Jean Henrique Costa
Tássio Ricelly Pinto de Farias
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil
prof.jeanhenriquecosta@gmail.comResumo
Este ensaio busca, a partir de algumas reflexões presentes nos estudos do lazer e, sobretudo, no filósofo alemão Walter Benjamin, tecer algumas provocações acerca de formas de sociabilidades presentes no universo do brincar infantil, especificamente, no consumo de brinquedos industrializados, em contraposição as possibilidades crítico-criativas dos brinquedos, jogos e brincadeiras presentes na denominada cultura popular. Parte-se da noção de brinquedo popular, em contraposição ao brinquedo industrial, para se problematizar os limites de um brincar restrito a uma cultura lúdica individualista, consumista e enclausurada nos muros da racionalidade instrumental da indústria cultural dos brinquedos. O presente escrito visa, portanto, refletir sobre a condição social do brinquedo e da criança imersos na cultura do consumo, a fim de problematizar algumas consequências para a dimensão lúdica do brincar infantil.
Palavras-Chave: Brinquedos, Brincadeiras, Cultura Popular, Lazer, Walter Benjamin.
Abstract
Some reflections on leisure studies by Walter Benjamin, a German philosopher, are the base into this essay to make teasing about forms of sociability present in the universe of children's play, specifically, consumption of commercial toys, as opposed to critical and creative possibilities of toys, games and gifts played on the so-called popular culture. The sense about popular toy against industrial toy is firstly required to problematize the boundaries of a restricted play to an individualistic, consumer and enclosed playful culture in walls of instrumental rationality of the cultural industry of toys. What is written aim to reflect about social condition of the toy and the child immersed at consumer culture, in order to discuss some consequences for the playful aspect of child play.
Keywords: Toys; Play; Popular Culture; Leisure; Walter Benjamin.
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Jean Henrique Costa y Tássio Ricelly Pinto de Farias (2015): “Reflexões sobre brinquedos e brincadeiras do universo lúdico infantil sob o escudo da indústria cultural”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, n. 30 (octubre-diciembre 2015). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2015/04/brinquedos.html
Com o avanço sistemático e prescritivo da indústria cultural, e o pujante apetite da indústria de brinquedos, temos progressivamente no universo lúdico da criança uma substituição de brinquedos e brincadeiras DA criança por brinquedos e brincadeiras PARA a criança. Este jogo de palavras, DA e PARA expressa, apesar da aparente simplicidade, importante sutileza metodológica. Ora, uma produção social da criança requer, para uma substantiva relação lúdica, criatividade, participação na confecção e elaboração das atividades e construção dos brinquedos, regras de convivência, coletivismo, associação, reconhecimento do ‘outro’ no brincar, etc. Já uma produção social para a criança remete problematizar uma produção estranha a própria constituição do sujeito, isto é, uma forte possibilidade individualista e utilitária de consumo. Diríamos mais: uma apropriação capitalista do brincar que se materializa na proliferação toyotista de brinquedos industrializados dispostos a encantar e seduzir o universo infantil. Como destaca Benjamin: “[...] quanto mais atraentes, no sentido corrente, são os brinquedos mais se distanciam dos instrumentos de brincar; quanto mais ilimitadamente a imitação se manifesta neles, tanto mais se desviam da brincadeira viva” (BENJAMIN, 2009, p. 93).
A partir de algumas reflexões presentes nos estudos do lazer e, sobretudo, nos escritos do teórico alemão Walter Benjamin, procura-se tecer aqui algumas provocações acerca de formas de sociabilidades presentes no universo lúdico, especificamente, no consumo de brinquedos industrializados em contraposição as possibilidades crítico-criativas dos brinquedos, jogos e brincadeiras presentes na denominada cultura popular. Meira (2003) destaca que em Reflexões sobre o brinquedo, a criança e a educação (referência basilar do presente artigo), Benjamin concebe a memória dos brinquedos e do brincar como processos que passaram (e passam) por determinadas mudanças em decorrência do modo de produção capitalista. Nas palavras da psicóloga, ao mesmo tempo em que Benjamin
[...] realiza uma análise histórica, aponta para a crescente massificação própria da evolução industrial que acaba por inscrever o brinquedo em uma dimensão de homogeneização. O apagamento da singularidade, a “plastificação” dos brinquedos, evoca a era social que Benjamin aponta como própria do capitalismo que avança revelando seus contornos inclusive no campo da infância. Neste sentido, os brinquedos evocam as formações do social, são objetos que revelam em sua configuração os traços da cultura em que se inscreve (MEIRA, 2003, p. 75).
Hoje podemos dizer que vivenciamos a hegemonia cultural dos brinquedos industrializados, não apenas dentre os estratos sociais mais abastados. A expansão massiva da produção ‘chinesa’ de brinquedos de baixo custo invade as ruas dos comércios populares. Por outro lado, os chamados brinquedos artesanais, cada vez mais sobrevivem apenas em contextos sociais periféricos ou, em casos excepcionais, em situações educativas pedagogicamente planejadas[1]. Em certas áreas rurais, por exemplo, embora se façam presentes os brinquedos industrializados, conservaram-se algumas brincadeiras tradicionais, associadas ao próprio modo de vida marcado ainda pela tradição. Dentre elas, a chamada atiradeira ainda sobrevive (comumente conhecida como ‘estilingue’, ou, no interior do Rio Grande do Norte, ‘baladeira’); brincadeira de acertar alvos com pequenas pedras arremessadas por um instrumento artesanalmente confeccionado com um gancho de madeira e duas ligas de silicone ou borracha presas à uma funda de couro (local onde se coloca a pedra).
Logicamente, ao se reparar esta ‘rivalidade’ (tradição versus inovação), observa-se que se trata de uma disputa bastante assimétrica entre um simples brinquedo artesanal, produzido pela própria criança, e um Playstation 4, criado pelos propagandistas da Sony. Isso é obvio! E não estamos negando a atratividade deste famigerado videogame. O que está se discutindo aqui não é o produto em si, especificamente o papel tecnológico, mas sim, o uso social da técnica imerso em determinadas relações de poder. A passagem a seguir, de Walter Benjamin (2009, p. 91-92), sintetiza bem esta situação: “Uma emancipação do brinquedo põe-se a caminho; quanto mais a industrialização avança, tanto mais decididamente o brinquedo se subtrai ao controle da família, tornando-se cada vez mais estranho não só às crianças, mas também aos pais”. Meira (2003, p. 81) mais uma vez destaca o quão interessante foi a observação de Benjamin “[...] sobre a transformação do brinquedo como efeito da industrialização, marcando o distanciamento entre as crianças e seus pais que, antes, produziam-nos juntos”.
É importante notar a forma como Walter Benjamin percebeu o papel e a voracidade do capital mercantil voltado a comercialização de brinquedos. Apesar de não condescender plenamente com a situação aporética levada a cabo por Theodor W. Adorno acerca do papel alienante da racionalidade instrumental da técnica, Benjamin não foi ingênuo ao notar o crescente processo de instrumentalização do lúdico pelo capitalismo. Como bem observa o filósofo alemão ao comentar o trabalho de Karl Gröber sobre a história do brinquedo: “[...] o brinquedo é condicionado pela cultura econômica e, muito em especial, pela cultura técnica das coletividades” (BENJAMIN, 2009, p. 100). Fiel à concepção de técnica comum entre os teóricos da Escola de Frankfurt, Benjamin viu no capitalismo a transformação do brinquedo artesanal em ‘brinquedo em série’.
É importante frisar que uma luta desigual vem se travando entre a tradição lúdica dos brinquedos e brincadeiras da cultura lúdica infantil (poderíamos chamar de cultura popular) e a pujante indústria cultural. Nesse meio tempo alguns jogos e brinquedos tradicionais conseguem se manter. A pipa ainda é um exemplo básico, sobretudo em algumas áreas periféricas. Contudo, essa não é a regra. No geral, brinquedos como ‘roladeira’, ‘pião’, ‘perna de pau’ e tantos outros são esquecidos. Brincadeiras como ‘pega-ladrão’ e ‘amarelinha’ já viraram relato de história oral ou sobrevivem arriscadamente nas periferias. A criança, enquanto produtora de cultura, não pode se tornar mera consumidora. E não é! Entretanto, o assédio sistemático da indústria cultural não cessa. O que muitas vezes asfixia a capacidade criativa de resistência dos pequeninos. Como observa Volpato (2002, p. 224):
Sabemos que no seu brincar, a criança constrói e reconstrói simbolicamente sua realidade e recria o existente. Porém, esse brincar, criativo, simbólico e imaginário, enquanto forma infantil de conhecer o mundo e se apropriar originalmente do real, está sendo ameaçado pela interferência da indústria cultural e, conseqüentemente, pela falta de compreensão dessa necessidade no ambiente escolar [...] No entanto, é importante salientar que apesar de toda interferência da indústria cultural em torno do brinquedo, e da própria desvalorização da brincadeira de faz-de-conta no âmbito escolar, as crianças não são meras receptoras do que é veiculado, vendido, permitido. Nesse processo, há também uma reelaboração pelas próprias crianças dos elementos de seu patrimônio cultural.
Podemos ainda anunciar que, para além de consumidoras, as crianças, independentemente de classe social, vivenciam enormes barreiras para a fruição da vivência lúdica. Para Marcellino (2000), seria muito bom que o período da infância continuasse a ser o domínio do lúdico, do brinquedo, da brincadeira, enfim de criação de uma cultura da criança. Mas o que ocorre é que mesmo para a criança, as atividades lúdicas vêm sendo, cada vez mais precocemente, subtraídas do cotidiano. Como já destacado no início deste escrito, a produção cultural ‘da’ criança é substituída, cada vez mais, por uma produção cultural ‘para’ a criança, que a considera apenas como consumidor potencial. Isso ocorre independentemente de classe social. Nas camadas sociais mais carentes as crianças têm cada vez mais obrigações precoces – ajuda no orçamento doméstico, cuidado com irmãos, limpeza da casa, etc. Nas camadas mais privilegiadas, as obrigações não são econômicas, mas sim fruto de investimentos realizados pelos pais. É a escolinha disso, daquilo... (cursos de idiomas, escolas de esportes, aulas de música, viagens, etc.). Isso tem deteriorado estruturalmente o universo lúdico infantil.
Uma das características mais fascinantes do pensamento de Walter Benjamin é que sua reflexão sobre a cultura da criança e do adolescente desenvolve-se paralelamente à sua politização. Em oposição às pedagogias utilitárias – a ‘burguesa’, que enquadra os filhos como herdeiros, ou a ‘proletária’, que conta com futuros militantes –, o pensador defende a ideia de garantir às crianças a plenitude de sua infância[2].
Para Benjamin (2009, p. 86), “demorou muito tempo até que se desse conta que as crianças não são homens ou mulheres em dimensões reduzidas...”. Segundo destaca, “pode parecer às vezes que o nosso século tenha dado um passo adiante e, longe de querer ver nas crianças pequenos homens ou mulheres, reluta inclusive em aceitá-las como pequenos seres humanos” (BENJAMIN, 2009, p. 86). Não se trata, pois, de pensar o universo lúdico como algo (re)produzido para a criança, como se o seu mundo fosse, única e exclusivamente, uma produção do adulto. Cumpre dizer que, na ótica de Benjamin (2009, p. 58, grifo nosso), “as crianças formam o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande”. Sem dúvida, a criança deve ser percebida como sujeito participante e ativo na construção do seu admirável mundo de cores.
Para além dessas barreiras, Benjamin se preocupa ainda em destacar que a lógica do brincar da criança, marcada pela repetição, é diferente da lógica do brincar adulto, caracterizado pela imitação.
Mas, se até hoje o brinquedo tem sido demasiadamente considerado como criação para a criança, quando não como criança da criança, assim também o brincar tem sido visto em demasia a partir da perspectiva do adulto, exclusivamente sob o ponto de vista da imitação [...] Sabemos que para a criança ela [a repetição] é a alma do jogo; que nada a torna mais feliz do que o ‘mais uma vez’ [...] A criança age segundo esta pequena sentença de Goethe [Tudo à perfeição talvez se aplainasse / Se uma segunda chance nos restasse]. Para ela, porém, não bastam duas vezes, mas sim sempre de novo, centenas e milhares de vezes (BENJAMIN, 2009, p. 100-101).
Portanto, para Benjamin (2009, p. 102), “a essência do brincar não é um ‘fazer como se’, mas um ‘fazer sempre de novo’, transformação da experiência mais comovente em hábito”. Distintamente ocorre com a dominância dos brinquedos possibilitados pela indústria cultural. Massificados, racionalizados e programados para o uso rápido e descartável, muitos não chegam sequer a durar no cotidiano lúdico. Carregam em si uma certa “obsolescência programada”! Por isso, as prateleiras das lojas de brinquedos não cessam de novidades. Novos heróis surgem ciclicamente nas telas do cinema e bonecos são fabricados. O tédio se instala no consumo rápido desses produtos.
Na tentativa de explicar esse distanciamento entre o brinquedo e sua natureza essencial (o brincar), Benjamin (2009) dirá que, a priori, a fabricação e a venda dos brinquedos não eram prerrogativa de comerciantes específicos (VOLPATO, 2002). Os pequenos animais de madeira eram confeccionados por carpinteiros; os soldadinhos de chumbo, por ferreiros; as figuras de doce, por confeiteiros; assim por diante, conforme o material típico à cada profissão. O filósofo explica que, “antes do século XIX, a produção de brinquedos não era função de uma única [e específica] indústria” (BENJAMIN, 2009, p. 90). E complementa afirmando que, “o comerciante de brinquedo propriamente dito foi surgindo aos poucos, ao final de um período da mais rigorosa especialização comercial” (Op. Cit., p. 82).
Na linha dos acontecimentos históricos, com o desenvolvimento da indústria os brinquedos artesanais produzidos pelas próprias crianças, sozinhas, com os pais ou com colegas, vão se esvaindo em nome de um brincar voltado ao consumo. Consequentemente, todo um mundo de criatividade a serviço da imaginação infantil é perdido em nome da industrialização do lúdico. O brincar deixa de ser paulatinamente um tempo/espaço de criação, tornando-se cada vez mais um momento de consumo instantâneo (tendo em vista que os brinquedos são confeccionados para se tornarem obsoletos cada vez mais rápido). Volpato (2002, p. 220) lembra que, foi devido a crescente racionalização por que passou principalmente as sociedades ocidentais que “as características do brincar e jogar foram mudando radicalmente. O que antes era motivo de profundas relações familiares, com valores e sentidos culturais muito significativos, torna-se objeto destinado a um público-alvo, com um fim em si mesmo”. O lucro!
Benjamin, em ‘Rua de Mão única’, no aforismo ‘Canteiro de Obra’, muito bem nos lembra que não há limites para a construção infantil.
Elucubrar pedantemente sobre a fabricação de objetos – material educativo, brinquedos ou livros – que fossem apropriados para crianças é tolice. Desde o Iluminismo essa é uma das mais bolorentas especulações dos pedagogos. Seu enrabichamento pela psicologia impede-os de reconhecer que a Terra está repleta dos mais incomparáveis objetos de atenção e exercício infantis. E dos mais apropriados. Ou seja, as crianças são inclinadas de modo especial a procurar todo e qualquer lugar de trabalho onde visivelmente transcorre a atividade sobre as coisas. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelo resíduo que surge na construção, no trabalho de jardinagem ou doméstico, na costura ou na marcenaria. Em produtos residuais reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e para elas unicamente. Neles, elas menos imitam as obras dos adultos do que põem materiais de espécie muito diferente, através daquilo que com eles aprontam no brinquedo, em uma nova, brusca relação entre si. Com isso as crianças formam para si seu mundo de coisas, um pequeno no grande, elas mesmas. Seria preciso ter em mira as normas desse pequeno mundo de coisas, se se quer criar deliberadamente para as crianças e não se prefere deixar a atividade própria, contudo àquilo que é nela requisito e instrumento, encontrar por si só o caminho que conduz a elas (BENJAMIN, 2011, p. 16-17).
Nesse sentido, é imperativo que não deixemos a tradição dos brinquedos e brincadeiras populares morrer. Trata-se, segundo Nelson Carvalho Marcellino (2000), não de mero saudosismo, mas sim, de questão de memória nacional. Diríamos mais: negar a própria capacidade da criança de produzir seu universo lúdico. A criança não pode ser resumida a mera consumidora de brinquedos industrializados e jogos hegemônicos da moda vigente. A criança é ativa em seu universo lúdico. Como destaca Benjamin: “Não são as coisas que saltam das páginas em direção à criança que as vai imaginando – a própria criança penetra nas coisas durante o contemplar, como nuvem que se impregna do esplendor colorido desse mundo pictórico” (BENJAMIN, 2009, p. 69).
Ou ainda:
Mas há algo que não pode ser esquecido: jamais são os adultos que executam a correção mais eficaz dos brinquedos – sejam eles pedagogos, fabricantes ou literatos –, mas as crianças mesmas, no próprio ato de brincar. Uma vez extraviada, quebrada e consertada, mesmo a boneca mais principesca transforma-se numa eficiente camarada proletária na comuna lúdica das crianças (BENJAMIN, 2009, p. 87).
Logo, o avanço de uma sociabilidade lúdica infantil pautada demasiadamente no consumo termina por frear este esplendor colorido. Como se tem visto, ao invés de viver a natureza através da mais pura brincadeira – como crianças que se metiam mata à dentro em busca de certas aventuras, os pais hoje têm oferecido vídeo games, como forma de manter as crianças em casa, protegendo-as do mundo da vida. Novamente segundo Marcellino (2000), entre as tradições que vão sendo esquecidas, estão as antigas brincadeiras e jogos infantis, substituídas pela televisão, pelos brinquedos industrializados e mais recentemente pelas possibilidades abertas do mundo da informática e do ciberespaço. Para ele, uma série de fatores podem ser enumerados para este desaparecimento: a) o crescimento das cidades, que acarreta a redução de áreas livres para o lazer; b) a influência crescente dos meios de comunicação de massa; c) o grande número de brinquedos industrializados; d) e os avanços da informática, sobretudo nos jogos eletrônicos. Como resultado, destaca o autor, têm-se as piores consequências, tais como redução dos encontros infantis e eliminação dos brinquedos rústicos, feitos em casa; (a confecção desses brinquedos, além de ser divertida, ainda contribui para a capacidade manual e intelectual da criança).
Se Benjamin se espantou com a voracidade do capital mercantil produtor de brinquedos em sua época, o que dizer de hoje, com toda sedução dos produtores de bonecas Barbie, Polly ou Monster High, ou ainda bonecos Lego, Transformers ou algum herói Marvel?
Quem tiver vontade de ver a caricatura do capital mercantil, precisa pensar apenas em uma loja de brinquedos tal como era típica até cinco anos atrás e que até hoje continua sendo a regra nas pequenas cidades. Um diabólico alvoroço é a atmosfera fundamental. Máscaras sorriam ironicamente nas caixas dos jogos de sociedade e nos rostos das bonecas com traços realistas, exercitavam seu poder de atração nas negras bocas dos canhões, chiavam como risadinhas nos engenhosos ‘vagões de acidente’, que desmoronavam nas partes previstas quando acontecia a catástrofe ferroviária já programada (BENJAMIN, 2009, p. 98).
Porém, mesmo com o avanço dessa indústria cultural lúdica, a criança não sucumbe ao assédio da industrialização fria do mercado:
Nem todos os novos estímulos direcionados então à indústria de brinquedos foram-lhe úteis. A melindrosa silhueta das figuras laqueadas que, entre tantos produtos antigos, representam a modernidade, não constitui propriamente nenhuma vantagem para esta; tais figuras caracterizam antes aquilo que o adulto gosta de conceber como brinquedo do que as exigências da criança em relação ao brinquedo. São coisas meramente curiosas. Aqui são úteis apenas para fins de comparação, num quarto de crianças não servem para nada (BENJAMIN, 2009, p. 86).
Em suma, a criança não é um mero receptáculo perante a indústria de brinquedos. Nas palavras de Kishimoto (2014, p. 84), “nem sempre o objeto conhecido como brinquedo serve como suporte de brincadeira”. O próprio Benjamin, como pensador dialético, percebe que nem todos os brinquedos-produtos conseguem penetrar no mundo infantil das brincadeiras. Muitos deles consistem antes (e muito mais) naquilo que os adultos concebem como brinquedo, e não despertam entusiasmo nas crianças. Por isso, muitos desses produtos servem tão somente para enfeitar prateleiras. Quem nunca testemunhou certas cenas, como visitar um amigo que tem filho, e perceber que os brinquedos da criança não sevem para brincar, mas tão somente para enfeitar as prateleiras de seu quarto? As crianças muitas vezes até possuem coleções inteiras de bonecas Barbie, mas preferem àqueles bonecos que, por algum motivo, despertam sentimento de afetividade. Ou ainda, como percebeu Benjamin (2009), brincam com pedaços de osso, madeira, cano e tudo mais; menos com os brinquedos impostos pelos adultos – produtos da indústria cultural.
Contudo, para além da indústria cultural, como destaca Marcellino (2000), a criança enquanto produtora de cultura necessita de espaço para essa criação. Impossibilitada dessa criação torna-se consumidora, ainda sem repertório suficiente para que esse consumo se dê de forma crítica e criativa.
Com o crescimento das cidades e a aceleração do fenômeno da agorafobia (medo de espaços públicos), tem-se uma redução considerável do uso do espaço urbano. Áreas livres para a fruição contemplativa do tempo livre são privilégios de poucos nas maiores cidades. O medo comum em tempos de insegurança pública é crescente e isso afasta as pessoas das ruas, do brincar coletivo e da apreciação e vivência lúdica da dimensão pública das cidades. Como destaca a urbanista Raquel Rolnik (2000), permanece na rua apenas aquele grupo ao qual só resta o espaço público como moradia, como trabalho, como refúgio de sobrevivência.
Para Rolnik (2000) a dimensão pública vai perdendo cada vez mais sua dimensão política de contrato social. O espaço público vai diminuindo ao ser capturado e privatizado, restando apenas e tão somente aquele necessário para a circulação de mercadorias. Esvazia-se também a dimensão coletiva e o uso multifuncional do espaço público, da rua, do lugar de ficar, de encontro, de prazer, de lazer, de festa, de circo, de espetáculo, de venda.
Paralelo a isso, a crescente influência, diversificação e massificação dos meios de comunicação reforçam a cultura do enclausuramento. Não poderíamos esquecer a grande expansão e, podemos dizer, da massificação dos brinquedos e jogos eletrônicos. Estes equipamentos tecnológicos que proporcionam um ‘brincar sozinho’ podem promover certo distanciamento entre as crianças, à medida que às mantêm entre as quatro paredes de um apartamento, por exemplo. Certamente, embora sejam brinquedos, distanciam-se do lúdico! Como disse Kishimoto (2014, p. 102), “o lúdico só existe, quando brincantes assumem significados simbólicos em situações comunicativas”.
Logo, a manutenção de brinquedos e brincadeiras tradicionais é questão também de respeito a tradição lúdica. Essas brincadeiras fazem parte da história da cultura brasileira, sendo preciso, portanto, que se conservem. É imperativo uma política de conservação dessas tradições. Como bem lembra Benjamin (2009, p. 84), “hoje em dia, os brinquedos antigos tornam-se significativos sob muitos aspectos. Folclore, psicanálise, história da arte e a nova configuração gráfica encontram neles um objeto bastante profícuo[3]”.
Dizemos mais, trocar parte valiosa da memória nacional por um Xbox, Lego, boneca Barbie ou DVD da Peppa Pig significa negar nossa própria história. E o pior: uma história social da criança. O grande mérito da obra benjaminiana, para pensar esta problemática, certamente foi descortinar “uma vista privilegiada para o universo da criança[4]”, um universo da própria criança, dela e para ela. Prontamente, como diria Ataufo Alves, na canção Meus Tempos de Criança: “eu daria tudo que eu tivesse, pra voltar aos dias de criança. Eu não sei pra quê que a gente cresce. Se não sai da gente esta lembrança”.
Referências
BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Tradução de Marcus Vinicius Mazzari. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009.
______. Rua de mão única. In: ______. Obras escolhidas II. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 2011.
KISHIMOTO, T. M. Jogos, brinquedos e brincadeiras do Brasil. Espacios en Blanco. Serie Indagaciones, v. 24, p. 81-106, jun., 2014. Disponível em: < http://www.scielo.org.ar/pdf/eb/v24n1/v24n1a07.pdf >. Acesso em 07 set. 2015.
MARCELLINO, Nelson Carvalho. Estudos do Lazer: uma introdução. 2 ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2000 (Coleção Educação Física e Esportes).
MEIRA, Ana Marta. Benjamin, os brinquedos e a infância contemporânea. Psicologia e Sociedade (Impresso), v. 15, n. 2, p. 74-87, jul./dez., 2003. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/psoc/v15n2/a06v15n2.pdf >. Acesso em 07 set. 2015.
ROLNIK, R. O lazer humaniza o espaço urbano. In: SESC SP. (Org.). Lazer numa sociedade globalizada. São Paulo: SESC São Paulo/World Leisure, 2000.
VOLPATO, Gildo. Jogo e brinquedo: reflexões a partir da teoria crítica. Educação e Sociedade (Impresso), v. 23, n. 81, p. 217-226, Campinas, dez., 2002. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/es/v23n81/13938.pdf >. Acesso em 07 set. 2015.
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