Carlo Alessandro Castellanelli
Luise Medina Cunha
Universidade Federal de Santa Maria
castellanelli@bol.com.brResumo: Há muitos séculos, são observadas pressões sob o uso e posse de terras, originadas por novas demandas de mercado. A expansão e o desenvolvimento da produção de biocombustíveis em pequena ou larga escala, cria uma nova dinâmica territorial e econômica, a qual é necessária ser controlada e regulada por parte do Estado, assim como devem haver ações conjuntas por parte dos outros atores envolvidos para evitar retrocessos ou disputas por territórios. Neste contexto, este trabalho analisa a sistemática produtiva dos biocombustíveis tangencialmente a seus aspectos econômicos, políticos e sócio-ambientais, focando nos conflitos territoriais gerados pela ótica corporativo-capitalista, no qual se desenvolve esta indústria.
Palavras-Chave: Biocombustíveis, Conflitos Territoriais, Agricultura Familiar, Grilagem.
THE BIOFUELS PRODUCTION AND ACCESS TO LAND: TERRITORIAL DISPUTES
Abstract: For many centuries, pressures are observed on the use and ownership of land, caused by new market demands. The expansion and the development of biofuel production in small or large scale, creates a new territorial and economic dynamics, which is required to be controlled and regulated from the State and there must be joint actions by the other stakeholders to avoid setbacks or disputes over territories. In this context, this paper analyzes the systematic production of biofuels tangentially to their economic, political and socio-environmental aspects and focusing on the territorial conflicts generated by a corporate-capitalist perspective, which develops this industry.
Keywords: Biofuels, Territorial Disputes, Family Farmers, Landgrabbing.
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Carlo Alessandro Castellanelli y Luise Medina Cunha (2015): “A produção de biocombustiveis e o acesso à terra: conflitos territoriais”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, n. 30 (octubre-diciembre 2015). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2015/04/grilagem.html
INTRODUÇÃO
Conflitos de posse de terra e impactos sócio-ecológicos obedecem a padrões históricos de exclusão, a sistemática se repete, sendo financiada por grupos privados ou públicos. No nível governamental, os benefícios obtidos a partir da produção de biocombustíveis depende, de certa forma, da interação entre as instituições de governança existentes e das relações entre produtores, industrias, e Estado. Essas redes de instituições, por assim dizer, permitem a alguns países a adotar novas tecnologias e entrar em mercados globais. Da mesma forma, no nível subnacional, os padrões existentes de riqueza, terra e distribuição de energia influenciam a capacidade dos diferentes grupos para compartilhar os benefícios das novas oportunidades.
Conflitos fundiários não só envolvem relações sociais atuais, mas emergem de lutas históricas pelo controle. Michon et al. (2007), relata que é necessário incorporar o manejo florestal comunitário em práticas florestais do Estado, não só para o reconhecimento das comunidades locais, mas também para avaliar os seus direitos sobre a terra e os produtos da terra. No entanto, existem barreiras significativas à superação dessas histórias. Enquanto a sugestão de Michon et al. (2007), pode ser uma estratégia aconselhável para melhorar o manejo florestal, por outro lado exigiria grandes mudanças no controle estatal dos recursos da terra e entre as relações do Estado com os grupos sociais marginalizados.
Shah (2005), discorre sobre o deslocamento histórico e adaptação de povos indígenas na Índia e ressalta a importância de se considerar o camponês e suas relações com a sociedade. O autor analisa a interrupção geográfica e social dos povos pela intrusão colonial, concebendo que a marginalização não só é um produto de exclusão por parte do Estado, mas também é perpetuada e reforçada por outros grupos sociais.
Para muitas famílias rurais, a posse da terra não é segura, desta forma, os esforços para integrar até mesmo proprietários de pequena escala em sistemas de produção ainda excluem muitas pessoas do campo. Essas pessoas marginalizadas geram relações complexas com o Estado e com os ecossistemas dos quais dependem. Lawlor et al. (2009), por exemplo, observa que alguns países utilizam florestas como uma maneira de estabelecer direitos de propriedade e demonstrar produtividade. Embora esta sistemática possa ser uma meio para garantir a posse da terra, geralmente, não promove a sustentabilidade econômica e ambiental a longo prazo, devido ao fato de estes regimes de direitos de propriedade fornecerem incentivos para o desenvolvimento da agricultura à custa de florestas anteriormente biologicamente ricas.
Além da perda biológica, deslocar e reassentar as comunidades em novas áreas também tende a aumentar a pressão sobre as florestas. Tropp (2003), por exemplo, considera que a realocação das populações indígenas na região Sul-Africana de Transkeian, contribuiu para mais conflitos por terra e aumentou a intensidade de uso dos recursos florestais pelas comunidades realocadas. Além disso, os padrões de reassentamento estabelecidos durante a época colonial influenciaram as relações das comunidades indígenas com o Estado na era pós-colonial, fornecendo a base para a intervenção estatal.
Junto com o aumento da segmentação das comunidades rurais resultantes de efeitos desiguais sobre as famílias produtoras, podem também haver impactos desiguais dentro das comunidades agrárias. Em primeiro lugar, pode haver níveis de camadas de propriedade de (e para) o acesso à terra e recursos florestais que não correspondem aos direitos de propriedade oficiais e ainda o fato dos impactos ambientais que a gestão corporativa da produção de matéria-prima de biocombustíveis pode causar. Por exemplo, Rocheleau e Edmunds (1997) descrevem a dinâmica dos direitos de propriedade sobre as árvores, particularmente na África, que envolvem direitos sobrepostos. Esses direitos podem ser negociáveis dentro da comunidade e são difíceis de gerir quando os regimes de propriedade e de produção externos são fixos ao invés flexiveis. A falta de governança também se mostrou prejudicial para a participação das famílias pobres de outras iniciativas de desenvolvimento sustentável. Boyd et al. (2007), por exemplo, examinam o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), demonstrando que os projetos tendem a excluir aqueles que não são nacionalmente reconhecidos e sem o direito oficial da propriedade de terra, ou seja, as pessoas que tendem a ser os mais pobres.
(NOVOS?) DESAFIOS DA AGRICULTURA FAMILIAR
O cenário rural da agricultura familiar com diversas atividades agrícolas e não agrícolas experimentou nas últimas décadas no Brasil algumas transformações significativas. Graziano da Silva (1999), refere-se ao “novo mundo rural” para exprimir as mudanças ali verificadas e que revelam uma multiplicidade de formas de produção e de vida, se analisado em uma concepção mais ampla de meio rural. Ainda, analisa a agricultura familiar moderna e suas mudanças, apontando as tendências no processo de diferenciação e o que tenderia a predominar no século XXI. Tratam-se de novos personagens e novas estruturas históricas presentes na organização da produção. Parte desse processo de diferenciação se deve à intervenção do Estado com políticas de modernização na agricultura e de pressões vindas de fora, da concorrência do mercado e do avanço de unidades produtivas do agronegócio e da monocultura. Assim, o agricultor familiar embora mais inserido no mercado e informado sobre processos, materiais e tecnologias para aplicar em sua produção, mantem ainda seus vínculos com a tradição, os costumes, e a racionalidade camponesa utilizando-se de saberes sobre o território e a vida rural repassados por gerações. Em outras palavras, a produção familiar tem sua base econômica e social no trabalho familiar e possui a propriedade de seus meios de trabalho, justamente sobre os quais repousa a base de sua reprodução social.
Efetivamente, essa combinação estrutural de posse dos meios de produção e realização do trabalho familiar constitui para Chayanov (1974), o sistema de produção camponesa, o camponês tradicional, que não funciona pela lógica do mercado, embora crie valor de troca de seus produtos, mas subordinado ao interesse central da reprodução familiar e social. Nessas unidades eles praticam a agricultura associada à criação de animais e tendo também agregado o trabalho extrativista em sistemas florestais, como ocorre ainda na Amazônia de forma expandida.
As criticas voltadas às Leis e Políticas Públicas para o campo seriam regidas pela falta de vontade política do Estado, além do viés autoritário lhes atribuída. Para Martins (1991), antes de ser a inércia do Estado, o que pauta a atuação deste é o reconhecimento da propriedade capitalista como promotora do desenvolvimento, o que automaticamente nega outras formas de reprodução não capitalistas da produção no campo.
A EXPANSÃO DOS BIOCOMBUSTÍVEIS E OS CONFLITOS TERRITORIAIS
Os biocombustíveis têm sido apresentados como uma forma de proporcionar o desenvolvimento econômico para os pequenos agricultores. No entanto, legados históricos de posse da terra e controle influenciam negativamente a chance de que as comunidades rurais possam tirar proveito dessas oportunidades. O deslocamento das comunidades para atividades industriais e extrativistas de conservação têm sido observadas no passado. Adams e Hutton (2007), descrevem o deslocamento de pessoas na Etiópia e Botswana para se estabelecer em áreas protegidas, e Meher (2009), examina o deslocamento de povos tribais na Índia para projetos de mineração. Não é um fato atípico, portanto, considerar o deslocamento potencial de agricultores de subsistência, comunidades indígenas e outros grupos marginalizados para o desenvolvimento de biocombustíveis.
Somado a este fato, o acesso à terra e ao capital pode influenciar a capacidade dos agricultores para investir em diferentes culturas. A produção de biocombustíveis pode fornecer oportunidades de altos retornos financeiro para alguns agricultores, como, por exemplo, McCarthy e Zen (2010), relatam o que aconteceu quando o preço do óleo de palma foi de US$ 570 a mais de 1.440 dólares americanos por tonelada em 2007-2008, e como quando o preço mundial do açúcar atingiu uma alta que não era vista de há 30 anos em agosto de 2009. No entanto, os potenciais retornos podem variar amplamente entre culturas de matéria-prima de biocombustível e sem acesso à terra e informação necessária, a população mais necessitada do campo se vê incapaz de aproveitar essas oportunidades. Em termos de variação entre matérias-primas, o Pinhão Manso, por exemplo, estima-se como mais viável em pequena escala e de mais fácil acesso para os pequenos produtores para a produção de biocombustíveis, mas o açúcar é três vezes mais rentável (Arndt et al. 2009). Consequentemente, os agricultores com maior acesso ao capital inicial podem investir em lavouras de cana que têm um maior retorno por unidade de terra, enquanto aqueles que não possuem tais recursos poderão ser excluídos dessas oportunidades.
Ainda, o papel do risco na produção de biocombustíveis é relevante para esta desigualdade dentro das comunidades agrárias. Apesar dos preços elevados para o óleo de palma e açúcar, McCarthy e Zen (2010), observam a volatilidade dos preços das commodities. Embora em vários momentos o retorno financeiro de algumas culturas pode ser alta, os agricultores podem ser obrigados a arcar com os custos das tentativas fracassadas, e aqueles que já vivem nas margens da probreza podem ser incapazes de assumir tais riscos.
O Brasil destaca-se, como aquele que engendrou e consolidou o uso de recursos energéticos alternativos aos combustíveis fósseis, como por exemplo, os biocombustíveis. A condição de player mundial do etanol, biocombustível produzido a partir da cana-de-açúcar, foi alcançada pelo país em decorrência dos significativos aportes concedidos pelo Estado ao setor sucroalcooleiro, sobretudo, durante a década de 1970, por meio do Programa Nacional do Álcool (PROALCOOL) cujo objetivo era diminuir a dependência do país em relação ao petróleo importado.
Num período que se caracteriza, dentre outras questões, por uma corrida global por alimentos e novas fontes de energias limpas para suprir a crescente demanda mundial, o Brasil desponta no cenário internacional como o país que possui uma situação sui generis, uma vez que com o seu vasto território, pode, supostamente, conciliar a produção de alimentos e de matérias-primas para a geração dos biocombustíveis (etanol e biodiesel). Observa-se, portanto, a ocorrência simultânea dos seguintes fenômenos: a intensificação de compra de terras brasileiras por estrangeiros (tanto para a produção de commodities agrícolas quanto para servir de reserva de valor) e o questionamento dos agentes políticos e econômicos supranacionais quanto à sustentabilidade dos biocombustíveis, por compreenderem que o cultivo de matérias-primas voltadas para o processo produtivo do etanol e do biodiesel, pode comprometer a oferta de gêneros agrícolas de primeira necessidade, o que provocaria o aumento dos preços e elevaria o número de famintos no mundo.
Abre-se aqui um espaço para a definição do fenômeno chamado landgrabbing, sendo seu quivalente em português a ''grilagem''. GRAIN (2011), informou pela primeira vez, o fato da aquisição de terras por estrangeiros no mundo: as crises alimentar e financeira atual, combinadas, desencadearam um novo ciclo mundial de apropriação de terras. Os governos com insegurança alimentar, que dependem de importações para alimentar sua população, estão tomando rapidamente terras agrícolas em todo o mundo, onde produzem seus próprios alimentos fora do país. Corporações mundiais que comercializam alimentos e investidores privados, com fome de lucros em meio à profunda crise financeira, vêem o investimento em terras agrícolas estrangeiras como uma importante nova fonte de renda. Como resultado, férteis terras agrícolas são privatizadas e, cada vez mais concentradas.
Os governos de países ricos em fundo e pobres em recursos, estão buscando países pobres em fundo e ricos em recursos, para auxiá-los em suas necessidades energéticas e alimentares no futuro. Na atualidade, o tema de relaciona com fortes dinâmicas entre as quais se destacam os acelerados processos de modernização tecnológica e seus impactos sobre a estrutura produtiva rural. Hoje, surgem preocupações urgentes vinculadas a diferentes desafios que tem a ver com as mudanças climáticas, a segurança alimentar e os problemas de ambito financeiro.
Por esses motivos, regular o território de modo a assegurar tanto a produção de biocombustíveis quanto de alimentos sem que os arranjos territoriais já consolidados não sejam desestruturados a ponto de provocar novos passivos sócioespaciais, indubitavelmente constitui um grande desafio para o Estado, pois a intensa procura de terras brasileiras por diferentes atores estrangeiros poderá entrar em choque com os conflitos por terra existentes no Brasil e que historicamente não foram resolvidos. Acresce ainda o fato do possível comprometimento da soberania nacional, uma vez que o próprio Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) desconhece a quantidade exata de terras que foram adquiridas por empresas e investidores internacionais (ZANATTA, 2009).
A expansão das plantações de palma para os biocombustíveis na Guatemala por exemplo, segundo Alonso-Fradejas (2015), representa um clássico projeto extrativista agrário, como aqueles conhecidos na literatura sobre o landgrabbing. Os repertórios de discórdia vão desde fatos cotidianos para ações mais estruturadas. Inevitavelmente, a longa história da política agrária dá origem a esses padrões de conflito, como resultado da intervenção dos diversos atores. A resistência articula um discurso em torno da defesa de território, promovendo a identidade indígena e um senso de comunidade, e também gera suporte para uso do solo local e práticas agrícolas. Esta linguagem facilita alianças com organizações de direitos humanos não-governamentais (ONGs), da Igreja Católica e outros, por sua vez, alimentando várias formas de política.
No entanto, o desenvolvimento de uma agricultura voltada para a produção de biocombustíveis, através do óleo de palma como exemplo, nem sempre resulta na política de confronto quando incorporado em configurações de pequenos agricultores. Castellanos-Navarrete e Jansen (2015), oferecem um contraste baseado no caso de Chiapas, no México, onde um programa de produção de óleo de palma apoiada pelo Estado envolveu os pequenos agricultores e os povos indígenas. Neste caso, o engajamento dos camponeses com a acumulação de capital minou os esforços dos ambientalistas para restringir a propagação do óleo de palma.
No Brasil, foi criado O Selo Combustível Social, uma ferramenta do PNPB (Programa Nacionalo de Produção e uso de Biodiesel), criada para promover o desenvolvimento da agricultura familiar. O selo é fornecido aos produtores de biodiesel que promovem a inclusão social e o desenvolvimento regional por meio da geração de emprego e renda, onde os beneficiários são os agricultores familiares enquadrados nos critérios do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF).
Neste caso, as organizações ambientalistas radicais que usavam narrativas próambientais em torno da mudança climática, biodiversidade e mudança no uso da terra foram incapazes de forjar coalizões em nível local para resistir à esta produção. Os atores de dentro do Estado na verdade, reconfiguraram a divulgação do sistema produtivo, baseado em argumentos ambientais, ligados ao projeto e aos interesses dos produtores locais e povos indígenas (este último no caso de Chiapas-México). Reorganizando as velhas formas de clientelismo político, estes programas criaram uma nova rede de apoio, envolvendo atores dentro e fora do estado.
Da mesma forma, Cavanagh e Benjaminsen (2015), exploram os conceitos de 'biopolítica' de áreas protegidas e as desapropriações que estes provocam. Centrando-se no caso de iniciativas de conservação no Monte Elgon em Uganda, eles identificam respostas que incluem táticas discursivas, ações não-violentas e militantes e ações legais. Neste caso, e, mais amplamente, eles argumentam que as populações rurais quando confrontados com o fenômeno de landgrabbing, respondem não só com a resistência ostensiva, mas através do cultivo ilícito de territórios destinados à conservação - uma espécie de "agricultura de guerrilha". Estas reações não constituem unicamente estratégias de sobrevivência das vítimas do landgrabbing, mas fazem parte de lutas em face da violência direta e indireta para estabelecer esferas autónoma de conservação. Nestes aspectos, eles burlam as políticas de suporte à biodiversidade à custa de meios de subsistência locais e tradicionais, desafiando a naturalização da desapropriação.
Rocheleau (2015), em um trabalho sobre Chiapas, analisa o uso do "poder em rede "- por parte dos investidores e por movimentos de resistência - em torno de uma série de investimentos "verdes", incluindo um grande projeto de turismo. Mais uma vez, em relação ao fenômeno do landgrabbing há uma série de questões obscuras espalhadas por um vasto território. A rede de atores que promovem tais investimentos, conecta o estado, as forças de segurança e investidores corporativos. Agentes do Estado fomentarm regularmente a violência rural, e são responsáveis pelo processo de "restaurar a ordem", sendo um pretexto para despejos com o intuito de garantir uma área segura para o investimento. Rocheleau sustenta que esta ''Disneylândia'' na floresta e aportes feitos em Cancún são um prelúdio para oleodutos, plantações, rodovias, e um comércio em geral de terras.
O complexo de produção mundial de biocombustíveis não está evoluindo sem contestação. Em todo o mundo, polêmicas surgem em lugares específicos onde há a possibilidade de tensões e conflitos. Baseado no trabalho de Tsing (2005), uma série de documentos identificam conflitos importantes e instáveis, que podem modificar o cenário mundial. Franco et al. (2010) descrevem, que há possibilidades de mobilização, protesto e resistência em várias escalas: a partir do projeto local ou um investimento global. Em seu trabalho os autores traçam conexões entre a União Europeia, Moçambique e Brasil, mostrando alianças entre governo e coorporações que tendem a agir como a percursora de novos quadros políticos e investimentos pró-biocombustível em todo o Sul global. A prestação de assistência técnica, a intermediação de acordos de fornecimento de energia, a facilitação de aquisições corporativas e a promoção de políticas orientadas para o mercado de terras apoiam um caminho particular de intervenção de desenvolvimento.
A política europeia, é condicionada por um emaranhado de condições, protocolos e metas, e a suposição de que tudo vai ficar bem, e o otimismo tecnológico, ou seja, a expectativa de que novas descobertas e invenções da próxima geração vão resolver todos os problemas. No entanto, as contradições entre a política a nível europeu e as práticas realizadas, abriram a possibilidade de questionar os investimentos em biocombustíveis e tornaram-se um foco para a mobilização dos movimentos (BORRAS E FRANCO, 2010).
Vermeulen e Cotula (2010), discutem que a demanda por biocombustíveis está focada em grandes investimentos em terra, especialmente no Sul global, o que muitos têm chamado de ''ocupação fundiária global". Os proponentes de tais investimentos argumentam que a terra é sub-utilizada ou ociosa. Esta narrativa justifica a apropriação de terras para novos investimentos, transformando terras em paisagens verdes e produtivas (Borras e Franco 2010). No entanto, como Ariza et al (2010), demonstram em Tamil Nadu, na Índia, estas áreas estão muito longe de serem ociosas. Estas são áreas que são utilizadas para uma variedade de propósitos, muitas vezes valiosos que geram meios de subsistência para os pobres, e especialmente para as mulheres. Dauvergne e Neville (2010), concluem que, as alianças de biocombustíveis emergentes são processos e estruturas que aumentam a pressão sobre a integridade ecológica das florestas tropicais e tiram ainda mais o controle dos recursos das mãos de agricultores de subsistência, povos indígenas e pessoas com direitos à terra.
Enquanto os defensores da expansão e formação destas redes de biocombustíveis defendem uma nova agricultura comercial em terra subutilizada, com base em matérias-primas limpas e verdes, oferecendo potencial para a segurança energética global e uma transição de um sistema de energia de alto carbono, há outros que argumentam que um complexo de biocombustíveis representa o pior do modelo corporativo-capitalista, minando os meios de subsistência e das economias locais e impedindo o surgimento de vias alternativas de desenvolvimento.
Os biocombustíveis podem desempenhar um papel para a provisão de energia local, caso controlada por comunidades locais e enraizado nas economias locais. Cita-se através de Fernandes (2010), para desenvolver esta perspectiva, o caso do estado de São Paulo no Brasil. O documento analisa as disputas territoriais entre plantações de cana-de-açúcar em expansão e assentamentos de reforma agrária, bem como projetos de produção de biodiesel desenvolvidos pelo movimento dos trabalhadores e agricultores familiares por associações aos ''sem-terra''. Enquanto a joint-venture e outras abordagens de parcerias com o agronegócio falharam, as iniciativas mais locais, baseadas na experiência de produção de biocombustíveis liderada pelos agricultores ofereceram uma possibilidade de criação de espaços políticos maiores, que podem se tornar potentes modelos de desenvolvimento territorial.
Existem várias nuances ao que concerne o acesso, o trabalho e os meios de subsistência no desdobramento de uma iniciativa particular. Por exemplo, com base em uma análise detalhada de projetos de óleo de palma na Indonésia ao longo do tempo, McCarthy (2010), argumenta que, ao contrário das narrativas simplistas de inclusão ou exclusão, os resultados dependem muito das condições em que a incorporação na economia de óleo de palma ocorre. Foram identificados fatores como a presença e o funcionamento de regimes de desenvolvimento dos pequenos agricultores, o grau de controle democrático sobre as instituições das viilas rurais, a localização geográfica das aldeias, os investimentos, e o funcionamento de sistemas de posse de terra e mercados informais de terra.
Para a África do sul, Richardson (2010), defende que os investimentos em biocombustíveis para o etanol vêm embarcados em uma longa história de desenvolvimento desigual. Ele argumenta que as referências a um ''Oriente Médio'' de biocombustíveis emergente na África deixam claramente que a retórica corre à frente da realidade. Centrando-se no caso da Zâmbia, o autor demonstra como o poder econômico exercido pelo investidor lhes permitiu limitar a sua contribuição fiscal, evitar mais investimentos e forçar preços mais baixos ao consumidor, impedindo a concorrência. Além disso, a dependência da empresa de qualificação de funcionários e prestadores de serviços estrangeiros contrasta com sua precarização dos trabalhadores não qualificados de pequenos produtores integrados. Esta ação tem sido empregada tanto para bajular atores políticos como para apoiar a força de trabalho agrário como forma de ''marketing''. Na tentativa de atrair capital estrangeiro no setor agrícola, os governos acabam oferecendo muitas garantias sem a certeza de benefícios decorrentes de desenvolvimento rural.
Para o Brasil, Novo, Jansen, Slingerland e Giller (2010), expõem os complexos trade-offs que existem no setor de biocombustíveis. Eles mostram, por exemplo, como no estado de São Paulo, a expansão da cana de açúcar para a produção de biocombustíveis, deslocou a criação extensiva de gado para o norte no que Wilkinson e Herrera (2010), chamaram de uma ''repatrialiazação'' da produção no Brasil. Uma análise cuidadosa da dinâmica histórica técnico-econômica por Novo et al. (2010), mostra como a relação entre biocombustíveis e carne / laticínios não é simplesmente o resultado da recente demanda do mercado global, mas tem sido fortemente mediada pelo apoio do governo a longo prazo para a cadeia de biocombustíveis e uma correspondente falta de apoio à pecuária leiteira em pequena escala. O declínio na produção de leite no Estado de São Paulo foi afetada dramaticamente pela mudança na ''fronteira leiteira'' graças a inovações tecnológicas que permitiram a produção e comercialização de leite em lugares cada vez mais longe de concentrações de demanda urbanas.
Este é o mesmo caso, dentro do setor de biocombustíveis. Como Wilkinson e Herrera (2010), mostram para o Brasil, os setores de etanol e biodiesel começaram como atores altamente distintos, com o etanol sendo impulsionado pela expansão do agronegócio e o biodiesel suportado como uma estratégia de desenvolvimento regional com um forte impulso a inclusão social e a incorporação da agricultura familiar. No entanto, ao longo do tempo, tem havido uma evolução convergente, com o programa de biodiesel expondo a fragilidade estrutural do setor agrícola e das famílias rurais, tornando a soja a cultura dominante, patrocinada por interesses do agronegócio em larga escala.
Demasiadas vezes, os simplistas reazlizam enquadramentos genéricos, taxando de bons ou maus os biocombustíveis, assim construindo narrativas de desenvolvimento que atuam para obscurecer os problemas reais. Somente quando analisado de forma sistêmica é que as configurações específicas são expostas. Estes recortes em vários domínios políticos, sociais, económicos e ambientais, são de difícil análise no que tange à sua interação.
O impacto e as consequências da nova revolução do biocombustível são, portanto, baseadas em relações complexas entre o estado, capital e sociedade, muitas vezes altamente específicas para uma localidade específica. Como a política obscura de grilagem de terras se desenrola, novas interações estão em evidência entre atores estatais fornecendo e/ou punindo a aquisição de terras, em uma lógica altamente contraditória, empresas privadas (investindo em novas operações de agronegócios, muitas vezes envolvendo matérias-primas de biocombustíveis) e finanças incluindo fundos e investidores especulativos. Observa-se esta ação em várias partes do mundo incluindo a África (Cotula et al. 2009), Rússia, Europa e Ásia (Visser e Spoor, 2015), Ásia (Li 2010), e na América Latina (Zoomers 2010).
CONCLUSÃO
Observa-se, portanto, a ocorrência simultânea dos seguintes fenômenos: a intensificação de compra de terras por estrangeiros para a produção de commodities agrícolas e matérias-primas para os biocombustíveis, o questionamento dos agentes políticos e econômicos supranacionais quanto à sustentabilidade dos biocombustíveis, e os possíveis conflitos advindos desta nova dinâmica. Infere-se a importância do ordenamento territorial como sendo uma ação política imprescindível e estratégica por meio do qual o Estado poderá regular a apropriação do território, evitando que a produção de matérias-primas voltadas para a geração dos recursos energéticos alternativos não suplante aquela direcionada para o cultivo de alimentos e vice-versa, por exemplo, além, é claro, impedir novos desarranjos espaciais tais como a disputa por parcelas territoriais entre atores nacionais e estrangeiros.
Há muita indefinição do setor público e privado, a nível local, nacional e global, quanto às políticas reguladores de investimentos em terras, sendo observada uma onda de alianças entre empresas multinacionais, empresas locais e governos, argumentada como benéfica com vistas à produção. Importante frisar alguns aspectos como a natureza das instituições existentes e a relação entre Estado-sociedade, onde as relações históricas de posse da terra serão particularmente importante, pois onde há fortes incentivos para o Estado de agir de forma predatória, aliando-se com o capital multinacional para ganhos privados, e não como um estado incorporador de real desenvolvimento, há grandes riscos de desfechos negativos.
Existe atualmente um conjunto tanto local, quanto global de práticas de governança confusas e não seguras no que tange a produção de biocombustíveis. Estas práticas tornaram-se um conjunto cada vez mais labiríntico de procedimentos relacionados com créditos de carbono ou supostos benefícios de ganhos pra os pequenos produtores por exemplo. Como estas ações são vistas como benéficas para a sociedade, algumas ações não benéficas são ''escondidas'' e realizadas com o intuito de máximo ganho. Assim, as commodities são vendidas juntamente com as idéias sócio-ambientais, porém os resultados nem sempre são em benefício dos povos ou ambientes locais. O plantio direto de soja, por exemplo, pode tornar-se matéria-prima de biocombustíveis, alimento e ainda ganhar créditos no mercado de carbono, empurrando seu valor cada vez mais para cima.
As oportunidades das famílias rurais, ou mesmo movimentos sociais de penetrar na influência de processos políticos permanecem limitados. Uma elite, frequentemente patrimonial, domina a política, onde as conexões, propinas e negociatas minam qualquer forma de transparência ou prestação de contas. Isso pode acontecer igualmente em processos de investimento internacional no setor dos biocombustíveis, bem como em projetos de pequena escala. Apesar da iniciativa soar como uma ação quase filantrópica, uma intervenção com a premissa de compromisso com o desenvolvimento local e mitigação da mudança climática, pode resultar em uma variedade de consequências imprevisíveis.
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