Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


POR UMA OUTRA ABOLIÇÃO
Trabalho análogo a de escravo no Brasil à guisa dos estudos históricos*

Autores e infomación del artículo

Fagno da Silva Soares

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão

fagno@ifma.edu.br

Resumo: O presente artigo está arquitetado em duas seções, estruturados como atos de uma ópera, dedicados à análise dos conceitos de trabalho, escravidão e escravização contemporânea, à baila da historiografia brasileira recente. Com o intento de contribuir para o alargamento dos estudos e reflexões acerca da escravização contemporânea. Neste contexto, realizamos um debate historiográfico, de modo a cotejar os conceitos de trabalho, trabalho escravo e escravização contemporânea em diferentes contextos, esquadrinhando-os. Propondo assim, forjar um instrumental teórico de reflexão e aprofundamento a estudos futuros.
Palavras-chave: trabalho, escravo, escravidão.

Abstract: This article is architected into two sections, structured as acts of an opera, dedicated to the analysis of the concepts of work, slavery and contemporary slavery, to the fore in recent Brazilian history. Aiming to contribute to the enlargement of studies and reflections on the contemporary enslavement. In this context, we conducted a historiographical debate in order to collate the concepts of labor, slave labor and contemporary slavery in different contexts, scanning them. Proposing thus forge a theoretical tool of reflection and deepening the future studies.

Keywords: work; slave; slavery.



Para citar este artículo puede uitlizar el siguiente formato:

Fagno da Silva Soares (2015): “Por uma outra abolição. Trabalho análogo a de escravo no Brasil à guisa dos estudos históricos” (A arquitetura e escrita deste artigo contou com a inestimável colaboração de colegas pesquisadores do Laboratório de História Oral e Imagem LABHOI-UFF e do Laboratório de Geografia Agrária - USP), Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, n. 30 (octubre-diciembre 2015). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2015/04/escravo-brasil.html


Introdução

Malditas sejam todas as cercas! Malditas todas as propriedades privadas que nos privam de viver e de amar! Malditas sejam todas as leis amanhadas por poucas mãos para ampararem cercas e bois, fazer a terra escrava e escravos os humanos!
Dom Pedro Casaldáliga, 1989.

A epígrafe que apresenta este artigo foi extraída do livro “Águas do tempo” escrito pelo bispo católico espanhol Pedro Casaldáliga, radicado na Amazônia brasileira desde 1968. O tom poético e a preocupação social evidenciam uma arte compromissada com o respeito e a dignidade humana. O grão-mestre no combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil, porta-voz da libertação, primeiro a denunciar tal prática no Brasil, dedica sua vida ao enfrentamento a este flagelo. Defensor engajado dos direitos humanos nas Amazônias,1 o autor parece vociferar contra o capitalismo selvagem e a impunidade que tanto assola o país. Deste modo, estudar esta temática nos parece salutar, à medida que, traz para o debate acadêmico uma discussão ainda muito incipiente na historiografia, possibilitando uma análise mais acautelada e desafiadora no milieu dos historiadores de uma patologia que ainda persiste na humanidade, e por isso, urge por ser erradicada.
Nós historiadores somos tomados por um certo ‘encantamento de fontes’, se por um lado é um manancial de possibilidades de pesquisa, por outro, pode ser o nosso calcanhar de aquiles. 2 Pois, o risco de afogar-se nelas pode ser maior do que o da “euforia da ignorância”3 de que trata Carlo Ginzburg. Afinal, o que fazer com as fontes de que já dispomos? Não menos despicientes são os aportes metodológicos e teóricos utilizados em uma pesquisa, que constituem necessariamente, em como fazer? E com quem dialogar? Para Ginzburg (2009, p. 157.) o historiador é como um “[...] médico que utiliza os quadros nosográficos para analisar o mal específico de cada doente. E, como o do médico, o conhecimento histórico é indireto, indiciário, conjectural”. Para nós, o conhecimento histórico também o é, necessitando “[...] examinar os pormenores mais negligenciáveis (BARROS, 2004, p. 09) [...] os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés” para melhor conhecer as realidades existentes, por vezes, nos parece oblíqua.
Na oficina de Clio, temos aprendido paulatinamente a manejar nossos instrumentos de trabalho como teorias, técnicas e métodos de pesquisa, naquilo que nos for servível para produzir uma escrita em contrarrelevo. São como temperos que quando adicionados corretamente produzem sabores inigualáveis. Não como bisbilhoteiros, mas bisbilhotadores [posto como profissionais que vasculham] do passado que somos, nós historiadores devemos dedicar a devida atenção para a dimensão, ou seja, ‘o modo de ver’ a realidade histórica, as abordagens ou ‘modos de sentir’, bem como, os domínios ou campos temáticos da história, quando se deseja fazer história de qualidade aos nossos pares. (BARROS, 2004, p. 20.)
Foi com o intento de apresentar um panorama da pesquisa histórica brasileira que os historiadores Ciro Flamarion e Ronaldo Vainfas, com maestria, construiram perfiladamente a obra Domínios da História, (1997) através da qual mapearam os territórios, campos e linhas da pesquisa histórica brasileira, e através desta, nos foi possível extrair parte do caminho aqui escolhido. Tal situação é destacada pelo pesquisador mexicano Carlos Rojas,

posto que toda história é filha de seu tempo e de suas circunstâncias, e dado que o historiador também tem um compromisso específico com sua sociedade e sua época, toda história refletirá necessariamente as escolhas e pontos de vista do próprio historiador que se projetam inclusive na seleção dos fatos a serem investigados e no modo de organizá-los, classificá-los, interpretá-los, e arranjá-los dentre um paradigma que lhes atribua significação e sentido próprios. (ROJAS, 2007, p. 30)
 
A esse respeito, a história que agora fazemos em narrativa é fruto de nossas escolhas, sempre compromissadas com os nossos sujeitos estudados e com nossos pares. Comungamos, pois, da assertiva do historiador britânico Carr (1996, p. 48.), para quem “o historiador é necessariamente um selecionador” de técnicas, metodologias, temporalidades e espacialidades e temáticas com que irá trabalhar. Com efeito, o historiador é filho de seu tempo e por isso, trabalha conforme as condições técnico-metodológicas de sua época. Deste modo, os fatos com que trabalhamos, assim como as técnicas e metodologias por nós eleitas, são escolhas que fazemos, metaforicamente “[...] são como peixes nadando livremente num oceano vasto e algumas vezes inacessível; o que o historiador pesca dependerá parcialmente da sorte, mas principalmente da parte do oceano em que ele prefere pescar e do molinete que usa”. (CARR, 1996, p. 59.), Tudo isso nos leva a uma inflexão quanto aos riscos e críticas que advêm das nossas escolhas.
Portanto, este estudo historiográfico reflete as inquietações de um historiador que, desprovido de sorte, mas com obstinado interesse pela teoria e empiria, tenta pescar um peixe raro no oceano da história, por conseguinte, entre os seus pares. Deste modo, o embrenhamento nos mangues, a escolha das íscas e a qualidade dos instrumentos utilizados foram determinantes durante toda a pescaria, ou seja, da pesquisa.
Este artigo está dividido em duas seções, sendo a primeira destinada ao debate da categoria trabalho. Já a seção derradeira coube destrinçar os tipos de trabalho escravo com diapasão, vocábulo emprestado da música, assume aqui um sentido de harmonia, visto que o diapasão nada mais é do que um instrumento de afinação musical, neste caso, afinação metodológica para então, adentrarmos ao universo dos escravizados contemporâneos à guisa dos estudos históricos.

O Flagelo de Sísifo e os conceitos de trabalho

Vi, também, Sísifo, e o modo por que ele, com pena indizível, com as mãos ambas tentava arrastar uma pedra enormíssima firmar os dois pés no chão duro, com ambas as mãos esforçando-se para levar para cima o penedo; mas quando pensava que já vencera o alto monte, com força outra vez retornava. Dessa maneira, até o plano, rolava o penhasco impudente. Ele de novo a empurrá-lo começa, suor escorrendo-lhe dos membros todos, enquanto a cabeça de poeira se cobre. (HOMERO, 1997)

HOMERO, Odisseia, Canto XI, versos 592-600.

Na estrofe supracitada, temos Sísifo, o mais resignado dos personagens mitológicos gregos, cantado na Odisseia pelos hexâmetros dactílicos atribuídos a Homero, narra o trabalho infindo e repetitivo desempenhado pelo heroi trágico Sísifo resultante de um castigo dos deuses, um verdadeiro flagelo. Segundo a mitologia grega, Sísifo, rei de Corinto, foi condenado por Zeus ao trabalho inútil e eterno por ter enganado Tânatos, deus da morte, tendo de palmilhar empurrando um bloco de pedra ao cume da mais alta montanha das terras de Hades. Ao aproximar-se do topo, a pedra rolava abaixo e Sísifo recomeçava o trabalho ininterruptamente por toda existência. O imbróglio lítico do herói trágico tem na sociedade contemporânea outros nomes, como trabalho escravizante, divisa desta pesquisa. Para tanto, utilizamos ao longo desta seção, o mito de Sísifo para ilustrarmos a nossa célere história do trabalho.
A expressão foi utilizada por Euclides da Cunha (2006) como metáfora para caracterizar o sistema de aviamento na Amazônia brasileira, uma forma de exploração colonial amplamente difundida na Amazônia a partir do século XX, praticada até os dias de hoje, marcada pelas relações de parentesco e compadrio no processo de extrativismo. Para Euclides o trabalhador escravizado estaria condenado à dependência de uma relação viciosa e exploratória impressa pela servidão por dívida. Abandonado à própria sorte com seu labor lancinante assim como Sísifo. E assim escreve, a Amazônia como um inferno de Sísifo, identificando a realidade social do escravizado como abjeto e marginal nas relações de trabalho, logo tal sistema corresponde uma transgressão no mundo do trabalho.
Antes de adentrarmos ao mundo do trabalho em si, faz-se necessário, um breve passeio em seu conceito, passando por suas metamorfoses semânticas relacionadas às experiências vividas no decurso da seção. Apesar das controvérsias e imprecisões, etimologicamente o vocábulo trabalho tem sua origem no latim tardio tripalium, literalmente “um instrumento feito de três paus aguçados [...] munidos de pontas de ferro, no qual os agricultores bateriam o trigo, as espigas de milho, o linho, para rasgá-los e esfiapá-los.” (ALBORNOZ, 2008, p. 10) Constituiu-se inicialmente, como ferramenta de uso na agricultura e depois de instrumento de suplício aos escravizados no Império Romano. Assim, aquele que suplicia ou era supliciado chamava-se trepaliadore, termo que originou a palavra trabalhador. Coube ao cristianismo a serviço do sistema capitalista ataviar o termo trabalho a uma atividade passível de prazer ao homem.
O termo é polissêmico, carregado de sentidos, os quais nos interessa neste estudo, relacionado ao esforço incessante e ao padecimento como o descrito na mitologia grega, precisamente no mito de Sísifo. Atualmente, o termo sisifismo foi incorporado ao dicionário para designar um eterno recomeço, traduzindo o caráter maçante de uma tarefa que parece não ter fim, aqui associado a fardo, considerando que o sentido da palavra trabalho altera-se no tempo e no espaço.
Na Antiguidade Clássica, fortemente marcada pelo escravismo antigo, o trabalho era tido como uma prática considerada desonrosa e destinada aos menos abastados da sociedade. Assim sendo, aos nobres e filósofos cabia o ócio para pensar e refletir. Durante o Medievo Europeu, restava aos camponeses em regime de servidão, o trabalho nos feudos, o trabalho enquanto sacrilégio.
A religião sempre teve influência quanto ao modo de representar o significado de trabalho na história da sociedade humana, em especial na sociedade medieval. Se por um lado o trabalho era considerado uma penitência, por outro, uma redenção divina, tudo em consonância com intereses da senhora feudal, a Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana, grande detentora de poder à época.
Deste modo, na tradição judaico-cristã, o trabalho está associado a uma tarefa lancinante, fruto do pecado da desobediência de Adão e Eva que expulsos do paraíso, tiveram o trabalho como castigo por tal aviltamento. No Antigo Testamento é apresentado como um “castigo imposto por Deus aos homens como forma de expiação pelo pecado original. Se Eva foi condenada a parir com dor, Adão foi sentenciado a ganhar a vida com o suor do seu rosto [...] representa a saída do homem do paraíso”. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 57.)
Durante séculos o trabalho continuou sendo visto como uma prática vilipendiosa e só depois com os postulados protestantes foi redimensionado no contexto do cristianismo por influência do sistema capitalista, tornou-se condição impreterível para a entrada no paraíso, ao dignificar o homem, purificando-o. Tornando-se como é hoje, sinômino de honradez e dignidade, imortalizada na mítica de Max Weber (2004) na clássica obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo desde então, foi ressignificado e sinopsiado em “o trabalho dignifica o homem”. Atualmente, tomado como adágio popular, este pensamento burguês somado à ética protestante defende que o progresso financeiro é um sinal de salvação, assim o trabalho passou a ser redenção, uma espécie de imperativo moral da realização pessoal, social e espiritual do homem moderno.
Exaltado ou preterido em diferentes temporalidades históricas, o trabalho, sobretudo na sociedade pré-capitalista foi redimido e catapultado à condição sine qua non de sobrevivência na sociedade capitalista, locada na centralidade da vida moderna, legitimando-a. Mas, foi a partir da Revolução Industrial que o mesmo auferiu prestígio, atingindo status quo e honraria a todos que nele se destacam.
Atualmente, somos convocados a nos tornar como denominam os estatunidenses, workaholics, viciados em trabalho, com total abnegação ao trabalho sob o pretexto de alcançarmos o padrão capitalista de vida: o consumismo, patologia social da modernidade. Esta categoria é vacilante e complexa, dela emergem muitos perigos interpretativos com os quais tivemos que lidar durante todo o percurso desta pesquisa sem a pretensão de dirimi-los.
Mas “nem sempre o trabalho gozou desta legitimidade, desta centralidade na vida social [...] nem sempre foi tido como aquilo que confere sentido a vida humana [...] panaceia para todos os males sociais [...] profilaxia moral para os apenados [...] terapia para os loucos”, assinala, Durval Albuquerque (2011, p. 56.). Em outros momentos da história, o trabalho manual era uma forma de macular as classes menos abastardas, assim o trabalho foi tratado de diferentes formas ao longo do tempo, dependendo das relações que cada sociedade com ele estabeleceu.
Na atualidade, a temática trabalho tem sido o centro das atenções em fóruns e debates no mundo inteiro. Mesmo em pleno século XXI, somos a sociedade do afã que mesmo com toda parafernalha tecnológica aplicada ao mundo do trabalho, ainda não fomos capazes de nos livrar do labor degradante que convive entre nós. Em defesa do maior lucro com o menor custo, inescrupulosamente, voltamos aos primórdios da exploração da mão de obra sob nova roupagem, a escravização por dívida, temática dorsal deste estudo, a ser discutida mais a diante.
A cientista social e filósofa Suzana Albornoz (2008, p. 14.), em seu texto de iniciação ao tema trabalho, destaca que a história da palavra trabalho como muitos estudiosos defendem, pressupõe “[...] a passagem pré-histórica da cultura da caça e da pesca para a cultura agrária [...]”, ou seja, de mãos coletoras passaram a mãos produtoras, isto é, foi com o trabalho que o homem forjou instrumentos para dominar a natureza por quem antes era dominado. Ainda nesses termos, a autora acrescenta que atualmente a palavra está intrinsecamente ligada a outro rito de passagem, desta vez, da sociedade de economia agrária para a industrial e, por conseguinte, pós-industrial. Portanto, restá-nos pensar, qual será o futuro de nossas relações de trabalho como os desdobramentos que o capitalismo avizinha?
Numa perspectiva ontológica, o trabalho é resultante da relação do homem com a natureza e este elemento distingue-o dos outros animais. Como aponta o próprio Marx (2002, pp. 211-212), teórico indispensável à nossa discussão, ao assertivar que uma aranha realiza atividades “semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade”.
Assim sendo, o que faz um animal na natureza nada mais é do que um ato instintivo que difere da reflexibilidade humana que torna a ação executada, trabalho. Faz-se mister apontarmos ainda, que o ato praticado por um animal irracional é mecânico e instintivamente regido, não exigindo conhecimento prévio ou reflexão. Ao contrário, o trabalho realizado pelo homem é mentalmente construído antes que o materialize, o que faz do homem um ser único, e o trabalho seu atributo. Capaz de fabricar e aperfeiçoar instrumentos para ajudá-lo no trabalho a ser realizado. Assim, o que para Friedrich Engels (1984, p.09) ratificando a assertiva de Marx, é elemento marcador na diferença entre o homem e o macaco. Discordamos deste corolário marxista, pois não é o trabalho que diferencia o homem do macaco, mas suas diferentes e complexas habilidades cognitivas que podem ou não ser materializadas em trabalho. Estas vão desde uma simples risada à inflexão existencial, impossível que sejam realizadas por outros.
Porém, deve-se também observar que, o trabalho enquanto ação do homem junto à natureza tem a capacidade de ser continuamente recriado, conforme a realidade material e social a que faz parte. Deste modo, ao longo da história, o termo foi sendo semânticamente construído e descontruído, passando a ser compreendido como fenômeno mundial com idiossincrasias de cada momento histórico. (ANTUNES, 2006, p. 47-63). Adensamos a esta questão as relações construídas a partir do trabalho que nestes termos, configura-se como força motriz da história, uma vez que segundo esta teoria a história da humanidade se faz através da luta de classes num processo dialético e incessante. Noutros termos, defendemos a tese de que a história pode ser compreendida a partir de outros viéses como o cultural, o político e o social e não necessariamente só o econômico. Embora a nossa construção historiográfica não se direcione, mormente sobre esta vertente de pesquisa, tracejar seus aspectos gerais se faz necessário para melhor compreender os desdobramentos advindos deste tipo de análise.
Deste modo, recorremos ao substrato teórico, ancorado nas discussões conceituais de Marx que apontam a Revolução Industrial como marco, em que o homem passou a vender a sua força de trabalho, e desde então viu-se um paulatino processo de desumanização, uma peça da engrenagem, desposuído de inteligência e criatividade, condenado assim como Sísifo a realizar uma mesma tarefa repetidas vezes, num processo interminável, alienante e insólito, capaz de dinimutar qualquer atividade intelectual. Pois, na visão dos industriais, a não reflexão do trabalhador sobre as suas práticas laboriosas catatonicamente mecânicas, parece ser condição primeira para a manutenção da ordem vigente, como bem representada no filme Tempos Modernos,4 de Charles Chaplin.
A despeito do filme, destacamos a cena primeira, que traz um relógio fazendo alusão ao tempo como sinônimo de dinheiro, seguido da inscrição: “Tempos modernos. Uma história de indústria, de empreendimento individual – a humanidade em sua cruzada em busca da felicidade”.5 Propositalmente as cenas parecem estar aglutinadas, e os trabalhadores condicionados ao soar de um apito, iniciarem sua laboriosa tarefa com movimentos rápidos e precisos sem saber ao certo o que estão realmente produzindo, como se fossem máquinas feitas só para produzir e jamais pensar. Mas, eis que resurge a ovelha negra para subverter a ‘ordem’ estabelecida em uma das cenas mais memóraveis da história do cinema, em cuja ocasião o protagonista Carlitos, atônito se lança sobre a esteira, sendo levado ao centro da grande máquina, e em meio às engrenagens continua a repetir os movimentos para que fora treinado.
Tomado, ao que parece, por um surto psicótico, o protagonista não consegue desvencilhar-se dos tiques de tanto apertar parafusos, sendo entregue ao manicômio e depois à prisão. Com esta cena, fechamos emblematicamente nossa digressão inicial acerca da categoria trabalho e seu caráter alienante, com a ardilosa sátira que Chaplin faz aos tempos, que se anunciavam modernos. Constatamos uma série de açodadas reflexões quanto aos desdobramentos semânticos e históricos acerca da categoria conceitual trabalho na parelha castigo/recompensa, desonra/dignidade, preterido/exaltado e por fim infortúnio/prosperidade, caracterizando, assim, a mutabilidade de sentidos que o termo recebeu ao longo do tempo e em diferentes espaços, o mesmo se aplicando à expressão trabalho escravo, derivação anômala do significado primeiro do termo, como analisaremos na seção seguinte.

O Suplício de Tântalo, o trabalho escravo e escravização contemporânea

Vi, também, Tântalo, e o modo por que ele, com pena indizível, num lago estava metido, com água a bater-lhe no queixo. Sede sofria; mas era impossível jamais minorá-la, pois, quantas vezes o velho tentava beber abaixava-se, Era toda a água absorvida, escoando-se; negro surgia-lhe dos pés à volta o terreno, que sempre o demônio secava. Árvores altas com frutos vergavam-lhe sobre a cabeça; eram pereiras, romeiras, macieiras de frutos ótimos, mais oliveiras viçosas e figos de gosto agradável. Mas, quantas vezes o velho tentava com a mão alcançá-las, o vento forte as tocava para o alto, até as nuvens sombrias. (HOMERO, 1997).

HOMERO, Odisseia, Canto XI, versos 582-592.

Nesta estrofe do épico poema atribuído a Homero, temos agora Tântalo, condenado pelos deuses ao pior dos castigos, sofrer eternamente de fome e sede, um autêntico suplício. Utilizamos o mito de Tântalo nesta seção para fazer alusão aos trabalhadores escravizados no campo ou na cidade, nos países ditos subdesenvolvidos e desenvolvidos. A expressão “suplício de Tântalo” neste estudo é rubricada para designar não o escravo, mas a condição do indivíduo escravizado que se vê condenado a abandonar aquilo que possui ou está ao seu alcance. Segundo a mitologia grega, o rei Tântalo foi lançado ao mar Tártaro, num vale abundante em vegetação e água, sentenciado a não poder saciar sua fome e sede, pois, ao aproximar-se da água, esta escoava e ao erguer-se para colher os frutos das árvores, os ramos se moviam para longe de seu alcance sob a força do vento. Tal analogia, neste caso, remete-se ao indivíduo submetido à escravização nas carvoarias em Açailândia, que por força da situação em meio à fome, à sede e o cerceamento do direito de ir e vir, sente-se amarrado a um verdadeiro Tártaro.
Para tanto, nesta seção, discutimos desde a origem do trabalho escravo e seus desdobramentos no decurso da história da humanidade, pontuando as similitudes e dessemelhanças em diferentes momentos históricos, tendo como marco teórico as proposições de Jacob Gorender nas obras Escravismo Colonial e A Escravidão Reabilitada, as quais iluminaram nossa análise acerca da escravização no Brasil.
A escravidão está presente na humanidade desde os tempos mais remotos. A rigor, sempre caracterizada pela espoliação do homem pelo homem em nome do poder em transmutadas formas no tempo e no espaço como dito alhures, assim a escravidão tem assumido pari passu, diversas formas no transcurso da história. E assim, o atual conceito de escravo tem sofrido uma ‘rica revisão historiográfica rompendo com paradigmas estruturalistas’. (MATOS e RIOS, 2005, pp. 26-27.)
 Tracejando um breve panorama histórico do trabalho escravo, podemos perceber que a escravidão é irmã gêmea da propriedade privada. Desde os primórdios civilizatórios a propriedade privada e a disputa por territórios sectaram a sociedade. Sobrepujados os vencidos, tornavam-se escravizados dos vencedores no que convencionou-se chamar de escravismo antigo. Embora o processo de escravização tenha ocorrido em outras civilizações, foi nas sociedades da Antiguidade Clássica – Grécia e Roma – que tiveram no escravismo, o sustentáculo de sua economia, a chamada escravidão clássica. Os escravizados eram oriundos de guerras ou de dívidas, independente da etnia ou gênero do qual pertencesse. Deles dependiam o cuidado com as crianças como os pedagogos na Grécia Antiga até a defesa das fronteiras como os soldados na Roma Antiga.
Pretensamente imbuídos do dever intelectual, filósofos como Aristóteles e Platão justificavam a escravização como algo necessário para que os intelectuais, através do ócio pudessem pensar, sem o que a sociedade não existiria intelectual e economicamente. Aristóteles em sua obra Política (1998) considerava, ainda, o escravo como uma coisa, um objeto sujeito ao bel-prazer do seu senhor. Assim, a coisificação do escravo vigorou largamente muitos séculos depois, nos tempos coloniais no Brasil, que graças aos estudos dos historiadores revisionistas a exemplo de Thompson em A Formação da classe operária inglesa [1987], pudemos perceber o escravo não como tal, mas um ser humano escravizado, de modo que, não é escravo, e sim escravizado.
Se por um lado o discurso de vitimização e coisificação de muitos historiadores serve como denuncismo, por outro, reflete as imprecisões da análise histórica que não reconhece o escravo como sujeito capaz de se questionar e revoltar-se, como diria Darcy Ribeiro (LÔBO, 2001, p. 07.) “só há duas opções nesta vida: resignar-se ou se indignar [...]” e assim como a maioria dos escravizados no período colonial, ele optou por não se resignar, forjando inúmeras formas de resistência como veremos ao longo da seção.
Durante a Idade Média, a escravidão clássica foi paulatinamente substituída pelo regime feudal, em quase toda a Europa. A passagem do escravismo à servidão pouco abrandou a condição destes trabalhadores que, agora não coisificados embora presos à terra, continuavam ainda não-livres e tinham como tarefa, além de cuidar da terra, garantir a segurança de seu senhor por laços de fidelidade.6
Segundo a historiografia ocidental, com o advento das Grandes Navegações,  em que Portugal foi pioneiro, iniciou-se um comércio transatlântico de escravizados numa relação triangularizada entre Europa, África e América. Foi então, a partir de 1440, que as terras lusas começaram a receber com frequência escravos vindos da África, formando o que se convencionou chamar, anos depois, de escravização negra ou moderna que vigorou entre os séculos XVI e XIX, embora haja consensos de que pouco tinha da escravização das sociedades greco-romanas.
Deste modo, o termo escravidão é por si, generalizante, capaz de abarcar desde as práticas ocorridas na Grécia Antiga até o Brasil nos tempos da colônia. Possibilitando afirmarmos que, o que tem ocorrido hoje, no Brasil e no mundo, também pode ser chamado de trabalho escravo com as devidas reservas e sem anacronismos. O fato é que o processo de escravização aparece e reaparece ao longo da história do trabalho de maneira quase atemporal, sempre em novos contextos e com contornos específicos, a exemplo da escravização fabril advinda da Revolução Industrial que alterou decisivamente o mundo do trabalho ou até a escravização contemporânea, marcadamente fruto de um novo capitalismo e, sobretudo da miséria que assola atrozmente o país. Destarte, se pudéssemos resumir em duas palavras o processo de escravização contemporânea no Brasil, seria: miséria e impunidade.
É de conhecimento dos pesquisadores que analisam a categoria trabalho, que a escravidão teve sua origem em sociedades predominantemente agrárias e, mais tarde, atingiu os centros urbanos. (GORENDER, 1978, p. 75). Na atualidade, este fenômeno não se restringe às sociedades industrialmente ‘atrasadas’, estando presente em países economicamente desenvolvidos, o que nos faz crer que se trata de mais uma das mazelas do capitalismo, que em seu modo cíclico faz reaparecer em vários momentos da história esta chaga, como veremos mais adiante, em analogia ao mito da fênix, pássaro que sempre ressurge das cinzas, tamanha a capacidade de renascimento. Neste enlevo, Jacob Gorender também se mostra útil ao nosso debate à medida que traz à tona a discussão em torno do processo de escravização no Brasil dos tempos coloniais como algo idiossincrático e nos ajuda entender que a escravização colonial brasileira têm aspectos próprios de um modo de produção à brasileira. Destarte, o que se constituiu no âmbito do processo de escravização no Brasil Colonial foi peculiar, amealhada de marcas escravagistas indígena e negra. Assim, a economia colonial brasileira fez do processo de escravização parte constitutiva da sociedade da época. Desta forma, “[...] analisar a história da escravidão no Brasil é trabalhar com a própria história do Brasil”  (SCHWARTZ, 2001, p. 93.) adensa a discussão, Stuart Schwartz para quem a escravidão não é “problema do passado e, assim, assunto apropriado para historiadores, seu legado ainda vive, [...] o trabalho forçado na agricultura e no garimpo em condições de cativeiro [...] não desapareceram, se transformaram”. (2001, p. 93.)
Diante do exposto, é um ledo engano afirmarmos que a escravidão foi extinta, quando da abolição poeticamente historicizada por muitos em 1888, com a promulgação da Lei Áurea resultado do desdobramento de três outras leis que a antecederam. Para os abolicionistas André Rebouças, Joaquim Nabuco e José do Patrocínio, o “13 de maio” não representou a liberdade aos ex-cativos, tampouco, a carta de alforria configurou-se no passaporte para sua cidadania à época. A escravização resistiu às proibições normativas, reforjando-se no tempo e no espaço. Passados mais de um século da aprovação de sua ilegalidade no país, ela mantém-se nos mais recônditos lugares, quer seja nos espaços urbanos ou rurais, de norte a sul do Brasil, dada as devidas especificações deste fenômeno tanto no passado quanto no presente. Neste ensejo, as relações entre o senhor com seu escravo sempre foram marcadas, pela perpetuidade e hereditariedade, Gorender (1978, p. 78) destaca que para Malheiros pode “[...] o senhor alugar os escravos, emprestá-los, vendê-los, doá-los, transmiti-los por herança ou legado, constituí-los em penhor ou hipoteca, desmembrar da sua propriedade o usufruto, exercer, enfim, todos os direitos legítimos de verdadeiro dono”.
Constando, pois, no centro de fleumáticos debates onde o termo escravidão, para alguns, não se aplica ao fenômeno atual, pois ela teria sido extinta nos idos tempos da Abolição, também por isso, empregamos o termo escravização. Para outros, a escravidão não se extinguiu, mas está presente em outro contexto, mesclando novas e antigas características. Passado mais de um século da assinatura da Lei Áurea, a exploração continua sendo uma das maiores mazelas sociais de degradação humana que assolam o Brasil.
Estima-se que existam entre 25 a 40 mil trabalhadores rurais vivendo em regime de escravidão contemporânea, em diversos estados do país, mormente no Maranhão, Pará, Piauí e Tocantins, configurando a cartografia da exploração do homem pelo homem. Sabemos, com base em recentes balanços realizados pela Organização Internacional do Trabalho - OIT que o Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego - MTE já resgatou aproximadamente 30 mil trabalhadores encontrados em situação de degradação humana em todo país até 2012, vistoriando cerca de 2 mil fazendas.
Ainda nos termos da disputa conceitual para definir uma expressão adequada ao fenômeno, afirmamos que, dentre as denominações mais recorrentes está a escravidão por dívida sendo benquista entre os teóricos, a exemplo, de Neide Esterci e Ricardo Rezende, e circunstanciada pela geração fraudulenta de dívida contraída com o empregador, impedindo o término do vínculo laboral.
Outro termo é semiescravidão, comumente aplicado por aqueles que compreendem que o atual processo de escravização não corresponde exatamente ao trabalho escravo. Pouco utilizada e sem efeito, a expressão escravidão branca7 , possui o intento apenas de se diferenciar por oposição à escravidão negra.
Há também denominações como exploração do trabalho, esta caracterizada pelo desrespeito à legislação trabalhista, não aplicável ao fenômeno estudado. Por fim, expressões assimétricas como trabalho forçado e trabalho indecente, e ainda, outras muito congruentes como escravidão contemporânea e neoescravidão, forjadas no calor da luta por sua extirpação. Todas estas expressões correspondem à total subserviência do trabalhador ao empregador, numa relação subtrabalhista e, portanto, ilegal e desumana.
Dentre as expressões mais adequadas podemos citar: trabalho análogo ao de escravo, trabalho em condições análogas à de escravo, redução a condição análoga à de escravo e trabalho em condições análogas à escravidão, todas correlatas e vinculadas a ao artigo 149 do Código Pena Brasileiro que estabelece penas e tipifica o crime. Tais expressões são tecnicamente mais incisivas do que as anteriores para o fenômeno em estudo, por evidenciar que o trabalhador não é escravo, mas posto à condição análoga à de escravo. Temos então, uma relação de similitude e umbilical entre o passado e o presente. 
Tais categorias são conceptualizadas sob a égide dos que defendem, assim como nós, expressões capazes de dar a ver o fenômeno em sua face mais vil. Para Bhavna Sharma, representante da OIT, “a servidão ou escravidão por dívida é a forma mais comum de escravidão contemporânea” (SHARMA, 2008. p.40.), o que torna a expressão escravidão por dívida, em certa medida, apropriada, sobretudo, ao caso brasileiro.
É de domínio público que nenhuma ciência é neutra, tampouco seriam os conceitos por ela criados. Assim, estamos mais uma vez convencidos, da validade da assertiva de Koselleck 8 ao nos alertar que todo conceito é portador de signos porosos que ganham e perdem fragmentos lexicais, sintáxicos e semânticos condicionadas a sua historicidade, não diferentes poderiam ser os conceitos trabalho e trabalho escravo, eleitos em nosso estudo preambular.
Outrossim, nós valhemos de Durval Muniz (2011, pp. 53-54.), ao nos ensinar que “as palavras não são as coisas, elas são metáforas das coisas; tem realidade e espessura próprias; elas transportam, transformando, as coisas até nós. Portanto, as palavras, os conceitos, as categorias também constituem e fazem parte da realidade do mundo [...]” para afirmar que a expressão trabalho escravo contemporâneo é fruto de um conjunto de reflexões circunscritas em um tempo e um espaço, embora não dê conta do que pretende explicar, serve-nos para continuarmos a reflexão na busca de outras expressões mais adequadas e menos tautológicas.9
Justificamos reiteradamente, a expressão aqui adotada - escravização contemporânea - como forma plausível de relacionar não à escravidão clássica, moderna e brasileira, às épocas colonial e imperial. Apesar das similitudes, estas não são objeto de nossa análise, embora indubitavelmente, ao tratar de qualquer tipo de escravidão, remontamos aos tempos antigos, dadas as suas especificidades. Deste modo, não há motivos para desassociá-los, uma vez que os diferentes tipos de escravismo praticados no passado nos ajudam a compreendê-lo na contemporaneidade. Há de repensar que os conceitos não são construções perenes, pelo contrário sofrem transformações ao longo do tempo e espaço até que sejam mais consensuais e consolidem-se.
 Também é sabido que a escolha por qualquer terminologia para este fenômeno pressupõe a relação com seu “uso político”,10 revelando as intencionalidades que justificaram a escolha, como em nosso caso a escolha pela expressão escravização contemporânea justifica-se por ser, ao nosso ver, mais apropriada ao fenômeno em estudo, porém, não suficiente. Neste sentido, para Ângela de Castro Gomes,

não se trata de um detalhe semântico, mas do bom entendimento de uma categoria que tem o poder de interpretar a realidade social, desencadeando políticas públicas, não só pela via da criminalização dos culpados, mas da garantia de direitos aos explorados. De toda forma, o que fica claro [...] é que, sem conceitos comuns não pode haver unidade de ação política (2008, pp. 13-17).

A autora esclarece que a definição conceitual neste caso, tem desdobramentos sócio-políticos importantes, que vão desde o impacto gerado pelo termo historicamente marcado por um lastro de sentimentos à criação de políticas públicas direcionadas ao enfrentamento do fenômeno, do contrário não haveria unicidade suficiente para tal. Com efeito, a mesma autora reforça ainda que quando se discute o trabalho escravo contemporâneo no Brasil do século XXI, o que está em jogo já não é mais o reconhecimento desta prática junto a sociedade, pelo contrário, esta já o reconhece assim como seu aparato jurídico. Trata-se, portanto, segundo a autora,

[...] da busca de um acordo sobre qual é a melhor maneira de se construir – legalmente, politicamente e academicamente – um problema que marca o mundo do trabalho contemporâneo e que possui grande poder de mobilização nacional e internacional. Assim, seu ‘nome’ e o que está sendo definido como o ‘conteúdo’ desse ‘nome’, em determinado contexto de experiência dos atores envolvidos, é crucial, quer como recurso de poder para demandar ações do Estado, entre as quais e com destaque a alteração de uma lei; quer como capacidade de sensibilizar a opinião pública, via imprensa, via organizações não-governamentais etc (Gomes, 2008, p. 16).

Para a historiadora em questão, a escolha dessa expressão, em especial no Brasil, é resultado, sobretudo, do conjunto de esforços empreendidos por membros da Igreja Católica nos anos 70, mais precisamente D. Pedro Casaldáliga, que nas décadas seguintes obteve apoio de entidades da sociedade civil organizada e do poder público que, desde então, passaram a adotar a expressão trabalho escravo contemporâneo em seus documentos oficiais, por extensão a mídia, apesar das dissonantes posições acadêmicas. Desta forma, Ângela de Castro Gomes destaca a necessidade de contruirmos um problema para análise historiográfica para além do reconhecimento da existência desta prática hedionda no Brasil, visto que esta discussão seja considerada encerrada. Entendemos que não há consenso acerca da definição semântica, mas ao contrário do que se poderia imaginar, a busca por uma terminologia mais adequada fomenta fleumáticos debates capazes de forjar sentidos mais completos que contemplem quiçá aspectos jurídicos, sociais, político e acadêmicos. A este próposito, nos deteremos em estudos futuros.
De modo geral, concordamos com a antropológa Neide Esterci (1999, p. 121), para quem o termo “[...] ‘escravidão’ tem, entre nós, o poder simbólico de denunciar a redução de pessoas a coisas, objetos de troca, a mercadoria – vem associado a expressões como ‘compra’, ‘venda’, ‘preço por lote’, ‘por cabeça’ [...]”. Neste sentido, ainda é preciso avançar no debate para melhor compreender esta prática e, por conseguinte combatê-la. Como sabemos, é de bom tom dialogar com os que se posicionam contrários a nós, para compreender as nossas posições. Para tal, escolhemos para cotejar, a fala do historiador Eduardo França Paiva, para quem estamos

diante de um dilema terrível: o ‘escravo’ moderno renasce exatamente pelas mãos de quem, no passado, lutou pelo seu desaparecimento. Isto é, seus antigos protetores e redentores teriam se transformado, hoje, em seus reinventores. Como compreender essa confusa história e como corrigir essa inversão perversa? Haveria certa insensibilidade intelectual no uso, hoje, de definições tomadas de empréstimo ao passado? Qual seria o impacto junto à opinião pública, da imprecisão teórico-conceitual em curso? Em que medida a reinvenção do escravo prejudica o combate ao trabalho compulsório ilegal no Brasil? Ao mesmo tempo, deve-se indagar sobre a permanência de referências e valores escravistas no cotidiano da população, sobretudo nas áreas extrativistas e rurais, onde esse ‘trabalho escravo’ é prática corriqueira (2005, p. 08).

O autor nos pareceu muito ortodoxo ao, de maneira simplista, tentar definir a relação passado e presente na construção de um conceito, pois entre os historiadores não é comum forjar termos históricos no tempo de seu acontecimento, se assim fosse os vilões, servos ou vassalos na Europa do século XI já se auto-denominariam como tal e ao seu  período histórico como Medievo.
Assim sendo, o processo de escravização contemporânea marcadamente visibilizada no final do século XX terá nos anos seguintes do novo século, tempo para que sua definição teórico-conceitual seja devidamente construída. Ademais, é preciso “imprimir-lhe o caráter e a legitimidade científica necessária”, (Figueira;Prado; Sant’Ana, 2011, p.22) para que se possa consolidar enquanto campo intelectual com status de cientificidade a partir de reuniões, simpósios, congressos, publicações as mais diversas, a exemplo do que tem sido realizado pelos pesquisadores vinculados ao Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo – GPTEC que contribui para a produção e difusão de conhecimentos acerca da temática no âmbito acadêmico.
Em entrevista concedida ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas CPDOC/FGV, a auditora fiscal Ruth Vilela 11 (2006, fita 2, p. 33),  afirma de modo nada hermético que

Na verdade, esse debate quanto à terminologia, decorreu muito do fato da OIT utilizar o termo trabajo forçoso aqui para a América Latina. O conceito de trabalho forçado, para a OIT, engloba tudo. Eu vou dar um exemplo [...]: aquelas crianças e adolescentes que, eventualmente, em países africanos, são obrigados a participar de guerrilhas; [...] os prisioneiros políticos da China, que são obrigados a trabalhar e produzir sem salário [...]. É quando uma autoridade acima impõe a alguém um trabalho sem remuneração (2006, fita 2, p. 33).

Assim sendo, a expressão trabalho forçado, é um tanto polissêmica, a grosso modo, é capaz de abrigar um sem-número de situações, numa espécie de conceito guarda-chuva que vai desde a  exploração do trabalho até a escravidão contemporânea. Logo, para muitos operadores do direito e técnicos da CPT não é aplicável ao caso brasileiro por não tipificar com clareza tal prática. Segundo a entrevistada enquadra-se noutros termos, de modo que

agora, o trabalho análogo a de escravo, que é o caso brasileiro, é totalmente diferente. Ele é bem definido no nosso Código Penal, apesar dos juristas e pesquisadores estarem sempre afirmando que o conceito não é claro, que dá margem a dúvidas. Quem mais batalhou pela utilização do termo trabalho escravo e não trabalho forçado foram os auditores fiscais. Nós começamos insistindo para estabelecer a diferença entre os conceitos de trabalho forçado e trabalho escravo e fomos publicando, afirmando, reiteradamente, até que a OIT absorveu o termo trabalho escravo para o caso brasileiro (2006, fita 2, p. 34).

Segundo a entrevistada, os auditores fiscais do trabalho emprenderam uma campanha a favor da adoção da expressão ‘trabalho escravo’ para o caso brasileiro, haja visto que a expressão ‘trabalho forçado’ seria por demais abrangente para desvelar as singularidades idenficadas em nosso país.  Embora o uso da categoria trabalho análogo ao de escravo seja obscuro e atravessado por imprecisões, veio dos juristas que por meio de inúmeras publicações, buscaram a aceitação da expressão, embora parca no meio jurídico, consubstanciada por sua vez, quando da regulamentação do Código Penal brasileiro e da incorporação nos documentos oficiais pela Organização Internacional do Trabalho. De modo geral é consenso a imprecisão das expressões citadas, as mesmas veem ganhando espaço não apenas na literatura jurídica, mas sociológica e antropológica, a exemplo o seu amplo uso nos dois planos nacionais para a erradicação do trabalho escravo, sobretudo no segundo, perfazendo uso da expressão trabalho escravo mais corrente entre teóricos de outras áreas.
Estudiosos do âmbito jurídico afirmam que mesmo passado mais de um século da abolição da escravatura esta prática legou-nos resquícios e por esse motivo “[...] ao contrário do que possa parecer, a utilização da expressão trabalho escravo não constitui qualquer excesso de linguagem” (Sento-Sé, 2000, p. 18) Em contraponto, frisamos que é uma expressão no mínimo imprecisa, incapaz de catalisar a real significação do fenônemo a que se pretende nominar.
Entrementes, não podemos deixar de destacar a fala de Koselleck acerca da importância dos conceitos para tornar inteligível um fenômeno estudado, para quem o conceito deve “[...] relacionar-se sempre àquilo que se quer compreender, tendo, portanto, a relação entre o conceito e o conteúdo a ser compreendido [...]” (2006, p. 03) destaca o autor que estas relações são tensas, tal como temos percebido. Já com Neide Esterci na obra Escravos da Desigualdade, podemos perceber quão largo pode ser o conceito de escravização contemporânea no Brasil. Como ela bem nos diz,

escravidão tornou-se, pode-se dizer, uma categoria eminentemente política; faz parte de um campo de lutas, e é utilizada para designar toda sorte de trabalho não-livre, de exacerbação da exploração e da desigualdade entre os homens. Muitas vezes, sob a designação de escravidão, o que se vê mais enfaticamente denunciado são maus-tratos, condições de trabalho, de remuneração, de transporte, de alimentação e de alojamento não condizentes com as leis. Determinadas relações de exploração são de tal modo ultrajantes que escravidão passou a denunciar a desigualdade no limite da desumanização; espécie de metáfora do inaceitável, expressão de um sentimento de indignação que, afortunadamente, sob esta forma, afeta segmentos mais amplos do que os obviamente envolvidos na luta pelos direitos (1994, p. 44).

Nestes termos, a mesma autora que defende que não devemos compreender a categoria trabalho análogo ao de escravo como uma construção metafórica e não semântica, Esterci (1994, p. 45), nos adverte também que a melhor forma de classificação deste tipo de relação laboriosa é romper as definições estabelecidas por outros teóricos e convenções internacionais e, por conseguinte, forjar termos mais fluídos e adequados ao fenômeno, como o que aqui propusemos.  Não façamos audaciosa a possibilidade de cunhar uma expressão que, caso não dê conta da complexidade do fenômeno, possa então, traduzi-lo ao historiador. Eis um desafio, que depois de exaustivo estudo da temática, acreditamos que será possível arregimentar bases teórico-metodológicas que sinalizem de modo mais concreto, outro conceito menos problemático do que os que temos, para melhor compreendê-lo historicamente. Embora o fenômeno da escravização contemporânea remonte ao século passado, suas raízes advêm dos séculos XVI e XIX, daí a inevitável comparação com a escravidão colonial, dadas suas devidas reservas e idiossincrasias. Entrementes, não se trata de um fenômeno inteiramente novo, nem tampouco de um retorno ao passado. Mas “[...] na busca por um estatuto teórico para aprimorar o debate [...] é preciso tomar consciência de que as semelhanças irão emergir e, por vezes, de forma preponderante”, assevera a historiadora Ângela de Castro Gomes (2008, p. 38).
Constatamos, pois, que é inevitável a comparação entre a escravidão colonial e moderna ao processo de escravização contemporânea, por isso Vilela brindou a todos com sua sucinta, porém contundente reflexão, ao asseverar que

[...] quando você começa a comparar, ponto a ponto, quase chega à conclusão que a escravidão contemporânea, sob determinados e específicos aspectos, é pior que a escravidão “clássica”, não querendo minimizar esta escravidão. [...] O trabalhador escravo de hoje, com certa fartura de mão de obra, é descartável. Ele não tem valor econômico, valor de mercado, como tinha o escravo negro. E por mais que fossem comuns os castigos corporais etc, o senhor de escravos tinha que tomar algumas providências para manter o escravo vivo e saudável. O escravo de hoje, não; ele é inteiramente descartável. [...] Por outro lado, os grilhões da escravidão “clássica” são hoje, substituídos por outra espécie de grilhões, que decorrem da ruptura das referências dos indivíduos e também da questão moral [refere-se ao compromisso dos trabalhadores com as dívidas que julgam ter e precisam pagar].  (VILELA, 2006, fita 2, p. 34. grifo nosso).

Tal analogia deixa-nos evidente o quão descatável é o trabalhador escravizado dos séculos XX e XXI é tratado, o que segundo a autora torna esse tipo de escravização mais truculenta, uma vez que a abundância de mão de obra gratuita de escravos difere do passado onde a compra de escravos era sempre muito onerosa. Deste modo, o baixo custo e a descartabilidade destes trabalhadores constituem o binômio fomentador desta prática hoje, somada é claro, à impunidade com que ainda são tratados estes casos pela justiça brasileira, ainda muito indolente a causa. Mais do que um crime contra a legislação trabalhista, trata-se de um aviltamento e uma afronta aos direitos humanos. Ademais, outro aspecto que merece destaque, segundo a autora e que por mais torpe e inclemente que fossem os algozes de um escravo, estes sabiam que não deviam açoitá-lo até a morte, pois a morte de um escravo seria para o seu senhor um real prejuízo, uma vez que, durante o período imperial, para se mensurar a riqueza de um homem ou de sua família considerava a quantidade de terras e escravos que estes tinham. Atualmente, a prática da tortura é tão asselvajada que o trabalhador não é mais torturado só fisicamente, mas moral e psicologicamente. Quando este sai vivo deixa parte de seu corpo na fazenda: uma orelha, um dedo, um braço, os sonhos e até sua dignidade, tamanha atrocidade contra a sua pessoa humana.
Valemo-nos mais uma vez de Albuquerque Júnior (2007, p. 30) em outra construção metafórica, comparando o curso da história ao de um rio, que “[...] como na história, diferentemente do que pensavam os modernos, nem sempre tudo passa, nem sempre tudo se transporta para frente, nem sempre tudo se arrasta para um télos oceânico”, endossando a necessidade dos historiadores hodiernos de forjarem modelos explicativos para a história, o autor completa que assim como em um rio, na história “há redemoinhos, há aspirais, há retornos, há águas paradas, há águas desconectadas em poças apodrecidas, há águas que se descaminham, que saem do curso, que se bifurcam e se esquivam” (2007, p. 30).  É por isso, entre outras coisas que o rio da história é mais complexo do que habitualmente se acreditava. Ainda nestes termos, retomemos as análises da historiadora Ângela de Castro Gomes, sobre a adoção da expressão trabalho escravo como sendo uma construção memorial, portanto com intento político mais do que histórico,

[...] tem um imenso valor simbólico, na medida em que remete a todo o passado escravista da sociedade brasileira. Nesse ‘passado’, mobilizado como uma construção da memória nacional, os escravos são homens e mulheres trabalhadores explorados cruelmente, o que é algo inaceitável no mundo contemporâneo. Tal tempo – ‘o passado escravista’ – é, assim, muito mais uma construção memorial imaginária [uma memória histórica], do que histórico-cronológica [um período delimitado pelo historiador]. (Gomes, 2008, p. 38).

Concordamos com a autora ao declarar que o uso da expressão trabalho escravo não necessariamente tem o intento de identificar-se como o passado colonial ou imperial brasileiro, mas em provocar

O que se deseja acionar é seu potencial explicativo e mobilizador, que permite uma rápida apreensão de um fenômeno novo, amplo e complexo e que precisa de referenciais temporais: o da perda de parâmetros que demarquem o que são condições de vida e trabalho ‘humano’ no mundo contemporâneo. (Gomes, Ibid., p. 38).

Diante disso, a pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas - FGV, Angela de Castro Gomes assevera que compreender a “[...] categoria trabalho análogo a de escravo como uma metáfora, que ela chama os trabalhadores de ‘escravos’, justamente para dizer que eles não o são, e que é intolerável a existência de escravos e de escravidões de quaisquer tipos”. (Gomes, Ibid., p. 39). Muitos dos que adotam essa expressão terminológica, o faz metaforicamente, não com o intento pejorativo ao trabalhador, tampouco para associá-lo ao passado escravista tão somente, mas para dar visibilidade da problemática à sociedade atual e à academia. Para tanto, retomando a tese de Ricardo Rezende, que ao justificar o uso da expressão trabalho escravo contemporâneo, revela seu tom militante, demonstrando que o seu interesse está para além do empoderamento do saber acadêmico, ao assinalar que

[...] por força de construção social, manifestada nas pressões de grupos específicos e no seu uso cada vez mais freqüente pelo conjunto das organizações oficiais e não oficiais, a modalidade de trabalho forçado sobre a qual escrevo tem sido reconhecida como não apenas parecida com a escrava, mas de fato escrava. Os que empregam a categoria consideram que sua utilização não obscurece ou confunde seu significado, mas o torna visível. (Figueira, 2004, p. 48).

 Na qualidade de historiador nada ortodoxo, convém fazer algumas ressalvas, visto que o tempo nos impõe certas aporias. Sendo a primeira, não concebemos o termo por completo por reconhecê-lo como problemático. Mas afinal, qual termo não é problemático à história? É natural que profissionais de outras áreas diferentes da história, incorram a análises anacrônicas, e maniqueístas. Por fim, é preciso ratificar que o nosso estudo tem intuito eminentemente acadêmico, mas compartilhamos, assim como a maioria do desejo em vê-la extirpada do Brasil e do mundo. Vale destacar que, a Organização Internacional do Trabalho – OIT define o Brasil como referência mundial no combate ao trabalho escravo, por atender aos ditames previstos nas convenções internacionais contra o trabalho forçado através do Artigo 149 do Código Penal Brasileiro e demais emendas constitucionais.
Se por um lado, a aprovação da PEC do Trabalho Escravo,12 representou um avanço na conquista dos direitos humanos enquanto importante instrumento de combate às formas contemporâneas de escravidão no Brasil, por outro, a sua regulamentação através do Projeto de Lei do Senado - PLS 432/2013,13 poderá ser um grande retrocesso no enfrentamento do trabalho escravo no Brasil, uma vez que, a bancada ruralista defende um conceito evasivo de trabalho em condições análogas à de escravo, excluindo as condições degradantes de trabalho e a jornada exaustiva como elementos característicos. E assim, dificultando o enquadramento jurídico deste crime, a nova lei poderá legalizar a prática de trabalho degradante em detrimento ao direito a dignidade do trabalhador, em beneficio dos neo-escravocratas. Trata-se de uma história em construção a lume de múltiplos interesses, tornando o tema uma questão ainda muito aberta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De modo geral, o escravo se apresentava, enquanto ser humano tornado coisa, como alguém que, embora fosse capaz de empreender ações humanas, eram tratados como animal, como asseverou o historiador Chalhoub para quem 

todos os direitos lhes eram negados [...] Eram reduzidos à condição de coisa [...] Eram até denominados, mesmo oficialmente, peças, fôlegos vivos, que se mandavam marcar com ferro quente ou por castigo, ou ainda por sinal como gado. (1990, p. 36).

Até pouco tempo, não se discutia a resistência dos escravos, visto apenas como coisas ou até mesmo como uma ferramenta de trabalho. Mesmo hoje, o trabalhador escravizado é considerado uma ‘mercadoria descartável’ 14 pelos empreiteiros, sem muito valor no submundo do trabalho ignóbil, o que torna a prática ainda mais vil. Terminados os serviços prestados estes são largados à própria sorte para regressarem a suas casas. Assim, a rede e o laço da escravidão estão sempre prontos para ‘apanhar’ e ‘laçar’ suas próximas presas. Adensamos ao debate a proposição de Zygmunt Bauman acerca das pessoas consideradas descatáveis, sobretudo, aos migrantes, tratados como o lixo humano (BALES, 2001, p. 23) que para Vitale Joanoni e Leonice Aparecida “essas pessoas, sem lugar nesse mundo [...] são alvos dessas relações de exploração que vão muito além da expropriação da sua força de trabalho [...] descartadas por serem herdeiras da miséria social e econômica que afligiu”.15 Estes trabalhadores são alijados de seus direitos básicos e fundamentais previsos na Constituição tratados como habitantes de um ‘não-lugar’16 e por conseguinte, invisibilizados socialmente. Ao contrário, estes habitam um lugar antropológico, identitário, relacional e histórico.
O pesquisador Kevin Bales, viajou o mundo investigando a escravização contemporânea em suas muitas facetas, e constatou que este fenômeno constitui-se em um negócio em franca “ascensão e o número de escravos está a crescer, há pessoas que enriquecem usando escravos. [...] Se centra nos grandes lucros e nas vidas baratas [...] tornam-se instrumentos completamente descartáveis para fazer dinheiro”. (2001, p. 12.) Concordamos parcialmente com o autor, por acreditarmos que não foi o número de trabalhadores escravizados que aumentou, mas sim o número de denúncias, motivadas, sobretudo, pela significativa atuação de instituições diversas no enfrentamento desta prática em todo mundo, dando ao fenômeno uma visibilidade nunca dantes vista, hoje constituída em temática de relevo nacional e internacionalmente por melindrar os direitos humanos.
Atualmente a temática se encontra na ordem do dia. Bales ao estabelecer um paralelo entre o modelo escravocrata moderno e o hordierno, destaca que no primeiro havia a posse legal do escravizado. Já no segundo, trata-se de uma prática ilegal, em que os escravizadores valem-se do uso da violência física e psicológica para manter o controle. Assim, os algozes “têm todos os benefícios da propriedade sem as responsabilidades legais. A bem da verdade, para os escravocratas, não ter a posse legal é uma melhoria, porque obtêm o controle total sem qualquer responsabilidade por aquilo que possuem”. (BALES, 2001, p. 12.) Concordamos, que se antes os escravizadores compravam a altos preços seus escravizados, hoje não mais, a grande quantidade de trabalhadores desempregados com numerosas famílias sem quaisquer fonte de renda, o fazem gratuizados este tipo de trabalho. Ao dono da fazenda e/ou carvoaria pouco importa as condições deste trabalhador para ele trata-se como dito alhures, de uma mercadoria descartável, um lixo humano que pertence ao não-lugar.
Sobre a escravização por dívida, Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz em 1984, destaca que é um fenômeno mundial que atinge desde países subdesenvolvidos até as nações ditas desenvolvidas, como vemos adiante.

Mundo afora, milhões de homens, mulheres e crianças estão sendo comprados e vendidos como escravos, muito embora, na maioria, eles nunca tenham ouvido falar de escravidão e não acreditariam se lhe fosse dito o que é [...] Se a escravidão moderna não perde em obscenidade, ela já ganha em sutileza. Entre os 27 milhões de pessoas que vivem hoje na escravidão, você encontrará gente de todas as raças: asiáticos, europeus, ameríndios, africanos e povos de sangue mesclado da América do Sul. (LE BRETON, 2002, p.09.).

Nesta senda, são muitos os que ainda compreendem que o trabalho escravo contemporâneo, mesmo quando somado ao cerceamento da liberdade, não pode ser considerado escravo, visto que difere quase que completamente da situação da escravaria descrita entre os séculos XVI e XIX, e por isso é comumente utilizado para contrapor às formas tradicionais de escravidão. Assim sendo, a escravidão moderna não seria merecedora do termo, quando esta é comparada à greco-romana. Desta forma, entendemos que a aplicação indevida do termo pode gerar anacronismos, daí a necessidade de novos estudos em busca dos caminhos e descaminhos da escravização contemporânea e seus desdobramentos no mundo pós-moderno.

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SILVA, José Carlos Aragão. Conversa bonita: o trabalho escravo na agricultura contemporânea brasileira e o aliciamento de camponeses na Região dos Cocais, Maranhão. Teresina, 2004. 163p. Dissertação [Mestrado em Políticas Públicas]. Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2004.

PAIVA, Eduardo França. Trabalho compulsório e escravidão: usos e definições nas diferentes épocas. 2005, p. 08.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História Cultural & Multidisciplinaridade. Revista de História e Estudos Culturais. vol. 4, n. 04, 2007.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

VILELA, Ruth. Entrevista concedida ao projeto Memória Institucional do Ministério do Trabalho e Emprego. CPDOC/FGV, 2006, fita 2, p. 34.

WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

1 Propositalmente pluralizada, na tentativa de evidenciar a diversidade e imensidão de que a compõe.

2 Alguns dicionários como Houaiss e Aurélio registram a expressão hifenizada. Em contraparte, optamos pela gráfica proposta pela 5ª edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa – VOLP.

3Expressão forjada por Carlo Ginzburg para descrever o sentimento de euforia, quando do início de um novo estudo e os desafios advindos da escolha. Ver, GINZBURG, Carlo. Feiticeiras e xamãs. In: O fio e os rastros: verdadeiro falso e fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 296.

4Clássico do cinema mudo,filme de 1936 dirigido e protagonizado pelo cineasta e ator inglês, Charles Chaplin. Sátira ardilosa ao mundo capitalista e a sociedade industrializada, bem como, aos aspectos alienante e exploratório do trabalho.

5TEMPOS MODERNOS. Charles Chaplin, Estados Unidos; 1936, preto e branco, 87 min.

6Para análise da passagem da antiguidade clássica ao medievo com uma abordagem marxista, ver ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

7 Consideramos deveras um conceito strictu sensu, portanto, muito limitado para denotar o fenômeno que se propõe na obra LE BRETON, Binka. Vidas roubadas - a escravidão moderna na Amazônia brasileira. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

8Ver, KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/ Editora PUC-Rio, 2006.

9Etimologicamente o termo tem origem na filosofia grega mais precisamente na retórica, tautó/logos, significam o mesmo/palavra. Portanto é, um termo ou expressão que apresenta uma mesma ideia de formas diferentes e por vezes é capaz se de auto-explicar.

10

11Entrevista realizada durante a realização do projeto ‘Memória Institucional do Ministério do Trabalho e Emprego’, objetivando é destacar a história e memória do Ministério do Trabalho. Um dos resultados do projeto foi a publicação da obra: GOMES, Ângela de Castro. Ministério do Trabalho: uma história vivida e contada. Rio de Janeiro: CPDOC/ Ministério do Trabalho e Emprego, 2007. 376p. il.

12 Proposta de Emenda Constitucional - PEC 57A/1999, aprovada pelo Senado Federal em 27 de maio de 2014, que altera a redação do artigo 243 da Constituição Federal de 1988, prevê a expropriação de propriedades rurais e urbanas onde forem flagradas exploração do trabalho escravo serão destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular. Para muitos esta PEC representou inicialmente uma espécie de Segunda Abolição da Escravatura por assegurar a liberdade e dignidade do trabalhador.

13Projeto de Lei do Senado em discussão, em por função disciplinar o processo de expropriação dos bens e regular a diferenciação entre descumprimento da lei trabalhista e crime de escravidão.

14A esse respeito, ver, SILVA, José Carlos Aragão. Conversa bonita: o trabalho escravo na agricultura contemporânea brasileira e o aliciamento de camponeses na Região dos Cocais, Maranhão. Teresina, 2004. 163p. Dissertação [Mestrado em Políticas Públicas]. Centro de Ciências Humanas e Letras, Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2004. Para mais informações ver, BALES, Kevin. Gente descartável: a nova escravatura na economia global. Lisboa; Editorial Caminho, 2001, p. 23. BAUMAN, Zigmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, pp.47-79.

15 A esse respeito, ver, JOANONI NETO, Vitale; ALVES, Leonice Aparecida de Fátima. De ‘Peão’ a ‘João’: uma ação conjunta visando à reinserção social. In.: ACIOLI, Vera Lúcia Costa. GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. MONTENEGRO, Antonio Torres. [org]. História, cultura, trabalho: questões da contemporaneidade. Recife; Ed. Universitária UFPE, 2011, pp. 273-290, p. 281.

16O lugar-não é o contrário do lugar, não imprimi uma marca identitária, relacional tampouco histórica. Estes não-lugares são forjados no contexto da pós-modernidade em estações de trem ou metrô, aeroportos, rodoviárias e outros lugares de passagem, lugares de todos e de ninguém. AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Papirus, Campinas: 2010, p.73.


Recibido: 30/09/2015 Aceptado: 27/11/2015 Publicado: Noviembre de 2015

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