane Wambier (2013, p. 165) destaca o entendimento de que a empresa, ao se destinar à sua função social não renunciaria ao seu fim lucrativo, na acepção de que o bem-estar social e a adequação da empresa à praxe solidária, atuam em consonância com o caráter competitivo da empresa e ao modelo capitalista de mercado a partir da ideia de responsabilidade social da empresa.
A noção de responsabilidade social empresarial tem estreita ligação com as doutrinas da função social da propriedade e da liberdade de livre iniciativa. Por meio destas, o homem tem plena liberdade para empregar os meios de produção de que dispõe, da forma que melhor lhe aprouver, com observância aos ditames legais, para produzir bens e serviços de interesse dos consumidores, objetivando contabilizar lucro para os seus cotistas ou acionistas. (ZANOTTI, p. 111)
Neste sentido, a responsabilidade social empresarial consolida a ligação entre a função social da propriedade e da livre-iniciativa, ao passo que a responsabilidade das empresas e a responsabilidade do Estado, no que tange aos direitos sociais, torna-se equânime ao almejar um fim comum, primado na justiça social. (WAMBIER, 2013, p. 166)
Entretanto, conforme já dito, a Constituição Federal tem caráter humanista, assegurando nos artigos 7º a 11º os direitos sociais dos trabalhadores, restando claro ao legislador infraconstitucional quais direitos deve primar ao regularizar a terceirização para que esta seja legítima, observando os princípios juslaborais de proteção ao trabalho e à relação empregatícia.
Assim, o Projeto de Lei nº 4.330/04, que visa possibilitar a terceirização das atividades-fim nas empresas não possui amparo legal no texto da Constituição Federal de 1988, tendo em vista que não há lacuna que permita a possibilidade da terceirização das atividades-fim no âmbito empresarial.
No entendimento de Gabriela Neves Delgado, a Constituição destinou um conteúdo mínimo de proteção social reservado ao legislador, cabendo à legislação ordinária instituir os demais direitos que promovam a melhoria da condição social do trabalhador. (DELGADO; AMORIM, 2014, p. 88)
Desta maneira, a terceirização da atividade-fim não se legitima no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista a afronta ao regime de emprego socialmente protegido, amparado pelo artigo 7º da Constituição Federal, bem como à função social da empresa e da livre-iniciativa, previstos no artigo 170 do mesmo diploma legal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista as diretrizes constitucionais protetivas e o caráter humanista da Constituição Federal de 1988, tem-se que a legalização da terceirização das atividades-fim nas empresas constitui meio de regressão dos direitos trabalhistas consagrados no texto constitucional e na Consolidação das Leis do Trabalho. Consequentemente, não é compatível com o primado da função social da empresa.
Isto posto, institui fraude à relação empregatícia, subsistindo a necessidade dos pressupostos da relação de emprego. Finda, desta maneira, em uma forma precária de relativização da mão de obra, caracterizando benefício exclusivo para o empregador.
Tal benefício exterioriza-se através da desvirtuação dos princípios trabalhistas protetivos, como forma de supressão aos direitos firmados na figura dos artigos 7º a 11 da Constituição Federal. Além disso, a terceirização da atividade-fim das empresas constitui forma ilimitada de exploração econômica, possibilitando à empresa não possuir empregados efetivados.
No mesmo sentido, a possibilidade da terceirização da atividade-fim desestabiliza a relação de emprego, de modo que o trabalhador terceirizado não goza dos mesmos direitos que o trabalhador empregado normalmente, caracterizando-se como mão de obra mais barata e secundária.
A ausência de pessoalidade na relação empregatícia com o trabalhador terceirizado, possibilita também a discriminação social no meio ambiente de trabalho, desrespeitando o princípio da dignidade da pessoa humana.
Acarreta ainda, na desumanização da relação empregatícia, descaracterizando a própria função social da empresa, que por previsão do artigo 170 da Constituição Federal, deve ter como corolário o valor social do trabalho humano e da livre-iniciativa.
Por fim, conclui-se que o Projeto de Lei nº 4.330/04 desconstitui os princípios de proteção ao trabalhador, de forma que a terceirização da atividade-fim corrompe o paradigma protecionista constitucional do emprego e da função social da empresa, componentes fundamentais do Estado democrático de Direito.
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