Beny Pereira Alves
Áurea Regina Guimarães Thomazi
Centro Universitário UNA
pbeny67@yahoo.com.brRESUMO
Este artigo tem o objetivo de provocar uma reflexão sobre os desafios na implementação da intersetorialidade como instrumento na gestão de políticas públicas. Para tal, apresenta-se o relato de parte do projeto “Família Cidadã, BH sem miséria” do Programa BH Cidadania da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Este Programa, planejado para que as políticas sociais do município atuem de forma intersetorial e territorial, é concebido como uma estratégia de inclusão social das famílias moradoras em áreas socialmente críticas e busca garantir mais resolutividade e acessibilidade dos bens e serviços públicos a essa população. Os avanços, como a tentativa de implantação do projeto em questão, e desafios como a sua normatização, são postos de forma a elucidar os caminhos percorridos.
Palavras-chave: Intersetorialidade, Interculturalidade, Interdisciplinaridade, Território, Políticas Públicas, Gestão.
ABSTRACT
This article is intended to provoke a reflection on the challenges in the implementation of intersectionality as a tool in public policy managemen. To this end, we present the part of the project report " Citizen Family, BH without poverty " Program BH Citizenship of the City of Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil. This program, planned for the social policies of the municipality act in a cross-sectoral and territorial, it is designed as a social inclusion strategy of the families living in socially critical areas and seeks to ensure more resolution and accessibility of public goods and services to this population. Advances such as the attempt to implement the project in question, and challenges as their regulation, are put in order to elucidate the paths taken.
Key words: Intersectionality, Intercultural, Interdisciplinary, Territory, Public Policy, Management.
Para citar este artículo puede uitlizar el siguiente formato:
Beny Pereira Alves y Áurea Regina Guimarães Thomazi (2015): “Reflexões sobre os desafios da intersetorialidade como instrumento de gestão em políticas públicas”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, n. 30 (octubre-diciembre 2015). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2015/04/intersetorialidade.html
INTRODUÇÃO
As transformações percebidas nas políticas públicas a partir da década de 1980 nos leva a buscar formas de atuação, principalmente para as políticas sociais, que possam responder, ou no mínimo tentar, enfrentar as questões sociais como se apresentam.
Para o Estado, principalmente após uma Constituição da República preconizada como democrática, como a de 1988, torna-se fundamental adotar seus princípios de descentralização, participação e democratização.
Para que se possa implantar estes princípios, é aconselhável o olhar se voltar para o território geográfico. Nele as experiências vividas e as demandas emergem, se constroem e se transformam. É nesse sentido que, para se construir políticas sociais se faz necessário relacioná-las à interdisciplinaridade, intersetorialidade e interculturalidade como proposta de gestão voltada ao combate às vulnerabilidades sociais.
Interdisciplinaridade, aqui entendida, como o ser humano tratado de forma não fragmentada, mas unitária dentro da mesma política social, na articulação entre a atenção básica¹, a média² e a alta complexidade³, reguladas, como por exemplo, no SUS (Sistema Único de Saúde, 1990) e no SUAS (Sistema Único de Assistência Social, 2004). Esta regulação, ainda que consolidada, carece de construção de fluxo e comunicação, dentro da mesma política, para que se chegue ao que Severino (2010, p.17) aponta como proposta interdisciplinar “é preciso, pois, no âmbito dos esforços com vistas ao conhecimento da realidade humana, praticar, intencional e sistematicamente uma dialética entre as partes e o todo” e só assim, o conhecimento das partes pode fornecer elementos para a construção de um sentido total.
A intersetorialidade, foco dessa reflexão, ultrapassa o limite da própria política, necessita da construção de articulação, fluxo e comunicação entre uma política e outra no território, como define Inojosa (2001, p.103) “a articulação de saberes e experiências com vistas ao planejamento, para a realização e avaliação de políticas, programas e projetos, com o objetivo de alcançar resultados sinergéticos em situações complexas”. Nenhuma política consegue, por si só, em sua estrutura organizacional, fazer frente a complexidade das questões sociais. Entendendo que a intersetorialidade se promove através de ações coletivas, criar espaços institucionais para esse fim é uma forma de gestão que pode promover o desenvolvimento local.
Já entender a interculturalidade é o que nos fará captar a dinâmica deste local assim como a de seus habitantes, como afirma Hall (1997, p. 8) “nossas identidades são, em resumo, formadas culturalmente”, desta forma não há como obter eficácia na implementação de políticas públicas sem entender a dinâmica do território.
AS POLÍTICAS PÚBLICAS NO CONTEXTO ATUAL
As inovações na gestão de políticas públicas, incluindo as sociais e urbanas transformam os municípios em protagonistas na condução do enfrentamento da pobreza, da desigualdade e outras formas de violações aos direitos humanos e sociais.
A pobreza e desigualdade aqui consideradas como fatores complexos e dinâmicos que se reproduzem e perpetuam, devendo ser entendidas para além do aspecto econômico isolado, pois esse, por si só não é mais suficiente para superar o processo de exclusão social, como afirma Bronzo (2007, p.2) “a pobreza é um processo que envolve dimensões políticas, sociais e culturais, sendo portanto, inadequado abordá-la exclusivamente sob o aspecto econômico”.
Portanto reconhecendo a pobreza como um fator multicausal, multidimensional e multifatorial e que, esta é permeada por diversas situações de vulnerabilidades, o caminho pode ser a busca por formas coletivas para este enfrentamento.
Ações coletivas para o enfrentamento de fenômenos como desigualdade e exclusão social mostra ser um caminho para o desenvolvimento de ações integrais, com maior eficácia e eficiência no gasto público, indo direto ao cerne do problema.
Para que tais ações se efetivem através da intersetorialidade, interdisciplinaridade e interculturalidade é de fundamental importância direcioná-las para o “território” como espaço físico, geográfico, e o “território” como limites do saber, da forma que o coloca Nahas (2011, p. 8), “esse “novo território” é povoado de famílias, que habitam um espaço determinado, com sua dinâmica complexa, inteligível a princípio, que necessita ser decifrada” ou seja, é no espaço de vivência que a interculturalidade se cria, se reproduz, se modifica e é de fundamental importância entendê-la para que se possa buscar a efetividade nas políticas públicas. Essa inovação só seria possível através da descentralização dos níveis de poder decisório central.
Foi nessa lógica que em 2001 foi implantado uma reforma administrativa na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte – PBH (DOM, 2000), baseados em quatro eixos estratégicos e inter-relacionados: a participação, com o objetivo de estimular a inserção da sociedade civil nos mecanismos de gestão da cidade: a descentralização político-administrativa empoderando as Secretarias Regionais com atribuições mais específicas na execução das políticas municipais, sociais e urbanas; a intersetorialidade, onde os serviços e as ações seriam articuladas com definições mais claras em relação ao público e às prioridades de intervenção; e a informação, ou seja, um investimento em sistemas de diagnóstico com o desenvolvimento de monitoramento e avaliação de programas e serviços prestados.
Diante destas novas diretrizes surge o Programa BH Cidadania como uma estratégia de gestão intersetorial a ser implantado em áreas de maior vulnerabilidade social no município de Belo Horizonte.
As políticas sociais envolvidas na articulação do BH Cidadania são: Assistência Social, Saúde, Educação, Esporte, Cultura, Segurança Alimentar, Direitos e Cidadania e Inclusão Produtiva.
Assim, em 2009 é implantado, na comunidade do Taquaril, o BH Cidadania, junto com o Centro de Referência da Assistência Social (CRAS). Um território de risco social considerado muito elevado. E, em 2011, o projeto: Família Cidadã, BH sem miséria, neste local.
PROJETO: FAMÍLIA CIDADÃ, BH SEM MISÉRIA
Este projeto foi concebido a partir do conhecimento da metodologia utilizada pela Associação Criança Renascer, do Estado do Rio de Janeiro e adaptado à metodologia de intervenção do Programa BH Cidadania, já existente na Prefeitura de Belo Horizonte.
Neste, a proposta é de atendimento integral, interdisciplinar e intersetorial às famílias mais vulneráveis selecionadas nos territórios de BH Cidadania.
Para iniciar o projeto, cada equipamento público do território (no caso, o bairro Taquaril), a saber, três escolas municipais, dois centros de saúde e um CRAS, selecionaria, dentro de seu público, trinta famílias, observados os seguintes critérios, pré estabelecidos para inserção no projeto:
Estes critérios foram criados pela Secretaria Municipal de Políticas Sociais em conjunto com as Secretarias Municipais de Educação, Saúde e Adjunta de Assistência Social.
Após a indicação, baseado nestes critérios, foram selecionadas 180 famílias.
Nestas, buscou-se a coincidência de indicação pelos equipamentos públicos do território, ao mesmo tempo em que se formou um grupo de discussão, composto por um técnico de cada serviço, para que se chegasse ao número determinado pela Secretaria municipal de Políticas Sociais (SMPS), que seria de 30 famílias.
A etapa seguinte foi de levantar as demandas sociais de cada família e elaborar um plano de ação junto a estas, bem como um termo de adesão e pactuação do projeto de intervenção onde elas se comprometeriam a cumprir metas, prazo e execução das atividades contidas neste Plano de Ação Familiar (PAF).
O PAF foi elaborado pelas políticas sociais, porém as intervenções seriam construídas com as famílias, para que participassem e fossem corresponsáveis pela superação de suas vulnerabilidades.
Estabeleceu-se um padrão mínimo satisfatório para que fosse considerada a superação das vulnerabilidades, dentro de um prazo de dois anos. Neste período não se incluiria nenhuma família, para não interferir na avaliação final, formou-se também um Grupo Técnico (GT) – PAF, para reunir mensalmente e monitorar o cumprimento das condições mínimas para desligamento, usando para tal os seguintes critérios:
A experiência da implantação deste projeto no Taquaril nos permitiu observar diversos entraves e possibilidades relacionados à intersetorialidade, interculturalidade e interdisciplinaridade no que se refere à implementação de Políticas Públicas, especificamente este projeto piloto, e que serve de orientação futura.
No Taquaril, das trinta famílias selecionadas, somente 25 aderiram ao projeto. No decorrer da implantação 5 mudaram do território e não puderam mais ser acompanhadas.
Das 25 que aderiram 12 foram desligadas em meados de 2013, quando atingiu os 2 anos previstos e 8 famílias foram avaliadas pelo Grupo Técnico para permanecer em acompanhamento numa próxima etapa do projeto, embora os critérios de inserção tenham sido superados, a vulnerabilidade social, para além destes critérios, ainda não.
A interculturalidade mostrou-se um desafio, já que é uma comunidade em formação, em torno de 30 anos, com uma população em torno de 20.000 habitantes, de migrações diversas, buscando construir uma identidade cultural própria do Taquaril, dificultando a criação de um padrão de análise e acompanhamento mais uniforme, necessário à equipe reduzida do GT-PAF.
A interdisciplinaridade ficou comprometida devido a normativas internas de cada política; a Política de Assistência Social realizou os atendimentos e acompanhamentos ofertados pelo CRAS, mas no caso de famílias que tinham direitos violados ainda não havia sido criado um fluxo de encaminhamento à Proteção Especial, de média e alta complexidade (NOB-SUAS/2004), sendo a alternativa criada para notificá-los, o encaminhamento destes às Gerências Regionais de Assistência Social. Neste momento, percebe-se a falta de apropriação e debates anteriores mais amplos sobre o perfil das famílias, pois grande parte das selecionadas apresentavam direitos violados, que deveriam ser tratados na Proteção Especial, e não na Proteção Básica, responsável pelo acompanhamento e inserção das famílias.
Na Política de Saúde, ocorreu o mesmo fato; pouco entendimento e discussão anterior do nível central com a base local, nos territórios, mostrando em grande parte das famílias selecionadas por estes, a necessidade de intervenções de média e alta complexidade (SUS), que vai além do atendimento básico dos Centros de Saúde, além de esbarrar no critério de universalidade desta política federal, impossibilitando a prioridade municipal de atendimento às famílias deste projeto.
A Política de Educação, parece-nos, foi a que menos conversou sobre o Projeto, do nível central para o local, fato que levou a uma dificuldade de entendimento do que e por que do Projeto, embora cada escola soubesse que deveria selecionar trinta famílias, e isto levou-as a escolher “os mais indisciplinados” na trajetória escolar. Na Unidade Municipal de Ensino Infantil (UMEI) Taquaril, onde deveriam ter prioridade de vaga crianças destas famílias, também se esbarrou em critérios pré estabelecidos de inserção anteriores à criação do projeto e falta de vagas nesta unidade.
Desta forma, a intersetorialidade que é objeto principal dessa reflexão tornou-se mais complexa, na instância de sua execução: o GT-PAF, formado, como citado, por um técnico de cada política, no território.
Ao técnico do CRAS coube a responsabilidade pela visita domiciliar de cada família e aplicação de um questionário, pré elaborado, contemplando as vulnerabilidades sociais. Após a aplicação deste, os setores respectivos às demais políticas se reuniriam com as famílias e seria construído um Plano de Ação que contemplaria as demandas da família e possíveis intervenções dos equipamentos públicos. Por falta de agenda comum dos técnicos de todas as políticas, coube ao técnico do CRAS a construção, pactuação e assinatura do termo de adesão junto às famílias do projeto.
Para que a intersetorialidade ocorresse faltou o entendimento e diálogo desta como construção coletiva conjunta. Cabe ainda destacar a vulnerabilidade como decorrente de fatores diversos não podendo ser entendida apenas pelos critérios básicos de seleção. Afinal, estes critérios foram criados para direcionar a avaliação e não como definitivos para a superação da vulnerabilidade.
Foi assim que, no final de 2013, época marcada para a avaliação do projeto, ainda não se havia conseguido executá-lo da forma prevista.
Outros fatores, além dos descritos dificultou a avaliação, tais como; as constantes mudanças de endereço das famílias, a descrença destas em relação ao papel do Estado, um sistema de informação atualizado.
No ano de 2014, técnicos da Secretaria Municipal de Políticas Sociais (SMPS) se debruçaram em analisar e buscar alternativas para enfrentar os desafios encontrados e formas de superação.
No início de 2015 a SMPS, nível central de governo, lançou diretrizes para o novo formato de seleção das famílias, baseados em quatro critérios:
Esta nova forma de seleção, realizada pelo filtro do CADÚNICO, embora no início tenha se mostrado como uma alternativa, ao ser aplicada, esbarrou em alguns desafios, tais como um cadastro do governo federal desatualizado.
Ao buscar as famílias, através de visita domiciliar, agora 60 selecionadas, muitas não moravam mais no território, outras já haviam superado os critérios, percebeu-se também que muitas cadastradas no CRAS e que os técnicos percebiam ter perfil do projeto não estavam cadastradas no sistema do governo federal.
Percebeu-se também que o sistema de informação do governo federal começa a demonstrar deficiências na inserção ao cadastro pois não se preenchia todas as dimensões do cadastro familiar, o que ocasionava um resultado diverso do apresentado pela família.
Neste contexto não se conseguiu filtrar as 60 famílias para início do projeto. Assim, foram realizadas diversas discussões no nível central entre Assistência Social, Saúde e Educação e decidiu-se acrescentar um novo critério de seleção que foi a escolha pelos técnicos do GT – PAF local, sobre a classificação de algumas famílias do território que teriam o perfil do projeto.
Depois de todas essas etapas, ao contatar as famílias para expor o projeto e convidá-las a assinarem o termo de adesão, esbarrou-se em um novo desafio: a não aceitação de algumas famílias em participar do mesmo e a grande mobilidade urbana.
No caso do Taquaril, das 60 famílias selecionadas apenas 40 aderiram. Esta baixa adesão, analisada pela SMPS, ocorreu também nos demais bairros da cidade.
Desta forma estes imprevistos e obstáculos ainda estão sendo discutidos no nível central, na tentativa de buscar as formas de como implantar este projeto, que não conseguiu alcançar o que era previsto pelo planejamento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O relato aqui apresentado trata da implantação de um projeto que ainda está em construção e sabe-se que construir e implantar um política pública não é um processo fácil. Mas é na prática que se pode verificar se os pressupostos foram seguidos e acertar o rumo do que foi planejado. O realizado é sempre um pouco diferente do previsto, mas algumas vezes pode surpreender sendo melhor do que se esperava.
Por isso o interesse em partir da experiência desse projeto “Família Cidadã BH Sem Miséria” mesmo que em construção para provocar uma reflexão sobre a gestão dessa política pública, principalmente no aspecto que se refere à intersetorialidade, ou seja, à efetiva integração entre os diversos setores que atuam em sinergia para combater a miséria de um número significativo de famílias. Ao lado da interdisciplinaridade e da interculturalidade a intersetorialidade se faz necessária para economizar e ao mesmo tempo potencializar esforços de todas as áreas voltadas para o social. E se for possível o aperfeiçoamento deste instrumento muito se poderá avançar no trato da gestão da questão social.
Percebe-se, entretanto, na experiência relatada, que o diálogo, aspecto fundamental dentre os princípios da intersetorialidade, foi deficiente dentro da própria política, a começar do nível central de planejamento até o nível local, de execução. Deve-se enfatizar que o princípio do diálogo deve ser contemplado entre todos os setores, respeitando as especificidades de cada um, mas permitindo um conhecimento e respeito mútuo, com a valorização da contribuição de todos.
Além disso, as especificidades de cada cultura local, a diversidade e a interculturalidade não foi levada em conta como seria necessário, já que foi implantado um modelo único de projeto para cidade como todo, ampliando assim os desafios e ignorando a mobilidade urbana, como um dos fatores da não adesão pela família ao projeto.
Ao provocar essa reflexão pretendeu-se enfim identificar alguns avanços mas também alguns desafios que podem ser melhor trabalhados quando se tem a proposta de implantar políticas públicas de forma eficaz e efetiva para não só minimizar os desdobramentos da desigualdade social mas também se caminhar na direção de um projeto societário mais participativo e justo socialmente.
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