Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


PARA UMA COMPREENSÃO DE DECOLONIZAÇÃO JURÍDICA LATINOAMERICANA

Autores e infomación del artículo

Ana Clara Correa Henning

Milena Barbi

Marcelo Nunes Apolinário

UFPEL, Brasil

marcelo_apolinario@hotmail.com

Resumo
Objetiva-se, por meio de fundamentação teórica interdisciplinar, discorrer sobre conexões possíveis entre os estudos decoloniais e o direito. A modernidade ocidental possui uma forma muito própria de elaboração jurídica, dando ênfase ao monismo, a não-valoração e ao legalismo. Tais características são postas em causa por meio de olhares decoloniais e de seus estudos a respeito de colonialismo, colonialidade, hybris do ponto zero e corpo-política do conhecimento. A partir daí, torna-se possível discutir certos traçados dos sistemas jurídicos latino-americanos e, especialmente, do brasileiro.

Palavras-Chave
Estudos Decoloniais, Direito, Decolonialidade Jurídica.

Resumen
Se requiere por intermedio de la fundamentación teórica interdisciplinar, descorrer sobre conexiones posibles entre los estudios decoloniales y el derecho. La modernidad occidental tiene una forma muy particular de elaboración jurídica, dando énfasis al monismo, la no valoración y al legalismo. Tales características son puestas en causa por medio de miradas decoloniales y de sus estudios acerca de colonialismo, colonialidad, hybris del punto cero y cuerpo-política del conocimiento. A partir de ahí,, se torna posible discutir ciertos rasgos de los sistemas jurídicos latinos-americanos y, especialmente, del brasileño.    

Palabras-Clave
Estudios Decoloniales; Derecho; Decolonialidad Jurídica.



Para citar este artículo puede uitlizar el siguiente formato:

Ana Clara Correa Henning, Milena Barbi y Marcelo Nunes Apolinário (2016): “Para uma compreensão de decolonização jurídica latinoamericana”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (enero-marzo 2016). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2016/01/decolonizazao.html

http://hdl.handle.net/20.500.11763/CCCSS-2016-01-decolonizazao


Introdução

Os contemporâneos debates suscitados pelos estudos decoloniais provêm dos mais variados campos do conhecimento, tendo uma forte dimensão interdisciplinar. Nelas, cabe um papel de destaque às discussões a respeito da formação cultural e material da América Latina e a persistência de subjetividades e materialidades colonialistas. Aqui, pretende-se apresentar uma pesquisa bibliográfica acerca de possíveis conexões entre o direito e tais estudos.
Isto porque o direito latino-americano também foi construído sob tais perspectivas, herdeiro das legislações europeias dos conquistadores. Hoje, pode-se reconhecer nele permanências de certas características oitocentistas, tal como o monismo, o apego à letra da lei e a forte tendência à negação de valores sociais à sua aplicação. Esta é a discussão indicada na primeira seção deste texto.
Em seguida, na segunda parte do artigo, discorre-se acerca dos estudos decoloniais e sua busca pela desconstrução do discurso moderno que, de uma maneira geral, organiza o pensamento e as concretizações ocidentais. Conceitos como colonialismo, colonialidade, hybris do ponto zero e corpo-política do conhecimento, desenvolvidos por autores latino-americanos, são aí apresentados.
Na terceira e última seção, procura-se apontar alguns elementos que podem constituir um pensamento decolonial acerca do direito e de seu sistema: reconhecimento de saberes locais, visibilidade de sujeitos subalterizados, legitimação de direitos oriundos de práticas de grupos existentes em nossas comunidades. Dessa maneira, propõem-se uma nova forma de construir e aplicar normas jurídicas, aproximando-as de seu substrato social.

1 Direito Moderno Ocidental: dimensões monista, legalista e a-valorativa

As discussões acerca das características do direito moderno ocidental vêm de longa data. De maneira geral, entende-se ele como um direito permeado por ideais iluministas, pelo formalismo, neutralidade e apego à lei (HESPANHA, 2003). Nesse sentido, Hans Kelsen (1996, p. XVIII) afirma que:

Agora, como antes, uma ciência jurídica objetiva que se limita a descrever o seu objeto esbarra com a pertinaz oposição de todos aqueles que, desprezando os limites entre ciência e política, prescrevem ao Direito, em nome daquela, um determinado conteúdo, quer dizer, creem poder definir um Direito justo e, conseqüentemente, um critério de valor para o Direito positivo [...]. O problema da Justiça, enquanto problema valorativo, situa-se fora de uma teoria do Direito que se limita à análise do Direito positivo como sendo a realidade jurídica [grifos nossos].

O direito moderno, amparado na aplicação legal, representaria um instrumento de garantia de liberdade e iguais oportunidades de existência para todos. Por um lado, a igualdade jurídica determinaria tratamento igual a todos os cidadãos; por outro, a liberdade estabeleceria autonomia para planejar e decidir a vida privada. E no entanto, essa perspectiva traduz valores culturais, políticos e econômicos, que acabam por desconsiderar a desigualdade de fato, privilegiando o homo economicus (GROSSI, 2006, p. 83). Dessa forma, por exemplo, no centro da estrutura jurídica privada, residem institutos tipicamente burgueses: o patrimônio, o contrato e a família (FACCHINI NETO, 2010; LOBO, 1999; SANTOS, 2001).
A liberdade formal estabelecia o grupo familiar em um espaço independente da regulação estatal, cujo responsável pela organização era o pai de família. Na seara contratual, a negociação, elaboração e conclusão de avenças somente sofria influências das vontades dos contratantes, posicionados em um ideal de liberdade e de igualdade entre si. Ressalta-se, entretanto, que “por liberdade queremos dizer, sob as condições de produção burguesas atuais: mercado livre, venda livre e compra livre” (MARX; ENGELS, 1998, p. 35).
Tais instituições possuíam fundamento patrimonial. A propriedade, com seu “uso industrioso e racional” (LOCKE, 1983, p. 49), possuía forte proteção estatal:

Os códigos civis tiveram como paradigma o cidadão dotado de patrimônio, vale dizer, o burguês livre do controle ou impedimento públicos. Nesse sentido é que entenderam o homem comum, deixando a grande maioria fora de seu alcance. Para os iluministas, a plenitude da pessoa dava-se com o domínio sobre as coisas, com o ser proprietário [...]. Livre é quem pode deter, gozar e dispor de sua propriedade, sem impedimentos, salvo os ditados pela ordem pública e os bons costumes, sem interferência do Estado (grifos nossos) (LOBO, 1999, p. 101).

A propriedade privada detinha tal importância para o sistema jurídico iluminista que o Code Napoleon possuía 1.700 artigos tratando sobre patrimônio e 500, sobre a pessoa, enquanto que o Código Civil brasileiro de 1916, sob inspiração francesa, estabelecia 2/3 de dispositivos nessa seara (LISBOA, 2010). Daí que a propriedade “essencialmente concebida como a de um indivíduo e não como a de um grupo ou de uma colectividade” (GILISSEN, 2003, p. 537) estabelece um abismo entre o direito público e do direito privado, que se excluem mutuamente (FACCHINI NETO, 2010).
No Brasil, essa mentalidade permeava o Código Civil de 1916, que baseava-se em valores como “o capitalismo, o liberalismo, a igualdade, a liberdade, a autonomia de vontade e a propriedade individual” (LISBOA, 2010, p. 31). Ele, como todos os demais códigos oitocentistas, dispunha-se a ser completo e exato, garantindo uma certeza na asséptica elaboração e aplicação estrita de suas regras (FACCHINI NETO, 2010). Sua interpretação, portanto, era auto-referente, sem elementos externos a interferir em seu resultado (GADAMER, 2008; LEONARDI, 2009), partindo “do sistema, dos conceitos e dos princípios doutrinais da ciência jurídica, sem conceder a valores ou objectivos extra-jurídicos (por exemplo religiosos, sociais ou científicos) a possibilidade de confirmar ou infirmar as soluções jurídicas”(WIEACKER, 1967, p. 492).
A cultura constitucional que se afirmava na América no decorrer do século XIX, seguiu essa perspectiva, estabelecendo regras jurídicas em moldes abstratos, genéricos e pretensamente neutros, que ultrapassaram o adstrito interesse das classes proprietárias, tornando-se universais. Da mesma forma, identificou-se o direito à lei estatal, simplificando matematicamente a complexa rede de relações normativas existentes em terras americanas, no que se denomina de monismo jurídico (ALMEIDA, 2011, p. 42).
Assim, no “horizonte do constitucionalismo liberal monista”, o constitucionalismo oitocentista aplicado na América Latina utilizou três técnicas para impor-se aos povos originários: a) assimilar/converter os povos originários em cidadãos de direitos individuais, desconectando a dimensão coletiva do exercício de direitos (como, por exemplo, o uso da terra coletiva); b) levar-lhes a civilização, cristianizando-os e, por meio disso, expandir as fronteiras agrícolas; c) combater as nações indígenas, anexando seus territórios ao estado:

O estado-nação monocultural, o monismo jurídico e um modelo de cidadania censitária (para homens brancos, proprietários e ilustrados) foram a coluna vertebral do horizonte do constitucionalismo liberal do século XIX na Latinoamérica. Um constitucionalismo importado pelas elites criollas para configurar estados a sua imagem e semelhança com exclusão dos povos originários, dos afrodescendentes, das mulheres e das maiorias subordinadas, e com o objetivo de manter a sujeição indígena (FAJARDO, 2011, p. 140) 1.

A superioridade da lei e da sua subsunção2 (decorrente da fattispecie) são descritas a seguir:

Uma teoria pura do direito e uma pura técnica de conceitos e definições são incompatíveis logicamente com um adequado aprofundamento do momento fático e aplicativo e, portanto, devem decretar o ostracismo do fato e da praxe. Seja o raciocínio silogístico e o consequente procedimento de subsunção do fato à previsão da fattispecie abstrata normativa, seja a reflexão sobre a linguagem normativa, tendem, pelo menos declaradamente, a reduzir, chegando a zerar, o papel e o valor do fato e, portanto, mais amplamente o perfil fenomenológico (itálico no original, grifos nossos) (PERLINGIERI, 2008, p. 95).

A validade da regra de direito, nessa teoria, é independente de qualquer valor moral. Uma vez corretamente localizada na pirâmide hieráquica-formal, chega-se à conclusão de que “a escravidão será considerada um instituto jurídico como qualquer outro, mesmo que dela se possa dar uma valoração negativa” (BOBBIO, 1995, p. 136), no exemplo de Norberto Bobbio. Para este autor, o positivismo jurídico possui algumas características, dentre elas a ausência de valoração, a preeminência da lei como fonte do direito, a pretensão de estabelecer um sistema completo e coerente (sem antinomias ou lacunas legais), o predomínio da subsunção e a absoluta obediência à lei (BOBBIO, 1995).
Tais considerações acerca do direito moderno constituem-se foco de críticas e desconstruções por diversos autores, tanto europeus quanto latino-americanos, cujas análises serão discutidas a seguir.

2 Estudos Decoloniais: desconstruindo o discurso da modernidade ocidental

A partir da década de 1990, uma corrente de pensamento vem se destacando na América Latina. Tratam-se dos estudos “decoloniais”, também denominados “descoloniais”, que assumem uma perspectiva de crítica ao colonialismo tendo como ponto de referência a própria América Latina (COLAÇO; DAMÁZIO, 2012).
Essa corrente teoriza a partir das heranças coloniais do Império espanhol e português nas Américas, abrangendo um espaço temporal que vai do século XVI ao XXI. Suas reflexões discorrem principalmente sobre formas de conhecimento de “larga duração” que são transmitidas ao continente americano por meio do processo de colonização e que estendem-se, embora atravessem processos transformadores ao longo da história, até aquilo que a teoria social contemporânea denomina como “modernidade”.
Nesse sentido, podemos falar na manutenção de uma chamada lógica da colonialidade. O conceito é inicialmente introduzido por Aníbal Quijano (1992) para indicar as continuidades históricas entre os tempos coloniais e o tempo presente, assim como para assinalar a dimensão epistêmica das relações coloniais de poder. Ressalte-se que colonialidade é um termo que deve ser distinguido de colonialismo. Enquanto no pensamento eurocêntrico a palavra “colonial” remete somente ao colonialismo no seu sentido clássico, os autores decoloniais trabalham com a noção de colonialidade em um sentido muito mais amplo e complexo.
 Entende-se o primeiro como as relações de poder hierarquizantes e eurocêntricas que vigoraram durante o Brasil Colônia e, mesmo, durante o Império, inclusive através de administrações indiretas. A tarefa de levar a civilização aos povos exóticos e não-civilizados justificou invasões, extermínios, colonização e imperialismos. Assim, práticas colonialistas são aquelas impostas por uma autoridade política, por meio de sua administração colonial aos povos colonizados (COLAÇO; DAMÁZIO, 2012).
Hoje, tais administrações não mais existem, assim como as instituições coloniais, mas as relações de poder que subalterizam e deslegitimam certas pessoas e grupos permanecem, justamente pelas construções que permearam o direito até seu entendimento como “ciência”. Exemplificando: para que se tornasse o direito esse campo produtor de saber, alguns discursos foram passíveis de reprodução (como o direito ocidental), enquanto outros rotulados como “subalternos” (costumes originários, por exemplo). 
Daí que a colonialidade “permite-nos compreender a continuidade das formas coloniais de dominação após o fim das administrações coloniais, produzidas pelas culturas coloniais e pelas estruturas do sistema-mundo capitalista moderno/colonial” (GROSFOGUEL, 2010, p. 467).
Pode-se afirmar, desse modo, que enquanto colonialismo refere especificamente a períodos históricos e a lugares de domínio imperial (como o domínio português, espanhol, britânico e, desde o início do século XX, estadunidense), colonialidade diz respeito a uma estrutura lógica que independe de sua manifestação histórica colonial e que impõe o controle, a dominação, a exploração e a produção de uma certa classificação racial da humanidade (MIGNOLO, 2007). Vejamos:

No Brasil, as desigualdades entre índios, negros e brancos são um dilema periodicamente reiterado, na história e no imaginário. O mito da democracia racial não impede que as desigualdades e os antagonismos manifestem-se por dentro e por fora das diversidades, das multiplicidades que parecem coloridas [...]. Na Bolívia, Equador, Guatemala, México, Paraguai e Peru, além das desigualdades regionais e outras, ressaltam as que opõem índio, mestiço e branco, compreendendo as condições sociais, culturais, econômicas e políticas que diversificam, classificam e antagonizam. É como se toda uma larga história, desde os tempos coloniais, estivesse sintetizada no presente (grifos nossos) (IANNI, 1988, p. 11-12).

É possível compreender como essa lógica sustenta-se através da história se considerarmos as mudanças da retórica da modernidade. No século XVI, o seu discurso salvacionista enfatizava a conversão ao cristianismo, ao passo que, no século XVIII, a salvação passa a ser pensada em termos de conversão à civilização. Após a Segunda Guerra Mundial, a retórica da modernidade celebra o desenvolvimento e hoje, após a queda da URSS, há ênfase na tríade desenvolvimento, democracia e mercado (MIGNOLO, 2008, p. 246).
Houve ainda mudanças nas relações de produção e no controle da economia, bem como nas relações de autoridade, ou seja, no controle político. Em suma, mudaram os “conteúdos”, mas não os “termos da conversa”, o que significa dizer que a lógica da colonialidade sustenta-se independentemente da retórica que adota.
Visando romper com esta episteme, surge o pensamento decolonial na exterioridade do capitalismo global. Walter Mignolo, argentino radicado nos EUA, enfatiza que o pensamento decolonial não surge fora, mas sim na exterioridade, uma vez que esta corresponde ao pensamento daqueles que foram classificados como ilegítimos para definir o que está dentro do processo epistêmico político. Na opção decolonial é assumido que não há o “fora” – em um imaginário espaço neutro -, mas que o pensamento surge a partir da criação do exterior deslegitimado pelo dentro, ou seja, na fronteira. Não obstante, não há igualdade de condições para os dois lados nesta linha divisora, e é a partir dessa desigualdade que aqueles que foram deixados de fora do jogo e das decisões reclamam seus direitos epistêmicos (e não privilégios). Nas palavras do autor:

Descolonização, ou melhor, descolonialidade, significa ao mesmo tempo: a) desvelar a lógica da colonialidade e da reprodução da matriz colonial do poder (que, é claro, significa uma economia capitalista); e b) desconectar-se dos efeitos totalitários das subjetividades e categorias de pensamento ocidentais (por exemplo, o bem sucedido e progressivo sujeito e prisioneiro cego do consumismo) (MIGNOLO, 2008b, p. 313).

Mignolo afirma que colonialidade apoia-se no conhecimento e nas teorias que se estabeleceram a partir da língua grega e latina e foram elaborados nas seis línguas imperiais (italiano, castelhano e português durante o Renascimento; francês, inglês e alemão no Iluminismo). Daí é possível, portanto, a manutenção da ideia do fundamentalismo eurocentrista de um universal abstrato e neutro que se aplica e beneficia a todos os habitantes do planeta. Considerando essas teorizações, pode-se complementá-las com conceitos de outros autores dos estudos decoloniais: hybris do ponto-zero, do colombiano Santiago Castro-Goméz, e corpo-política do conhecimento, do porto-riquenho Ramón Grosfoguel.
Castro-Goméz (2005) percebe a ciência moderna dotada de um ponto de vista alegadamente neutro, negando sua produção localizada, espacial e temporalmente. Seu olhar é divino, permeado por um universalismo abstrato. Em contrapartida, a modernidade relega o conhecimento não-ocidental a um lugar subalterno, devido as suas características assumidamente particulares, sendo-lhe impossível uma representação de universalidade científica. De maneira similar, Grosfoguel (2010) refere a corpo-política do conhecimento, onde a modernidade privilegia um saber aparentemente sem local de origem. Em decorrência, constrói o mito do conhecimento universal, único a ser portador da Verdade.
A decolonialidade, por sua vez, desenvolve-se a partir de todas as línguas, memórias, saberes, gente e lugares do planeta que foram gradativamente subalternizados pela expansão europeia e norte-americana. Trata-se de uma opção justamente por rejeitar uma única maneira de ler a realidade e, nesse sentido, pode ser caracterizada como um paradigma de coexistência. Juntamente com o pensamento fronteiriço, ela está em conflito com saberes totalizantes, criadores de totalidade. De acordo com Walter Mignolo (2008a, p. 246) a opção descolonial:

[...] é um pensamento que assume a objetividade entre parênteses: creio no que creio e defendo o que creio, e entendo que frente à minha postura há outra equivalente de alguém que defende suas crenças, mas sabe que a sua não é a única maneira de ler a realidade.

Colaço e Damázio (2012) apontam que a potencialidade dos estudos decoloniais é a elaboração de conceitos e reflexões que proporcionam a crítica de um locus de enunciação privilegiado. A partir dessa problematização é que se insere uma corrente de pensamento que, a partir de uma linguagem e de uma lógica outra, origina-se de saberes locais, sem pretensões universalistas.

3 Caminhos para uma Compreensão de Decolonização Jurídica Latinoamericana

Diante desta outra perspectiva, a compreensão dos discursos jurídicos pretensamente universais como construções produzidas a partir das relações coloniais torna-se possível. Nesse sentido, pode-se pensar em uma perspectiva diferente de compreensão do direito, uma vez que permite a sua interpretação a partir de distintas formas de conhecimento, inimagináveis para o direito ocidental.

Porém, pensar o “direito” a partir dos saberes locais não significa propiciar somente a entrada de tais saberes no oficial, na academia, nas constituições e no estado. A decolonialidade vai além da inclusão de pessoas e saberes não ocidentais em lugares tradicionalmente deslocalizados, ou melhor, com a pretensão de se localizar no ponto zero do conhecimento. Mesmo sendo iniciativas interessantes, pois “abrem” espaços, é necessário ir além e decolonizar o conhecimento, questionando epistemicamente as relações coloniais [aspas no original] (COLAÇO; DAMÁZIO, 2012, p. 186).

Uma das grandes realizações da razão imperial foi afirmar-se como uma identidade superior ao construir construtos inferiores e expulsa-los da esfera normativa do “real” (MIGNOLO, 2008b). No que diz respeito ao direito moderno, a mera aplicação da subsunção, o encaixe da norma geral com o fato específico, é suficiente para cumprir o seu papel de árbitro social. Na interpretação da lei, formulada em um espaço asséptico, não há valorações nem indagações mais aprofundadas da realidade. Na teoria kelseniana, o direito positivo torna-se a realidade jurídica.
A legislação configura-se em um instrumento de exercício do poder, legitimando alguns institutos (família, contratos, patrimônio), subalterizando outros, denominando-os de “costumes” e “práticas” de povos originários, por exemplo, sem reconhecer neles regras jurídicas. No caso do Brasil, o poder exercido pelo colonizador, tanto política quanto juridicamente, pode ser observado, dentre outras possibilidades, na divisão territorial em capitanias hereditárias e sesmarias e na desconsideração de expressões fundiárias e de uso da terra locais por meio da imposição de normas jurídicas portuguesas (CRISTIANI, 2013, p. 445).
Essa forma de compreender o sistema jurídico traduzia a mentalidade europeia e uma desconsideração aos direitos produzidos por comunidades indígenas aqui existentes e, depois, pelos sujeitos que construíam, cotidianamente, espaços de sociabilidade, sejam eles escravos ou ex-escravos, mestiços, imigrantes - pessoas de diversas etnias e culturas que formavam – e ainda formam - a teia social latino-americana e, especialmente, brasileira.
Essa deslegitimação de direitos costumeiros locais impôs em solo latino-americano sistemas jurídicos que lhe eram desconhecidos, e que permanecem influenciando nossos ordenamentos jurídicos e academias de direito. O monismo, o legalismo e a neutralidade do direito positivo brasileiro, por exemplo, são herdeiros daquele olhar universal observado por Castro-Goméz (2005) e Grosfoguel (2010).
A suprema importância da lei escrita, a forte influência da dogmática europeia e norte-americana, o formalismo e a pretensa neutralidade de nossos tribunais continuam subalterizando conhecimentos que podem proporcionar uma nova forma de conceber o direito, mais perto dos cidadãos, mais adequado à realidade latino-americana.
Nesse contexto, há investigações que questionam a mentalidade eurocentrada de nosso direito. Dentre elas, os estudos decoloniais dão suporte a uma desconstrução epistemológica que remonta ao Brasil Colônia, evidenciando saberes outros, ainda que deslegitimados pelo padrão do colonizador. Tal reconhecimento avança e chega ao presente, em dimensões como o pluralismo jurídico, as formas alternativas de interpretação do direito, as novas constituições latino-americanas (WOLKMER, 2013).
O monismo jurídico, segundo o qual o Estado moderno possui o monopólio de dizer o direito, é posto em causa. Da mesma forma, a fundação estatal que alega basear-se em conceitos como neutralidade, objetividade e, mesmo, democracia. Não há nada de neutro ou objetivo, muito menos democrático, em uma organização que categoriza e exclui pessoas e grupos por não se adequarem a padrões civilizatórios ocidentais.
Discute-se institutos de direito e legislações elaborados, e aplicados, sob a perspectiva colonialista. O Código Civil brasileiro (BRASIL, 2002), por exemplo, possui um capítulo sobre direito das coisas (Livro III, art. 1.196 a 1.510) que muito pouco inovou do anterior código, de influência expressamente europeia e patrimonialista (CORTIANO JÚNIOR, 2001). A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), em seu art. 226, § 3º, estabelece a união estável e, em semelhança, o matrimônio, como uma relação entre homem e mulher, em uma imensa exclusão de pessoas que possuem orientações sexuais diferenciadas do padrão heterossexual iluminista, afrontando o princípio da igualdade, garantido pelo art. 5º da mesma Carta (HENNING; COLAÇO, 2014). Enfim, as academias de direito, em grande número, adotam teorias positivistas, abstratas, desenvolvidas em países europeus ou norte-americanos, sem maiores conexões com nossa realidade social (LEITE; DIAS, 2013).
Diante disso, a alternativa dos estudos decoloniais torna-se uma interessante estratégia: a análise jurídica através de uma geopolítica do conhecimento que, contrariamente à hybris do ponto zero, explicite seu local de fala latino-americano, deslocando nossas perspectivas da Europa (ou Estados Unidos da América do Norte) para nossos substratos locais.

Conclusão

O direito moderno ocidental, de maneira geral, não condiz com as realidades sociais latino-americanas, com seu legalismo, sua centralidade da normatização estatal e sua a-valoração na aplicação de seus regramentos. Conceitos como liberdade formal, privilégio de instituições privadas e polarização entre o público e o privado, foram exportados para as colônias europeias, como ocorreu com inúmeros países latino-americanos.
Tal deslocamento acabou por impor-se aos povos originários, assimilando-os às exigências da modernidade ocidental, do colonialismo e da colonialidade. Atualmente, diversas pesquisas e autores formam o que se denomina estudos decoloniais, em busca de perspectivas mais próximas da heterogeneidade local. Em seu bojo, discute-se acerca de heranças coloniais ainda persistentes nos sistemas jurídicos, tal como o brasileiro.
Percebe-se, com isso, a força da colonialidade, inclusive por meio da utilização de conceitos como hybris do ponto zero e corpo-política do conhecimento, que denunciam a dualidade de tratamento entre conhecimentos que habitam os dois lados da fronteira: o “nós” e os “outros”.
A possibilidade de construção de um pensamento jurídico decolonial, portanto, baseia-se na afirmação de direitos locais – e não universais -; na pluralidade de regras e de sujeitos – e não apenas na centralidade estatal – e na valoração e reconhecimento de aspectos sócio-culturais na aplicação da lei – indo além do legalismo e da neutralidade jurídica.

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1 No original: El Estado-nación monocultural, el monismo jurídico y un modelo de ciudadanía censitaria (para hombres blancos, propietarios e ilustrados) fueron la columna vertebral del horizonte del constitucionalismo liberal del siglo XIX en Latinoamérica. Un constitucionalismo importado por las elites criollas para configurar estados a su imagen y semejanza, con exclusión de los pueblos originarios, los afrodescendientes, las mujeres y las mayorías subordinadas, y con el objetivo de mantener la sujeción indígena. Tradução realizada pelos autores.

2 Subsumir é a tarefa de “enquadrar um caso concreto em a norma jurídica adequada” (MAXIMILIANO, 2011. p. 05).


Recibido: 23/01/2016 Aceptado: 31/03/2016 Publicado: Marzo de 2016

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