Danila Barbosa de Castilho
Maria Augusta de Castilho
Universidade Católica Dom Bosco
dani_tilho@hotmail.comResumo
Este trabalho analisa a heresia cátara, seu desenvolvimento, apogeu e declínio na França entre os séculos XI e XII. Os hereges cátaros questionavam a doutrina católica, porque eram anticlericais, celibatários, por negarem os sacramentos e serem extremamente dualistas com relação ao espírito (visto como bom e superior) e a matéria (vista como má e inferior), entre outras questões. O tema desenvolvido foi escolhido devido à importância da heresia cátara, assim como das demais heresias medievais, para a construção da teologia da Igreja Católica. As heresias muitas vezes são vistas como algo negativo, mas pretendiam atender as questões sociais e aos novos desafios presentes na sociedade por meio de novas práticas cristãs. Para esta análise, foi realizado um levantamento bibliográfico em livros e artigos em revistas científicas acerca da heresia cátara para a sistematização dos dados que colaboraram na constituição deste trabalho.
Palavras-chave: Heresia cátara, História, Religião, França medieval, Território.
Resumen
Este trabajo analiza la herejía cátara, desarrollo, ascenso y la caída en Francia entre los siglos XI y XII. Los herejes cátaros cuestionaron la doctrina católica, porque eran anticlericales, célibe, para negar los sacramentos y son extremadamente dualista relación con el espíritu (visto como bueno y arriba) y la materia (visto como malo e inferior), entre otros temas. El tema desarrollado fue elegido debido a la importancia de la herejía cátara, así como otras herejías medievales, para la construcción de la teología de la Iglesia Católica. Herejías se ven a menudo como algo negativo, sino que querían abordar las cuestiones sociales y los nuevos retos de la sociedad a través de nuevas prácticas cristianas. Este análisis se basa en una literatura en libros y artículos en revistas científicas sobre la herejía cátara a la sistematización de la información que ha colaborado en la creación de esta obra.
Palabras clave: herejía cátara, historia, religión, medieval Francia, Territorio
Abstract
This paper analyzes the Cathar heresy, development, rise and fall in France between the eleventh and twelfth centuries. The Cathar heretics questioned the Catholic doctrine, because they were anti-clerical, celibate, for denying the sacraments and are extremely dualistic relationship with the spirit (seen as good and above) and matter (seen as bad and lower), among other issues. The theme developed was chosen because of the importance of the Cathar heresy, as well as other medieval heresies, for the construction of theology of the Catholic Church. Heresies are often seen as something negative, but wanted to address social issues and new challenges in society through new Christian practices. This analysis was based on a literature in books and articles in scientific journals about the Cathar heresy to the systematization of information that collaborated in the creation of this work.
Key-words: Cathar heresy, History, Religion, Medieval France, Territory
Para citar este artículo puede uitlizar el siguiente formato:
Danila Barbosa de Castilho y Maria Augusta de Castilho (2015): “A heresia cátara na França no contexto dos séculos XI e XII”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, n. 27 (enero-marzo 2015). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2015/01/heresia-catara.html
Introdução
As diversas heresias que surgiram no período medieval contribuíram para a consolidação da teologia da Igreja Católica, pois questionavam algumas práticas e dogmas que mais tarde foram repensados, reformulados e alguns foram incorporados, como o franciscanismo, à teologia oficial da Igreja Católica. O catarismo é apontado por alguns autores como um dos movimentos heréticos medievais que mais teve influência na sociedade da época. A heresia cátara herdou características de heresias e concepções religiosas presentes desde a antiguidade oriental, como o dualismo herdado do maniqueísmo. Assim como outras heresias, o catarismo mostrou seu descontentamento com o clero, com a hierarquia católica e com o regime feudal, expressando também as aspirações da crescente burguesia.
Este trabalho encontra-se dividido em três partes para compreensão da heresia cátara. Na primeira parte, o texto mostra o conceito de heresia e os significados que adquiriu ao longo da história. Em seguida, o segundo item, apresenta o contexto histórico da França na Baixa Idade Média, entre os séculos XI e XII. A terceira parte trata da heresia cátara, seu desenvolvimento, apogeu e declínio.
1 O conceito de heresia na história
Desde a formação do cristianismo o conceito de heresia sofreu modificações até possuir os significados que se conhecem hoje. Nos primeiros séculos, no período denominado Patrística (século I-VIII) a Igreja ainda não havia consolidado sua teologia. Embora houvesse disputa pela liderança, os grupos apostólicos possuíam características teológicas semelhantes. Nesse contexto, surgiram formas diferentes de entender a fé cristã, denominadas heresias. Conforme explica Barros (2010, p. 4), eram consideradas heresias as “[...] divergências que se estabeleceram no próprio seio do Cristianismo por oposição a um pensamento eclesiástico [...]” que era aceito por um determinado grupo.
De acordo com Queiroz (1988) aos poucos esses grupos de seguidores dos apóstolos, que eram ligados à fé cristã, incorporaram costumes, leis e a hierarquia romana e aplicaram-nas a sua organização interna.
Dentre as heresias desse período pode-se destacar: o arianismo - doutrina desenvolvida entre os séculos III e IV por Ário que afirmava a existência de um único Deus absoluto e eterno que criou Jesus; embora este seja superior a todas as criaturas, não seria eterno; o apolinarismo - doutrina desenvolvida por Apolinário, que visava combater o arianismo, na tentativa de explicar a natureza humana e divina de Jesus; e o gnosticismo – que se caracteriza pelo dualismo e pela crença na existência de seres intermediários entre Deus e a matéria - esta última, assim como a heresia cátara recebeu influência do maniqueísmo.
As heresias surgem de dentro do cristianismo. Os heréticos conheciam a teologia e os dogmas cristãos, mas se opunham a algumas práticas e acreditavam que suas crenças eram verdadeiras. No cristianismo primitivo era herege quem adotava práticas e pensamentos diferentes das práticas reveladas por Jesus Cristo, àquelas aceitas por certos grupos apostólicos como verdadeiras. No aporte de Cristiani (1962, p. 8): “Cristo escolheu apóstolos sem instrução. Mas êsses mesmos apóstolos tinham suas ideias, suas tradições, suas concepções sôbre o reino messiânico”.
Na Idade Média são considerados hereges, além dos indivíduos que praticavam formas diferentes de entender a fé, também aqueles que desobedeciam as ordens papais. Por outro lado, os indivíduos que praticassem a usura e os acusados de “bruxaria” por adotar práticas pagãs (não católicas) também eram hereges. Estas heresias medievais traduziam também as aspirações da burguesia em formação, os descontentamentos com o clero e o regime feudal, somados aos problemas sociais (CRISTIANI, 1962). As heresias atingiram e adquiriram adeptos de todas as classes sociais, inclusive do clero. Queiroz (1988) enfatiza que, na Baixa Idade Média, a sociedade estava impregnada de práticas religiosas cristãs, portanto problemas, tensões, mudanças e contestações eram elaboradas nessa perspectiva teológica. A autora acima citada expõe ainda que:
A heresia toma corpo na efervescência das mudanças dos séculos XI e XII. Há nessa época uma mudança de consciência e sensibilidade que permite não só a heresia, mas também os movimentos comunais, a formação da universidade e a própria reforma da Igreja. (QUEIROZ, 1988, p. 28).
Para a Igreja Católica o conteúdo das pregações dos hereges não era tão relevante, “[...] mas sim a atitude ante a instituição com sua hierarquia, disciplina e ordem.” (QUEIROZ, 1988, p. 31). Assim, se os grupos heréticos aceitassem obedecer a Santa Sé, os mesmos estariam livres de todas as suas acusações, já os que não aceitassem continuariam sendo considerados heréticos. Esta autora expõe ainda que a Igreja não queria apenas que a sociedade fosse cristã, mas também pretendia organizá-la e queria obediência.
A fim de acabar com as heresias, a Igreja Católica adotou diversas medidas. Na antiguidade foram realizados concílios, como o de Nicéia realizado no século IV para combater o arianismo, visando estabelecer e consolidar os dogmas aceitos como verdadeiros. Na Idade Média foram realizadas cruzadas, como a Cruzada anticátara (que será tratada de maneira breve posteriormente neste trabalho) convocada por Inocêncio III para combater o avanço da heresia cátara. A implantação da Inquisição objetivava defender a teologia oficial, combater os opositores e consolidar a doutrina da Igreja Católica medieval.
2 A França no contexto dos séculos XI e XII
A França medieval não era homogênea, havia diferenças culturais entre as regiões compreendidas no território francês. Como a França não era unificada, cada feudo possuía costumes e hábitos diferentes, os quais variavam também de acordo com a região.
Neste período, entre os séculos XI e XII, a França vivia o contexto do sistema, modo de produção ou regime feudal, também conhecido como feudalismo. Pirenne (1982, p. 13) define o feudalismo como sendo a
[...] desintegração do poder público entre as mãos de seus agentes que, pelo próprio fato de cada qual possuir uma parte do solo, tornaram-se independentes e consideravam as atribuições de que se achavam investidos como parte do seu patrimônio [...]
O modo de produção feudal é o sistema político, econômico e social presente na Idade Média, caracterizado pelos seguintes aspectos: ruralização da sociedade, enrijecimento da hierarquia social, fragmentação do poder, clericalização da sociedade e desenvolvimento das relações de dependência pessoal pela vassalagem e servidão (FRANCO JÚNIOR, 1994).
A Igreja Católica ocupava a posição mais privilegiada na hierarquia social, detinha a maior parte dos domínios feudais, maior detentora de condições financeiras que possibilitavam realizar empréstimos aos leigos, hegemonia na escolarização e na formação de intelectuais na Idade Média.
Pirenne (1982) destaca que desde a Antiguidade o Mediterrâneo foi uma importante via de comunicação e comércio. Com o avanço do islamismo e dos conflitos entre muçulmanos e cristãos, o comércio europeu no Mediterrâneo diminuiu significativamente. Os muçulmanos tinham o domínio do mar Mediterrâneo, com isso a Europa passa a praticar o comércio terrestre. Os cristãos retomaram o comércio e as comunicações no Mediterrâneo após a primeira cruzada; esta foi realizada a fim de combater o avanço islâmico.
Queiroz (1988, p. 29) explica, que “da mesma forma que a Europa recebia as correntes comerciais do Mediterrâneo oriental, receberia também do mundo grego e búlgaro as heresias”. Havia, no período medieval, crescentes mudanças de mentalidades (PIRENNE, 1982).
A partir do século X ganhava força um movimento religioso de moralização da sociedade laica e também do clero. Na França em 1039 surge o “[...] movimento canonial secular para purificar os costumes capitulares” (QUEIROZ, 1988, p. 21). Pode-se entender como costumes capitulares, aqueles baseados em normas e regras específicas de cada região. Queiroz (1988) dimensiona também que após a primeira cruzada, alguns franceses que estavam em Constantinopla retornaram às suas origens e começaram a pregar ideias aprendidas no Oriente.
Nesse mesmo período, com base em Pirenne (1982), aconteceu o ressurgimento do comércio e consequentemente tem início o processo de crescimento e fortalecimento das cidades. Novas aglomerações surgem ao redor das fortalezas feudais e cidades eclesiásticas. No interior das fortalezas e cidades predominavam atividades rurais, mas nos novos aglomerados urbanos que se desenvolviam já havia práticas comerciais. Juntamente com as novas cidades medievais e os movimentos de urbanização ligados à prática do comércio começa a surgir uma nova classe, a burguesia.
Com o ressurgimento do comércio e o aparecimento da classe burguesa tem início, conforme expõe Pirenne (1982), conflitos morais, pois os interesses da burguesia não eram compatíveis com a organização social e econômica existente. A Igreja Católica dominava a vida espiritual, acreditava que o lucro comercial era perigoso para a salvação da alma. A economia, a sociedade e a política eram dominadas pelos proprietários de latifúndios feudais, incluía-se neste grupo a própria Igreja Católica2.
Nos séculos XI e XII, o poder político estatal na França estava fragmentado e o rei já não tinha tanta força e influência política como antes. Loyn (1997, p. 377) explica que a principal forma de organização política e administrativa “[...] era o principado territorial. Tais concentrações locais de poder, reconhecendo pouca ou nenhuma autoridade externa [...]”. Enquanto em algumas regiões a influência do rei era forte, em outras ela era quase inexistente.
No século XII, o rei Filipe Augusto se esforçava para favorecer o desenvolvimento econômico da França. O rei, Filipe Augusto ocasionalmente apoiou as comunidades urbanas contra o senhor feudal destas que representasse perigo ao projeto de fortalecer as cidades, integrando-as ao “[...] sistema monárquico nacional [...]” (LE GOFF, 1992, p. 126). O rei da França fazia, portanto, alianças com a burguesia e deixava senhores feudais “de lado”. Como o poder político e administrativo era fragmentado sob a forma de domínios feudais, é possível pensar que o rei da França na pretensão de centralizar o poder em suas mãos buscava enfraquecer senhores feudais contrários ao seu plano. Neste sentido, o rei francês, por meio de alianças com a burguesia, pretendia afirmar-se enquanto monarca e reduzir a influência dos senhores feudais.
“[...] Filipe Augusto serve-se de certos termos e de certas obrigações da linguagem e da prática feudal para agir precisamente, não como seu pai e seu avô, como senhor feudal do domínio real, mas como rei da França” (LE GOFF, 1992, p. 125). Isso pode ter favorecido os senhores feudais a protegerem os hereges cátaros, na tentativa de evitar a perda de seu poder e privilégios. A França vivia, neste período, um momento de transição, pois as relações feudais aos poucos enfraqueciam, iniciava-se o processo de urbanização e fortalecimento das cidades.
Neste processo de crescimento e fortalecimento da população urbana ocorre também o crescimento do comércio entre campo e as cidades (PIRENNE, 1982). A burguesia não produzia alimentos para sua subsistência, tornou-se então necessário que o campo produzisse excedente para comercializar com as cidades e, assim, garantisse a sua subsistência, estabelecendo comercialização regular. Consequentemente, as feiras tornam-se importantes centros de negociação, em algumas regiões possuía mais importância e em outras regiões menos. Para Le Goff (1992), a partir de meados do século XII o movimento de urbanização está no auge e neste processo a França ocupa uma posição de destaque.
No século XII o catarismo começava a ser visto como algo prejudicial para a Cristandade e também para a hegemonia do rei Felipe Augusto, já que “[...] a pequena nobreza rural e uma aristocracia urbana composta por cavaleiros e comerciantes ricos ganharam espaço em Languedoc e colocaram em risco a autoridade dos grandes príncipes e do alto clero” (MACEDO, 2000a, p. 18). Com base nisso, é possível pensar que o rei viu na cruzada anticátara uma oportunidade de firmar sua autoridade no sul da França. Através do confisco das terras de nobres simpatizantes da heresia, o rei poderia conceder esses territórios a nobres obedientes a sua autoridade.
A Igreja Católica via no catarismo uma ameaça a sua hegemonia. Como foi mencionado anteriormente, a Igreja não se preocupava tanto com o conteúdo das pregações heréticas, mas sim se os hereges obedeciam a autoridade do papa. Os hereges cátaros questionavam a doutrina católica, porque eram anticlericais, celibatários, por negarem os sacramentos e serem extremamente dualistas com relação ao espírito (visto como bom e superior) e a matéria (vista como má e inferior), entre outras questões.
Conforme Magalhães (1998) afirma, as transformações econômicas e sociais que ocorreram ao longo do período conhecido como baixa Idade Média favoreceu o surgimento de religiosidades populares, que muitas vezes foram consideradas heresias por suas críticas a este momento histórico, por sugerirem novas práticas religiosas e o retorno aos ideais do cristianismo primitivo.
3 A heresia cátara na França entre os séculos XI e XII
A heresia cátara desenvolveu-se no sul da França na região denominada Languedoc, que compreende as cidades de Toulouse, Albi, Carcassone e Narbona. “A palavra cátaro deriva do grego kataroi (‘puro’) [...]” (QUEIROZ, 1988, p. 40), também ficaram conhecidos como albigenses, por concentrarem-se na região de Albi.
Os cátaros receberam forte influência dos bogomilos, pois foi por meio destes que os cátaros conheceram o dualismo maniqueísta. Loyn (1997) assinala que os bogomilos foram adeptos de uma seita que surgiu na Bulgária, por volta do século X, com origem no maniqueísmo. Queiroz (1988) assinala que, além de serem dualistas, os bogomilos acreditavam que o Diabo havia criado o mundo e toda a matéria, negavam o Antigo Testamento e consideravam inúteis todos os sacramentos.
Entre as características da heresia cátara, pode-se destacar o dualismo herdado do maniqueísmo (doutrina fundada por Mani na Babilônia), que pregava a luta entre o bem representado por Deus e o mal representado pelo demônio. A alma é pura e boa, enquanto a materialidade (inclusive o corpo, pois este teria sido criado pelo demônio para aprisionar a alma) é ruim, por ser criação do demônio.
O batismo católico com água não era aceito pelos cátaros, pois a água também seria criação do demônio. Portanto, “para entrar no estado de perfeição, os eleitos recebiam uma espécie de batismo espiritual [...] chamado consolamentum” (CRISTIANI, 1962, p. 55).
Queiroz (1988) apresenta que as comunidades cátaras eram divididas em crentes (discípulos dos perfeitos), perfeitos (também chamados eleitos, ingressavam na comunidade pelo ritual do consolamentum) e bispos. Muitos crentes continuavam frequentando a Igreja Católica, casavam e tinham filhos (ao contrário da doutrina católica, os cátaros condenavam as relações sexuais, inclusive no casamento). A assembleia dos perfeitos era a maior autoridade dentro da comunidade, a ela cabia a escolha dos bispos e a transmissão da fé cátara. Os perfeitos e os bispos não possuíam propriedades pessoais, sobreviviam graças às doações dos crentes, e viajavam de comunidade em comunidade pregando.
Para os cátaros, ao contrário do que era ensinado pela doutrina católica, Cristo era apenas um anjo, profeta, não sendo aceito, como salvador da humanidade. Eram contrários a ideia de ressurreição, pois acreditavam na transmigração da alma. Queiroz (1988) assinala que, de acordo com os cátaros, o indivíduo reencarnaria de forma diferente, dependendo do que este havia praticado na vida anterior. As pessoas boas reencarnariam como príncipes e reis e as más pessoas reencarnariam como animais. Como acreditavam que os animais possuíam alma, eram proibidos de matar qualquer animal, dessa forma, os cátaros eram vegetarianos.
Assim como os católicos, os cátaros também faziam penitências a fim de livrarem-se dos pecados e tornarem-se perfeitos. Quanto ao pecado, os cátaros acreditavam que todos os pecados eram mortais, inexistindo pecados venais conforme afirma a doutrina católica. Para os cátaros, existiam bons e maus. Os maus eram predestinados ao mal e nada podiam fazer para evitá-lo. O suicídio era uma prática comum entre os cátaros, pois acreditavam que dessa forma poderiam santificar-se, principalmente pelo sofrimento.
O catarismo atraiu a participação de muitas mulheres, pois como explica Queiroz (1988), a seita cátara proporcionava as mulheres o mesmo direito que os homens tinham de participar de todos os rituais, ao contrário da Igreja Católica onde somente homens poderiam desempenhar funções nos rituais.
Os cátaros criticavam também a concepção de trabalho dos católicos, pois estes, segundo eles, viviam “[...] às custas do trabalho alheio” (QUEIROZ, 1988, p. 59). Os cátaros praticavam trabalhos manuais. Macedo (2000b, p. 3) afirma que “a riqueza e o poder da instituição eclesiástica eram apontados como a causa de grandes males e os hereges extraíam disso argumentos para suas principais acusações contra ela”. Este autor explica ainda que os hereges criticavam a Igreja Católica pelo seu distanciamento do cristianismo primitivo e propunham um retorno às práticas desse período.
Outra crítica que os cátaros faziam a Igreja Católica era a prática da usura. Os cátaros “[...] autorizavam o empréstimo a seus fiéis e possivelmente praticavam esse negócio, apesar de reconhecerem sua origem maléfica.” (QUEIROZ, 1988, p. 59). Isso possibilita pensar porque havia uma nobreza que se identificava com os cátaros, possivelmente esta tinha a intenção de praticar usura (empréstimo a juros), visando maior enriquecimento. A Igreja Católica não permitia essa prática.
O catarismo adquiriu forte importância na sociedade e parte da nobreza era a principal patrocinadora do movimento. A heresia começou a ser transmitida de geração em geração pelas famílias. Os cátaros utilizavam a oralidade como principal meio de transmissão de seus ideais. A maioria dos camponeses não era letrada.
O sucesso na propagação das ideias cátaras na França foi possível devido ao contexto político da época. A região de Languedoc era praticamente independente do rei da França. As maiores autoridades nessa região eram os senhores feudais que apoiavam, protegiam e patrocinavam os cátaros. Queiroz (1988) expõe que o bispo da região valorizava questões políticas e agia com descaso com assuntos espirituais, permitindo ao clero que emprestasse dinheiro a juros (prática proibida pela igreja) ou trabalhassem em outras funções. Havia, portanto, nas práticas do clero contradições com a doutrina católica da época.
Após 1140 houve a maior expansão das heresias na região sul da França (QUEIROZ, 1988). Em cinquenta anos os cátaros já se expressavam livremente, ocasião em que as leis e doutrinas da Igreja Católica não eram plenamente obedecidas. Macedo (2000b) explica que os cátaros questionavam qualquer tipo de autoridade, pois, segundo eles, cabia apenas a Deus o poder do julgamento.
Em nenhuma outra região, a oposição à Igreja manifestara-se tão virulenta e eficaz. O movimento herético cátaro foi desencadeado pelas pregações do monge Henrique; embora Henrique não fosse cátaro, foi durante os encontros que teve com as populações do sul que os primeiros cátaros se revelaram. Seduzidos pelas suas palavras, muitos fiéis deixaram de comparecer às igrejas e de pagar os impostos a elas devidos (QUEIROZ, 1988, p. 37).
Henrique visitou castelos e pregou para nobres, camponeses, artesãos e cavaleiros, obtendo boa receptividade, principalmente na área rural. Diante do grande número de adeptos das ideias propagadas por Henrique, Bernardo (mais tarde conhecido como São Bernardo) visitou a região sul da França na tentativa de conter o avanço dessas ideias e impedir que Henrique continuasse pregando. Henrique foi preso, após a visita de Bernardo a Languedoc; os heréticos contavam com apoio e proteção dos nobres e cavaleiros.
Frente à grande expansão cátara no sul da França, a Igreja Católica fez diversas tentativas, através de interrogatórios e de missionários enviados à região, para restaurar a unidade e hegemonia da Igreja. Essas tentativas foram fracassadas devido à resistência dos grupos heréticos. A Igreja, visando acabar com os heréticos dessa região, decidiu renovar o clero através da deposição e suspensão dos bispos “substituídos por monges fiéis aos legados papais e aos cruzados anti-cátaros.” (QUEIROZ, 1988, p. 63).
A fim de combater a heresia, o papa Inocêncio III juntamente com monges cistercienses2 começaram a utilizar as mesmas estratégias dos heréticos. Os monges, como afirma Queiroz (1988), deveriam viajar despidos de qualquer luxo, pregando e instruindo o povo que desconhecia a doutrina católica.
O papa Inocêncio III, conforme Queiroz (1988) pontua, percebendo o fracasso nas sucessivas tentativas de restabelecer a fé católica na região sul da França, decide solicitar o auxílio do rei Felipe Augusto no combate a heresia cátara. Entretanto, o rei não concordou imediatamente, só aderiu à cruzada anticátara ao perceber que o papa estava intervindo em suas terras. Conforme explica Barros (2010, p. 24):
O auge da aliança o entre papado e os poderes temporais contra os movimentos heréticos se materializa na violenta Cruzada Albigense, contra os cátaros no sul da França. A proposta de Inocêncio III era que Felipe Augusto, rei da França, dirigisse suas forças contra os heréticos [...] cujos bens poderia confiscar assim que fossem vencidos. Os interesses temporais e eclesiásticos se associam, e os cátaros são violentamente reprimidos com a tomada de castelos e propriedades que os acolhiam.
Queiroz (1988) expõe ainda que, a Igreja Católica e o rei Felipe ofereciam recompensas aos que aderissem à cruzada, como: suspensão temporária de suas dívidas, indulgência por 40 dias de serviço e concessão de territórios confiscados dos heréticos e simpatizantes. Dessa forma, pode-se perceber que o que motivava pessoas de todas as classes a aderir à cruzada eram seus interesses particulares. Alguns nobres, simpatizantes da heresia cátara, temendo o ataque dos cruzados, as perdas de território e do título nobiliárquico, decidiram negociar com o papa na tentativa de evitar ataques e perdas. Aos poucos, a liberdade dos cátaros diminuiu, mas não acabou já que ainda possuíam aliados poderosos.
Possivelmente a Inquisição causou ódio e revolta na população, embora não haja documentos explícitos que afirmem isso (QUEIROZ, 1988). Em meados do século XII, devido à ação cada vez mais repressora da Inquisição, os cátaros passaram a viver na clandestinidade (MACEDO, 2000b). Essa situação obrigou os hereges a buscar refúgio fora da França. Os que permaneceram na França foram aos poucos submetidos aos interrogatórios, julgamentos e acabaram sendo condenados à fogueira. Dessa forma, a heresia cátara foi perdendo adeptos e sua força.
Considerações Finais
Ao pesquisar as heresias, os diferentes significados que adquiriram, percebe-se que desde a antiguidade, o seu surgimento dentro das comunidades cristãs, questionando algumas práticas e dogmas aceitos como verdadeiros, sugerindo novas concepções teológicas que atendessem as necessidades socioculturais e econômicas presentes na sociedade.
As heresias contribuíram para a consolidação da doutrina católica, pois a igreja precisava afirmar-se e combater o avanço das ideias heréticas, evitando a perda de fiéis. Para tornar isso possível, a Igreja Católica, ao longo de sua história, realizou concílios a fim de repensar sua doutrina, estabelecendo o que seria aceito como verdadeiro.
A heresia cátara herdou características do bogomilismo e mostrou-se contrária a várias doutrinas da Igreja Católica. Os líderes cátaros, conhecidos como perfeitos, não possuíam bens como o clero católico. O catarismo, em pouco tempo, já contava com muitos adeptos. Frente à ameaça cátara, a Igreja fez diversas tentativas de contê-la e fracassou diversas vezes. A Igreja recorreu à intervenção militar, em parceria com o rei da França, movido por interesses políticos e não religiosos através da Cruzada Albigense, convocada pelo papa Inocêncio III. Após esta cruzada, a heresia não foi extinta, alguns adeptos ainda resistiram, mas com pouca força, sendo obrigados a buscar refúgio em outras regiões da Europa. O que permite pensar que o catarismo pode ter influenciado o surgimento de outras heresias fora da França.
Notas
1 Instituição que possuía maior parte dos feudos.
2 A Ordem de Cister, segundo Loyn (1997), surgiu no século XII em Citeaux, na região da Borgonha, buscando viver plenamente o ideal proposto por São Bento. A Ordem teve sua maior expansão sob a direção de São Bernardo.
Referências
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MAGALHÃES, Ana Paula T. (1998). Heresia medieval: um combate pela fé. Revista da USP, São Paulo, n. 37, p. 216-221, março/maio. Disponível em: <http://www.usp.br/revistausp/37/22-anapaula. pdf>. Acesso em: 20 maio 2014.
PIRENNE, Henri (1982). História econômica e social da Idade Média. 6.ed. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo: Mestre Jou.
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