Cláudia Maria Serino Lacerda Muniz
Viviane da Silva Welter
Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil
claudialacerda84@gmail.comResumo: Este estudo nasce dos encontros e diálogos evidenciados na disciplina de "Imigrações, Memórias e Fronteiras", do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Sociedade, Cultura e Fronteiras, e se propõe a desenvolver reflexões, no formato interdisciplinar, sobre o conceito de "fronteira", que oscila entre o âmbito territorial e o simbólico, demandando a sua discussão a partir das representações³ sociais e das metáforas4. Seus objetivos complementares residem em contextualizar a região situada na fronteira entre o Brasil, o Paraguai e a Argentina, apresentando suas principais características, para logo em seguida discorrer sobre o termo fronteiras, aqui redigido no plural para dar conta das territorialidades não contempladas no conceito tradicional da palavra. O foco da análise, no entanto, são as dicotomias destas fronteiras que, ao mesmo tempo que unem, dividem. Trata-se de pesquisa bibliográfica, desenvolvida nas sendas da abordagem qualitativa de pesquisa.
Palavras-chave: Fronteiras, representações, metáforas, dicotomia, interdisciplinaridade.
Abstract: This study was born observing and participating in dialogues and meeting in the discipline of ''Immigration, Memory and Borders'', the Master's and Doctoral Program Interdisciplinary in Society, Culture and Borders and aims to develop reflections as an interdisciplinary way about the concept ''border'', that oscillates between symbolic and territorial scope, demanding a discussion through social representations³ and metaphors4. The additional objectives are contextualize the region located in the border of Brazil, Paraguay and Argentina, presenting their mainly characteristics and also discourse about borders, in this study written in plural to account the territorialities that sometimes are not contemplated when the term ''border'' is used in the traditional concept. This is a bibliographic research, developed in the way of qualitative research.
Keywords: Borders, representations, metaphors, dichotomy, interdisciplinarity.
Resumen: Este estudio nace de los encuentros y diálogos evidenciados en la disciplina de "Inmigración, recuerdos y Fronteras", del Programa Interdisciplinario de Maestría y Doctorado en Sociedad, Cultura y Fronteras, y tiene la intención de desarrollar reflexiones, en formato interdisciplinario, sobre el concepto de "frontera", que va desde el ámbito territorial al simbólico, exigiendo su discusión junto a los debates de las representaciones³ sociales y de las metáforas4. Sus objetivos complementarios residen en contextualizar la región de confluencia entre Brasil, Paraguay e Argentina, presentando sus principales características, para luego discutir sobre el plazo "fronteras", aquí escrito en plural para dar cuenta de las territorialidades no inclusas en el concepto tradicional de la palabra. El foco del análisis, sin embargo, son las dicotomías de estas fronteras, que al mismo tiempo que unen, dividen. Se trata de un estudio bibliográfico, desarrollado en los caminos de la investigación cualitativa.
Palabras clave: Fronteras, representaciones, metáforas, dicotomía, interdisciplinariedad.
Para citar este artículo puede uitlizar el siguiente formato:
Cláudia Maria Serino Lacerda Muniz y Viviane da Silva Welter (2015): “Fronteiras para além do território: um olhar a partir da região situada entre o Brasil, o Paraguai e a Argentina”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, n. 30 (octubre-diciembre 2015). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2015/04/fronteira-plural.html
Introdução
Quando se busca uma definição para o termo "fronteira", a primeira ideia que emerge é a de separação. Logo, são adotados conceitos, como: limite, demarcação, divisa, marco, dentre outros. Mas a realidade cotidiana tem apontado que por trás deste discurso construído há uma dimensão muito mais ampla do termo, a qual transcende o territorial. Para além da questão geográfica, a fronteira é marcada pela sua realidade ambígua; de um lado, pela riqueza cultural que apresenta e, de outro, por constituir um espaço de tensão e conflito.
Desta forma, este estudo pretende contribuir para a reflexão sobre o(s) conceito(s) de fronteira, a partir das várias leituras já realizadas sobre o tema, por pesquisadores interdisciplinares, propondo uma abordagem que possibilite compreender a fronteira não apenas como uma demarcação geográfica, mas como um espaço que oscila entre o âmbito territorial e o simbólico. Assim, não raras vezes o termo será utilizado no plural, para dar conta das questões que não se enquadram no seu corpo conceitual fixo.
A região sobre a qual se concentra este estudo é formada pelas cidades de Foz do Iguaçu, Ciudad del Este (PY) e Puerto Iguazú (AR), na tríplice fronteira entre o Brasil, o Paraguai e a Argentina. Tal área, pelas suas características peculiares - colorido das etnias, variedade de línguas, vestuário e gastronomia - constitui uma provocação metodológica para os estudos interdisciplinares, já que desperta o interesse de pesquisadores de diversas áreas de conhecimento.
É importante assinalar que se trata de um estudo bibliográfico, desenvolvido nas sendas da abordagem qualitativa de pesquisa. Logo, é preciso deixar claro o seu percurso metodológico: o estudo restringiu-se ao universo de pesquisas bibliográficas fronteiriças, tendo sido realizadas análises transversais de conteúdo, a partir dos textos explorados na disciplina de "Imigrações, Memórias e Fronteiras", do Programa de Mestrado mencionado, e demais produções de investigadores desta região.
Assim, os objetivos complementares deste estudo residem em contextualizar a tríplice fronteira, apresentando as principais características das cidades mencionadas, para logo em seguida discorrer sobre a(s) fronteira(s) enquanto espaço de trânsito, passagem, limite, conflitos e circulação de bens, pessoas, narrativas, memórias, ideias, línguas etc. Tal análise, no entanto, concentra-se nas dicotomias deste espaço tripartite que, ao mesmo tempo que une, divide, como resultado das representações sociais, materializadas nas metáforas que são produzidas na(s) fronteira(s).
1 A Tríplice Fronteira Brasil-Paraguai-Argentina
As três cidades que compõem a fronteira internacional entre o Brasil, o Paraguai e a Argentina são cortadas, em seu espaço de confluência, por fronteiras naturais, transpostas pela Ponte da Amizade, que liga Foz do Iguaçu a Ciudad del Este (PY), e Ponte Internacional Tancredo Neves (ou da Fraternidade), que une Foz do Iguaçu à cidade de Puerto Iguazú (AR). Essas pontes, ao mesmo tempo que facilitam o acesso, dos residentes na região, funcionam como instrumento de bloqueio, de acordo com os interesses nacionais e alterações nas políticas de relações internacionais.
A tríplice fronteira Brasil-Paraguai-Argentina é, talvez, a mais popular entre as nove fronteiras trinacionais que o Brasil possui. Destaca-se por suas maravilhas naturais, conhecidas universalmente: as Cataratas do Iguaçu, situadas no Parque Nacional do Iguaçu, área de confluência entre o Brasil e a Argentina; e a Usina Hidrelétrica de Itaipu, de caráter binacional, construída na fronteira entre o Brasil e o Paraguai, cujo potencial de geração de energia limpa e renovável é o maior do mundo (ITAIPU, 2015). Além disso, a região é conhecida pelo "colorido das etnias", perceptíveis, principalmente, nas atividades comerciais formais e informais. (SANTOS, 2015, p.1).
O autor observa que em Foz do Iguaçu, sobretudo na região comercial da Vila Portes, há, além dos comerciantes brasileiros, muitos árabes trabalhando, isso sem mensurar os estrangeiros clandestinos, de várias etnias, cujo número não é conhecido. No mercado formal da cidade de Puerto Iguazú predominam comerciantes argentinos e brasileiros. Já em Ciudad del Este, as etnias se multiplicam: "...existem árabes, indianos, coreanos, chineses, brasileiros, dentro outras, sendo que o comércio não legalizado (camelôs), em sua maioria, é praticado por paraguaios..." (SANTOS, 2015, p.1). Vale ressaltar que a clandestinidade também uma característica destas cidades.
A atratividade deste espaço garante a permanência de uma população flutuante não raras vezes maior que a população das três cidades fronteiriças, tornando complexas as relações sociais daqueles que "não partem no dia seguinte" (KLEINKE et al.,1996, p. 24). A tríplice fronteira possui, aproximadamente, um milhão de habitantes, sendo que o número de visitantes e turistas ultrapassa, anualmente, a casa de um milhão e meio (PMFI, 2014).
Logo, não parece difícil perceber que esta região tripartite apresenta uma configuração e realidade bastante complexas, constituindo um território que convive com muitas outras formas de fazer fronteiras. Assim, as metáforas se apresentam como um instrumento analítico bastante revelador para a compreensão de suas dicotomias.
2 A fronteira no plural
A palavra "fronteira" não pode ser compreendida na singularidade, pois o próprio termo já encerra uma ambiguidade. A palavra tem origem no latim front, que significa fronte ou frente, mas também assume conotações de enfrentamento e confronto. Começa-se, portanto, adotando a concepção utilizada por José Carlos dos Santos, que redige o termo no plural, compreendendo as fronteiras como sendo "lugares indefinidos" (SANTOS, 2015, p. 1).
Muitas são as leituras que já foram feitas sobre estas fronteiras, havendo, ainda, inúmeras possibilidades de interpretação. "Há discursos sob a forma escrita, de imagens e de falas que contribuem para o estabelecimento de olhares, conhecimentos e impressões" sobre estas territorialidades, que podem ser abordadas enquanto "vivências, paisagens e narrativas" (GREGORY, 2015, p. 1).
Para Antônio Myskiw (MOTTA, 2005), fronteira costuma expressar limite entre duas ou mais situações. Pode indicar o início ou o fim de um determinado território, significando, neste caso, domínio e poder. Logo, constitui uma maneira de estabelecer soberania. Um exemplo claro disso são as características das pontes Brasil-Paraguai e Brasil-Argentina: até o meio destas observam-se as cores da bandeira do Brasil e a partir de então, as cores das bandeiras daqueles países. Nesta situação, "literalmente, é possível ter a fronteira sob os pés" (DITTRICH, 2014, p. 194).
Há, ainda, outras tipologias de fronteira. É possível defini-la como um "cenário de intolerância, ambição e morte" e, ao mesmo tempo, no entender do sociólogo José de Souza Martins, "como lugar da elaboração de uma residual concepção de esperança, atravessada pelo milenarismo da espera no advento do tempo novo, um tempo de redenção, justiça, alegria e fartura" (MARTINS, 1997, p. 11-12). Corroborando, Cardin (2013) observa que as fronteiras são dinâmicas e fluídas, sendo constituídas por conflitos e diferenças. Logo, demanda constantes adaptações e formatos.
Ao problematizar o termo, Certeau (1994) descreve a fronteira como sendo um terceiro território, situado "entre dois" extremos (CERTEAU, 1994, 213-214). Já para Pesavento, "a fronteira é um limite sem limites, que aponta para um além" (PESAVENTO, 2002, p. 36).
Considerando essa pluralidade de sentidos, depreende-se que o termo "fronteira" pode ser explorado tanto pelo seu valor conceitual quanto pelo seu caráter metafórico - que resulta das representações que os atores sociais constroem sobre as fronteiras, a partir de suas vivências e interações sociais. Assim, a palavra não deve ser compreendida, única e exclusivamente, como uma demarcação ou limite, mas, também, como algo que revela ou oculta, sendo, ao mesmo tempo, metáfora e conceito. As significações da palavra dependem, portanto, do contexto de sua enunciação e da concepção de mundo de quem as utiliza.
Logo, é importante compreender que o sujeito do discurso, ao se pronunciar, imprimi em suas palavras - ainda que procure ser objetivo e imparcial - o lugar de onde fala, suas vivências, suas memórias e sua forma de compreender a realidade. Ou seja, elabora seu discurso a partir das representações sociais, de acordo com sua visão de mundo. Assim, conforme aponta Dittrich (2014), cada indivíduo pode revelar ou esconder determinados aspectos, no processo de enunciação, o que é característico da metáfora. Quem, por exemplo, visualiza a fronteira como um perigo, tende a valorizar, em seu discurso, aspectos, como: assaltos, trapaças, roubos.
Pereira (2014) contribui com este estudo ao apresentar uma metáfora da região trifronteiriça, criada pela imprensa norte-americana, após o atentado de 11 de setembro de 2001: a fronteira como um lugar de terrorismo. Tal representação se deve ao cenário que compõe o local, de extrema diversidade sociocultural, que inclui forte presença árabe. Foi neste período que a região, anteriormente conhecida como trinacional, foi rebatizada pelos EUA como Tríplice Fronteira.
Dittrich (2014) também reconhece algumas metáforas neste espaço, das quais enumeram-se algumas:
a) a fronteira como travessia para o Paraguai - geralmenteassociada às descrições de roubo de carros brasileiros levados, ou pela Ponte da Amizade ou pelo Lago de Itaipu, ao Paraguai, para serem negociados a preços muito menores que o seu valor de mercado;
b) a fronteira como terra sem lei - este espaço remete a paradoxos. Ao mesmo tempo que recepciona o estrangeiro, submete-o à fiscalização, por meio da Aduana. Mas as leis estabelecidas quase sempre são transgredidas, já que o intenso fluxo de pessoas e mercadorias torna este controle, logisticamente, impossível. Basta avaliar este cenário em períodos de greve dos funcionários que atuam nas instituições fronteiriças. Geralmente adota-se a estratégia de fazer tudo dentro da lei, fiscalizando, rigorosamente, todos os veículos, pessoas e mercadorias trasladadas, em ambos os sentidos. O cumprimento da lei dificulta a vida daqueles que circulam neste ambiente, irritando os turistas, os consumidores e os negociantes. Nessas circunstâncias, "o melhor funcionário é aquele que não trabalha, pois assim não atrapalha" (DITTRICH, 2014, 195);
c) a fronteira como um ambiente sensível às políticas econômicas - o comércio das fronteiras submete-se aos decretos e políticas econômicas adotados pelos países limítrofes, fazendo com que os moradores da região ora abasteçam seus mercados, comprando no exterior, ora deixem de fazê-los, dependendo da variação cambial;
d) a fronteira como o último recurso - para aqueles que não tiveram grandes oportunidades na vida, a fronteira representa uma oportunidade de realizar pequenos trabalhos informais, como o transporte de mercadorias contrabandeadas, sobretudo do Paraguai;
e) a fronteira como lugar do dinheiro fácil - esta região também é representada por muitos como o lugar da malandragem, onde sobrevivem aqueles que são mais espertos, que conseguem "driblar" a fiscalização e tirar vantagens do consumidor no processo de conversão cambial;
f) a fronteira como o paraíso do comércio - expressão associada às facilidades que a região proporciona, favorecendo o trabalho e o comércio informal de uma variedade ampla de produtos que, em proporção semelhante, só seriam encontrados em Miami;
g) a fronteira como cenário de contrabando - representação construída, principalmente, pela mídia publicitária e jornalística, cuja ênfase recai sobre a apreensão de armas, drogas e cigarros. Os discursos, neste sentido, podem assumir veiculação local, nacional ou ainda serem omitidos, dependendo do interesse editorial e da ênfase pretendida nas matérias;
h) a fronteira como o mundo do crime - também metaforizada pela mídia, é associada a ideia de que neste espaço entram e saem os mais diferentes produtos ilícitos, fomentados pela criminalidade no país. Assim, diariamente são apresentados pela mídia, tanto a impressa quanto a audiovisual, registros de confronto entre policiais e traficantes, que usam a fronteira (sobretudo a que estabelece limites entre o Brasil e o Paraguai) como rota ou esconderijo, constituindo um cenário de medo e violência;
i) a fronteira como lugar de prostituição - as regiões aduaneiras são ambientes propícios para esta prática, devido às burocracias e às deficiências logísticas no comércio internacional, que não raras vezes prolongam a estadia de caminhoneiros na fronteira, criando um cenário favorável à prática da prostituição;
j) a fronteira enquanto escola para o crime - o contato de crianças com o mundo das fronteiras - onde reinam a ilegalidade e desonestidade - para desenvolver pequenas tarefas, como resultado da exploração do trabalho infantil, torna-as frequentadoras de uma escola informal: a do crime.
E aqui é possível incluir, ainda, duas outras metáforas, identificadas enquanto residentes e pesquisadoras da região:
1) a fronteira como corredor da instabilidade - a região trifronteiriça também se caracteriza pela sua instabilidade, conforme situação observada no ano de 2015. Com a disparada do dólar, que ultrapassou a barreira histórica dos R$ 4,00 (quatro reais), o comércio na região, sobretudo no Paraguai, onde as transações ocorrem através moeda americana, tornou-se inviável, dificultando a vida dos lojistas e dos comerciantes e trabalhadores informais (principalmente de brasileiros e paraguaios);
2) a fronteira como possibilidade de integração do conhecimento³ - por meio de acordos de cooperação e convênios firmados entre as Universidades dos países limítrofes, busca-se o compartilhamento de conhecimentos tecnológicos, na região.
Diante dessa pluralidade de interpretações, o termo "fronteira" esvazia-se de um sentido próprio, passando a depender do contexto para construir significações. Logo, percebe-se que a região da Tríplice Fronteira apresenta uma configuração e realidade bastante complexas, ao constituir um território que convive com muitas outra formas de fazer fronteira.
A dinamicidade da palavra é resultado das representações produzidas pelos atores sociais, a partir de suas vivências, que contribuem ora para integrar ora para separar os países limítrofes.
3 Fronteira(s) como instrumento de separação
O conceito mais óbvio para fronteira, que geralmente vem à tona quando se discute o termo, é o de separação territorial. Nesse sentido, pode-se falar em fronteiras naturais e construídas. As primeiras são acidentes geográficos - rios, mares, montanhas etc. As segundas, construções humanas, utilizadas para delimitar espaços em lugares onde não há demarcação natural. São exemplos delas as barreiras de controle aduaneiro.
Mas tal como abordado, a palavra possui sentidos muito variados, podendo assumir, também, conotações simbólicas ou ideológicas. Estas últimas, do ponto de vista desta análise, apresentam um potencial de separação muito maior, já que possibilitam a construção de inúmeras outras formas de barreiras: muros étnicos, muros políticos, muros hierárquicos, muros sociais.
As fronteiras étnicas são levantadas no sentido de tentar manter a identidade de certos grupos raciais, que se identificam, entre si, com base em semelhanças culturais ou biológicas - presumidas ou reais -, como a religião e os traços físicos. O bloqueio da entrada de imigrantes, em determinadas unidades territoriais, constitui um exemplo deste tipo de barreira. O Brasil, durante o processo de construção do território nacional, levantou muitos muros diante dos imigrantes, ao estabelecer critérios, como a cor, para a aceitação destes. Com isso, pretendia-se povoar a nação com povos semelhantes ao colonizadores primeiros, cuja cor era branca.
As fronteiras políticas constituem as normas, os decretos e os interesses que balizam as ações praticadas por cada país ou bloco econômico. A suspensão do Paraguai do Mercado Comum do Sul (Mercosul), em julho de 2013, ilustra bem este tipo de barreira. Conforme apontam Rambo, Pereira e Söthe (2014), o país foi afastado do bloco após o entendimento, pela cúpula de presidentes do Mercosul, de que o impeachment do presidente Fernando Lugo, que ocorreu em 22 de junho de 2012, não havia se dado de forma democrática, já que aconteceu tão repentinamente (dois dias, entre a acusação e a sentença), impossibilitando uma defesa consistente por parte do presidente.
Ocorre que esta suspensão só se deu um ano após a destituição do referido presidente, sendo apresentada, de imediato, após a saída deste do Mercosul, o ingresso da Venezuela que, até então, tinha voto negativo do Paraguai. Após alguns meses, em fevereiro de 2014, o país foi, amistosamente, reinserido ao bloco, na pessoa do então presidente Horacio Cartes, que, no ano seguinte, conforme Matoso (2015), assumiu a presidência do Mercosul. Logo, depreende-se que houve um jogo explícito de interesses entre os países membros, ficando em segundo plano o caráter do Mercosul, de cooperação recíproca entre as partes.
O conceito (simbólico) de fronteiras também permite pensar nos processos de hierarquização do mundo, a partir da soberania econômica dos EUA. Após o atentado de 11 de setembro de 2001, a Tríplice Fronteira, assim batizada pelos norte-americanos, passou a ser alvo de expiação e cautela daquela nação. O país acusava a região, sobretudo o Paraguai, onde haviam muitos comerciantes árabes, de facilitar aos terroristas o acesso a armas e a tecnologias avançadas, além de oferecer um financiamento, em potencial, para as ações destes radicais.
Com tais observações, visava-se à cooperação do Brasil, do Paraguai e da Argentina com a estratégia nacional dos EUA, para o combate ao terrorismo, antes que este alcançasse as fronteiras americanas. De acordo com Abbott (2005), tal medida preventiva, de tolerância zero, apelava para que os líderes dos países limítrofes adotassem os interesses de segurança dos EUA, como se fossem seus. A maioria dos governos latino-americanos, no entanto, preocupados com temas locais sensíveis, como desemprego e pobreza, relutaram em apoiar o governo norte-americano, com exceção da Argentina, que apoiou tal proposta, afirmando já ter sofrido ataques terroristas de cidadãos libaneses residentes em Ciudad del Este.
Finalmente, sem esgotar o termo, é possível falar destas fronteiras a partir da globalização capitalista, que levantou muros sociais, como: pobreza, concentração de riqueza, desigualdade social, etc., em função de um projeto econômico e social que não deu certo. Assim, são estabelecidas "cercas" entre os detentores dos meios de produção e os assalariados (separados pela hierarquização empresarial), entre os mais abastados e os "favelados" (isolados pelos muros de condomínios luxuosos), entre outros.
Vale ressaltar que tais fronteiras apresentam certa ambiguidade, já que ao mesmo tempo que separam ou excluem determinados seguimentos, acabam incluindo outros grupos menores, os quais se aproximam pelas convicções ideológicas que possuem, em comum. Além disso, estas fronteiras, em determinados momentos, podem assumir conotação exclusiva de integração, como no caso das políticas, que oscilam de acordo com os interesses de cada país.
4 Fronteira(s) como instrumento de aproximação
No entendimento de Santos (2015), fronteiras que unem são aquelas que transgridem, que interligam e que reconfiguram um espaço, a partir da justaposição de diversas influências. Nelas não há espaço, de acordo com o autor, para o estabelecimento de um canôn (modelo) único. Constituem zonas de encontro formadas não, necessariamente, mas também, pelos avanços geográficos, podendo emergir ou desaparecer sempre que houver um ambiente propício à articulação da diferença.
Embora cheios de vida, os cenários fronteiriços não são completamente seguros, caracterizando-se pela sua transitoriedade e mobilidade. As fronteiras (que unem) são, portanto, espaços habitáveis "em que o eu e o outro encontram uma possibilidade de partilha e, assim, a possibilidade de dar origem a novas configurações de identidade" (RIBEIRO, 2001:471). Elas se materializam nas diversas ações realizadas no sentido de integrar: tentativas de acordos entre países limítrofes, formação de blocos econômicos, como o Mercosul, projeções de megas construções em áreas fronteiriças, as quais Glissant (2006) denominou de "gigantes".
Na fronteira há muitos "gigantes". Conforme argumenta o referido autor, estes personagens, por sua grandiosidade, são capazes de enxergar os dois lados da divisa, permitindo-lhes conceber tanto a necessária aliança quanto as particularidades de cada área limítrofe. Em razão disso, acrescenta que não é por acaso que, na maioria das mitologias populares, o gigante assume sempre a figura de bom: ele tudo entende da fronteira, porque visualiza ambas as direções.
"Gigantes" podem ser físicos ou simbólicos. Os primeiros são perceptíveis, possuindo a forma de pontes, marcos divisórios, edificações, rios, etc. Os segundos, simbólicos e ideológicos, como, por exemplo, a globalização.
A Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA), situada na tríplice fronteira, é um exemplo deste "gigante", tanto em sentido literal, já que se trata da segunda maior obra projetada na região (a primeira é a Itaipu Binacional), quanto em sentido ideológico, pela sua proposta de integração regional, conforme sua missão institucional: "Contribuir para a integração solidária da América Latina e Caribe, mediante a construção e a socialização da diversidade de conhecimentos necessários para a consolidação de sociedades mais justas no contexto latino-americano e caribenho". (PDI, 2013-2017:8).
Além deste, destacam-se outros "gigantes", localizados na região trinacional: a Itaipu Binacional - usina hidrelétrica construída na fronteira entre o Brasil e o Paraguai -, cuja administração é feita por ambos os países e; o Parque Nacional do Iguaçu, "gigante" natural, que contempla as Cataratas do Iguaçu, situado na área de confluência entre o Brasil e a Argentina. Tanto aquele quanto este recebem, anualmente, um contingente enorme de visitantes4, de vários lugares do globo, constituindo, portanto, um local de integração de diversos povos e variadas culturas.
Dadas as dimensões das fronteiras, muitos conceitos ainda poderiam ser elencados, de maneira que a própria palavra esvazia-se de sentido, passando a depender do contexto para construir significações.
5 Considerações Finais
Diante da multiplicidade de aspectos abordados sobre as fronteiras, não parece difícil perceber que elas se tratam de realidades bastante complexas. Logo, considera-se impossível abordá-las a partir de um único ângulo, com base no olhar de um pesquisador disciplinar, focado, única e exclusivamente, em sua área de conhecimento, pois, como evidenciado, as fronteiras dependem de um contexto e das concepções dos indivíduos para construírem significações.
O sujeito social, ao produzir o seu discurso, imprimi em suas palavras, mesmo prezando pela imparcialidade, aspectos, como: o lugar de onde fala, suas vivências, suas memórias e sua forma de compreender a realidade, os quais resultam de suas representações sociais. Assim, no processo de enunciação, cada indivíduo pode revelar ou esconder determinados aspectos do espaço observado, dependendo de sua visão de mundo.
Se, para ele, por exemplo, a fronteira constitui um espaço de integração, a tendência é dele valorizar, em seu discurso, aspectos como o colorido das etnias. Se, por outro lado, a fronteira é visualizada como um perigo, aspectos como assaltos, trapaças, roubos, crimes etc., serão evidenciados.
Por esta razão, na fronteira (ou sobre as fronteiras) há discursos variados, produzidos sob a forma escrita ou através de imagens e falas, que contribuem para o estabelecimento de diferentes impressões e conhecimentos sobre estas territorialidades. Assim, para compreendê-las, é preciso deixar que de dentro das fronteiras emerjam os questionamentos a serem investigados, dada a infinidade de sentidos que elas possibilitam. Implica, portanto, deixar o objeto "fronteira" falar.
Tal atitude não promete trazer todas as respostas pretendidas. No entanto, contribuiu para o desenvolvimento de estudos mais ricos e amplos, na medida em que possibilita a exploração do termo "fronteira" por pesquisadores de diversas áreas, como a Sociologia, a Antropologia, a História, a Linguística etc. Esta última, inclusive, trouxe grandes contribuições para este estudo, ao possibilitar a exploração da palavra, em âmbito simbólico, a partir das metáforas.
O trabalho interdisciplinar (diálogo entre uma ou mais áreas de conhecimento) possibilita, portanto, transcender a concepção tradicional de fronteira que, em tempos remotos, seria estudada apenas pela Geografia, que a reduziria aos aspectos territoriais, como limite ou demarcação geográfica, em detrimento das significações simbólicas, que ora unem, ora separam.
Notas
¹ Representações: são impressões que o sujeito social constrói, através de diferentes sentidos - vendo, ouvindo, tocando - do ambiente que lhe é apresentado (DITTRICH, 2014).
² Metáforas: constituem expressões da linguagem, por meio das quais o sujeito social exterioriza suas representações. Implica pensar ou dizer alguma coisa em termos de outra. Refere-se ao sentido figurado das palavras. (DITTRICH, 2014).
³ A Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), situada em Foz do Iguaçu, possui vários convênios com as Universidades da região fronteiriça, conforme informações disponibilizadas no seu sítio eletrônico: http://www.unila.edu.br/conteudo/relações-internacionais. Acesso em 28 set. 2015.
4 A Itaipu Binacional recebeu, no ano de 2014, um total de 856.541 visitantes, de acordo com as informações disponibilizadas no seu sítio eletrônico, disponível em: https://www.itaipu.gov.br/turismo/estatisticas. Acesso em 29 set. 2015. Já as Cataratas do Iguaçu (lado brasileiro), atingiu a marca de mais de 1,5 milhão de visitantes, no mesmo ano, de acordo com os dados da administradora do Parque Nacional do Iguaçu, disponíveis em: http://www.cataratasdoiguacu.com.br/portal/paginas/462-mais-de-1,5-milhao-de-pessoas-visitaram-o parque-nacional-do-iguacu.aspx. Acesso em 29 set. 2015.
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