Kaiza Correia da Silva Oliveira
Lessi Inês Farias de Pinheiro
Marcelo Inácio Ferreira Ferraz
Universidade Estadual de Santa Cruz
kaizacorreia@outlook.comResumo
O ambiente rural possui muitas singularidades, o que tem gerado inúmeros questionamentos, debates e pesquisas referentes ao tema no Brasil, especialmente no que se refere ao processo de Desenvolvimento rural e as políticas públicas que são implementadas nesses espaços, a fim de promover esse desenvolvimento. Buscando entender como se articulou o desenvolvimento rural brasileiro, que lugar a agricultura familiar ocupou e qual o papel que esse segmento tem desempenhado nesse processo, o presente trabalho traz uma abordagem conceitual e revisões de literatura sobre o tema, destacando o papel multifuncional que a agricultura familiar tem desempenhado no processo de transformações das relações sociais, econômicas, culturais, etc. no campo, configurando-se como um forte instrumento de promoção do desenvolvimento no meio rural, aproximando a discussão à realidade brasileira.
Palavras-chave: Desenvolvimento regional, Estado, Pequenos produtores, Economia agrícola.
ABSTRACT
The rural environment has many singularities, which has generated numerous questions, debate and research on the topic in Brazil, especially in relation to the rural development process and public policies that are implemented in these areas, in order to promote this development. Seeking to understand how it articulated the Brazilian rural development, which place the family farm occupied and what role it has played in this process, this paper presents a conceptual approach and literature reviews on the subject, emphasizing the multifunctional role farming family has played in the process of transformation of social, economic, cultural, etc. in the field, setting up as a strong tool for promoting development in rural areas, bringing the discussion to the Brazilian reality.
Keywords: Regional development. State. Small producers. Agricultural economics
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Kaiza Correia da Silva Oliveira, Lessi Inês Farias de Pinheiro y Marcelo Inácio Ferreira Ferraz (2015): “O desenvolvimento rural e a agricultura familiar no Brasil”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, n. 27 (enero-marzo 2015). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2015/01/agricultura-familiar.html
1 INTRODUÇÃO
Do ponto de vista sociológico, quando se fala em “rural”, aponta-se por um lado, para uma relação específica dos habitantes do campo com a natureza, com a qual o homem lida diretamente, sobretudo, por meio de seu trabalho e, por outro, para as relações sociais existentes nesse espaço (Wanderley, 2000).
Terluin (2000) define rural como uma unidade territorial com uma ou mais pequenas ou médias cidades circundadas por grandes áreas de espaço aberto, com uma economia regional compreendendo atividades agrícolas, industriais e de serviços e uma população com densidade relativamente baixa.
Abramovay defende que ruralidade é um conceito de natureza territorial e não-setorial sendo caracterizado na literatura internacional através de três aspectos básicos: relação com a natureza, a importância das áreas não densamente povoadas e a dependência do sistema urbano (Kageyama, 2004; MARQUES, 2002).
Veiga (2001) propugna que o rural não pode ser identificado exclusivamente com aquela área que está fora do perímetro urbano dos municípios brasileiros, muito menos com as atividades exclusivamente agropecuárias, chamando a atenção para o fato de que o rural é necessariamente territorial e não setorial como os programas governamentais insistem em propor e executar.
Em seus estudos, Veiga realiza uma crítica severa a visão setorializada do rural fortalecida pela regra brasileira que identifica como urbana toda e qualquer sede de município, até mesmo as sedes distritais. Segundo essa regra, criada pelo Decreto-lei 311/38 no Estado Novo, no ano 2000, o Brasil teria atingido um grau de urbanização de 81,2%, o que se constitui um equívoco que colocaria o Brasil no nível de urbanização de muitos países desenvolvidos. No entanto, o que se observa quando se adota, além do critério populacional, a densidade populacional, são resultados distintos. Os resultados apontam que 80% dos municípios brasileiros são rurais, o que representacerca de 4.485 municípios brasileiros,demonstrando que o país é um país rural, e que suas sedes municipais são apenas cidades imaginárias, não podendo as políticas públicas dirigidas a elas manter a dicotomia rural-urbano (ORTEGA, 2002).
Esses estudos demonstram que o ambiente rural possui muitas singularidades, o que tem gerado inúmeros questionamentos, debates e pesquisas referentes ao tema no Brasil, especialmente no que se refere ao processo de Desenvolvimento rural e as políticas públicas que são implementadas nesses espaços, a fim de promover esse desenvolvimento. Esses debates, segundo Delgado e Leite (2011, p. 431), “fundamentam-se, entre outros aspectos, na observação da persistência interligada da pobreza rural e da desigualdade social e regional, e enquadra-se na discussão mais ampla sobre o desenvolvimento econômico e sustentabilidade”. Uma vez que, se adotarmos a perspectiva de que o Brasil é um país rural, conforma Veiga apontou, as políticas de desenvolvimento econômico do Brasil devem traduzir-se em políticas que busquem promover o desenvolvimento rural.
Em meio a esse contexto de reflexões, o objetivo do presente trabalho consisteem descrever e caracterizar o contexto histórico em que o debate sobre o desenvolvimento rural iniciou e desenvolveu-se no Brasil, abordando alguns elementos das mudanças nas condições econômicas, políticas e sociais que afetaram e derem alicerce ao desenvolvimento do conceito ao longo dos anos. Buscando, além disso, destacarque lugar a agricultura familiar ocupou e qual o papel que esse segmento tem desempenhado nesse processo, abordando o conceito de multifuncionalidadeda agricultura familiar como um forte instrumento de promoção do desenvolvimento no meio rural, aproximando a discussão à realidade brasileira.
2 Desenvolvimento ruralno BRASIL
O início das discussões e debates relacionados ao desenvolvimento rural no Brasil tem como ponto de partida as mudanças ocorridas no ambiente rural na década de 50, período marcado pelo Pós-Guerra, polarização da Guerra Fria, expansão do capitalismo no campo, modernização da produção agrícola e pelos impactos do notável crescimento econômico, que provocaram transformações no espaço agrário brasileiro, revolucionou o modo de vida e os comportamentos sociais da época.
Até a década de 50, parcela significativa da população estava envolvida em atividades agrícolas e/ou habitando áreas rurais. Da mesma forma, era significativo o peso econômico da agricultura nas contas nacionais, e o crescimento da produção agrícola se dava, basicamente, em decorrência da expansão da área cultivada. A partir da década de 60, mudanças estruturais na economia brasileira resultaram em alterações na ótica de produção, que passou a guiar-se visando o aumento da oferta de alimentos e de matérias primas para acelerar o processo de exportações, dando o início as transformações na estrutura da produção agrícola que passou a fazer maior uso de uso de máquinas, adubos e defensivos. Incorporou-se um pacote tecnológico à agricultura que alterou toda a base técnica da produção agrícola no Brasil, fato conhecido como modernização da agricultura brasileira (AGRA; SANTOS, 2001, p. 2).
O processo de modernização da agricultura brasileira (Revolução Verde) esteve intimamente ligado à fase final do processo de substituição de importações1 - internalização de indústrias produtoras de bens de capital e de insumos modernos - ou ainda, a entrada demultinacionais produtoras de tratores, fertilizantes, herbicidas etc. no país. A partir de então, o desenvolvimento da agricultura não pode mais ser visto como autônomo, uma vez que as famílias rurais passaram a incorporar fortemente as novas formas de racionalidade produtiva, onde a dinâmica industrial passou a comandar o desenvolvimento da agricultura, convertendo-a num ramo industrial (MARTINE; APUD SANTOS; BORGES; CARGNIN, 2012).
A possibilidade do desenvolvimento econômico proveniente da expansão das fronteiras agrícolas a partir da modernização do campo alimentou esperanças e estimulou iniciativas diversas em todas as sociedades. Tornando, inevitavelmente, que o desenvolvimento rural, subtema derivado, fosse igualmente um dos grandes motores das políticas governamentais e dos interesses sociais. Em tal contexto, as mudanças sociais e econômicas, assim como a melhoria do bem-estar das populações rurais mais pobres, foram entendidas como um resultado natural do processo de modernização produtiva na agricultura, que acarretaria aumentos da produção e da produtividade e, assim, uma suposta e virtuosa associação com aumentos de renda familiar, portanto, desenvolvimento rural (NAVARRO, 2001).
O conceito de desenvolvimento rural, para esse período, necessariamente incluía a intensificação tecnológica e a crescente absorção de insumos modernos pelos produtores como parte de uma estratégia de aumento da produtividade e como objetivo finalístico, a elevação da renda dos produtores. E, segundo Freitas, Freitas e Dias (2012, p. 1580) fundamentava-se em quatro elementos principais:
(i) a noção de crescimento econômico, que tenta romper com o "atraso" da agricultura tradicional, introduzindo os valores econômicos modernos; (ii) a noção de abertura técnica, econômica e cultural, com a prevalência da heteronomia sobre a autonomia dos agricultores em relação aos agentes econômicos com os quais passam a se relacionar; (iii) a noção de especialização da produção agrícola, simplificando os sistemas de produção e ao mesmo tempo adequando-os às modernas técnicas de produção; (iv) a valorização de um novo tipo de agricultor, "moderno", empresarial, individualista e voltado à competição por mercados consumidores.
O desenvolvimento rural, induzido pela Revolução Verde, esteve associado então a um conjunto de ações do Estado e dos organismos internacionais destinadas a intervenções nas regiões rurais pobres que não conseguiam se integrar ao processo de modernização agrícola (SOUZA, 2009). Todavia, à modernização da agricultura, integrada a movimentação do capital externo teve um caráter imediatista, voltado para o aumento da produtividade no curto-prazo. O processo de modernização foi orientado para a modernização do latifúndio para os grandes proprietários, potenciais compradores dos produtos industriais, cuja produção se instalara no Brasil tendo como base, os complexos agroindustriais, que tinham como função maior o direcionamento da produção para o mercado externo (MARTINE, APUD SANTOS; BORGES; CARGNIN, 2012). Demonstrando que a política agrícola brasileira sempre teve como foco as grandes e médias propriedades capitalistas.
Essa estratégia de modernização reforçou ainda mais a heterogeneidade estrutural deste setor econômico. As unidades de produção agrícola receberam de forma diferenciada e assimétrica, as forças modernizantes, aprofundando as dessemelhanças econômicas que já estavam cristalizadas desde o início do processo de formação da economia brasileira. As unidades de produção agropecuárias permaneceram atreladas aos métodos tradicionais e arcaicos de produção, mantendo assim, uma baixa produtividade do trabalho. E as estruturas modernas, criaram estruturas fortemente conectadas e integradas com os mercados internacionais e nacionais. Nesse contexto, a realidade concreta do desenvolvimento rural brasileiro foi marcada pelo avanço do progresso técnico de forma diferenciada, assimétrica e heterogênea entre os agricultores, os quais não conseguiram convergir para um ponto em comum, de forma a constituir uma estrutura econômica e social homogênea, moderna, e integrada aos mercados capitalistas (PIRES, 2013).
Já nas décadas de 1970 e 1980, a Revolução Verde dava indícios de fracasso no processo de desenvolvimento e redução da pobreza no campo. Ao contrário do inicialmente esperado, o resultado foi uma crescente marginalização dos pequenos agricultores familiares, reproduzindo um padrão de desenvolvimento rural bastante excludente e desigual. O processo de modernização da agricultura brasileira gerou o agravamento da questão agrária e dos problemas sociais no campo, refletindo no aprofundamento das desigualdades sociais e no aumento da pobreza nas áreas rurais, com reflexos nos grandes centros urbanos (CAMPEÃO, 2004).
Este primeiro período, portanto, começou a mostrar sinais de esgotamento no final dos anos 70, associado ao estancamento da fase econômica expansionista do pós-guerra, e início da década de 80, com a ascensão das políticas inspiradas no enfoque neoliberal, onde a noção de Estado forte foi subjugada pela noção de Estado mínimo, enfraquecendo fortemente o papel do Estado na condução de suas políticas (NAVARRO, 2001).
Lamarche (1986) denominou esse momento de “crise da agricultura”, e apontou três dimensões para essa crise: econômica, social e ambiental. Economicamente, a agricultura moderna produziu efeitos de superprodução ao buscar a autossuficiência, por meio da maior eficiência tecnológica e comercial. Socialmente, o sucesso do processo da modernização e a elevação da produtividade resultaram na redução da necessidade de força de trabalho ocupada nas atividades agrícolas, criando uma crise geral do desemprego. Ambientalmente, o uso excessivo e indiscriminado dos insumos químicos de origem industrial, estimulado pela utilização dos modelos produtivistas, trouxe como consequência o risco de um sério desgaste de recursos naturais, em um momento em que se aprofundava nas sociedades a consciência da necessidade de preservação e de renovação destes recursos (Apud WANDERLEY, 2000).
Então, na segunda metade da década de 1990, sob os efeitos de algumas alterações na forma de gestão do Estado, essas consequências negativas do processo de desenvolvimento rural pautado na modernização agrícola impulsionaram diversas revisões conceituais sobre o modelo de desenvolvimento rural adotado no Brasil, que passaram a incorporar as três dimensões: ambiental, social e política. Esses fatos fizeram com que a assertiva de que é preciso repensar e, mais do que isto, reorientar as formas de intervenção do Estado e as políticas públicas, ganhassem espaço público e legitimação, dando início ao que Navarro chamou de segundo momento no Desenvolvimento rural brasileiro (SHNEIDER, 2004; NAVARRO, 2001).
Na década de 1990 as motivações para o reaparecimento do debate sobre o desenvolvimento de forma geral e do desenvolvimento rural modificaram-se radicalmente. A percepção da necessidade de uma nova abordagem para a questão do desenvolvimento ganhou fôlego. Começou-se a abordar questões como a globalização das economias, interdependência financeira, enfoque local e territorial das geopolíticas, reestruturação financeira e produtiva, alterações das inter-relações rural-urbano, sustentabilidade, problemática ambiental, entre outros.
Questões sobre os limites do desenvolvimento econômico baseado na industrialização das economias, uso indiscriminado dos recursos naturais e liberalização e globalização dos mercados fizeram emergir o que Furtado denominou “Mito do Desenvolvimento Econômico”. Uma percepção acerca da impossibilidade do desenvolvimentoou, suas imensas dificuldades de materialização (FURTADO, 1996).
Nesse contexto, o segundo momento no desenvolvimento rural brasileiro foi marcado pela reflexão das transformações que os processos de liberalização e globalização resultaram nas economias e, principalmente, na agricultura. Segundo Schneider (2004), os efeitos dessa reestruturação econômica, produtiva e institucional global também podem ser percebidos na agricultura e no mundo rural, através de múltiplas dimensões:os mercados foram abertos e com isso aceleraram-se as trocas comerciais e intensificou-se a competitividade através do estabelecimento de poderosas cadeias agroalimentares que monopolizam a produção e o comércio atacadista em escala global; paralelamente ocorreu uma intensificação do progresso tecnológico; modificações nos processos de produção pós-fordistas levam à diluição das diferenças setoriais e espaciais, fazendo com que o rural deixe de ser o locus específico das atividades agrícolas entre outros fatores.
Em face dessas transformações, vários estudiosos do tema passaram a preconizar a necessidade de repensar as abordagens analíticas e os enfoques que até então eram utilizados como referências teóricas para definir o desenvolvimento rural. Dentro dessa retomada do debate sobre o desenvolvimento rural, elementos-chave como os a seguir se destacaram: a erradicação da pobreza rural, a questão do protagonismo dos atores sociais e sua participação política, o território como unidade de referência, a preocupação central com a sustentabilidade ambiental, o papel da agricultura de pequena escala de produção, o enfoque na necessidade de se pensar políticas sociais como base para a dinamização econômica das localidades, e um destaque à diversidade dos meios de vida e de produção em contraposição à uniformização de projetos para a promoção do desenvolvimento rural(SChneider, 2004; FREITAS; FREITAS; DIAS, 2012).
Ellis (1999), em sua abordagem, denomina de estratégias de sobrevivência familiares e a diversificação dos modos de vida rurais, demostrando que iniciativas e ações que geram impactos significativos na melhoria das condições de vida dessas populações e que ampliam suas perspectivas de garantir a reprodução social e econômica estão, na maioria das vezes, nas próprias localidades e territórios onde vivem.
Para Schneider (2004), desenvolvimento rural seria alcançado a partir de seis mudanças na relação rural-urbano:
Primeiro, o crescente inter-relacionamento da agricultura com a sociedade, fazendo com que esta perceba que o rural pode fornecer muito mais do que alimentos e matérias-primas. Segundo, uma necessidade urgente em definir um novo modelo agrícola que seja capaz de valorizar as sinergias e a coesão no meio rural, entre atividades agrícolas e não-agrícolas, entre ecossistemas locais e regionais, permitindo a convivência de iniciativas e atividades diversificadas. Terceiro, um desenvolvimento rural capaz de redefinir as relações entre indivíduos, famílias e suas identidades, atribuindo- se um novo papel aos centros urbanos e à combinação de atividades multiocupacionais, com claro estímulo à pluriatividade. Quarto, um modelo que redefina o sentido da comunidade rural e as relações entre os atores locais, sejam eles os agricultores ou os novos usuários (proprietários de sítios de lazer, moradias secundárias, empresas, condomínios, etc.). Quinto, um desenvolvimento rural que leve em conta a necessidade de novas ações de políticas públicas e o papel das instituições, que não podem ser mais exclusivamente direcionados à agricultura. Sexto, e último, levar em consideração as múltiplas facetas ambientais, buscando garantir o uso sustentável e o manejo adequado dos recursos (SCHNEIDER, 2004, p. 95-96).
Navarro (2001) conceitua desenvolvimento rural como uma ação previamente articulada que induz ou pretende induzir, mudanças em um determinado ambiente rural, tendo o Estado nacional e, ou seus níveis subnacionais, como agente principal.
Veiga (2001) não define literalmente o que seria desenvolvimento rural, entretanto, destaca interfaces e vínculos desse desenvolvimento ao desenvolvimento geral da economia.Veiga (2001) destaca pontos entrelaçados e dependentes que seriam fundamentais para o processo de desenvolvimento rural sustentável, que na sua perspectiva é abordado como desenvolvimento territorial. Esses pontos traduzem-se em desenvolvimento da agricultura familiar, impulsionado pelo empreendedorismo, que, por conseguinte, dinamizaria o território; diversificação das economias dos territórios, através do estímulo aos setores de serviços e à pluriatividade; atuação ativa do Estado, através da formação de arranjos institucionais locais e promoção da diversidade biológica que seria um fator crucial na dinamização das regiões rurais (VEIGA, 2001, p.110).
Em face da mecanização do campo e dos aspectos negativos causados por essa dinâmica, Abramovay (1998) afirma que o desenvolvimento rural deve ser concebido em um quadro territorial, muito mais que setorial, assim como vem ocorrendo nos países capitalistas centrais. Onde o desafio é, ao invés de integrar o agricultor à indústria, criar as condições para que uma população valorize o papel do meio rural em um conjunto multivariado de atividades e de mercados.
3. A perspectiva da agricultura familiar
As transformações – crise do modelo produtivista e as contradições resultantes dela -, ocasionaram, entre os estudiosos do tema, inquietações relativas às formas de produção agrícola e à condição social e econômica dos indivíduos nela envolvidos. Fazendo emergir o surgimento e organização de movimentos sociais de segmentos excluídos ou marginalizados que têm buscado reivindicar e demonstrar a importância do seu papel tanto na formação da sociedade como na geração de riquezas. Esses movimentos se voltaram para a valorização de camadas da população rural e de regiões menos favorecidas que não foram tocadas pela ação homogênea da Revolução Verde, nem pelas forças da globalização.
Esses movimentos têm traduzidos às demandas de pequenas propriedades agrícolas de base familiar, que ao contrário do previamente suposto, não desapareceram com o desenvolvimento capitalista no campo como os: camponeses, caipiras, pequenos produtores, integrados, colonos, assentados e demais formas familiares de produção rural, que persistiam e apresentavam novas estratégias produtivas e organizativas (Malysz; Chies, 2012).
A expressão “agricultura familiar” emergiu no contexto brasileiro a partir de meados da década de 1990, em meio a esse contexto de discussão dos malefícios ocasionados pela modernização da agricultura no país e pela reestruturação produtiva da década de 90 através e da promoção de ferramentas e políticas capazes de promover um desenvolvimento rural mais homogêneo e igualitário. Inicialmente, o desenvolvimento do tema concentrou-se no campo político e, posteriormente, acadêmico.
Até o final da década de 1950, os teóricos dos estudos rurais concentravam suas análises sobre a natureza das relações de produção no campo. A partir dos anos de 1990 começaram a surgirem pesquisas com o objetivo de conhecer o caráter familiar dos estabelecimentos agrícolas e suas formas de funcionamento, reportando-se, portanto, a agricultura tida como familiar (SCHNEIDER, 2003).
Na atualidade, o conceito mais difundido refere-se à agricultura familiar como: “uma unidade de produção agrícola onde propriedade e trabalho estão intimamente ligados à família” (LAMARCHE, 1997, p. 15). Fato, que segundo Wanderley (1996), tem consequências fundamentais para a forma como essa unidade de produção age econômica e socialmente.
Dentro da literatura encontrada para o tema, existem pelo menos duas contribuições que se destacam na delimitação conceitual do que é agricultura familiar: a primeira defende que a moderna agricultura familiar é uma nova categoria gerada no bojo das transformações experimentadas pelas sociedades capitalistas desenvolvidas, desassociada do conceito de campesionato, onde a agricultura familiar é considerada “como um setor econômico ou uma forma de produção que se insere nas regras gerais de funcionamento do mercado, tal qual se apresentam nas sociedades modernas capitalistas” (CARNEIRO; MALUF, 2003, p. 10). A segunda contribuição considera a agricultura familiar brasileira como um conceito em evolução, com significativas raízes históricas, originada no conceito de campesionato, onde as transformações vivenciadas pelo agricultor familiar atual não representam ruptura com as formas anteriores, mas uma adaptação às novas exigências da sociedade (ALTAFIN, 2009).
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), a agricultura familiar pode ser definida a partir de três características centrais:
a) a gestão da unidade produtiva e os investimentos nela realizados são feitos por indivíduos que mantém entre si laços de sangue ou casamento; b) a maior parte do trabalho é igualmente fornecida pelos membros da família; c) a propriedade dos meios de produção (embora nem sempre da terra) pertence à família e é em seu interior que se realiza sua transmissão em caso de falecimento ou aposentadoria dos responsáveis pela unidade produtiva (INCRA/FAO, 1996, p.4 apud INCRA/FAO, 2000, p. 8).
A Lei 11.326 delimita formalmente o conceito de agricultor familiar (BRASIL, 2014a). Esta lei considera que:
[...] agricultor familiar e empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos: I - não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais; II - utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento; III - tenha percentual mínimo da renda familiar originada de atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento, na forma definida pelo Poder Executivo; (Redação dada pela Lei nº 12.512, de 2011); IV - dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família (Brasil, 2014a).
A Lei 11.326 ainda determina que também são beneficiários desta Lei silvicultores, aqüicultores, extrativistas, pescadores, povos indígenas, integrantes de comunidades remanescentes de quilombos rurais e demais povos e comunidades tradicionais (BRASIL, 2014a).
Sob um viés menos tecnicista e mais sociológico, a academia também traz conceituações pertinentes ao debate do tema.
Abramovay (1997) cita em um de seus trabalhos que um dos mais importantes estudos sobre este tema foi realizado por Gasson e Errington. Segundo esses autores a agricultura familiar pode ser definida a partir de seis características básicas, sendo elas: o processo de gestão é realizado pelos proprietários; os responsáveis pelo empreendimento estão ligados entre si por laços de parentesco; o trabalho é fundamentalmente familiar; o capital existente pertence à família; o patrimônio e os ativos são objeto de transferência intergeracional no interior da família e os membros da família vivem na unidade produtiva.
Para Abramovay (1997), essa definição não envolve qualquer pré-julgamento a respeito do tamanho e da capacidade geradora de renda das unidades produtivas, pois o que é descrito relaciona-se diretamente a importância da participação da agricultura familiar na oferta agrícola. Abramovay ressalta ainda que as características expostas por Gasson e Errington não se encontram em todos os casos existentes da agricultura familiar, uma vez que é frequente que os membros da família não vivam na unidade produtiva, por exemplo.
Segundo Abramovay (1997) é preciso se atentar ao fato de que a agricultura familiar não pode ser tomada como sinônimo de pequena produção, visto que foi em torno da agricultura familiar que, nos países capitalistas centrais, organizou-se o desenvolvimento agrícola. E mesmo que em um país, como o Brasil, marcado pela força do latifúndio e pelo peso social de milhões de estabelecimentos, que são pequenos sob o ângulo de sua participação na oferta agrícola, há um segmento importante de agricultores familiares cuja expressão econômica é muito significativa e em alguns casos até majoritária.
Schneider (2006) elenca alguns elementos que considera úteis na elaboração de uma definição mais abrangente para compreensão da categoria social denominada agricultores familiares a partir da perspectiva de análise mais geral das formas familiares de organização do trabalho e da produção existentes no interior da sociedade capitalista contemporânea. Para o Schneider, a natureza familiar das unidades agrícolas está assentada nas relações de parentesco e de herança existentes entre seus membros. “As decisões tomadas pela família e pelo grupo doméstico ante as condições materiais e o ambiente social e econômico são cruciais e definidoras das trajetórias e estratégias que viabilizam ou não sua sobrevivência social, econômica, cultural e moral” (SCHNEIDER, 2006, p. 6).
O fato de estruturarem-se com base na utilização da força de trabalho de seus membros explica a persistência e a sobrevivência de certas unidades e a desagregação e o desaparecimento de outras, quando submetidas a determinados condicionantes externos.
Atualmente o termo agricultura familiar se consolida e difunde-se nos diferentes setores da sociedade, substituindo categorias de análise que eram utilizadas para caracterizar unidades de produção, como campesinato, pequena produção, agricultura de subsistência, produção de baixa renda, entre outras. Nesse sentido, ele acaba sendo utilizado como um guarda chuva conceitual, abrigando inúmeras situações, em oposição à agricultura patronal (ALTAFIN, 2009).
Assim, grande parte das definições de agricultura familiar adotadas em estudos recentes sobre o tema, conforme pôde ser visualizado, baseia-se nas características da mão-de-obra utilizada, no tamanho da propriedade e na renda gerada pela atividade agrícola. Tendo como ponto em comum o fato de que a família é o centro do universo pesquisado, uma vez que ao mesmo tempo em que é a proprietária dos meios de produção, assume o trabalho no estabelecimento. Contudo, a agricultura familiar também tem sido compreendida como uma realidade complexa e multifacetada, o que reforça e legitima a agricultura familiar enquanto instrumento de desenvolvimento (CARNEIRO; MALUF, 2003).
3.1 A multifuncionalidade da agricultura familiar na promoção do desenvolvimento rural
O debate sobre a multifuncionalidade da agricultura ganhou notoriedade durante as negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1999, na conferência de Seattle, nos Estados Unidos, que tinha como objetivo iniciar as negociações sobre a reformade importantes temas no comércio internacional, com destaque para agricultura e serviços. No entanto, esse debate não é novo. Surgiu na ECO-92, realizada no Rio de Janeiro, em 1992, os governos reconheceram o aspecto multifuncional da agricultura, particularmente com respeito à segurança alimentar e o desenvolvimento sustentável (SOARES, 2001).
O conceito de multifuncionalidade da agricultura tem se configurado extremamente útil para análise dos papéis desempenhados pela agricultura no desenvolvimento brasileiro e, sobretudo, para se verificar qual tem sido o tratamento recebido pela agricultura nas políticas públicas domésticas e no posicionamento do governo brasileiro em negociações comerciais internacionais (SOARES, 2001).
Segundo Maluf (2002) apud Maluf, Bonnal e Gazella (2009, p. 47), “a noção de multifuncionalidade da agricultura familiar permite analisar a interação entre famílias rurais e territórios na dinâmica de reprodução social, considerando os modos de vida das famílias na sua integridade e não apenas seus componentes econômicos”. Incorporando, portanto, a provisão de bens públicos relacionados com o meio ambiente, a segurança alimentar e o patrimônio cultural pelos agricultores.
Essa noção mostra-se capaz de envolver um conjunto de categorias sociais, como os assentados, arrendatários, parceiros, integrados a agroindústrias, entre outros, que não podem ser identificados com as noções de pequenos produtores ou, simplesmente, de trabalhadores rurais (SCHNEIDER, 2006).
A unidade de observação deixa de ser a agricultura stricto sensue passa a ser a família rural considerada uma unidade social e não apenas unidade produtiva. Por família rural entende-se a unidade que se reproduz em regime de economia familiar e que desenvolve qualquer processo biológico sobre um pedaço de terra, “situada” num território com determinadas características socioeconômicas, culturais e ambientais. Nesses termos, ampliasse o universo de análise para além das unidades tidas como economicamente relevantes em função da produção que realizam, isto é, as unidades familiares rurais são consideradas em seu conjunto, independentemente do estatuto socioprofissional que lhes é atribuído (CARNEIRO; MALUF, 2003, p. 22-23).
O que torna a promoção do desenvolvimento rural sustentável o foco principal da agricultura familiar, que procura explorar de forma diversificada atividades rurais economicamente viáveis, socialmente equitativas e ambientalmente sustentáveis.
Nesse sentido, a multifuncionalidade da agricultura familiar divide-se em quatro dimensões principais: reprodução socioeconômica das famílias rurais, promoção da segurança alimentar das próprias famílias rurais e da sociedade, manutenção do tecido social e cultural e preservação dos recursos naturais e da paisagem rural (Maluf; Bonnal; Gazella, 2009).
A dimensão reprodução socioeconômica das famílias rurais relaciona-se à geração de trabalho e renda que permita às famílias rurais se manterem no campo em condições dignas, reduzindo assim o êxodo rural. Em um contexto de elevado desemprego e de baixa renda para amplos segmentos da população, a agricultura acaba desempenhando um papel de suma relevância na reprodução econômica e social das famílias rurais no Brasil. Apesar de que, para um grande número delas, a contribuição da agricultura familiar está além do fator gerador de renda monetária obtida pelas famílias com a produção agrícola própria (Maluf; Bonnal; Gazella, 2009).
A segunda dimensão, promoção da segurança alimentar das próprias famílias rurais e da sociedade está relacionada a disponibilidade e acesso aos alimentos e a qualidade destes. Em um contexto de crise da produção familiar mercantil e do desemprego urbano e rural, a produção voltada para o autoconsumo ganha importância (Maluf; Bonnal; Gazella, 2009). Segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB, 2012) para 2009, a agricultura familiar gerou mais de 80% da ocupação no setor rural e responde no Brasil por sete de cada dez empregos no campo e por cerca de 40% da produção agrícola. A agricultura familiar favorece o emprego de práticas produtivas ecologicamente mais equilibradas, como a diversificação de cultivos, o menor uso de insumos industriais e a preservação do patrimônio genético.
No Brasil, 85% do total de propriedades rurais do país pertencem a grupos familiares que geram 37,8% do valor bruto da produção agropecuária no país (CONAB, 2012). Atualmente a maior parte dos alimentos que abastecem a mesa dos brasileiros vem dessas pequenas propriedades, cerca de 70% dos alimentos produzidos no país. Assim, tanto pelo lado da produção de alimentos quanto pelo efeito distribuidor de renda deste setor da agricultura, o papel desempenhado pela agricultura familiar para segurança alimentar é estratégico ao criar condições para o acesso ao alimento.
A terceira dimensão está relacionada à manutenção do tecido social e cultural. Muitas zonas rurais, 4.367.902 estabelecimentos, foram identificadas como pertencentes à agricultura familiar no último censo agropecuário 2006. O que representa 84,4% dos estabelecimentos brasileiros. Este contingente de agricultores familiares ocupava uma área de apenas 80,25 milhões de hectares, ou seja, 24,3% da área ocupada pelos estabelecimentos agropecuários brasileiros. Estes resultados mostram uma estrutura agrária ainda concentrada no País: os estabelecimentos não familiares, apesar de representarem 15,6% do total dos estabelecimentos, ocupavam 75,7% da área ocupada IBGE, 2014).
Nesta perspectiva é interessante adotar uma perspectiva mais ampla dos agricultores familiares, que leve em consideração o fato de que essas comunidades são multiculturais, compostas por agricultores familiares, pescadores artesanais e extrativistas de diferentes grupos (homens, mulheres, jovens, idosos, etc.), associando conceitos de cultura, tradição e identidade local, e que por esse motivo, o impacto das políticas públicas sobre essa sociedade reproduz-se não só nos aspectos socioeconômicos, mas também nos aspectos culturais. Outro fato é que a agricultura continua sendo o principal fator definidor da identidade e condição de inserção social das famílias rurais brasileiras Assim, trata-se de adotar um olhar que não seja exclusivamente baseado na produção, pois a viabilidade social da agricultura familiar não depende somente da produção, mas de um conjunto de fatores sociais, como educação, cultura, lazer, saúde, etc(Maluf; Bonnal; Gazella, 2009).
A última dimensão refere-se à preservação dos recursos naturais e da paisagem rural (Maluf; Bonnal; Gazella, 2009). A agricultura sempre foi considerada uma das principais causas dos problemas ambientais da atualidade. Esse problema tem sido agravado pela revolução técnico-científico e pela Revolução Verde, que fomentaram a transplantação para a agricultura da lógica produtiva inaugurada com a Revolução Industrial. A rápida disseminação global dos padrões técnicos da Revolução Verde trouxe como consequência uma profunda reorientação na lógica de apropriação dos recursos naturais pela agricultura, sobretudo ao distanciá-la dos processos ecológicos responsáveis pela reprodução da integridade ambiental dos agroecossistemas. À medida que as inovações técnicas permitiam a intensificação produtiva, os agroecossistemas foram-se diferenciando estrutural e funcionalmente dos ecossistemas naturais, num processo de progressiva artificialização, ou seja, de distanciamento dos equilíbrios naturais, onde a agricultura transformou-se em uma agricultura industrial (PETERSEN; WEID; FERNANDES, 2009).
Orientada essencialmente para maximizar a produtividade física das lavouras e criações no curto prazo, a agricultura industrial compromete seriamente as produções futuras pela conjugação de três frentes de impacto negativo sobre o meio ambiente: a) a degradação e a perda de recursos naturais essenciais para a reprodução técnica dos agroecossistemas (solos, água e biodiversidade); b) a emissão de gases de efeito estufa (GEEs), que vem alterando os padrões climáticos globais e, com isso, aumentando os riscos agrícolas; c) a desarticulação de culturas e modos de vida locais responsáveis pelo uso social e pela conservação dos recursos naturais em longo prazo (PETERSEN; WEID; FERNANDES, 2009, p. 2).
Diante da magnitude dos impactos ambientais negativos gerados pela agricultura industrial, a agricultura familiar tem assumido um papel singular no que se refere à função ambiental da agricultura e ao desenvolvimento sustentável do ponto de vista ambiental.
O funcionamento econômico da agricultura familiar não esta fundamentado na maximização da rentabilidade do capital e na geração do lucro a curto prazo, mas está orientado para o atendimento das necessidades das famílias e para a manutenção a longo prazo das potencialidades produtivas do meio natural, percebido como um patrimônio familiar. Sua própria vocação de unidade de produção e consumo valoriza a diversidade, através de policultivos e criações, distribuídos de forma equilibrada no tempo e espaço. A unidade de produção familiar tanto por sua extensão quanto pela forma de organização do trabalho, favorece maiores cuidados técnicos nas operações de manejo, uma vez que, aquele que toma as decisões é também aquele que as coloca em prática. E por fim, a agricultura familiar mantém uma relação positiva com o território, devido a sua capacidade de valorizar as potencialidades próprias aos ecossistemas naturais em que está inserida, inscrevendo estas potencialidades em suas estratégias de reprodução econômica (SOARES, 2001).
Portanto, a valorização dos múltiplos papéis desempenhados pela agricultura familiar e o enfoque nos territórios são referências subjacentes às manifestações de retóricas “não produtivistas” que vêm se multiplicando no Brasil, assim como em várias partes do mundo. Essas retóricas compreendem discursos e práticas que expressam preocupações com questões de equidade social e sustentabilidade ambiental envolvidas nas atividades agrícolas, ao mesmo tempo, que incorporam temas como as questões de gênero e geracionais, a soberania e segurança alimentar, os modelos agroecológicos, a problemática amazônica e questões relativas aos povos indígenas e às comunidades rurais negras quilombolas. A emergência dessas retóricas e visões sobre o mundo rural e à atividade agrícola acaba repercutindo na formulação das políticas a eles direcionadas e, por essa característica, portadora de inovações relevantes (Maluf; Bonnal; Gazella, 2009).
3.2 Uma perspectiva da agricultura familiar no Brasil
No Censo Agropecuário 2006, foram identificados 5.175.636 estabelecimentos agropecuários, que ocupavam uma área de 333,7 milhões. Destes, 4.366.267 estabelecimentos foram da agricultura familiar, o que representou 84,4% dos estabelecimentos brasileiros. Este número de agricultores familiares ocupou uma área de 80,1 milhões de hectares, ou seja, 24% da área ocupada pelos estabelecimentos agropecuários brasileiros. No entanto, os estabelecimentos não familiares, também conhecidos como patronais, ocuparam 76% da área ocupada com apenas 15,6% do total dos estabelecimentos, o que representa uma área média de 313,3 hectares contra 18,34 hectares dos estabelecimentos familiares. Demonstrando a estrutura agrária ainda concentrada do país. Em relação às grandes regiões, a região Nordeste foi a que apresentou maior percentual de seus estabelecimentos classificados como familiares (89,1%), os quais ocuparam uma área de 37,2%, seguida pelas regiões Norte com 86,7% e 29,9% e Sul com 84,4% e 31,2%, respectivamente. A região que demonstrou maior concentração de terras foi à região Centro-Oeste onde 68,8% dos agricultores familiares ocupam apenas 8,9% das áreas agropecuárias (Tabela 1).
A distribuição dos estabelecimentos familiares por grandes regiões no Brasil demonstra que a região Nordeste concentra exatamente metade desse número, representado por 2,2 milhões de estabelecimentos. Em seguida vem às regiões Sul e Sudeste com 20% (849.693) e 16% (699.755) respectivamente (Figuras 1 e 2). No que se refere à área ocupada por esses estabelecimentos, a região Nordeste ocupa 35%, seguida pela região Norte com 21% e pelas regiões Sul e Sudeste com 16% cada.
Apesar de cultivar uma área menor com lavouras e pastagens (17,7 e 36,4 milhões de hectares, respectivamente), a agricultura familiar é responsável por garantir grande parte da segurança alimentar do País ao configurar-se como importante fornecedora de alimentos para o mercado interno. Em 2006, a agricultura familiar foi responsável por produzir, 33,9% do arroz, 70% da produção de feijão (sendo 76,8% do feijão-preto, 53,9% do feijão de cor e 83,8% do feijão-fradinho, caupi, de corda ou macáçar), 86,7% da mandioca, 45,9% do milho, 21,2% do trigo, 38% do café (sendo 34,2% do arábica e 55% do tipo robusta ou conilon), 58% do leite (composta por 58,1% do leite de vaca e 67,1% do leite de cabra), possuíam 30% plantel de bovinos, 59% do plantel de suínos e 50% do plantel de aves. A cultura com menor participação da agricultura familiar foi a da soja com 15,7%, um dos principais produtos da pauta de exportação brasileira (Tabela 2).
A agricultura familiar foi responsável por 33,2% do valor total da produção dos estabelecimentos, sendo que a produção vegetal foi a principal atividade com 70,65% do valor total, principalmente com as lavouras temporárias que foram responsáveis 41,78% do valor da produção e as lavouras permanentes com 19,46%. Em segundo lugar, a atividade animal foi destaque com 28,4%, especialmente com animais de grande porte (17,47%) (Tabela 3).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento rural no Brasil atravessou diversos estágios, sendo influenciado pela conjuntura econômica e pelo desempenho da agricultura no país. Nos últimos 50 anos, dois momentos marcaram a ascensão da noção de desenvolvimento rural enquanto uma ideia-força que atrai generalizado interesse, orientando programas governamentais, instigando sofisticados debates intelectuais e motivando grupos sociais interessados nos benefícios das mudanças associadas, e esta noção. O primeiro período remete aos anos seguintes à Segunda Guerra, especialmente a partir da década de 50, estendendo-se até o final dos anos 70, e o segundo momento remete a meados da década de 90. Em ambos, o tema do desenvolvimento rural integrou as agendas sociais, adentrando o campo da política e, assim, passando a permear e a determinar as expectativas e o jogo das disputas sociais (NAVARRO, 2001).
Entretanto, foi só a partir da década de 1990, que um conceito mais coeso e diversificado foi formado por estudiosos do tema, que passaram a criticar a dicotomia urbano-rural (foco da política de desenvolvimento rural da década de 1960), ao defender que não se pode alcançar um desenvolvimento que seja apenas rural, excluindo o urbano e seu dinamismo. Esses autores passaram a defender em seus trabalhos uma maior ressignificação do campo nas políticas de desenvolvimento, enquanto instrumento eficiente na questão do desenvolvimento territorial, através principalmente de estratégias de iniciativas locais, como o fortalecimento da agricultura familiar e sua multifuncionalidade. Uma vez que, a noção de multifuncionalidade da agricultura familiar permite analisar a interação entre famílias rurais e territórios na dinâmica de reprodução social, considerando os modos de vida das famílias na sua integridade e não apenas seus componentes econômicos. Incorporando, a provisão de bens públicos relacionados com o meio ambiente, a segurança alimentar e o patrimônio cultural pelos agricultores.
Nesse sentido, observou-se que as linhas que tratam o tema desenvolvimento rural defendem que esse depende não apenas do dinamismo do setor agrícola, mas, cada vez mais, da sua capacidade de atrair outras atividades econômicas e outros interesses sociais e de realizar uma profunda “ressignificação” de suas próprias funções sociais através do fortalecimento de pequenos produtores rurais como os agricultores familiares.
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