Odenei de Souza Ribeiro
Renan Albuquerque Rodrigues
Francisco Alcicley Vasconcelos Andrade
Universidade Federal do Amazonas
falcicley@gmail.comResumo
Pretendeu-se fazer reflexão acerca da obra de Leandro Tocantins considerando a concepção de tradição e modernidade no pensamento do autor, a qual está articulada ao papel intelectual desempenhado por ele na organização e direção da vida cultural da região amazônica. Nascido em 1928, Tocantins procurou compreender processos sociais que levaram ao declínio da economia do bioma e nesse sentido o paper se situa, buscando ponderar sobre como Tocantins tentou assinalar estratégias políticas para destacar a região na agenda política nacional.
Palavras-chave: Leandro Tocantins, modernidade, Amazônia.
Resumen
Se tenía la intención de hacer una reflexión sobre la obra de Leandro Tocantins teniendo en cuenta el diseño de la tradición y la modernidad en el pensamiento del autor, que está articulada a la función intelectual desempeñado por él en la organización y dirección de la vida cultural de la región amazónica. Nacido en 1928, Tocantins trató de comprender los procesos sociales que llevaron a la caída de la economía bioma y en este sentido el papel se encuentra, buscando considere cómo Tocantins trató de señalar las estrategias políticas para resaltar la región en la agenda política nacional.
Palabras clave: Leandro Tocantins; la modernidad; Amazonas
Para citar este artículo puede uitlizar el siguiente formato:
Odenei de Souza Ribeiro y Renan Albuquerque Rodrigues (2015): “A modernidade amazônica a partir de reflexão sobre obra de Leandro Tocantins”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, n. 27 (enero-marzo 2015). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2015/01/leandro-tocantins.html
Introdução
Ciclos dialéticos de expansão/contração do capitalismo na Amazônia durante o século XX deixaram marcas indeléveis na esfera cultural e social da população da região. A dinâmica inseriu contingências aos povos do bioma que tinham modos de vida peculiares, mas que, com a inserção na nova realidade, viram-se às voltas em contradições econômicas e políticas imanentes à moderna sociedade europeia (Reis, 1968; Mayor, 2004).
A dinâmica do mercado mundial em formação agiu como catalisador de processos controversos, dinamizando de modo questionável sistemas imemoriais de saberes e fazeres em diferentes espaços amazônicos (Noda et al., 2001). A condição de heteronomia em que foram lançadas as populações contrariou referências normativas e fragmentou identidades vinculadas a construções sociais localizadas (Serra e Fernández, 2004; Sennet, 2006).
As formas de ordenamento espacial de etnias, tribos e povos da região amazônica foram lentamente se mesclando a modernas formas de apropriação e classificação do espaço urbano. Dessa maneira, a economia de mercado, a propriedade privada e o estado nacional submeteram todos na Amazônia a uma unidade paradoxal.
Foi em meio ao turbilhão da modernidade que a paisagem natural e as pessoas amazônicas foram redesenhadas pela lógica da acumulação capitalista e dos interesses políticos e culturais das metrópoles do velho continente. Sintoma disso foi revelado a partir de uma geopolítica estatal com objetivo de integrar a região por meio de projetos de colonização, assentamentos e agroindústria, todos incapazes de superar enclaves regionais (Schwade, 1990; Sallum Jr., 2003).
O período da borracha, por exemplo – o primeiro de grande porte na Amazônia com essas características –, constituiu-se em momento significativo do processo quando valores econômicos transacionados transformaram Manaus/AM e Belém/PA em metrópoles urbanas com infraestrutura de serviços que só mais tarde chegariam a outras cidades brasileiras.
Todavia, o curto espaço de tempo entre o ápice e o declínio do extrativismo da borracha em diferentes áreas amazônicas foi marcado por vigorosa produção intelectual no bioma, a partir da qual escreveram-se tanto visões otimistas acerca do futuro da região quando registros pessimistas relacionados ao abandono da Amazônia pelo poder público (Silva 2000; Silva, 2001).
Um autor em específico, nascido em 1928, Leandro Tocantins, procurou compreender os processos sociais de mudança que levaram ao declínio dessa economia regional e de outras que se seguiriam após a borracha. Ele tentou pensar em que medida seria possível construir estratégias políticas para pôr a região na agenda política nacional.
Ao longo dos anos, a produção intelectual e as ações políticas de Tocantins deslocaram-se do nacional-desenvolvimentismo para a modernização conservadora. Nesse sentido, a concepção de tradição e modernidade na Amazônia em seu pensamento se deu articulada ao papel fomentador que desempenhou na organização e direção da vida cultural, regional e nacional na região.
Partido inicialmente de uma análise sobre o ciclo da borracha e os impactos no cotidiano laboral, os argumentos do intelectual apontam, de forma macro, para uma síntese das condições regionais da vida, da arte, das crenças, das experiências ancestrais e da oralidade no bioma. Seus textos versam sobre interpretações da racionalidade burocrática e legal no âmbito da modernização conservadora levada a termo pelo regime militar pós-64, dentro da esfera das particularidades amazônicas.
A partir do suposto, foi objeto do artigo analisar proposições que Leandro Tocantins indicou mediante pesquisas acerca do estado de modernidade que abrangeu a Amazônia desde o século passado. Pontos observados ressaltaram perspectivas multidimensionais do autor, que deu ênfase a crenças, atitudes e valores amazônicos tradicionais em suas investigações.
Procurou-se verificar nos tópicos que seguem, respectivamente: i) quais matrizes acadêmicas nortearam o pensamento de Tocantins, ii) em que medida pensadores correlatos auxiliaram na interpretação do fenômeno da modernidade na Amazônia, iii) como se deu a influência da redefinição do espaço em Manaus e Belém para a modernidade do bioma na visão de Tocantins e iv) quais impactos do regionalismo do Recife e do modernismo de São Paulo-Rio na constituição do pensamento do autor.
Matrizes acadêmicas
Figura intelectual e política de destaque no governo de Arthur Cezar Ferreira Reis e no regime autoritário pós-64, Leandro Tocantins contribuiu para mudanças institucionais em nossa região durante o ciclo desenvolvimentista e a modernização conservadora no período autoritário, por meio do exercício de suas funções públicas e através de sua produção intelectual.
Para o pensador, a singularidade dos processos socioculturais e históricos no bioma reside no fato deles estarem alicerçados no extrativismo, atividade a partir da qual índios e portugueses tiveram papel decisivo para a formação dos tipos sociais característicos da região. Nesse aspecto, a diversidade cultural autóctone e o meio ecológico tropical matizaram instituições modernas com características locais, dando a elas ajuste necessário a condições da região.
Sustentava Tocantins que, diferente de demais territórios brasileiros, surgiu na Amazônia uma sociedade flutuante, no sentido em que ela se movimentava constantemente em busca de riquezas que a natureza oferecia. Uma movimentação oposta ao sedentarismo e a constantes familiaristas do Nordeste, forçando ao desenvolvimento de mecanismos de dominação em face ao trabalho de campo e à exploração da força de trabalho do gentio.
Apontava o autor que a exploração constituía não só o suporte econômico do extrativismo, através de uma contínua especialização de tipos – canoeiro, caçador, pescador, remeiro, coletor de drogas e outros – mas também fornecia elementos simbólicos para a formação de grande parte do imaginário cultural amazônico, sem falar na miscigenação entre índios e brancos, que resultou em tipos físicos regionais.
Percebendo que o extrativismo não criava nódulos estáveis entre região e nação, Tocantins destacou ser possível um processo de desenvolvimento de padrão industrial para modernizar a produção econômica e ao mesmo tempo lançar a Amazônia em um ciclo duradouro, deixando no passado a instabilidade que acompanhava o comércio de produtos naturais e inseria o bioma no mercado nacional e mundial da especulação.
A industrialização proposta a ser posta em marcha deveria levar em consideração valores tradicionais como fonte inspiradora da nova situação histórica, de modo que a ação dinamizasse a vida econômica local sem prejuízo ao conjunto das mentalidades resultante da experiência luso-indígena construída ao longo de três séculos.
Na obra de Tocantins, essa experiência luso-indígena foi geradora de mudanças na base de acumulação regional, vislumbrando um modelo por meio do qual gerações poderiam enfrentar desafios, problemas e questões. Um modelo que viria a moldar instituições, representações, cultura, valores e modos de vida.
A perspectiva situada era que industrializar seria o ato mais coeso a ser verificado na medida em que o Estado concebia o modernismo para a Amazônia no século passado. Uma concepção que não mudou essencialmente com o passar dos anos e sobretudo foi incentivada durante o regime militar e mais recentemente nos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff.
Por conta disso, tem-se que a sanha pelo desenvolvimento sem planejamento, causador de degradação socioambiental e justificado por uma pretensa evolução da vida dos seres humanos, desde tempos passados tem feito com que o bioma se torne alvo recorrente. Estradas, fazendas de gado, plantações extensivas, mineração de alto impacto, biopirataria, comércio ilegal de artefatos arqueológicos, grilagem, corte de madeira bruta e geração energética por exploração petrolífera, a gás ou via potencial hidráulico eram e ainda são medidas encontradas para explorar o que a Amazônia tinha e tem como riqueza.
Interpretação da modernidade na Amazônia
Leandro Tocantins viveu em uma época na qual a reforma urbana levada a termo por Eduardo Ribeiro em Manaus/AM e Antônio Lemos em Belém/PA constituíram mecanismos modernos que redefiniram a apropriação do espaço urbano segundo a lógica do capital. Por meio dessas reformas Manaus e Belém ganharam atmosfera europeizada e ao mesmo tempo criaram um ambiente de confiança para atrair investimentos e reproduzir mercados de commodities.
A dinâmica de modernidade das duas cidades, durante o período, foi tema recorrente entre pensadores como Araújo Lima, Arthur Cezar Ferreira Reis e Djalma Batista. Suas obras e a atmosfera social que as engendraram estão intimamente articuladas ao pensamento de Tocantins durante seu período mais produtivo.
Lima, Reis, Batista e Tocantins desempenharam relevante papel diretivo e organizativo na esfera cultural e política do Amazonas. As condições que permitiram a eles assumirem posições políticas e responderem a impasses da modernização situam-se em relações sociais de classe, no interior das quais certas classes e frações de classe aquecem debates em torno de um projeto nacional de desenvolvimento para a Amazônia.
O modelo interpretativo, posto em movimento pelos quatro intelectuais, direcionava-se a singularidades de processos sociais, culturais, políticos e econômicos do espaço local e a uma rede de ralações mundiais mediada pela Nação. Eles expressaram a tese de que desequilíbrios regionais devem ser superados via ação política de integração regional por parte do Estado brasileiro; ação política na qual a Amazônia ganharia projeção social.
Para os autores, a criação de dispositivos jurídicos, políticos e administrativos no âmbito federal proporcionaria equidades no pacto federativo capazes de estabelecer planos para a integração nacional, permitindo, assim, a retirada da Amazônia do atraso profundo e do esquecimento a qual fora submetida.
A direção dessa vontade coletiva de retirar a Amazônia do abandono a que foi relegada pelo governo federal é que produziu o fio orientador do pensamento social de Araújo Lima, Arthur Cezar Ferreira Reis, Djalma Batista e Leandro Tocantins. Exemplo significativo foi a busca pela aprovação de verbas da ordem de 3% do orçamento nacional para investimentos na Amazônia regulamentado por Getúlio Vargas em 1952 com a criação da SPVEA1 .
Eles contribuíram para a difusão desse intento no âmbito político e ainda no contexto cultural da região, por meio de ampla produção intelectual, popularizando imagens da Amazônia profunda como símbolo de um Brasil diverso, imagens que se converteram em representações de uma consciência nacional sobre a importância estratégica do bioma para o projeto de desenvolvimento do país.
A validade e o alcance dos estudos empreendidos sobre a Amazônia podem ser aferidos no grau de institucionalização das propostas dos autores, isto é, no modo pelo qual elas deram corpo a dispositivos, estatutos, regimentos, códigos e normas que coordenariam ações de indivíduos, hierarquizando e classificando-os no tempo e espaço segundo procedimentos tornados práticas no contexto das instituições as quais assumiram direção como agentes públicos.
Esse foi o exemplo das intendências de Educação, Saúde e Prefeitura de Manaus, administradas de modo direto por Araújo Lima; a SPVEA e o Departamento de Comercio Exterior, dirigidos durante anos por Arthur Cezar F. Reis; e o Inpa, coordenado na administração e cientificamente por Djalma Batista.
As análises realizadas sobre a região não estavam desvinculadas do exercício público das funções. A mediação profissional não era separada da mediação política. Nesse sentido, é como concepção de mundo que as representações difundidas nas camadas sociais estabeleceram vínculos que permitiram unidade sociocultural necessária à condução política da hegemonia pela classe dirigente.
Naquele período, a redefinição da apropriação dos espaços urbanos foi sendo orientada na medida em que a construção de ideia de Amazônia exótica, pitoresca, com sua população desejosa por ter a modernidade pra si, explorar recursos naturais e viver de lucros, tornou-se consistente no imaginário popular, com suas vertentes positiva e negativa.
É possível afirmar que ao se investirem de funções no espaço público eles exerceram forte papel nas ações “diretivo-organizativas” e na vida “política e cultural” regional (Gramsci, 2004, p. 29). Nas dobras e margens de cada página escrita perante as ações políticas desses quatro intelectuais – Araújo Lima, Arthur Cezar, Djalma Batista e Leandro Tocantins – nota-se a procura por uma unidade entre as elites locais que pudesse conferir direção ética, estética e econômica para a Amazônia.
Eles estavam convencidos de que, imprimindo mudanças no padrão de acumulação de capital e acelerando o processo de modernização, seria integrada a Amazônia à nação e ao mercado mundial sem a perda das raízes híbridas. O projeto de entrada do bioma nesse maravilhoso novo mundo foi pensado segundo injunções temporais e o papel funcional da proposta na conjuntura regional foi articulado a partir de uma ideia de nação regionalizada.
No campo de disputa com outros grupos de intelectuais é que Araújo Lima, Arthur Cezar, Djalma Batista e Leandro Tocantins assumiram papel relevante na condução da região no cenário de lutas pela definição de um projeto de modernização nacional. O modo como exerceram atividades públicas e opções intelectuais e políticas foi ligado a conflitos, lutas e alianças pelo direito legítimo de conduzir a região no âmbito das transformações modernas em curso no Brasil.
A atmosfera compartilhada por eles no espaço social de Manaus e Belém forneceu coordenadas de classificação de mundo que seriam moduladas pela educação formal e por experiências futuras, sem jamais se apagarem em definitivo do horizonte das percepções do mundo social, pois nelas estavam depositadas aspirações primordiais que se redefiniram no curso dos jovens intelectuais.
Os espaços compartilhados em Manaus e Belém
O ambiente tropical onde se ergueram Manaus e Belém, duas urbes do Norte, expandiu-se na primeira metade do século passado por meio de comércios da borracha e juta, e ainda de intercâmbios entre mercadorias, pessoas e culturas. O crescimento suscitou na população uma veia de consciência cosmopolita, pela qual se poderiam conectar dinâmicas da cultura local ao mercado mundial.
Ao pensar a questão, Leandro Tocantins almejou verificar em que medida essas urbes do Norte poderiam servir de espaço para a ação de organizações e instituições empresariais que tinham propostas modernistas de construção. Ele cotejou saber até que ponto a modernização poderia ser agregadora ou segregadora de tradições amazônicas.
Tocantins sugeriu que as modulações que a modernidade tendia a imprimir a Manaus e Belém, sobretudo aos espaços urbanos dessas cidades, estavam expondo ambiguidades inerentes a modos de vida amazônicos. Uma delas, dilatava-se ao ritmo da circulação de mercadorias e definia-se pelo sentido da apropriação; outra, comprimia-se ao tempo em que tradicionalismos eram ressignificados e situava-se em patamares cosmopolitas.
Tocantins, ao notar as mudanças, apontou reflexões referentes ao seguinte fato: a consequência da modernização é que até mesmo habitantes nativos de Manaus e Belém sentem-se em uma cidade estrangeira. Segundo ele, o crescimento vertiginoso ao qual as urbes foram submetidas de 1880 e 1930 foi uma resposta às necessidades de inversão do capital transnacional.
A adoção de modos de vida similares aos de cidades desenvolvidas da Europa lançou condições materiais e culturais para a viabilização de produção e transporte de mercadorias extraídas do bioma para grandes centros consumidores, não levando em conta os habitantes nativos. A consciência cosmopolita foi forjada em meio a uma consciência excludente.
Os requisitos institucionais e a atmosfera cultural retratados por Walter Benjamim em sua obra, Paris, capital do século XIX, indicam que o substrato material no qual a modernidade amazônica foi ancorada possibilitou formas diferenciadas de definição do espaço, alterando percepção e apropriação do solo por parte de indivíduos, grupos e classes sociais de Belém e Manaus.
Ao problematizar essa modernidade na Amazônia, Tocantins dialoga com Max Weber na proporção em que são questionadas combinações de fatores e forças, as quais permitem supostamente que somente na civilização ocidental apareçam fenômenos culturais de valor universal. Assim, pensava-se que os fatores não se constituem enquanto abstrações vazias: são concepções de mundo organizadas via relações estruturadas em práticas de grupos, classes e indivíduos.
Ao compreender a disciplina do uso dos espaços da cidade segundo categorias de agentes sociais, Tocantins entendeu que estavam sendo individualizados procedimentos na Amazônia para se enquadrar desvios que comprometiam a ordem. O desdobramento das práticas, para ele, foi uma tentativa de se dispor indivíduos em ordem hierárquica conforme trabalho, renda, saúde e local de moradia (Foucault, 1984).
A organização interna de empresas, os procedimentos administrativos e as formas como agentes realizavam atividades trabalhistas deixaram marcas no imaginário e na vida dos habitantes de Manaus e Belém. As firmas eram representadas por manauaras e belenenses como metonímia de civilização e modernidade, visto que as atividades que as organizavam correspondiam ao modelo urbano ideal presente no imaginário da sociedade da época.
Essas corporações, entendia Tocantins, eram responsáveis não só por inversões de capital necessárias para a extração, beneficiamento e transporte de materiais retirados da floresta. Mas também pela introdução de modos de vida e concepções de mundo junto à população local. O modus operandi, com procedimentos coordenados e hierarquizados temporalmente para tornar mais eficiente as atividades modificaram formas tradicionais de viver.
O que ocorreu foi uma sobreposição resinificada da vida que antes era regida por temporalidades tradicionais e depois seria fundada na disciplina do trabalho, na racionalidade legal e econômica. Não é sem sentido que mudanças as quais Manaus e Belém foram submetidas na época guardam semelhanças com as ocorridas nas cidades europeias de Paris, Madri, Berlim, Londres e Liverpool.
Leandro Tocantins, na avaliação do processo, ponderava que o espírito da destruição inovadora imanente à modernidade iria conferir ambivalência aos agentes que estão submetidos às forças desenvolvimentistas. Nesse pressuposto, o que organizava, coordenava e hierarquizava as relações sociais em Manaus e Belém não eram forças que estavam em cena no espaço físico das urbes, mas em relações distanciadas que determinavam natureza, mercado e cultura amazônicas (Tocantins, 1977; Ianni, 1996).
Influências do regionalismo do Recife e do modernismo de São Paulo-Rio
O impacto do movimento regionalista do Recife e do modernismo do eixo São Paulo-Rio no pensamento de Leandro Tocantins foi decisivo para a constituição de reflexões do autor acerca da amazonidade no início da segunda metade do século passado e após o começo da década de 1950.
A partir desses dois movimentos, com acentuada inclinação para o regionalismo, Tocantins acreditava que o elo entre tradição e modernidade era a cultura. Tradição entendida por ele como valores que personalizam a região e o país em suas manifestações de vida, tanto no aspecto material como no espiritual.
Partindo das bases desses movimentos, a modernidade pensada por ele era entendida como um conjunto de mudanças sociais, políticas e econômicas que se desencadeavam a partir de desenvolvimentos técnico-científicos.
A cultura, por sua vez, era entendida como ação dinâmica do homem na história. Tocantins enfatizava que era possível associar a essência de um valor passado à dinâmica criativa das transformações modernas a partir de correlações culturais.
Era crível, descrevia o autor, que se cultivasse o passado por meio do espírito moderno, dele extraindo a substância que levasse a saudáveis ímpetos criativos dignos da civilização tropical e mestiça como a lusotropicologia, ciência proposta por Tocantins para estudar a Amazônia em seus aspectos sociais, antropológicos e físicos naturais.
A produção intelectual de Tocantins não deve ser isolada do sistema de referências sociais na qual foi produzida. As obras mais importantes desse período foram O rio comanda a vida, Amazônia – Natureza, homem e tempo e Vida, cultura e ação. Nesse livros, buscava-se equacionar problemáticas entre tradição, cultura e modernidade.
A prolongada experiência de Tocantins na Amazônia profunda e a origem social o inclinaram para o regionalismo, sem, no entanto, deixar de incorporar algumas das contribuições do modernismo. Não admira que sua ação nas esferas política e cultural seja a de conciliar o passado com as mudanças em curso no presente.
A fórmula consiste em ajustar a tradição à modernidade como meio de nos transformarmos conservando raízes ameríndias, africanas e lusas de nossa cultura. Dessa maneira, da percepção do movimento nasce a interpretação focada na identidade regional como momento da constituição nacional (Tocantins, 1982).
Na busca por uma cultura e uma identidade regionais que se pretendessem legítimas, os estudos levam-no à conclusão que a diversidade cultural regional brasileira não inviabilizava a unidade nacional, pelo contrário, deveria ser o ponto de partida para que se desenvolvessem as potencialidades como nação.
A Amazônia participa de um sistema de reuniões culturais interdependentes e inter-relacionadas. Sua contribuição, através dos tempos, à cultura brasileira, e também à universal, nos faz prever o que ela ainda virá a oferecer se a inteligência nacional souber aproveitar as suas potencialidades no campo da natureza física e no campo da criação humana (Id., op. cit., p. 51).
As teses regionalistas assumiram para o autor a condição de vias legítimas para superar estigmas atribuídos à região e, ao mesmo tempo, retirá-la do ostracismo econômico e político. A missão dele consistiu em estimular o debate para sensibilizar a consciência nacional em torno da importância estratégica que a região possuía para o desenvolvimento.
Os argumentos de Tocantins deixam transparecer o ideal cívico e nacionalista mobilizados como estratégia a fim de realizar a superação de pechas imputadas à Amazônia, posicionando-a como espaço fundamental a ser pensado em face à situação política da cultura brasileira e de um projeto nacional que observasse a ordem social em transformação.
A necessidade de criar uma vontade coletiva nacional de desenvolvimento em relação à Amazônia estava vinculada à crise do modelo agrário exportador nacional e ainda à necessidade de fazer com que grupos sociais das regiões Sul/Sudeste do Brasil dessem respostas às mudanças em curso no país.
Dessa necessidade, surgiu a proposta de uma lusotropicologia, então formulada por Gilberto Freire para interpretação de nossas origens, e que depois possibilitou a Tocantins uma nova visão da experiência da pessoa no trópico. Seguindo as sugestões de Freyre, o amazonófilo propôs uma amazonotropicologia (Ribeiro, 2012).
A intenção consistiu em interpretar a Amazônia através de critérios universais de estreita ligação com os saberes locais, não só regionais e ecológicos como também transregionais. A amazonotropicologia era para ser entendida enquanto ramo da lusotropicologia e da hispano tropicologia sugerida por Freyre em suas obras.
Considerações finais
Na perspectiva de Tocantins os povos da Amazônia, como atores sociais, viveram dilema existencial profundo, pois espaços socioambientais passaram a ser entendidos, por conta do modernismo, como lugares de velhos modismos em contraposição ao urbanismo da polis desenvolvida tecnologicamente.
Amazônidas, compreendidos como moradores de fora da urbe maravilhosa, ao negociarem relações a partir de referencial bucólico e em função de conflitos mediados por noções preconcebidas, utilizaram-se de simbolismo funcional tal qual uma argamassa para as relações. Um simbolismo que se serviu da geografia humana das comunidades para inferências sobre a formação social dos indivíduos, como apontava Tocantins.
A observação relacionada à geografia humana apoiou-se no princípio da compreensão das interpretações das pessoas ante seu socioambiente compartilhado. O viés é uma das maneiras condizentes de se conhecer a gama das delicadas peculiaridades concernentes às representações sociais dos moradores do bioma, segundo o pensador.
Para ele, o debate de interface com a geografia humana tem como elemento essencial o entendimento de conteúdos mentais privados e coletivos, objetivando esclarecer assertivas essencialmente amplas, levando em consideração a inadmissão da dicotomia entre pessoa e ambiente.
Dosando elementos antropológicos, sociológicos e geográficos, a obra de Leandro Tocantins acentuou uma proposta de estudo fortalecida pelo conteúdo de informação social que carregava. Todo o arcabouço teórico de que se constituem suas investigações tem como objetivo sustentar a hipótese de o quanto o meio conjuga sua força sobre a pessoa.
Os estudos caminham nesse sentido e questionam em que medida a projeção se concretiza junto a arregimentação de crenças dos sujeitos. A análise de Tocantins pode ser tomada hoje como de importância singular por ter sido construída junto a amazônidas, observando o bioma de dentro e de perto.
Tocantins, ao frisar a pessoa, circunstancia a realidade individual e coletiva das comunidades rurais, ribeirinhas, tradicionais e de assentados do campo, detendo-se mais na totalidade do socioambiente que em particularidades segregadoras, as quais povoam mentalidades enquanto unidades alimentadoras de comportamentos. Ele pretendeu se fazer notar a partir de liames do simbolismo com linguagem representativa.
Tocantins contribuiu ainda ao questionar o caráter tecnocrático do planejamento desenvolvimentista que ao longo dos tempos foi efetivado na Amazônia, sendo um dos escritores mais importantes no que tange à formação social do pensamento no bioma. Ele buscou dosar ousadia com criatividade ao ponderar que o enigma do tempo humano versus o tempo cronológico é real no que tange às dimensões da região amazônica.
O autor destacou, por exemplo, que a indústria seria uma grande possibilidade de avanço para os povos da capital e dos interiores da floresta, na metade do século passado. Na época, a preocupação ambiental, como a conhecemos hoje, era praticamente nula, e o tempo mostrou, na atualidade, que conglomerados para a manufatura devem ser formados a partir de tecnologias para que se possa tentar projetar uma agressão menor à natureza.
Ele reconheceu e destacou que as forças de mercado abandonadas à livre dinâmica não garantem, por si só, manutenção de recursos naturais e de territórios afetivos. Para Tocantins, somente exercícios fundamentados de entendimento científico da realidade poderiam representar alternativas viáveis para a Amazônia.
A contribuição de Tocantins ao formular a ideia de amazonotropicologia foi abrangente na medida em que a proposta sugeriu uma ciência específica para o estudo do ajuste ecológico da pessoa ao trópico úmido, sendo compreendida a partir da influência exercida pelo pensamento de Gilberto Freyre sobre seus métodos de estudo e produção intelectual.
A preocupação de Tocantins com os problemas decorrentes da diversidade regional brasileira e as implicações culturais indica a adesão à perspectiva de estudo do sociólogo pernambucano, que toma a realidade brasileira como uma constelação de Brasis, isto é, um Brasil uno e ao mesmo tempo diverso.
Nessa conjuntura, a Amazônia representa uma das ilhas do vasto arquipélago cultural brasileiro pensado por Darcy Ribeiro, uma ilha ao mesmo tempo ecológica e sociológica, exigindo para ser entendida uma compreensão ajustada aos critérios de interpretação luso-tropicalista formulada pelo pensador pernambucano e adaptada por Tocantins à realidade amazônica.
Na visão do autor amazonófilo, o desenvolvimento regional assentado na moderna ciência dos trópicos não implicava em abandono dos valores tradicionais e de suas manifestações regionais. Ao contrário, a amazonotropicologia deveria por meio da pesquisa preservar saberes e fazeres locais como sinal característico da identidade regional e como fonte de inspiração.
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