Júlio Cezar dos Santos Patrício
Hélio Raymundo Ferreira Filho
Centro Universitário do Estado do Pará
julio.patricio@uol.com.brResumo: Este artigo objetiva caracterizar o transporte fluvial misto de passageiros e carga na Amazônia, baseado em observações da movimentação existente no trecho entre Belém e Acará, no período de 2007 a 2013, enfatizando seu papel na história da penetração, conquista e configuração da rede hidroviária amazônica. O trabalho destaca o viver ribeirinho, ressaltando a dimensão econômica ao tratar as questões de desenvolvimento, mas também considera as dimensões social e ambiental. Nesse sentido, busca-se verificar a história dessa forma de transporte fluvial no Pará e sua relação com a trajetória de desenvolvimento do próprio Estado. O foco é apresentar uma caracterização do transporte fluvial misto na Amazônia, contribuindo, assim, com as pesquisas sobre transporte e desenvolvimento socioeconômico na região em questão. Os resultados da pesquisa dimensionam a importância da atuação do transporte fluvial misto de passageiros e carga, mesmo diante da não consideração da relação homem-rio na elaboração de políticas de desenvolvimento para a Amazônia.
Palavras-chave: Transporte fluvial misto, Amazônia, Cultura ribeirinha, Núcleos urbanos hidrográficos, Desenvolvimento sustentável.
Abstract: Study devoted to the characterization of the mixed fluvial transport of cargo and people in the Amazon Region. It is based on observations of the existing movement in the route between Belém and Acará, carried out from 2001 to 2007, emphasizing the role of these movements in the history of the penetration, conquest and configuration of the Amazonian waterway network. The work focuses attention on the riparian way of life, underlining the economic dimension in the treatment of development issues, but also considers the social and environmental dimensions. This way, the work verifies the relation between the history of this form of fluvial transport in the state of Pará and the trajectory of development of the state itself. It aims to present a characterization of the mixed fluvial transport in Amazon, so making a contribution to the researches on transport and socioeconomic development in the cited region. Also, the analysis of the observations in loco of Belém-Acará travel and of the oral report of mixed fluvial transport users are essential for the work. The research results point out the importance of the mixed fluvial transport, even though the human-river relation is not taken into account in the creation process of development political for the Amazon Region.
Keywords: Mixed fluvial transport. Amazon Region. Riparian culture. Urban hydrographical communities. Sustainable development.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo caracterizar el transporte fluvial mixto de pasajeros y carga en la Amazonía, basado en observaciones de la movimentación existente en el trecho entre Belém y Acará, en el norte de Brasil, en el período de 2007 a 2013, enfatizando su rol en la historia de la penetración, conquista y configuración del sistema hidrovial amazónico. El trabajo destaca el vivir riberiño, resaltando la dimensión económica al tratar las cuestiones de desarrollo, mas también considera las dimensiones social y ambiental. En ese sentido, se busca verificar la historia de esa forma de
transporte fluvial en Pará y su relación con la trayectoria de desarrollo del propio Estado. El foco es presentar una caracterización del transporte fluvial mixto en la Amazonia, contribuyendo, así, con las investigaciones sobre transporte y desarrollo socio-económico en la región amazónica. Los resultados de la investigación dimensionan la importancia de la actuación del transporte fluvial mixto de pasajeros y carga, mismo delante de la no consideración de la relación hombre-río en la elaboración de políticas de desarrollo para la Amazonia.
Palabras-clave: Transporte fluvial mixto. Amazonia. Cultura riberiña. Núcleos urbanos hidrográficos. Desarrollo sostenible.
Para citar este artículo puede uitlizar el siguiente formato:
Júlio Cezar dos Santos Patrício y Hélio Raymundo Ferreira Filho (2015): “Relação Homem * Rio e o transporte fluvial misto, determinante de desenvolvimento na Amazônia: o caso do trecho Acará - Belém”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, n. 30 (octubre-diciembre 2015). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2015/04/trecho-acara-belem.html
Introdução
Este trabalho se propõe a discutir aspectos relacionados ao transporte fluvial misto na Amazônia segundo elementos socioeconômicos como atividade determinante de desenvolvimento de acordo com o mundo contemporâneo com destaque especial à relação natural e histórica do homem com o rio. Estes aspectos se destacam no debate sobre desenvolvimento e preservação ambiental, que perpassam pelo lócus em estudo, ou seja, a região amazônica e a forma de exploração nela empregada. Tomou-se como origem da trajetória de pesquisa a busca e a necessidade de novos recursos com o emprego do transporte fluvial e este como condição propulsora da expansão mercantilista europeia, movimento iniciado no século XV, que incorporou novas áreas ao emergente sistema econômico capitalista (CORRÊA, 1987).
Rio, rios, divididos, subdivididos; na inteira avalanche de florestas – apoplexia de verde. O destino humano estava no princípio e no fim do rio: vê-lo tentadoramente aberto em foz grandiosa, sinalando rotas à procura da iniciação histórica, do alargamento da Fé e do Império. A natureza é desmedida e o homem é pequeno. E ele, o português, pequeno e navegador, marcou seus padrões em quase toda a Amazônia, e sempre para diante, navegando (TOCANTINS, 2000, p. 265)
A partir dessa busca por novos recursos, foram criados núcleos urbanos como estratégias de incorporação de novas áreas que se destinavam à defesa do território e serviriam como apoio para exploração e conquista do mesmo. Um desses núcleos urbanos dá origem a Belém, fundada em 1616, por Francisco Caldeira Castelo Branco, que se desenvolve a partir do Forte do Presépio, com estrutura arquitetônica de defesa e moradia que obedece a um princípio de localização que é seguido na constituição dos outros núcleos no interior do vale amazônico, às margens do Rio Amazonas, na confluência de um afluente, posição vantajosa para controlar a circulação de um vale na visão de Corrêa (1987).
Esse episódio histórico aponta, já naquele tempo, o interesse de Portugal na Amazônia e gera um movimento simultâneo de expansão territorial, ocupação e exploração extrativista, sentimento que evoluiu com o tempo até os dias atuais, alterando o agente interessado e os produtos extraídos. Dessa maneira, verifica-se que, nessa trajetória histórica, a relação entre o aumento da riqueza, objetivo máximo do sistema capitalista, se dá tanto pelo aumento do espaço físico ocupado por sua lógica quanto pelo avanço tecnológico, e nessa lógica, o Império Português, assim como o Estado Republicano atual, para garantir a evolução do capital, imprime políticas que o beneficiem. Seguindo essa orientação, ocupar terras na Amazônia fez e faz parte de medidas projetadas atendendo a interesses externos à região, como fica patente na construção das rodovias Belém-Brasília (BR-010), Perimetral Norte (BR-156), Transamazônica (BR-230), Cuiabá - Porto Velho (BR-174), Cuiabá-Santarém (BR-163) e estradas transversais, vias que serviram como vetor principal para a apropriação das terras amazônicas.
Essas políticas fizeram parte de um modelo de desenvolvimento da Amazônia, concebido depois da Segunda Guerra Mundial e incrementado quando instalado o regime de governo militar que vigora de 1964 a 1985 e implanta uma forte estrutura institucional de planejamento, coordenação e financiamento, permitindo ao governo centralizar decisões e elaborar os Planos Nacionais de Desenvolvimento (PNDs), os quais estabeleceram estratégias que deram contorno a um novo estilo de desenvolvimento regional, no período de 1966 a 1985 (BRITO, 2001). Nesse contexto, estranha-se que, tanto naqueles, quanto nos planos mais recentes, não foram considerados pelos que elaboravam, e os que hoje elaboram o modelo de desenvolvimento, rios na Amazônia (NOGUEIRA, 1999).
Nessa ordem de ideias, as políticas de desenvolvimento incorporavam como justificativas a idéia da “segurança nacional e da cobiça estrangeira” como alicerce de uma ideologia que leva à necessidade de acelerar o crescimento econômico e populacional com o objetivo de assegurar a integridade territorial da Amazônia (BRITO, 2001). Consequentemente, a construção rodoviária passa a ser o vetor preponderante dessas políticas de desenvolvimento, como estimulador da expansão das empresas agropecuárias e minerais, abrindo espaço para migrantes com maior poder aquisitivo, sem levar em consideração a interferência predatória ao meio ambiente e resulta em novas frentes de devastação da floresta. Enquanto isso, a relação homem-rio, mesmo que, com menores danos a natureza, particularidade da Amazônia, nas políticas anteriormente referidas e nas atuais inexiste e desconsidera que, na Amazônia, as ocorrências da vida de cada um estejam ligadas ao rio e não à terra (TOCANTINS, 2000).
Como resultante das ações transformadoras oriundas desses planos de origem central, o ambiente da floresta sofre interferência assim como o cotidiano das populações que nela habitam, entretanto, o transporte fluvial persiste na Amazônia, participando e contribuindo com o desenvolvimento regional que, na concepção atual, deve ser entendido como um processo social global, em que todas as estruturas passam por contínuas e profundas mudanças. Nessas condições, o transporte fluvial, aqui estudado, deve ser entendido não apenas como questão econômica, mas como atividade que também incorpora vetores sociais e ambientais, bem como, permite quando utilizado de forma integrada, promover a harmonia entre os seres humanos, entre a humanidade e a natureza, a diversidade cultural, a emancipação social e econômica, preservar a identidade e estimular a formação de redes de socialização.
Por outro lado, apesar da importância deste modo de transporte para o desenvolvimento econômico, social e político de uma região, os poucos investimentos ficam evidenciados pela baixa eficiência constatada em uma observação preliminar do transporte hidroviário amazônico. Contudo, este modal de transporte intimamente ligado à história e ao cenário permanente da Amazônia é assim referido no Relatório Estatístico Hidroviário do Ministério dos Transportes (BRASIL, 2000, p.15):
Foram excluídos dados sobre as movimentações ocorridas em travessias hidroviárias, por serem caracterizadas como continuidade do transporte rodoviário, bem como sobre o transporte de passageiros que, especialmente na Bacia Amazônica, é de grande importância social, merecedora, portanto de estudo específico.
Este relato oficial do Estado se incorpora à motivação para a realização deste estudo, pois embora a opção pelo transporte rodoviário seja a preferida pelos governos das últimas décadas, o transporte hidroviário persiste, na Amazônia, como uma alternativa concreta, sendo responsável pela movimentação de números não desprezíveis de passageiros e carga. Infelizmente esses números vêm à baila principalmente quando do registro dos sinistros frequentes nas rotas amazônicas.
Dessa forma, percebe-se que os sinistros provocados em geral pelo excesso de carga e passageiros, sirvam de prováveis indicadores e a provável comprovação da existência de uma demanda reprimida e de uma deficiência das políticas de governo. Este excesso sinaliza e reafirma a importância incontestável deste modo de transporte para a região, em muitos casos o único meio de locomoção a atender os núcleos habitacionais nas diversas malhas hidroviárias da Amazônia.
Foi nesse cenário, construído por fatores que revelam a assimetria com outras regiões em relação à mudança de lugar de bens e pessoas, que despertou a escolha em estudar o trecho Belém – Acará, ao se considerar às condições especiais de distância, navegabilidade, acessibilidade, frequência e o momento raro da inauguração da Alça Viária, período em que se iniciou este estudo, obra de construção civil que tinha como meta viabilizar a interligação terrestre da região metropolitana de Belém com o porto de Vila do Conde em Barcarena e a rodovia PA-150 (inaugurada em 20 de setembro de 2002), composta da pavimentação de estradas e construções de pontes para as transposições dos rios Guamá, Acará e Moju, e opção que influencia a demanda pelo transporte hidroviário. A Alça Viária, portanto, constitui-se em mais uma das construções rodoviárias que atuam como vetores da ampliação da fronteira do capital, situação cada vez mais frequente nos planejamentos para o desenvolvimento econômico da Amazônia.
Neste sentido, reafirma-se a escolha para realização deste trabalho o trecho Belém-Acará, com o objetivo de que represente a atuação do transporte hidroviário nos trechos similares existentes na Amazônia, serviço de transporte que atende a demanda de viagem de passageiros e circulação de bens provenientes dos colonos, ribeirinhos e pequenos comerciantes, categoria de transporte específica situada entre o denominado transporte de baixa renda e o transporte fluvial intermunicipal que opera preferencialmente na calha principal do Rio Amazonas, com embarcações acima de 35 metros com capacidade média de 250 passageiros.
A proposta metodológica desenvolvida neste trabalho foi baseada em consultas às fundações teóricas na perspectiva de que permitissem entender aspectos das inter-relações dos conceitos com as histórias de vida, memória e espaço e, por meio dos apoios metodológicos da história oral, os depoimentos dos usuários que revelam uma multiplicidade de informações e de representações sobre o espaço envolvido pelo transporte fluvial, o que possibilitou uma abordagem crítica e reflexiva sobre a memória da trajetória histórica e cultural no trecho Belém-Acará.
2. O TRANSPORTE E O DESENVOLVIMENTO
A história moderna foi marcada pelo progresso constante dos meios de transporte. Os transportes e as viagens foram campos de mudança particularmente rápida e radical; como Schumpeter assinalou há muito tempo, o progresso aí não resultou apenas da multiplicação do número de diligências, mas da invenção e produção em massa de meios de transporte inteiramente novos (BAUMAN, 1999, p. 21).
Nesta afirmativa de Bauman, se percebe que, a infraestrutura de transportes gera um impacto substancial na economia local e um desenvolvimento potencial da área. A lógica reside no fato de que a acessibilidade e a integrabilidade dos modos de transporte empregados propicia à região vantagens competitivas sobre outras áreas. Investimentos em infraestrutura de transportes são a base para gerar benefícios ao desenvolvimento regional, quais sejam: atração de novos empreendimentos, competitividade e expansão do mercado de trabalho, o que poderia resultar em geração de empregos.
Transporte hidroviário é o tipo de transporte aquaviário realizado nas hidrovias (são percursos pré-determinados para o tráfego sobre águas) para transporte de pessoas e mercadorias. As hidrovias de interior podem ser rios, lagos e lagoas navegáveis que receberam algum tipo de melhoria/sinalização/balizamento para que um determinado tipo de embarcação possa trafegar com segurança por esta via (BRASIL, 2015).
Considerando as condições de navegabilidade dos rios brasileiros, o baixo impacto sobre o meio ambiente, e grande capacidade de movimentação de cargas, este modal apresenta-se como uma alternativa viável para o escoamento da produção do agronegócio brasileiro, fazendo com seu uso seja a premissa essencial para melhorar a competividade dos nossos produtos agrícolas.
O transporte hidroviário de carga no Brasil, apresenta as seguintes características (BRASIL,2015)
Por outro lado, é importante registrar que o modal aquaviário também apresenta algumas desvantagens, como por exemplo, o alcance limitado de operações e a baixa velocidade. A menos que a origem e o destino da movimentação sejam adjacentes a uma via navegável, há necessidade de uso de outro modal de transporte, que pode ser ferroviário, ou o rodoviário (BOWERSOX; CLOSS; COOPER, 2007).
Nas regiões com desenvolvimento, o transporte fluvial tem uma importante participação na matriz dos transportes interiores. Como exemplo, os Estados Unidos possuem cerca de 20.000 km de hidrovias e os países da Europa, em conjunto, possuem cerca de 26.000 km de vias navegáveis interiores, das quais cerca de 10.500 km são canalizadas (hidrovias preparadas por obras de construção civil) (REIS, 1996). De outra forma, no Brasil, apesar de sua extensa malha de rios com mais de 35.000 km possíveis de serem utilizados como hidrovia, a participação do transporte fluvial na matriz de transporte é mínima, como pode ser notado no Quadro 1, apresentado a seguir, em que são comparadas as matrizes de transporte de diversas regiões.
Esse flagrante desequilíbrio da matriz de transportes interiores no Brasil deve-se à excessiva participação do transporte rodoviário, com 70% do total, em detrimento do transporte ferroviário, com 29%, e do transporte fluvial, com 1%. O padrão internacional indica uma participação do rodoviário que não deveria ultrapassar os 25%, do ferroviário que deveria crescer até atingir cerca de 50% e do hidroviário que deveria atingir algo em torno de 25% do total.
Ao se analisar o transporte fluvial tem-se como principais fatores adversos à baixa velocidade e as limitações (restrições) em atingir qualquer ponto de uma região. Por outro lado, como potencialidade, a Região Amazônica tem seus rios quase sempre navegáveis não necessitando de grandes obras, portanto de macro investimentos, o que fazem os outros centros para implantar o transporte hidroviário. Em relação à baixa velocidade, as embarcações que operam na Amazônia requerem um estudo específico para definir um projeto adequado que supere as dificuldades dos rios (velocidade, troncos flutuantes, meandros repetitivos, grandes distâncias, influência do oceano e outras). Para tanto, esse estudo de embarcações apropriadas deveria contemplar planos de construção das embarcações com inovações tecnológicas, tendo em vista que ainda hoje, são os mesmos de séculos passados provenientes de Portugal (Escola de Sagres), que por sua vez utilizava os planos provenientes das construções das embarcações inglesas, mesclados a uma tecnologia herdada dos indígenas (LINS NETO, 1993).
É neste ambiente que os agentes econômicos, com tecnologia defasada, têm necessidades básicas que não podem deixar de ser satisfeitas. Desse modo, tanto a estabilidade torna-se condição necessária ao desenvolvimento econômico, como o crescimento precisa ocorrer em ritmo suficiente para atender às reivindicações das diferentes classes sociais, regiões e países. Geralmente a intensificação desse ritmo se dá em ambiente de crise. Talvez o primeiro desses períodos prolongados de crise e reestruturação “globais” tenha-se estendido pelo que Hobsbawm (2000) denominou de “era da revolução” e atingido seu auge nos anos turbulentos de 1830 a 1848-51. A partir de então, as décadas seguintes foram épocas de expansão capitalista explosiva na produção industrial, no crescimento urbano e no comércio internacional, de florescimento de um regime clássico, competitivo e empresarial de acumulação de capital e regulamentação social (SOJA, 1993), movimento que pelo cenário reinante não envolveu a Amazônia.
Nesse sentido, é interessante se rever os trabalhos científicos sobre a situação brasileira resultante desse período e refletir sobre as condições atuais, a partir das preocupações de Furtado (1982, p. 10):
Como a elevação de produtividade econômica se manifestava em um e outro caso e os padrões de consumo, pelo menos no que respeita a uma parcela da população, se iam homogeneizando, não parecia sem fundamento a tese da doutrina liberal segundo a qual os frutos da revolução industrial se repartiam entre todos.
Nessa ordem de ideias, com a publicação de indicadores de desenvolvimento, os países “pobres” passaram a ser caracterizados como “subdesenvolvidos”, por apresentarem crescimento econômico insuficiente e instável, alto grau de analfabetismo, elevadas taxas de natalidade e de mortalidade infantil, predominância da agricultura como atividade principal, insuficiência de capital e de certos recursos naturais, diminuto mercado interno, baixa produtividade, instabilidade política etc. Esses indicadores resultam da voracidade da acumulação capitalista, favorecida pela busca da elevação de produtividade e a modificação nas formas de consumo, sem assimilação concomitante de progresso tecnológico, nos processos produtivos, o que constitui em realidade o ponto de partida da formação das estruturas subdesenvolvidas (FURTADO, 1982).
No entanto, recorda-se que após a Segunda Guerra Mundial, a macroeconomia keynesiana passou a ser aplicada em todas as partes, de acordo com a fundamentação de que uma socialização ampla dos investimentos é o único meio de assegurar uma situação aproximada de pleno emprego, embora isso não implique a necessidade de excluir ajustes e fórmulas de toda a espécie que permitam ao Estado cooperar com a iniciativa privada (KEYNES, 1982). Posteriormente, verificou-se deficiência na exclusividade do ideal macroeconômico, por sua inadequação para explicar o desenvolvimento, por ser este um fenômeno de longo prazo.
Essa condição, como ruptura, induziu economistas e estudiosos do tema a buscar, então, na História Econômica, os elementos para a formação de uma “teoria do desenvolvimento”, o que os levou à principal constatação de que o subdesenvolvimento deriva do desenvolvimento, isto é, da expansão do capitalismo mundial em sua fase oligopolista. Dentre essas constatações, recorre-se a Mandel (1985) que enfatiza que “A combinação de todas as tendências desiguais do desenvolvimento das proporções fundamentais do modo de produção capitalista vai permitir explicar sua história e, sobretudo da terceira fase desse modo de produção, que denomina de capitalismo tardio”.
Nesse sentido, esse modo de identificar uma fase da evolução do capital, denominado por Mandel (1985) de capitalismo tardio, confirma na sua exposição que a dominação do capital estrangeiro sobre os processos de acumulação de capital, nos países subdesenvolvidos, resultou num desenvolvimento econômico que tornou esses países complementares ao desenvolvimento da economia dos países metropolitanos imperialistas. Dentre as ideias que foram desenvolvidas por Ernest Mandel em seu exame das desigualdades regionais no capitalismo destaca-se a que ”o desenvolvimento desigual entre as regiões e as nações é a própria essência do capitalismo, no mesmo plano da exploração da mão-de-obra pelo capital” (SOJA, 1993).
Diante desse cenário que tem como pano de fundo o desenvolvimento centrado no econômico e resultante de um espaço socialmente produzido e em que se reproduzem as relações dominantes de produção, é que ocorre de forma crescente o acúmulo do capital. Essas relações, segundo Soja (1993, p.102), são reproduzidas numa espacialidade concretizada e criada, que tem sido progressivamente “ocupada” por um capitalismo que avança fragmentada em pedaços, homogeneizada em mercadorias distintas, organizada em posições de controle e ampliada para a escala global.
A permanente e complexa evolução do conceito de desenvolvimento integra nos dias que iniciam o século XXI concepções que conflitam com os ideais desde antes da Idade Média, período em que a natureza era considerada com a finalidade de servir ao homem, era uma obra divina e, como tal, não se concebia que este interviesse de maneira a provocar malefícios na obra de Deus. No emaranhado de pensamentos que envolvem natureza e homem, segundo visões teológicas, construtivistas, dentre outras, e assim, há uma maneira de compreender as diferentes concepções de natureza em que elas são, de fato, socialmente construídas. Com efeito, somente pode-se entender a natureza observando suas relações concretas com a sociedade ao longo da História (MONTIBELLER, 2004).
A esse respeito, a partir da segunda metade do século XX, se intensificam os problemas relacionados à exploração desordenada dos recursos da natureza para atender às satisfações ilimitadas e aguçadas pelo desejo de consumo, com resultados danosos ao meio ambiente numa intensidade para além do local, com caráter global. Em contraposição eclodem manifestações com consciência ecológica em muitos segmentos da sociedade, dando origem ao movimento ambientalista (MONTIBELLER, 2004).
Dentre essas preocupações que levaram à conceituação do desenvolvimento sustentável, a ética deve estar presente, conforme SEN (2000), ao lembrar que a economia e a ética estavam interligadas, desde Aristóteles, por duas questões centrais de fundo: a primeira o problema da motivação humana (como deveríamos viver?), e a segunda, a avaliação das conquistas sociais. No entanto, a outra origem da economia – as questões logísticas, que o mesmo chama de “abordagem de engenharia” – se tornou preponderante, hoje, a ponto de fazer a ética ser praticamente esquecida. Daí vem a insistência deste na reaproximação entre a economia e a ética, sem esquecer da política.
Nessa ordem de ideias, percebe-se que o desenvolvimento, conforme conceito anteriormente mencionado, está para além do crescimento econômico e cumpre esse requisito na medida em que os objetivos do desenvolvimento devem superar a mera multiplicação da riqueza material. Segundo Sachs (2004), o crescimento econômico é uma condição necessária, mas, de forma alguma, suficiente (muito menos é um objetivo em si mesmo) para se alcançar a meta de uma vida melhor, mais feliz e mais completa para todos.
De outra forma, seguindo esta mesma linha de raciocínio, Lawrence Summers (apud Rueda, 2007), deve ser considerado ao comentar a definição de Desenvolvimento Sustentável quanto a “não comprometer a possibilidade das gerações futuras atender às suas próprias necessidades”, e à luz da realidade social, diz: “Eu, de minha parte, sinto de forma mais aguda a luta desse um bilhão de pessoas que subsistem com menos de um dólar por dia, do que a luta das futuras gerações”.
Neste panorama, resultante de um novo equilíbrio, insere-se o questionamento posto por Habermas (1987), que reflete a inquietação e a incompreensão de muitos e da aceitação de todos pela proposta de suplantação do cenário adverso, ao defender a prática da solidariedade. Movimento que deve complementar a conceituação de desenvolvimento para o mundo da primeira década do século XXI, a necessidade de remoção das principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligencia dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos.
Contudo, a importância de considerar a liberdade o principal fim do desenvolvimento é proposto por Sen (2000) a partir de aumentos sem precedentes na opulência global, o que leva o mundo atual a negar liberdades elementares a um grande número de pessoas, provavelmente a maioria. Como tal, para esse autor a ausência de liberdade substantiva relaciona-se diretamente com a pobreza econômica, que rouba das pessoas a liberdade de saciar a fome, de obter uma nutrição satisfatória ou remédios para doenças tratáveis, a oportunidade de vestir-se ou morar de modo apropriado, de ter acesso à água tratada ou a saneamento básico.
3. O TRANSPORTE MISTO DE PASSAGEIROS E CARGAS NOS RIOS DA AMAZÔNIA
Na Amazônia, o transporte fluvial que convive num cenário de desenvolvimento conforme descrito anteriormente, tem um significado especial para os seus habitantes, visto que o rio sempre foi o caminho natural, desde as penetrações exploratórias do período colonial e, portanto, implementador de liberdade, segundo o entendimento de Sen (2000). O Estado do Pará, com estrutura rodoviária advinda com os grandes projetos do final do século XX, em certos momentos, dispõe exclusivamente do transporte fluvial para as relações da capital com determinados núcleos habitacionais do interior, a exemplo das localidades do arquipélago do Marajó. Até os dias atuais, os fluxos de mercadorias e pessoas seguem, salvo raras exceções, a rede hidrográfica regional pela existência de inúmeros povoados às margens dos diversos rios que compõem a bacia amazônica.
Conforme dados da Capitania dos Portos da Amazônia Oriental, órgão da Marinha do Brasil, responsável pelo registro, controle e segurança de todas as embarcações que navegam nos rios desta região, indica que a frota operando em toda área da Amazônia Oriental é de aproximadamente 16.000 barcos, entre embarcações registradas e não registradas, englobando aí os mais diversos tipos, que operam nas seguintes atividades: cargas e passageiros, carga, pesca, e esporte e recreio.
As embarcações para transporte de passageiros são visivelmente as que mais circulam nos rios da Amazônia, como exemplo na Figura 2. Com estrutura arquitetônica própria, possibilitam o transporte de passageiros, geralmente acomodados em redes atadas em pontos rígidos nos conveses existentes e disponíveis, e disponibilizam espaços para acomodar a carga que acompanha as pessoas, normalmente resultado de sua produção ou mercadorias a comercializar. Diante dessas condições, pode-se classificar essas embarcações de mistas, por facilitar o transporte de pessoas e bens e denominar este modo de transporte fluvial misto.
Segundo estudos de Nogueira (1999) e Lins Neto (1993), o viver amazônico possibilita observar que esta atividade de transporte na Amazônia desempenha como função primordial o papel de serviço público, condição que produz polêmicas acirradas, visto que envolve condições diversas desde as liberais, advogando a liberdade total do mercado, aos defensores da regulamentação estatal, da existência de empresas públicas e de subsídios ao setor, em função do argumento de que é "serviço público", ainda que explorado pela iniciativa privada. A Figura 3 retrata a situação na qual o barco presta um serviço de utilidade pública
Nesse sentido, a população de uma comunidade, nos dias de hoje, praticamente não pode viver sem utilizar, em maior ou menor grau, esses serviços. Essa é uma das razões pela qual receberam o rótulo de utilidade pública e é, para Johnson et al. (apudVASCONCELLOS, 1996), atividade de interesse para o conjunto da população de uma comunidade e mesmo de todo um país. Seu fornecimento – na quantidade suficiente, com qualidade adequada e a preço acessível ao conjunto da população – é fundamental para a satisfação do público que utiliza ou consome esses serviços.
Mesmo diante da frágil estruturação organizacional dos agentes econômicos, operadores do transporte fluvial misto de passageiros e carga na Amazônia, agentes que estão sempre dispostos a explorar eixos mais rentáveis, aqueles em que normalmente há maior concentração de atividades, abandonam as pequenas linhas que geralmente passam a ser atendidas por agentes que se adaptam em termos de frequência, regularidade e até o tipo de equipamento. Esta situação pode ocasionar a repartição desequilibrada das atividades sobre o território e produz para os transportadores aquilo que chamam de “frete de retorno”, quando a vantagem do transporte só existe numa direção (NOGUEIRA, 1999).
Neste cenário de complexidades, a prestação do serviço de transporte fluvial misto na Amazônia se constitui sujeita a uma série de dificuldades, que chega a gerar insatisfações, motivada pelo isolamento das distâncias nos extensos rios, pelo labirinto dos caminhos naturais na floresta, pelo uso de embarcações inadequadas, pela utilização de embarcações conduzidas por profissionais com baixa qualificação e, por se tratar de um serviço de transporte público, não pode ficar à margem de uma regulamentação atuante e eficiente, pois é a forma mais abrangente de intervenção no mercado do transporte público (VASCONCELLOS, 1996).
Dentre os fatores de complexidade, destacam-se as deficiências de projetos de transporte, como exemplo, a não integração do sistema hidroviário com os demais modos de transporte, pois a quase totalidade dos terminais hidroviários de passageiros existentes na Amazônia, são responsáveis por grande parte dos problemas operacionais ocorridos e pela não confiabilidade dos usuários no sistema hidroviário (MORAES e VASCONCELLOS, 2001). É necessário, portanto, que um terminal hidroviário apresente um layout bem elaborado a fim de atender às necessidades dos usuários e de minimizar os problemas de operação.
O planejamento de terminais de passageiros, assim como qualquer medida nos sistemas de transportes, exige a identificação e estudos de fatores de variáveis ou de parâmetros que possam interferir nas concepções adotadas nos projetos de localização, operação, arquitetura, urbanismo e outros. O conhecimento e o estudo prévio destes elementos tornam a implantação das medidas planejadas mais dirigidas às exigências e às necessidades da comunidade como um todo e não a coloque em situação de desconforto como apresentado na Figura 4.
4 O TRANSPORTE FLUVIAL MISTO NO TRECHO BELÉM-ACARÁ.
O transporte fluvial misto, especificamente o caracterizado entre as empresas artesanais caboclas e as empresas em vias de modernização por Lins Neto (1993) e as categorias classificadas como Transporte Microregional, categoria de transporte comumente denominado de transporte de baixa renda e a denominada de Transporte Fluvial Inter Municipal de passageiros por Nogueira (1999), é o segmento de transporte objeto deste estudo. Fundamentalmente responsável pela geração e articulação de inúmeras cidades que formam a rede urbana e rural amazônica, comprova que todo o processo de conquista e ocupação da região seguiu, originalmente, a disposição da rede hidrográfica (MACHADO, 1999).
Destaca-se, como exemplo, a articulação em estudo de Belém com a cidade do Acará que surgiu às margens do Rio Acará, situada na área de confluência com os rios Acará-Miri e Miritipitanga, de terras férteis, propícias para a agricultura, com uma vasta floresta com grande disponibilidade de madeiras com valor comercial (PASSOS, 2002).
Até a década de 80 do século XX o hidroviário era o único meio de transporte entre as duas cidades. A partir de então, a articulação entre Belém e Acará passa a dispor do modal rodo-fluvial com opções por Bujarú ou por Mojú, ambas sujeitas a utilização de balsas. Este quadro é transformado em novembro de 2002 com a inauguração da Alça Viária (Figura 5). Trata-se de um conjunto de construções de pontes para a transposição dos rios Guamá, Acará e Mojú (um total de 4.508,8m) e pavimentação de 155,8 Km que interligou a Região Metropolitana de Belém com o porto de Vila do Conde em Barcarena e a rodovia PA-150, possibilita também, o alcance da cidade do Acará pelo modo rodoviário.
Por outro lado, o melhoramento nos indicadores socioeconômicos levantados pelo IBGE (2000) pode significar o rejuvenescimento do núcleo ribeirinho, origem da cidade do Acará, implicando mudanças tanto na organização social que se diversifica – comerciantes novos, “aviadores” tradicionais, pessoas ligadas ao transporte fluvial e rodoviário, funcionários públicos, pessoas do setor comercial e de serviços, tanto formais como informais, migrantes em trânsito, etc. – como na organização espacial (CORRÊA, 1987). Ao se navegar pelo rio Acará a constatação é que as formas espaciais e as funções urbanas herdadas do passado continuam presentes.
O movimento decorrente dessa articulação urbana, assim como em outras, se processa dentro de um ambiente efetivamente amazônico, com acúmulo de fatores como: as características físicas dos rios da Amazônia, caudalosos, profundos, sujeitos a correnteza, repetições de meandros, fortes ventos, a presença de grandes troncos flutuantes; a condição das embarcações sem manutenção, sem registro, sem inspeções periódicas da Capitania dos Portos, operadas por pessoas não capacitadas, desconhecedoras da região, das técnicas de navegação e principalmente de estabilidade. A resultante desses fatores é a existência de acidentes de grandes proporções agregada nos momentos de grande demanda pelo não atendimento às normas de segurança.
Em complemento a preocupação com a insegurança, predomina um clima de instabilidade entre os operadores econômicos, proprietários das embarcações, diante das políticas desenvolvimentistas do Governo, fundamentadas prioritariamente no transporte rodoviário. Esta assimetria resulta em prejuízos e consequentes paralisações definitivas das operações do transporte hidroviário do interior quando submetido a uma situação de concorrência com o modal rodoviário.
Essa condição, que reflete prováveis sinais de insegurança das pessoas, insustentabilidade econômica dos operadores e isolamento das políticas de regulação, fiscalização e subsídios do Poder Público, reflete também o cotidiano vivido pelo transporte fluvial na Amazônia. Então, em determinados momentos, chega-se a pensar que o transporte fluvial não passa de uma atividade descartável, demarcada quase sempre pela ocorrência rotineira na Amazônia, ao se implantar o modal rodoviário se abandona o fluvial. E assim, se desconsidera sua participação na história da descoberta, da colonização e do desenvolvimento político, econômico e social nem a possibilidade de articulações com outros modais. De outra forma, exclui-se o sentimento cultural, a identidade construída pela forte relação homem rio, que beira a extremos e não se considera a afirmativa de Tocantins (2000), que, na Amazônia, as ocorrências da vida de cada um estejam ligadas ao rio e não a terra.
No caso em estudo, o transporte fluvial misto entre Belém e Acará reflete a síntese das preocupações dos técnicos na elaboração ou análise sobre a demanda de transporte, pois retrata um mercado que se processa numa região carente de um país em desenvolvimento, em que reina a preocupação e a instabilidade econômica, acredita-se que sejam adotadas hipóteses de mercado para a oferta de transporte e o crescimento do mercado informal é latente. Esta atividade de negócio demonstra estar à margem dos princípios capitalista, e funciona como se não se subordinasse às necessidades de valorização de capital como enfatiza (POSSAS, 1999).
Destarte, o sistema operado pelos agentes que dispõem do mesmo modelo de embarcações, com estrutura e casco de madeira, propulsão similar o que possibilita tempos de viagem basicamente iguais, o conforto na acomodação dos passageiros é o mesmo, o local de embarque e desembarque também o mesmo, ficando como única opção de competitividade o dia e a hora de saída da embarcação. Essa condição, que se processa há muitos anos, resulta na pouca ou quase nenhuma eficiência desse setor de transporte e ausência de dinamismo dos agentes. Diante desse quadro, configura-se a inexistência da concorrência neste modo de transporte fluvial no trecho entre Belém e Acará, convicto no posicionamento de Possas (1999), para quem a concorrência é vista como um processo de criação constante via inovações de assimetrias competitivas entre as empresas.
Ademais, os incentivos provenientes do Estado na forma de subsídios ou na construção de infraestrutura favorecem aos agentes operadores do modal rodoviário, possibilitando a estes uma condição de assimetria (especialmente na Amazônia), que tornam difícil aos operadores do hidroviário um enfrentamento da concorrência no transporte de carga e passageiros, resultando na incapacidade da manutenção das atividades pelas empresas de navegação fluvial de competirem no mesmo trajeto com empresas rodoviárias, e então para que continuem operando buscam outras linhas.
Dos representantes do Governo comprometidos com as ações do objeto em estudo, a Capitania dos Portos é reconhecida pelos usuários e operadores do sistema como o único com atuação marcante no papel de fiscalização e educação. Em entrevista com a direção da Capitania dos Portos, ao se investigar sobre as embarcações que operam no trecho Belém-Acará, foi verificado que, (no momento da entrevista 2003), das quatro embarcações que exploravam o trecho, somente duas estavam inscritas o que indica o absurdo de 50% das embarcações estarem trafegando irregularmente. Este dado serve de indicativo sobre o controle da operacionalização do mercado de transporte misto.
Neste contexto, presume-se que talvez a inovação seja necessária e acredita-se que ela possa vir a proporcionar um dinamismo à concorrência e, para isso, deve ser motivada por fatos e forças externas ao sistema de transporte hidroviário em estudo. Pela observação que se faz dos agentes econômicos operadores do sistema de transporte em análise, eles parecem demonstrar uma insuficiência de recursos financeiros para buscar a diversidade, o que torna praticamente impossível sugerir investimentos no setor. O Poder Público e empresário de outros ramos de negócios devem ser os implementadores de ações que dinamizem este modal de transporte, como ocorre nos países desenvolvidos.
Por outro lado, os proprietários das embarcações (armadores), neste segmento de transporte, desempenham praticamente todas as funções necessárias. Além das atividades administrativas, especialmente as de direção e controle, respondem pelo despacho junto à Capitania dos Portos, vendem a disponibilidade para transporte de carga, vendem os bilhetes aos passageiros e quase sempre são os pilotos das embarcações. Sujeitos ativos e responsáveis pela movimentação semanal de centenas de pessoas, possibilitam a articulação de Belém com o interior ribeirinho do Acará.
Para realização deste estudo, a seleção dos usuários pesquisados foi feita de forma aleatória, com o objetivo de se obter uma amostra a mais representativa possível. No entanto, na procura de aproximação com a realidade, foram realizadas entrevistas com atores sociais, em regime de viagem (embarcados) ou no aguardo de embarcação, e, pelas suas histórias orais, foi conhecida a trajetória familiar ao longo de três gerações, o que ratificou a utilização do transporte fluvial e assim refletir sobre as afirmações de Bauman (1999) de que, o espaço territorial reflete as relações de poder e abriga distinções, divisões, diferenciações e classificações sociais, (re)produzindo noções de proximidade e de afastamento entre os diversos grupos que o ocupam.
5 CONCLUSÃO
A partir da relação homem – rio com o transporte fluvial, constata-se que, a influência do fenômeno transporte como facilitador e promotor de desenvolvimento somente se verifica quando o mesmo se encontra integrado intra e inter - setorialmente, ou seja, ele é condição necessária ao desenvolvimento, mas não suficiente, pois, se não houver uma política de transportes de forma agregada às demais políticas dificilmente atenderá aos requisitos de desenvolvimento regional a ele atribuído.
Indiferente a essa condição na Amazônia, o transporte fluvial tem um significado especial para os seus habitantes, visto que o rio sempre foi o caminho natural desde as penetrações exploratórias do período colonial. O Estado do Pará, mesmo com estrutura rodoviária advinda com os planos de desenvolvimento para o atendimento aos grandes projetos do final do século XX, em alguns momentos dispõe exclusivamente do transporte fluvial para as relações da capital com determinados núcleos habitacionais do interior, como as localidades do arquipélago do Marajó.
Dentre as categorias que exploram os serviços de transporte fluvial na Amazônia, ficou evidenciado que as que transportam passageiros e cargas são as que mais circulam nos rios da Amazônia. Categoria de transporte, formada por embarcações com estrutura arquitetônica própria, possibilita aos passageiros ficarem acomodados em redes atadas em pontos rígidos nos conveses. Atende às pequenas linhas, linhas transversais ou linhas secundárias e, por serem em muitos casos o único meio de circulação, desempenha um verdadeiro serviço de utilidade pública desprovido de quaisquer subsídios, normas, regulamentos, mesmo sem saber que executam tarefas do serviço público e que deveriam ter o Poder Público como parceiro.
Como evidência, há um desempenho deficiente do sistema de transporte fluvial com embarcações de estrutura e casco de madeira que a tornam vulneráveis. Condição propícia aos acidentes, como o elevado número de escalpelamentos, situação na qual são arrancados de forma brusca ou acidental o escalpo humano, por meio de diversas formas, mas mais comumente por motores dos barcos da região Amazônia, e de mortes por abalroamentos que persistem, sinalizando um quadro de insegurança, extremamente preocupante quando comparado com o transporte rodoviário urbano ou interurbano de passageiros no entorno de Belém, mas indicador de uma forte demanda pelo serviço de transporte fluvial, especialmente o tipo misto, na categoria aqui estudada. No entanto, mesmo diante deste cenário de intranquilidade, percebe-se a efetiva contribuição deste serviço de transporte, conforme declaração dos usuários, na ampliação de cidadania com autonomia, cultura, identidade e no fortalecimento da rede de socialização da comunidade com ações de solidariedade.
O transporte fluvial misto que opera nas linhas secundárias (similares ao trecho em estudo) atinge um estágio de prestação de serviço, à margem do mundo capitalista. Atua informalmente numa tarefa de serviço público em que os atores desconhecem a configuração do mercado e não dá para ser liberal e deixar a “mão livre” assumir este mercado. Formas de intervenção e subsídios devem ser pensadas para garantir, assegurar a mobilidade das pessoas e produtos dispersos no vasto cenário hidroviário amazônico. Política que deve ser implementada e justificada em consequência dos grandes armadores os mais capitalizados não se interessarem por operar linhas secundárias. Reafirma-se, portanto, que apesar do potencial do modal hidroviário ser um poderoso indutor capaz de alavancar o processo de desenvolvimento, ele não garante, por si só, esse desenvolvimento.
Finalmente, esse cenário construído em sinais de insegurança das pessoas, insustentabilidade econômica dos operadores e isolamento das políticas de regulação, fiscalização e subsídios do Poder Público reflete também, o cotidiano vivido pelo transporte fluvial na Amazônia. E daí, conclui-se também que o transporte fluvial não passa de uma atividade descartável, demarcada quase sempre pela ocorrência rotineira na Amazônia, de ao se implantar o modal rodoviário se abandona o fluvial. E assim, desconsidera-se sua participação na história da descoberta, da colonização e do desenvolvimento político, econômico e social nem a possibilidade de articulações com outros modais. De outra forma, exclui-se a questão ambiental, o sentimento cultural, a identidade construída pela forte relação homem rio, que beira aos extremos da afirmativa de Tocantins (2000), que, na Amazônia, as ocorrências da vida de cada um estejam ligadas ao rio e não a terra.
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