Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


VISIBILIDADE FORMAL E RELAÇÕES DE CONFLITO NA RESERVA EXTRATIVISTA DO RIO IRIRI

Autores e infomación del artículo

Girlian Silva de Sousa

Michelle Maria Lima de Sousa

Universidade Federal do Pará

gyr_gil@yahoo.com.br

RESUMO

As Reservas Extrativistas são resultado do processo de luta dos povos e comunidades tradicionais pelo direito de manutenção de suas territorialidades específicas, que se refletem em seu modo de viver. Não obstante a garantia de usufruto da terra para a reprodução social das populações extrativistas tradicionais, consistindo num instrumento de reconhecimento de direitos, esta categoria de Unidade de Conservação têm se mostrado insuficiente para a proteção do modo viver dessas comunidades tradicionais, haja vista o baixo volume de investimento brasileiro nessa área e a dificuldade de acesso a políticas públicas por essas comunidades. Dentro dessa perspectiva, este artigo discute a situação de invisibilidade real das comunidades tradicionais da Reserva Extrativista do Rio Iriri e o decorrente acirramento dos conflitos pelo recurso pesqueiro dentro da RESEX.

Palavras-chave: Reserva Extrativista, Comunidades tradicionais, Direitos, Políticas públicas, Conflitos.

RESUMEN

Las Reservas Extractivas son el resultado de la lucha de los pueblos y comunidades tradicionales el derecho a mantener sus territorialidad específica, que se refleja en su manera de vivir. A pesar de la garantía de usufructo de la tierra para la reproducción social de las poblaciones extractivas tradicionales, que consiste en un instrumento de reconocimiento de los derechos, esta categoría de Unidad de Conservación ha demostrado insuficiente para la protección de modo vivir de estas comunidades tradicionales, dado el bajo volumen la inversión brasileña en esta zona y la dificultad de acceso a las políticas públicas para estas comunidades. Dentro de esta perspectiva, este artículo analiza la situación de invisibilidad real de las comunidades tradicionales de la Reserva Extractiva Río Iriri y la intensificación resultante de los conflictos por los recursos de pesca dentro de la RESEX.

Palabras clave: Reserva Extractiva; Las comunidades tradicionales; Visibilidad formal; Política pública; Conflictos.

ABSTRACT

The Extractive Reserves are the result of the struggle of peoples and traditional communities the right to maintain their specific territoriality, which are reflected in their way of living. Notwithstanding the land usufruct guarantee for the social reproduction of the traditional extractive populations, consisting of a rights recognition instrument, this category of Conservation Unit have proven insufficient for protection so live these traditional communities, given the low volume Brazilian investment in this area and the difficulty of access to public policies for these communities. Within this perspective, this article discusses the real invisibility situation of traditional communities of the River Iriri Extractive Reserve and the resulting intensification of conflicts over fishing resources within the RESEX.

Keywords: Extractive Reserve; Traditional communities; Formal visibility; Public policy; Conflicts.



Para citar este artículo puede uitlizar el siguiente formato:

Girlian Silva de Sousa y Michelle Maria Lima de Sousa (2015): “Visibilidade formal e relações de conflito na reserva extrativista do Rio Iriri”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, n. 30 (octubre-diciembre 2015). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2015/04/rio-iriri.html


1 INTRODUÇÃO

            Embora a criação e manutenção de Unidades de Conservação (UCs) seja uma eficiente estratégia de conservação dos recursos naturais e de geração de benefícios econômicos e socioambientais, a publicidade dos benefícios gerados dificultam a percepção e a valorização desses serviços, justificando o baixo volume de investimentos brasileiros nessa área (MEDEIROS et al., 2011). As Unidades de Conservação Ambiental são espaços territoriais cujos recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, são características naturais relevantes legalmente instituídas pelo Poder Público com objetivos de conservação e limites definidos. Encontram-se sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção. Classificadas segundo o objetivo de criação, podem constituir Unidades de Proteção Integral quando a finalidade é a preservação da natureza, admitindo-se apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, ou Unidades de Uso Sustentável quando o objetivo é compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais, permitindo que as populações tradicionais possam utilizar seus recursos sustentavelmente (BRASIL, 2000).
Isto posto, a Reserva Extrativista (RESEX) é uma categoria de UC cuja finalidade é convergir os objetivos de conservação da natureza, reforma agrária e preservação do modo de vida dos povos da floresta, garantindo o acesso a terra para sua reprodução social e defesa de suas territorialidades específicas (NEGRET, 2010; ALMEIDA, A., 2004; ALLEGRETTI, 2008). Contudo, a eficácia desse instrumento legal está condicionada a observância de fatores como a oferta de infraestrutura mínima necessária para a sobrevivência dos comunitário, e ao respeito às particularidades das distintas territorialidades específicas das diversas identidades coletivas agrupadas sob a categoria “povos tradicionais”, retirando-os da invisibilidade e garantindo a conservação dos recursos naturais (NEGRET, 2010; ALMEIDA, A., 2004; SHIRAISHI NETO 2007).
            Dentro dessa perspectiva, o presente artigo traz um recorte da dissertação Caça e Segurança Alimentar em Comunidades Ribeirinhas do Médio Xingu, pesquisa que teve como objetivo identificar e analisar a contribuição socioeconômica da caça de subsistência para a segurança alimentar de comunidades ribeirinhas do Médio Xingu, inter-relacionando a segurança alimentar ao acesso a políticas públicas e à garantia de direitos sociais. Neste recorte, a finalidade é discutir a permanência das comunidades ribeirinhas na invisibilidade após a criação da RESEX, através da análise dos conflitos gerados pela omissão do poder público. Para a discussão da temática neste artigo, apresenta-se inicialmente o conceito de “povos” e “comunidades tradicionais” procurando situar o conceito dentro do sentido de mobilização social por conquista de direitos. Em seguida realiza-se uma breve discussão sobre a criação de Reservas Extrativistas na perspectiva de solução de conflitos fundiários, buscando evidenciar as dificuldades que envolvem a regularização de territórios tradicionais através da criação de RESEXs. Na sequência, de acordo com a pesquisa realizada, apresenta-se a realidade da Reserva Extrativista do Rio Iriri, procurando evidenciar a permanência da situação de invisibilidade dos comunitários para o poder publico nove anos após a criação da unidade de conservação.

2  O TRADICIONAL E O SENTIDO DE MOBILIZAÇÃO POR DIREITOS

A partir da década de 1980 diversos grupos sociais portadores de identidade coletiva e étnica têm se mobilizado para sair da situação de invisibilidade social, apoiando-se em um repositório de saberes específicos da sua própria existência localizada (SHIRAISHI NETO, 2005; VIEGAS; BURIOL, 2014; ALMEIDA, A., 2004), nos quais, está impresso o habitus maneiras de ser permanentes, duráveis, que podem em particular, levar os agentes a resistir e opor-se às forças do campo ambiental (BOURDIEU, 2003). Esse intenso processo de reivindicação e mobilização social deu origem ao Decreto 6.040/2007 que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), com o objetivo específico de promover o desenvolvimento sustentável reconhecendo e garantindo os direitos territoriais, ambientais, culturais e socioeconômicos, através do estímulo e valorização da identidade de povos e comunidades tradicionais, suas formas de organização e diferentes instituições (ALMEIDA, A., 2007).
A PNDSPCT os define como grupos culturalmente diferenciados que se reconhecem como tais possuem formas próprias de organização social, ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (BRASIL, 2007). Dentro desta perspectiva, o termo “populações” tornou-se ineficiente para expressar o sentido de mobilização social contido no conceito de “comunidades tradicionais” (ALMEIDA, A., 2008). O “tradicional” deixou de referir-se a um suposto isolamento geográfico e cultural para expressar mobilização por garantia de direitos, abrangendo uma dimensão político-social na qual a territorialidade representa elemento de identificação, fortalecimento e defesa, mesmo em situações de apropriações temporárias de recursos naturais por grupos nômades. A territorialidade revela-se operativa e reivindicativa de direitos, numa dinâmica de mobilização que reflete os conflitos sociais nas áreas ocupadas por esses povos (ALMEIDA, A., 2004; 2008).
            Este caráter do “tradicional” ultrapassa a expressão folclórica, monumental e arqueológica da cultura e abrangendo e inter-relacionando os valores culturais, regulações e o modo de viver às ações dos povos e comunidades tradicionais. Todavia, a cognição por parte do Direito do meio social no qual se faz uso das normas e do sentido que as pessoas ou grupos daquele ambiente lhes conferem é condição sine qua non para o efetivo reconhecimento das particularidades econômicas e socioculturais desses sujeitos (DUPRAT, 2007). Ao citar Wittgenstein, a autora adverte que as normas vistas separadamente das atividades práticas dos seres humanos, convertem-se em meros itens mentais ou linguísticos, podendo aduzir ao descarte das premissas de verdade outro, incorrendo em afronta à Constituição e a outros documentos internacionais que atestam para a obrigatoriedade do reconhecimento por parte do Direito, do caráter pluriétnico e multicultural do Estado nacional (DUPRAT, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL). Não obstante, observa-se em vários países o processo de constante oscilação entre legitimação e negação dos direitos dos povos e comunidades tradicionais, demandando a construção do campo jurídico do “direito étnico”, pensado a partir da situação vivenciada por esses povos, em superação aos esquemas jurídicos pré-concebidos (SHIRAISHI NETO, 2007).
            O campo do direito é um universo social relativamente autônomo, onde se refletem as relações de força nas quais se estrutura, produzindo e exercendo a autoridade jurídica, forma por excelência da violência simbólica legítima, cujo monopólio pertence ao Estado, podendo se combinar com o exercício da força física (BOURDIEU, 1989, p. 211). Segundo Bourdieu, esse sistema de normas e práticas exerce tal violência simbólica sob o paradoxo da aparência de total autonomia e isenção de pressão social e econômica, o que lhe confere uma suposta equidade de princípios, que podem ser impostos universalmente de forma lógica e ética (BOURDIEU, 1989, p. 213). Assim, a política de universalização das disposições jurídicas dificulta a reprodução física e sociocultural dos povos e comunidades tradicionais ao abstrair as particularidades dos modelos extrativistas e do modo de viver dos distintos sujeitos e grupos sociais categorizados como “tradicionais”, agravando problemas socioambientais (SHIRAISHI NETO, 2007). Para o autor, a ineficácia do Direito em responder as demandas oriundas das diversas identidades coletivas caracteriza a passagem dos povos e comunidades tradicionais do invisível real para o visível formal, visto que as especificidades étnicas, culturais, religiosas e econômicas desses grupos não são respeitadas pela prática do “direito inculcado”, incapaz de acompanhar as transformações ocorridas na sociedade (SHIRAISHI NETO, 2013: 2007).

3 A CRIAÇÃO DE RESERVAS EXTRATIVISTAS SOB A PERSPECTIVA DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS

            A criação de unidades de conservação gera serviços ambientais como a proteção de assentamentos humanos contra deslizamentos, enchentes, conservação de recursos pesqueiros e da biodiversidade. Contudo, os bens e serviços fornecidos direta e indiretamente pelas unidades de conservação são em geral de natureza pública e distribuídos de maneira difusa, tornando seu valor imperceptível aos usuários, que na maioria dos casos não pagam diretamente o uso e o consumo desses recursos. Afora isto, tais externalidades não são creditadas na economia nacional e sua publicidade reduz o estímulo ao investimento brasileiro nessa área (MEDEIROS et al., 2011). Não obstante, a criação e manutenção de UCs no Brasil evitou a emissão de pelo menos 2,8 bilhões de toneladas de carbono, o que corresponde à estimativa subestimada de R$ 96 bilhões. Quanto aos benefícios ao setor de produção de energia elétrica, 80% da hidroeletricidade do país efluem de usinas que possuem pelo menos um tributário a jusante de unidade de conservação. No que diz respeito à água destinada ao consumo humano, 9% é captada diretamente de unidades de conservação e 26% é captada em fontes a jusante de unidades de conservação. Quanto às contribuições ao setor agrícola, 4% da água utilizada em agricultura e irrigação é captada de fontes dentro ou a jusante de unidades de conservação (MEDEIROS et al., 2011).
O Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC) é composto pelo conjunto das unidades de conservação federais, estaduais e municipais e tem a função de estabelecer critérios e normas para a criação, implantação e gestão das unidades de conservação brasileiras (BRASIL, 2000). Embora o Brasil detenha a quarta posição entre os países com maior extensão de área coberta por unidades de conservação, o SNUC enfrenta problemas com a regularização fundiária em decorrência da insuficiência de recursos financeiros. Em comparação com o volume de recursos destinados as áreas protegidas de países com PIB inferiores ao brasileiro, estes, investem por hectare protegido, entre cinco e vinte e cinco vezes mais do que o Brasil. A conservação dos recursos naturais no país enfrenta a contradição de possuir grandes índices de biodiversidade e apresentar insuficiência de recursos humanos, financeiros e entraves burocráticos (MEDEIROS et al., 2011; CAMPHORA, 2009). A desproporcionalidade do volume de investimento destinado ao SNUC classifica a gestão brasileira de áreas protegidas entre as piores do mundo. Enquanto na África do Sul a relação é de um funcionário para cada 1.176 hectares de áreas protegidas, no Brasil esta relação é de um funcionário para 18.600 hectares (CAMPHORA, 2009; BARROS, 2011; MEDEIROS et al., 2011).
Entre as unidades de conservação, a Reserva Extrativista é uma categoria cuja matriz histórica resulta da mobilização social liderada por Chico Mendes no final da década de 1980, responsável por retirar os povos da floresta da invisibilidade no cenário nacional e transformá-los em paradigma de desenvolvimento sustentável com participação popular (NEGRET, 2010; ALMEIDA, M., 2004). Esse movimento social reivindicava um processo de reforma agrária que atendesse as especificidades dos povos da floresta amazônica, garantindo a conquista da terra como principal meio de produção e de sobrevivência para os extrativistas (NEGRET, 2010). Assim, a Reserva Extrativista foi criada dentro da perspectiva de solução de conflitos agrários e garantia de direitos dos povos da floresta. Por conseguinte, RESEX é uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade (BRASIL, 2000).
Segundo Mary Allegretti, a resolução de conflitos via políticas públicas ocorre sempre que um segmento social utiliza o poder econômico ou político derivativo de sua inserção na estrutura econômica, ou de poder, na forma de pressão organizada, visando conquistar suas reivindicações (ALLEGRETTI, 2008, p.40). Para a autora, o elemento diferencial da conquista do movimento social dos povos da floresta amazônica consiste no fato dos atores principais não possuírem poder econômico nem força política, surgindo como uma ação coletiva (os empates) e se institucionalizando como política pública (ALLEGRETTI, 2008). As populações que vivem nas unidades de conservação de uso sustentável são fundamentais para a conservação desses recursos, uma vez que as interações entre as comunidades tradicionais e seus habitats colaboram com a manutenção da biodiversidade (DIEGUES, 2000). Contudo, somente a criação e manutenção de RESEXs não garante a satisfação das necessidades do movimento social amazônico, devido ao surgimento de uma série de contradições no que processo de implementação das unidades (NEGRET, 2010; OLIVEIRA FILHO, 2012).
 A regularização de territórios tradicionais através da imposição de um único modelo de unidade de conservação, desconsiderando a heterogeneidade dos modos de “fazer” e “viver” das distintas identidades coletivas agrupadas na categoria “extrativistas”. Ribeirinhos, castanheiros, piaçaveiros, quebradeiras de coco babaçu, seringueiros, entre outros, apresentam especificidades no manejo dos recursos naturais correspondentes as suas territorialidades específicas, que não se restringem as áreas definidas oficialmente como reservadas (SHIRAISHI NETO, 2005; VIEGAS; BURIOL, 2014; ALMEIDA, A., 2004).  Outra contradição diz respeito à criação de reserva sem a oferta de infraestrutura mínima de serviços básicos. Nesse sentido, o descaso do poder público na oferta de serviços como educação, saúde, transporte e acesso a créditos rurais, compromete o processo de produção e escoamento das mercadorias produzidas na RESEX, dificultando a sobrevivência dos comunitários e ameaçando a conservação dos recursos naturais, principais objetivos da criação dessa categoria de unidade. Por consequência, a criação de unidades de conservação que outrora esteve associada à defesa de direitos pelos movimentos sociais passou a ser avaliada com cautela pelos próprios movimentos, em decorrência dos recorrentes problemas envolvendo sua implementação, podendo constituir empecilhos à reprodução física e cultural dos povos e comunidades tradicionais (SHIRAISHI NETO, 2007).

4 A CRIAÇÃO DA RESERVA EXTRATIVISTA DO RIO IRIRI

A Reserva Extrativista do Rio Iriri está localizada integralmente no Município de Altamira e representa aproximadamente 3% da área do município, abrangendo uma área de 398.938 (trezentos e noventa e oito mil, novecentos e trinta e oito) hectares que acompanha um trecho do percurso do Rio Iriri, fazendo divisa com a RESEX Riozinho do Anfrísio e a Terra Indígena Xipaya a oeste, com a Terra Indígena  Cachoeira Seca do Rio Iriri ao norte, e com a Estação Ecológica (ESEC) Terra do Meio a leste e a sul, conforme ilustrado na Figura 1. Criada pelo Decreto Federal de 05 de junho de 2006, está interligada à rede hidrográfica da bacia do Rio Xingu, na porção norte de sua bacia em uma região que abriga uma das maiores biodiversidades do planeta, cuja presença de populações tradicionais é responsável por sua riqueza social e cultural. Com 900 km de extensão entre sua nascente na Serra do Cachimbo, localizada ao sul do município, até a margem esquerda do rio Xingu onde deságua o Rio Iriri chega a 2 km de largura e sua navegação é possível em pequenas embarcações embora possua trechos de corredeiras que dificultam mesmo a passagem de barcos pequenos (ICMBio, 2010). A região é de difícil acesso, em razão do relevo regional e de fortes variações no nível das águas entre as estações do ano (verão e inverno), o que aumenta os entraves para o acesso. Em períodos normais de seca, existem pontos como o “desvio do Iriri”, em que a navegação se torna ainda mais difícil, tornando impossível a navegação com pessoas ou cargas nos barcos, sendo necessário que todos desçam e retirem as cargas pesadas para que a embarcação possa ser puxada pelos tripulantes, estendendo a viagem em até três dias neste trecho que tem menos de dois quilômetros, e em períodos de seca mais severa torna a travessia impossível.
O rio é a principal via de transporte, e no interior da RESEX é a única forma de locomoção dos ribeirinhos que utilizam rabetas (pequenos barcos com motor de popa) e canoas como meio de transporte. O rio é também o fornecedor da principal fonte de proteína para a alimentação dos ribeirinhos, o peixe. Segundo o levantamento demográfico realizado em 2006 e atualizado em 2009, a população era formada por 285 habitantes organizados em sessenta e três famílias, distribuídas em vinte e sete localidades ao longo do rio, desde a localidade Ri o Novo até a localidade Triunfo (ICMBio, 2010). A família é a estrutura organizacional predominante e as relações de parentesco são as mais evidentes com o estabelecimento de redes de casamento entre as famílias locais. Segundo Coudreau (1977), os indígenas foram os primeiros habitantes da região. Alguns como os Araweté, Apyterewa, Arara, Xipaya e Kuruáya, ainda ocupam as margens dos rios Xingu e Iriri e suas aldeias fazem limite com as Unidades de Conservação da região.
A ocupação das matas ao longo dos rios da região Terra do Meio (Xingu, Iriri, Curuá e Riozinho do Anfrísio), ocorreu de forma gradativa, acompanhando os ciclos econômicos nacionais, tendo inicio em meados do século XIX, com o primeiro ciclo da borracha, à medida que os seringueiros seguindo a localização dos seringais e o numero de estradas de seringa construíam suas habitações ao longo dos rios, organizando-se sob o modelo de patronagem e aviamento (SOUSA; PEZZUTI, 2014; ISA, 2006; ICMBio, 2010). O primeiro ciclo da borracha marca o inicio do processo de povoamento não indígena da região e dos conflitos e mortes de seringalistas/seringueiros e indígenas. As narrativas dos moradores mais antigos das RESEX atestam que a extração da borracha era uma atividade de alto risco de morte devido aos ataques dos indígenas. O processo de miscigenação foi marcado pela violência contra as mulheres indígenas, capturadas para serem “amansadas”. A expressão “pega no laço” originou-se nessa época e referia-se as índias sequestradas e mantidas aprisionadas pelos “esposos” seringueiros. Dizia-se que as Xipaya, Kuruayas e as Jurunas eram mais fáceis de “domesticar” e se adaptar para constituir família. Embora em alguns casos as índias matassem seu algoz enquanto este dormia e fugissem de volta às suas aldeias (SILVA, 2009; ICMBio, 2010; 2012).
Consta que este cenário começou a mudar a partir da chegada de um pacificador do Serviço de Proteção aos Índios, enviado pela presidência da República, cuja função era “amansar caboclos” da região dos rios Xingu, Iriri e Curuá. Credita-se a presença desse representante do governo a redução considerável do numero de mortes de índios e seringueiros, e o inicio do processo de paz entre índios e ribeirinhos. O fim do conflito promoveu maior segurança para os seringueiros trabalharem nas estradas de seringa e piques de castanha. A Segunda Guerra Mundial impulsionou o segundo período da borracha e um novo fluxo imigratório para a região, perpetuando-se até a década de 1970, época em que a queda no valor do produto provocou a quase extinção da atividade. Isto posto, a população tradicional encontrada hoje ao longo dos rios da região da Terra do Meio se constituiu a partir da miscigenação dos imigrantes nordestinos que foram trabalhar nos seringais do Médio Xingu, com os povos indígenas locais, dando origem a uma população cabocla com forte herança das tradições indígenas, adaptada às condições ecológicas das várzeas e rios da Amazônia, embora inserido nos ciclos econômicos regionais (ICMBio, 2010; 2012).
Seguindo a dinâmica de suprimento de matéria-prima para o mercado externo, desde 1960, a “caça do gato” desenvolvia-se como atividade econômica em paralelo a extração do látex e da castanha. Tal atividade consistia na comercialização de peles de animais principalmente, ariranhas (Pteronura brasiliensis), onças (Panthera onça), e gatos maracajás (Leopardus wiedii). Até a posterior proibição da caça e comércio de animais silvestres, a produção era escoada até Belém e Fortaleza, e em seguida exportadas para o exterior (ISA, 2006; CARNEIRO; PEZZUTI, 2010; ICMBio, 2010). A partir da década de 1970, as atividades econômicas passaram a girar em torno do garimpo, extração de madeira e  pecuária extensiva (ISA, 2006; ICMBio, 2010).
Obedecendo à lógica econômico de mercadorização da natureza e do trabalho humano (POLANYI, 2000, p. 94), o planejamento regional estratégico da Amazônia criado pelo governo militar inseriu a região do Médio Xingu no cenário de conflitos e violência por recursos naturais. A estratégia consistia na construção do eixo viário de integração das regiões mais industrializadas do país (sul e sudeste), às regiões isoladas dessa industrialização. Parte dessa estratégia, a construção da BR-163 (Rodovia Cuiabá-Santarém) provocou grande fluxo migratório e o reordenamento territorial dos municípios ao seu entorno, produzindo “disputas materiais e simbólicas sobre o território e seus recursos, identidades, valores e racionalidades intrínsecas às dinâmicas próprias do mundo social” (CASTRO, 2008, p. 9). Foram atraídos médios e grandes fazendeiros e capitais destinados à expansão da atividade agropecuária, estimulando o mercado de terras, dirigindo a frente de modernização para São Félix do Xingu, no rio Xingu, atravessando o rio Iriri e a Terra do Meio (CASTRO, 2008).  Doravante à atração do interesse do mercado de exportação de commodities agropecuárias e minerais para estas áreas, a floresta, as comunidades tradicionais e seus modos de cultivo, foram substituídas por núcleos urbanos e pela monocultura empresarial, gerando conflitos e degradação ambiental (MARGARIT, 2013; CASTRO, 2008; BOURSCHEID JUNIOR et al., 2013).
Lucio Flávio Pinto define a construção do eixo viário de integração nacional como “o episódio mais traumático de toda a história amazônica” (PINTO, 2014, p.71). Segundo o jornalista, a região da Terra do Meio que possui o maior estoque de mogno da Amazônia, considerada a árvore mais valorizada no mercado, foi palco da mais grave tentativa de apropriação indébita de terras públicas do país. Este episódio envolveu a empresa conhecida como C.R. Almeida, que se declarava dona de uma área entre 4,7 milhões a 7,0 milhões de hectares, área quase duas vezes e meia o tamanho da Bélgica (PINTO, 2014; SILVA, T., 2009). Durante o processo de criação das unidades de conservação, a empresa INCENXIL, pertencente ao grupo C.R. Almeida, reclamava através de documentos enviados ao IBAMA, a propriedade de terras localizadas dentro da proposta de criação de áreas protegidas. A ação foi acompanhada pela circulação de notícias em jornais, acusando o governo e as ONGs de impedirem o desenvolvimento econômico através da criação de reservas, e convocando a população a se posicionar contra a criação das unidades (SILVA, T., 2009).  Segundo o autor, muitos ribeirinhos trabalhavam para a empresa, e a campanha conseguiu confundir a população, colocando várias famílias a favor da CR Almeida, recusando-se a receber as visitas dos técnicos e agentes das instituições que atuavam em campanhas para a criação das RESEXs (SILVA, T., 2009).      
Entretanto, o esgotamento do mogno (Swietenia macrophylla) em outras regiões intensificou o fluxo de grupos para a exploração de madeira na região, acentuando a devastação da floresta. O grande interesse econômico na região acirrou as expropriações e ameaças aos ribeirinhos, incentivando a mobilização pela criação das UCs. Com a colaboração de agentes ligados à administração publica, as operações fraudulentas ocorriam nos cartórios das cidades, onde o tamanho das áreas eram alteradas nos mapas topográficos e após adulteração as áreas eram vendidas (SILVA, T., 2009; PINTO, 2014). A expropriação das famílias pelos grileiros foi intensificada no ano de 2000, com o ingresso de diferentes grupos que compravam e negociavam com os moradores o direito de uso das terras. Ocorreram invasões e conflitos entre si pelo domínio de algumas regiões, grandes fazendas foram implantadas e o processo devastação de grandes áreas da floresta foi intensificado (ICMBio, 2010). As primeiras reuniões com intuito de criação de reservas que abrigassem as comunidades tradicionais do Médio Xingu datam de agosto e novembro de 1997, tendo sido organizadas principalmente pelos ribeirinhos e famílias extrativistas dos rios Iriri e Xingu, representantes da Secretaria Estadual de Meio Ambiente, do escritório regional do IBAMA e do Centro Nacional de Populações Tradicionais e Desenvolvimento Sustentável (CNPT/IBAMA) (SILVA, P., 2007).
Em 2002, o acirramento dos conflitos fundiários motivou o Ministério do Meio Ambiente (MMA), a solicitar um estudo com que respaldasse tecnicamente a criação de um mosaico de Unidades de Conservação. O estudo foi realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), a Fundação Viver Produzir e Preservar (FVPP) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) coordenou um estudo com o objetivo de respaldar tecnicamente a criação de um mosaico de Unidades de Conservação (UCs) na Terra do Meio. A RESEX do Riozinho do Anfrísio foi a primeira a ser decretada, em novembro de 2004 (SILVA, T., 2009; ICMBio, 2010). O assassinato da missionária Dorothy Mae Stang no município de Anapu em 2005 coincidiu com a criação da Estação Ecológica da Terra do Meio e o Parque Nacional da Serra do Pardo, embora o governo tenha negado que o ato fosse uma resposta à pressão da mídia internacional, cobrando providências pela morte da missionária (ICMBio, 2012; SILVA, T., 2009). Após vários embates e invasões por parte de fazendeiros, madeireiros e grileiros, em 05 de junho de 2006, foi criada a Reserva Extrativista do Rio Iriri, e em junho de 2008, decretada a RESEX Rio Xingu, completando o mosaico de áreas de áreas protegidas (ICMBio, 2012).
Segundo o levantamento demográfico realizado em 2006 (ICMBio, 2008) e atualizado em 2009, haviam duzentos e oitenta e cinco habitantes na RESEX, distribuídos em sessenta e três famílias, subdivididas em vinte e sete localidades ao longo do Rio Iriri. Desde o levantamento demográfico da RESEX em 2006, até a atualização realizada em maio de 2009, havia ocorrido um aumento de 12% no número de habitantes, principalmente pela incorporação de duas novas famílias na área da RESEX (ICMBio, 2010). Um novo levantamento demográfico foi realizado na reserva no final de 2014, porém os dados ainda não foram divulgados.

5 VISIBILIDADE FORMAL, CARÊNCIA E CONFLITOS PELO USO DOS RECURSOS NATURAIS NA RESEX DO RIO IRIRI

            Nove anos após sua criação, a Reserva conseguiu sanar os conflitos pela terra e o problema da violência na região, assegurando aos comunitários o direito de continuarem exercendo suas atividades extrativistas. Contudo, a reserva permanece carente da infraestrutura mínima de serviços de saúde, educação e transporte. Além disso, a falta de acesso a subsídios para produção e escoamento dos produtos agroextrativistas dificulta a sobrevivência dos comunitários. Nesse sentido, a ineficiência da RESEX em garantir o acesso a políticas públicas e assegurar trabalho e renda para os moradores é uma das contradições que fragilizam a UC, dificultando a percepção e o reconhecimento por parte dos moradores de que a criação da reserva representou uma conquista social, validando a crítica de que as comunidades ribeirinhas da Reserva Extrativista do Rio Iriri permaneceram invisíveis para o poder público.
            As grandes madeireiras atuavam na região do baixo Iriri desde a década de 1980, época da construção da madeireira Maribel nas proximidades da localidade Rio Novo, dando origem à estrada Trans-Iriri, ligando esta localidade a Uruará e à Transamazônica para o escoamento da madeira e entrada de insumos. Novos grupos madeireiros começaram a atuar na região na década de 1990, transportando a madeira pelo rio até Altamira. Existiram quatro grandes fazendas de pecuária extensiva localizadas na área da RESEX (Juvilândia, Jatobá, Bacuri e Rio Novo), provocando grande devastação na floresta, ainda hoje existindo algumas cabeças de gado na localidade. A fazenda Juvilândia, a mais antiga da região, explorava áreas hoje pertencentes à RESEX do Rio Iriri e à ESEC Terra do Meio. Trabalhando em parceria com diferentes madeireiros, proibia a pesca no rio e a entrada na região da fazenda, colecionando histórias de violência contra funcionários e invasores. As fazendas e madeireiras representavam fonte de emprego e renda para muitos moradores do Iriri, que chegaram a trabalhar para diferentes grileiros, fazendas e madeireiras, desempenhando atividades como pilotos, mateiros, transportadores ou vendedores de produtos como farinha e galinhas. Além disso, os madeireiros assumiam o papel do Estado na prestação de serviços de assistência médica, removendo moradores doentes para serem atendidos na cidade (ICMBio 2010; 2012). A criação da RESEX, no entanto, ao mesmo tempo em que pôs fim à renda gerada pelas fazendas e pelas madeireiras, não forneceu subsídios que proporcionassem alternativas econômicas para os ribeirinhos, nem representou maior assistência por parte do Estado.
 Assim, a época da exploração ilegal do mogno é lembrada pelos ribeirinhos como uma época de emprego e abundância, à semelhança da época da borracha, também representada na memória coletiva dos comunitários como um período de fartura, a despeito do endividamento compulsório e da violência vivenciada pelos seringueiros durante a economia do caucho. Em se tratando do ciclo da borracha, tal saudosismo diz respeito à oferta de gêneros alimentícios, ferramentas, entre outras mercadorias industrializadas disponíveis nos barracões instalados nos pontos próximos aos seringais do Iriri. Estes pontos de abastecimento foram extintos após o fim dessa atividade, transformando o fornecimento de mercadorias na reserva, uma atividade exclusiva dos regatões. Após a criação da unidade de conservação, a pesca artesanal, conhecida localmente como mariscagem, tornou-se a principal fonte de renda para aproximadamente 82,98% dos moradores. A partir de então, os regatões assumiram o papel anteriormente desempenhado pelos fazendeiros, suprindo demandas sociais negligenciadas pelo Estado, legitimando a dependência dos comunitários a esses agentes. Estes comerciantes reproduzem o antigo sistema de aviamento antecipando gêneros alimentícios e tralhas de pesca, para o financiamento da produção pesqueira. Os regatões são financiados pelos chamados “patrões”, geralmente donos de peixarias na cidade, onde os comerciantes entregam a produção pesqueira prospectada na RESEX.
Cabe destacar que a despeito da RESEX do Rio Iriri ser uma Unidade de Conservação Federal, não há gestão sobre o comércio do pescado na reserva, o que significa que o órgão gestor da unidade (ICMBio), desconhece o volume de recurso pesqueiro extraído da unidade, seu destino ou a renda gerada. Diante disso, à semelhança do antigo sistema de aviamento da produção da borracha, o aviamento na pesca utiliza o endividamento compulsório para manter a dependência do ribeirinho ao comerciante, enquanto expropria a sua renda. Aproveitando-se do alto índice de analfabetismo, que atinge 62,13% dos chefes de família da reserva, os regatões são os únicos a contabilizar os gastos com as compras de mercadorias pelos ribeirinhos, assim como os volumes e os valores da produção pesqueira, que constitui a contrapartida repassada ao comerciante, dificultando a percepção do pescador a cerca da sua própria renda familiar média mensal gerada pela atividade, que se estimou em R$ 173,92. Portanto, esta representa menos de ¼ de um salário mínimo, um pouco acima da linha de pobreza adotada hoje no Brasil, estipulada em R$ 154,00.
 Fatores como a localização geográfica e o contexto institucional estabelecem a extrema dependência dos moradores da reserva a esses agentes. À vista disso, os regatões são os únicos prestadores de serviços de transporte de passageiros, cargas, abastecimento de mercadorias e escoamento da produção dos ribeirinhos, colocando os comerciantes em uma posição privilegiada de monopolistas, em um cenário de omissão do poder público. Programas como o PRONAF, PAA e PNAE, que poderiam proporcionar maior acesso à alimentação e alternativas econômicas à atividade pesqueira que já apresenta sinais de declínio, através da queda de produtividade devido à dificuldade de captura dos peixes, permanecem inacessíveis aos moradores da RESEX, em virtude da falta de documentação por parte de muitos ribeirinhos, problema que poderia ser facilmente sanado pelo poder público através dos chamados mutirões de documentação. Sem subsídios para a produção e escoamento, os moradores são desestimulados a produzirem produtos agrícolas como feijão, arroz, milho e frutas. Os ribeirinhos alegam que não teriam como escoar a produção para a cidade, havendo relatos de safras inteiras de aboboras ou melancias que se perderam no campo devido à impossibilidade de escoamento para a cidade. Sem um mercado para os produtos agrícolas, os ribeirinhos se voltam para a única atividade com um comprador garantido, a pesca. Entretanto, o contexto da atividade pesqueira no Iriri, dificulta sua conciliação com as atividades nas roças, mesmo, para a subsistência.
 O aumento da demanda por peixe em Altamira e o aumento dos preços das mercadorias trazidas da cidade pelo regatão impelem os pescadores a aumentar o tempo dedicado à pesca, agravando a pressão sobre o recurso. Outros agravantes são o número de pescadores e o crescimento da utilização de tralhas de pesca pouco seletivas como as malhadeiras, consideradas pouco sustentáveis. Embora a prática não seja generalizada, peixes, como por exemplo, piranhas (Pygocentrus), que não possuem valor comercial e não são apreciados para o consumo, devido a fatores como tabus, gosto e preferências entre os comunitários, quando capturadas nas malhadeiras, costumam ser mortas a pauladas e descartadas no rio. Esta prática está ligada ao preço da malhadeira (R$ 300,00) e ao reduzido número de pescadores que dominam a arte da confecção e conserto desse instrumento de pesca, uma vez que a soltura de um peixe vivo dessa armadilha implica frequentemente no corte de suas malhas.
A intensificação da atividade pesqueira ao mesmo tempo em que tem provocado o aumento da dependência do ribeirinho aos alimentos fornecidos pelos regatões, aumentando o risco de insegurança alimentar e cria a contradição de não se converter em aumento da renda dos pescadores, uma vez que as transações envolvem pouca circulação de dinheiro e esse sistema de trocas permite o saque da renda do pescador através da depreciação do preço do pescado dentro da reserva, ao mesmo tempo em que as mercadorias antecipadas são superfaturadas. A Tabela 1 compara o preço do pescado na reserva, e o preço auferido pelo regatão e pelos donos de peixarias em Altamira, demostrando que o peixe ganha valor como mercadoria ao sair da reserva extrativista.

Para efeito de ilustração, a Tabela 2 compara o preço do peixe em relação ao valor cobrado pelas mercadorias antecipadas, demostrando que um quilo de peixe é insuficiente para a compra de um pacote de café de 250g, ou que seriam necessários mais de dois quilos de peixe para a compra de um quilo de feijão, por exemplo.

Afora os já mencionados efeitos sobre o estoque pesqueiro e sobre a segurança alimentar e nutricional das famílias, a intensificação da atividade, acirra os conflitos entre os comunitários à medida que o recurso diminui. Os conflitos entre os moradores da RESEX são remanescentes da época em que moradores de diversas localidades do Iriri trabalhavam para diferentes grileiros (ICMBio, 2010). A despeito disso, os ribeirinhos alegam que eram mais unidos antes da criação da reserva com o acordo de pesca e da nomeação de representantes para cada localidade. O acordo de pesca proíbe a mariscagem em frente aos portos dos vizinhos, salvo sob o consentimento do morador residente na área, respeitando o limite da faixa de 500 (quinhentos) metros para cada lado das colocações. Pescadores que exercem a pesca comercial exploram além dos seus territórios em busca de produtividade, desrespeitando as áreas de pescas dos vizinhos e agravando os conflitos com os ribeirinhos que pescam somente para a alimentação. Desta forma, à medida que o recurso escasseia, a competição pelo recurso aumenta ao mesmo tempo em que os pescadores comerciais são responsabilizados pela diminuição do estoque natural de peixes. Embora a ONG atuante na unidade desenvolva projetos que visam fornecer alternativas econômicas à pesca comercial, estes não são reconhecidos pelos pescadores como opções econômicas viáveis, o que nos remete às observações de Suess e Mendoza (2011), sobre o fracasso de projetos econômicos pautados numa lógica que diverge do modo de viver dos povos e comunidades tradicionais 1.
O recurso pesqueiro também é disputado entre os ribeirinhos e os povos indígenas do entorno da unidade de conservação. A Reserva Extrativista do Rio Iriri faz fronteira com as Terras Indígenas Cachoeira Seca, Xipaya e Kuruaya. Dentro da problemática gerada pela inobservância das territorialidades específicas, a delimitação dos limites das terras da reserva é contestada por alguns indígenas que proíbem o uso das terras e dos recursos dentro de áreas oficialmente pertencentes à reserva, gerando conflitos entre indígenas e ribeirinhos. Entretanto, a carência de serviços obriga os ribeirinhos a utilizarem os postos de saúde das Terras Indígenas, a temer retaliações e se submeterem aos limites territoriais impostos pelos indígenas sem recorrem à violência. A reserva possui apenas um posto médico, sendo assistido por uma técnica em enfermagem. O posto foi construído por iniciativa da ONG ISA, na localidade que possui a melhor infraestrutura da unidade, o Manelito. Entretanto as comunidades situadas no final da RESEX permanecem dependentes do atendimento dos postos das Terras Indígenas e dos postos de saúde de Altamira.
A RESEX não possui agentes de saúde comunitários e segundo os moradores, há mais de três anos não recebe serviços de vacinação ou de atendimento médico. Acidentes com animais peçonhentos podem levar a óbito em decorrência da falta de soro antiofídico, devido à inviabilidade da estocagem do produto em virtude da ausência de energia elétrica na reserva. As dificuldades para a remoção de um paciente em estado de saúde grave para a cidade permanecem as mesmas de antes da criação da unidade, pois a remoção ainda depende do envio de uma embarcação pela Secretaria Municipal de Saúde de Altamira, podendo levar bem mais de 24 horas em época de seca. A situação da educação embora tenha melhorado segundo os moradores, ainda apresenta grandes deficiências como escolas sem infraestrutura mínimas como telas contra mosquitos, obrigando os professores a fazerem fumaça durante as aulas. Apenas 22,7% dos chefes de família são alfabetizados. Não obstante, não há a oferta de ensino para alunos acima da 5ª série do ensino fundamental, ou alfabetização para jovens e adultos. Isto significa que os jovens a partir da 5ª série, cujos pais não possuam uma rede de relações na cidade, são cerceados do seu direito à educação e da igualdade de oportunidades.
 Destaca-se que as carências nos serviços de saúde, transporte e educação são do conhecimento do poder público desde a criação da unidade, uma vez estas demandas estão assinaladas no Plano de Manejo da RESEX, que inclusive admite que a interferência dos agentes externos durante a criação da reserva acentuou os conflitos entre os moradores, ao criar disparidades na realização de melhorias em algumas localidades e em outras não (ICMBio, 2010, p. 129). No que diz respeito aos recursos disponíveis nas localidades, os moradores alegam que a escolha de um representante por localidade fez com que cada representante buscasse melhorias apenas para a sua localidade de residência, criando desigualdades na distribuição dos parcos recursos que chegam até a RESEX, oriundos de projetos ou que foram distribuídos durante a criação da unidade de conservação.  Assim, os moradores das comunidades mais distantes sentem-se prejudicados, ao mesmo tempo em que os comunitários da Reserva Extrativista como um todo perdem a noção de unidade, passando a defender demandas apenas das suas comunidades específicas.
 Os ribeirinhos alegam que durante a criação da unidade muitas promessas foram feitas e quase nada se tornou realidade, inclusive a promessa de subsídios à produção de produtos agroextrativistas. Este contexto institucional deu origem à descrença dos moradores em relação à possibilidade de autonomia e autogestão. A mobilização social entre os comunitários é considerada fraca e dependente de incentivos dos agentes externos. Os ribeirinhos rejeitam a possibilidade de qualquer tipo de fiscalização ou punição exercida pelos próprios moradores da reserva, atribuindo tal obrigação ao órgão gestor da unidade. As reuniões da Associação dos Moradores (AMORERI) ocorrem por inciativa das instituições externas (ONG e ICMBio).  Para alguns moradores a escolha do presidente da Associação é induzida pelas instituições parceiras, e a incapacidade da diretoria da Associação em prestar contas sobre os recursos financeiros oriundos dos projetos aprovados para a reserva, sem o auxílio dos parceiros externos, só aumenta a desconfiança e o descontentamento, ao mesmo tempo em que se tornam cada vez mais dependentes da atuação dos agentes externos.        
            Nesse sentido, o baixo nível de instrução formal representa um grande obstáculo para a construção da autonomia e o empoderamento dos comunitários da RESEX uma vez que tais objetivos possuem como principais condicionantes o acesso a serviços básicos como saúde, educação e garantia de renda. Isto posto, a criação de RESEX sem a oferta de infraestrutura necessária para a sobrevivência dos comunitários inviabiliza a saída dos povos da floresta da invisibilidade real, que consiste na desigualdade de oportunidades e de conquista de cidadania.

6 CONCLUSÕES

Embora a criação e manutenção de unidades de conservação consistam numa eficiente estratégia de criação de serviços ambientais, a publicidade desses serviços dificulta a valorização desses benefícios e a destinação de verbas para essa área no Brasil. Em se tratando das Reservas Extrativistas, embora sua matriz histórica resulte da mobilização social liderada dos povos da floresta, iniciada na década de 1980, sua eficiência como instrumento de garantia de direitos sociais tem sido reavaliada em decorrência das falhas na implantação de diversas unidades. No que diz respeito à Reserva Extrativista do Rio Iriri, esta a despeito de ter conseguido promover a segurança dos comunitários contra a ação dos grileiros na região, não se mostrou eficiente na retirada dos ribeirinhos da invisibilidade. A falta de acesso a serviços de saúde e educação de qualidade, bem como de subsídios que permitam a produção e o escoamento dos produtos agroextrativistas dificulta a sobrevivência dos comunitários. Nesse sentido, a ineficiência da RESEX em garantir o acesso a políticas públicas e assegurar trabalho e renda para os moradores é uma das contradições que fragilizam a unidade de conservação, dificultando a percepção e o reconhecimento por parte dos moradores de que a criação da reserva representou uma conquista social.

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1 Suess e Mendoza (2011) explicam que quando uma comunidade aceita uma proposta de inovação técnica compreendendo apenas o sentido léxico das palavras vê apenas o instrumento, mas não seu manejo, não existindo qualquer garantia de que tal proposta seja aceita em seu sentido prático. Quando isto ocorre, ao descobrirem mais tarde, quando tentam integrar a inovação técnica ao ritmo de vida das atividades cotidianas, o projeto é abandonado.

Recibido: 18/09/2015 Aceptado: 18/11/2015 Publicado: Noviembre de 2015

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