Luciana Almeida Menezes
UNISOCIESC, Brasil
lucianajus@hotmail.comRESUMO: Este artigo trata sobre a justiça de transição, que é o mecanismo utilizado quando da passagem de um regime ditatorial para o (re)estabelecimento da democracia. Aborda a influência de posicionamentos filosóficos para a aplicação tentar resolver a pergunta sobre o que seria a coisa certa a ser feita. Fazer a justiça de transição implicaria em estabelecer arranjos sociais instáveis com possível punição para os violadores de direitos humanos. Não fazê-la significaria relegar ao esquecimento desrespeitos a direitos humanos universalmente consagrados. Trata também do constitucionalismo de transição e sua importância para a criação de uma constituição transitória possível para a concretude do Estado Democrático de Direito. Pretende demonstrar a necessária correlação entre esses termos para a obtenção de justiça e paz após regimes de exceção. Nesse sentido, será feita a exposição dos conceitos e características dos dois fenômenos.
PALAVRAS-CHAVE: justiça de transição, constitucionalismo de transição, justiça, democracia, filosofia.
ABSTRACT: This article discusses transitional justice, which is the mechanism used when passing a dictatorial regime for the (re) establishment of democracy. It discusses the influence of philosophical positions to the application trying to resolve the question of what would be the right thing to be done. Making transitional justice implies in establishing unstable social arrangements with possible punishment for violators of human rights. Not doing it would mean relegating to oblivion disrespect to human rights universally recognized. It also discusses constitutionalism transition and its importance to the creation of a transitional constitution possible for the concreteness of a democratic state. It aims to demonstrate the necessary correlation between these terms to obtain justice and peace after regimes. In this sense, the exhibition will be the concepts and characteristics of the two phenomena.
KEYWORDS: transitional justice, transitional constitutionalism, justice, democracy. philosophy.
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Luciana Almeida Menezes (2016): “Para quê transicionar?”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (febrero 2016). En línea: https://www.eumed.net/rev/caribe/2016/02/transicionar.html
1. A transição política e os desafios da consolidação jurídica de uma nova ordem institucional
As décadas de 60, 70 e 80 presenciaram inúmeros casos de tortura, morte e desaparecimento forçado de pessoas que se opunham às regras impostas por governos não democráticos instalados em países dos continentes americano, africano e europeu.
A partir do final da década de 80 e por motivos diversos1 , sociedades emergiram de ditaduras, guerras civis, atrocidades em massa e terrorismo estatal, passando a reestabelecer a democracia e o retorno do Estado de Direito. Entretanto, enfrentaram o mesmo dilema: punir ou esquecer as violações a direitos humanos? Dever-se-ia priorizar a estabilidade democrática ou a justiça? Os dois elementos, quais seja, democracia e justiça, parecem estar em lados opostos em situações de saída de regimes ditatoriais e, por vezes, há que se optar por apenas um deles num primeiro momento, sob pena de impossibilitar o outro. A dúvida se coloca fortemente, posto que implicações variadas surgem independentemente do caminho que se escolha traçar.
Para Boraine (2006, p. 18), a instabilidade política e todas as incertezas a ela atreladas fazem o Estado titubear ante o desafio do porvir; afinal será preciso garantir uma paz sustentável para que a democracia e a economia local possam florescer. Ademais, na práxis, as perguntas se avolumam e outra incongruência que se faz sentir é como compatibilizar a nova feitura do Estado sob os parâmetros democrático e de direito simultaneamente.
Se, ao priorizar a democracia, o Estado optasse por realizar a transição através de acordos e negociação; então os direitos individuais e coletivos antes violados teriam que ser postos em segundo plano até que houvesse estabilidade suficiente para enfrentar a problemática humanitária. Contudo, se se priorizasse a defesa dos direitos das vítimas com varredura dos algozes institucionalizados, a democracia poderia se tornar inviável. Mesmo com a gama de mecanismos de transição que se apresenta2 , Sriram (2005) pondera que parece não haver, num primeiro momento, como compatibilizar a vontade de se fazer justiça e a necessidade de estabilizar e reformar um Estado frágil. Ela enfatiza que
os obstáculos podem ser também políticos ou relacionados a questões de segurança; alguns novos regimes enfrentam o risco que perpetradores desses crimes reajam violentamente a intenções em puni-los. Desta maneira, os Estados não escolhem simplesmente entre justiça e paz. Certamente, as escolhas são muito mais complicadas. (tradução livre)3
Teitel (2002) enfatiza também dilemas do Estado de Direito ao discutir a possibilidade de retroatividade da lei penal para punição de torturadores e seus mandantes, perpassando pela seletividade de quem será processado criminalmente e o grau de compromisso do Poder Judiciário em realizar tais julgamentos.
Além disso, outras dificuldades de caráter prático se vislumbram. Obstáculos logísticos, a falta de estrutura e de recursos, a baixa ou inexistente capacidade técnica e a numerosa demanda por tribunais especializados em lidar com os problemas postos em tela tornam irrealizável a concretização de proteção a direitos humanos em um Estado recém-redemocratizado4 .
Para ilustrar, o caso de Ruanda é emblemático. Após uma guerra civil entre Hutus e Tutsis que culminou com a morte de aproximadamente 800.000 pessoas em cerca de 100 dias, seria inimaginável a tentativa de punição de todos os envolvidos5 . A medida adotada foi o retorno às gacaca courts, antigo sistema informal e local que já havia sido usado para dirimir conflitos familiares e atinentes a problemas que envolvessem vilarejos.
E é por isso que os mecanismos adotados em uma justiça de transição, ou a velocidade de implementação dos mesmos, parecem variar de acordo com o modo como se dá a passagem da tirania à democracia dentro do contexto de cada Estado, as necessidades políticas, jurídicas e sociais e de acordo com a influência dos reclames populares 6.
Assim sendo, a passagem da via ditatorial para a democrática, sob a forma de ruptura ou através da negociação, implica em escolhas acerca da estrutura fundante estatal. A encruzilhada apontará para dois vieses com sérias quebras de paradigmas ou com a manutenção de parte do status quo para o Estado e a sociedade. Uma nova sistemática de poder se apresenta, onde os atores envolvidos redesenham conceitos como justiça, verdade, conciliação e paz. Todavia, a forma como isso se dará e como os ingredientes desse recente cenário se combinarão serão diametralmente opostos.
Na cisão abrupta, o caminho será liderado por agentes até então não participantes da estrutura prévia, não havendo receio de rompimentos de legislação e reformas institucionais. Enquanto que no sistema negociado, o Ancien Régime permitirá a mudança de maneira calculada, não dando margem assim a perseguições e prestações de contas posteriores.
O primeiro modelo parte da ideia de que a democracia é um bem a ser alcançado a qualquer custo por ser desejado pela maioria. E, a contrario sensu, o segundo modelo defende a postura de que a democracia precisa se tornar possível e que a via “lenta, gradual e segura” é a mais adequada e viável. Sobre o tema, Torelly (2010, p. 106) assevera que
a consolidação de um Estado Democrático de Direito implica, desta feita, na necessidade de estabilização de formas de participação democrática e na universalização da igualdade perante a lei. Ademais, após a consolidação de um amplo arcabouço de garantias individuais sob a chancela de ‘direitos humanos’, não há de se falar em Estado Democrático desconhecendo a proteção a estas garantias.
Transpassado o impacto da mudança, questionamentos poderão ser feitos concernentes à contribuição do modelo aplicado para a efetiva construção da democracia e o estímulo à cultura de respeito aos direitos humanos 7. Sob essa perspectiva, Yasmin Sooka (2006) levanta algumas perguntas bastante pertinentes quando da análise crítica do efeito prático da transição política realizada através de rompimento ou manutenção. Ela discute se, em longo prazo, a justiça de transição realmente tem o condão de efetivar conceitos como democracia e direitos humanos em países onde a tortura e os desaparecimentos eram praticados pelo ente estatal. Questiona inclusive qual seria então o marco zero da transição em países onde hostilidades e perseguições ainda perduram, mesmo após a dita “passagem” para a democracia.
Também se precisa definir para onde pretende caminhar a transição. E Cattoni de Oliveira (2002 apud GOMES; CATTONI DE OLIVEIRA, 2011) comenta que a resposta imediatista levaria a crer que a direção seja sempre voltada para a democracia. Todavia, o mesmo assevera que esta jamais de consolida, sendo “como hipérbole e porvir. Ela é sempre transição dela mesma, transição nela mesma. [...] ela é uma democracia (im)possível.”
2. Justiça de transição
Elaborando um conceito contemporâneo, compreende-se por justiça de transição 8 o conjunto de medidas adotadas durante a passagem de um regime autoritário para a fixação (ou retorno) do regime democrático9 , cujo objetivo é “o estabelecimento de reparações e/ou reconciliações que possam contribuir para a democracia e a paz.” (SANTOS, 2010, p. 126).
Ela não deve ser defendida como sendo salutar unicamente para os que foram vítimas de atos de terrorismo praticados pelo Estado. Sob o ponto de vista macro, deve ser instalada para benefício de toda a sociedade, pois as consequências dos regimes de exceção “tendem a se difundir por todos aqueles que a vivenciaram – seja direta ou indiretamente, além de se perpetuar no tempo, exceto se tratados e reelaborados, como o defendido por Freud.” (LOPES; CHEHAB, 2011, p. 11354)
Palermo (2011) contribui ao destacar que se trata ainda de um conceito em construção e que suas repercussões serão diretamente afetadas de acordo com “as relações de força entre a atual e a antiga elite [que esteja] no poder.” Some-se a isso a ênfase dada por ele ao caráter supranacional que pode ser dado à justiça de transição como meio de garantir a proteção aos direitos humanos e a segurança internacional.
Por sua vez, David; Choi (2009, p. 162) se referem a um conjunto de intervenções políticas orquestradas com o objetivo de gerar justiça, revelar a verdade, promover a reconciliação, estimular a paz e estabelecer a democracia. Teitel (2002, p. 1) enfatiza que esta acontece em “períodos de mudança política para confrontar ilegalidades cometidas por regimes repressivos predecessores” 10, cujo interesse é o de superar os danos causados à sociedade durante uma “anomalia constitucional” 11, através da “combinação de elementos com o olhar voltado para trás e para frente” 12. Desta forma, apesar da variedade conceitual do assunto, os autores tocam pontos em comum, tais quais: mudança política, democracia e paz.
Por esse motivo, Gomes; Oliveira (2011) asseguram que a justiça de transição não é feita para vingar os mortos. Ela se dirige, principalmente, às gerações futuras. Nas suas palavras, “[...] a justiça não é feita em memória, mas em projeto, em projeto de um país livre e mais igualitário, em condições de assegurar que os eventos de um passado de barbárie não se repitam.” (GOMES; OLIVEIRA, 2011, p. 10104)
Porém, é relevante enfatizar que, ainda que haja uma efervescente produção acadêmica sobre o tema que agora se apresenta, este não é um conceito recente para a humanidade. Ao fazer uma genealogia detalhada, Teitel (2002) afirma que povos antigos já utilizavam um tipo especial de justiça quando havia uma ruptura de cenário político. Considerando a história mais recente, contudo, pode-se utilizar o pós-Primeira Guerra Mundial 13 como marco referencial da reflexão teórica na matéria, tendo a justiça de transição ganho importância após a Segunda Grande Guerra.
E nesse cenário, é preciso compreender que a consolidação política de uma nova ordem institucional vivenciou três fases bem distintas. A primeira ocorreu imediatamente após a Segunda Guerra Mundial onde a transição e seus entraves foram realizados no cenário internacional através de organismos estrangeiros (a exemplo da Organização das Nações Unidas) e de tribunais criminais ad hoc (como o de Nuremberg e de Tóquio). A segunda aconteceu dentro dos Estados dilacerados e que buscavam a reconstrução através da cura de toda a sociedade atingida direta ou indiretamente pelos abusos estatais. Já a hodierna fase retorna à jurisdição internacional14 para fins de combate a terrorismo 15.
À parte do enfoque histórico, outro aspecto importante a observar é que, por haver tipos diferentes de justiça (retributiva, restaurativa, distributiva, econômica e social), se faz imprescindível observar o viés interdisciplinar da matéria, não se devendo limitar a oferecer apenas medidas judiciais, mas também abarcando inúmeras áreas sociais do conhecimento e combinações de mecanismos capazes de suplantar o terrorismo estatal. Boraine (2006, p. 19) se refere a isso como uma aproximação holística da problemática ao afirmar que
tudo isso sugere que apesar de a justiça criminal ser extremamente importante, as sociedades em transição precisam de outros instrumentos e outros modelos para suplementar uma forma de justiça. A justiça de transição não entra em conflito com a justiça criminal. Na verdade, utilizando uma aproximação holística da justiça transicional, a qual pretende complementar a justiça retributiva com a justiça restaurativa, representa um benefício considerável no estabelecimento de uma sociedade justa.16
No mesmo toar, Humphrey (2008, pp. 3 e 4) salienta que a instalação da justiça transicional entremeia-se na criminologia, no direito internacional, na sociologia, na antropologia, na ciência política, na psicologia e na saúde pública onde cada ciência contribui com elementos afetos à sua esfera de atuação para ajudar na contenção da violência, bem como na cura das vítimas e na promoção de discursos que possam garantir a paz social.
Com base nisso, Elster (2002 apud ARÃO; TORELLY, 2010) elencou três tipos de justiça transicional: a) justiça legal, através do Poder Judiciário; b) justiça política, perpassando pela construção legislativa do seu Poder típico; e c) justiça administrativa, com enfoque nos atos do Executivo, onde as três “justiças” podem ser aplicadas isolada ou conjuntamente, garantindo maior ou menor resultado para a democracia que se pretende instalar e para os direitos humanos a serem resgatados. Como sugestão,
a própria natureza da separação dos poderes no Brasil remete-nos, quase que de pronto, a uma visualização de que seria mais típico ao Judiciário a promoção da justiça legal, mais notadamente a responsabilização de agentes criminosos do regime, dentro dos limites de um Estado de Direito; ao Legislativo a promoção da justiça política, com a criação de leis que retirassem empecilhos a feitura de justiça – como leis de auto-anistia – e a instituição de diplomas específicos para a reparação de vítimas; e ao Executivo a aplicação das leis a implementação de políticas públicas. 17
Não obstante, Sooka (2006, p. 313) adiciona o aspecto participativo que a justiça transicional deve ter para que seus objetivos sejam alcançados. Ela apresenta um rol de iniciativas a serem estimuladas: a) participação de todos os partidos, incluindo a sociedade civil; b) prestação de contas à sociedade civil, demonstrando que medidas estão sendo tomadas para lograr os ideais traçados; c) não-discriminação no tratamento dado independentemente do “lado” que representam; d) fortalecimento dos atores locais e da sociedade civil; e) parcerias com outras instituições e suas iniciativas democráticas.
Ademais, a justiça de transição não pode ser um fim em si mesmo. Ao examinar as causas que deram origem ao conflito e ao sentir-se parte do processo de catarse social, estar-se-ia diminuindo a possibilidade de reincidência [das violações humanitárias] (SOOKA, 2006)
3. Constitucionalismo de transição
Este não se confunde com a justiça de transição apesar de estarem intimamente relacionados. Um longo processo possibilitou o surgimento deste tipo de constitucionalismo e para entendê-lo, há que se fazer um breve histórico.
Barroso (2009) explica que já na polis grega a ideia central do constitucionalismo se fazia presente. Ainda que conceitos como repartição de poder e Estado de Direito não estivessem tão bem delimitados, mas a discussão embrionária sobre como limitar o poder do governante inspirou o pensamento de filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles. Contudo, a experiência democrática grega e a república romana perderam força e permaneceram no esquecimento durante toda a Idade Média18 .
Na Idade Moderna, significou um movimento político-social dotado de caráter jurídico em resposta e também como meio de limitação ao raio de atuação do Estado frente aos indivíduos subjugados a ele. Nos dizeres de Bastos (2002), houve a “valorização da juridicização do poder, com a finalidade de dividi-lo, organizá-lo e discipliná-lo, bem como da elevação [da Constituição] à condição de legislação suprema do Estado19 .” Caberia então a ela - Carta Magna das nações - o dever de guardar os direitos fundamentais 20 em face das amarras impostas pelos governantes.
No constitucionalismo liberal, fortemente influenciado por pensadores como Jean-Jacques Rousseau, John Locke e o Barão de Montesquieu, os reis absolutistas sofreram restrições à sua autoridade através de conceitos como separação dos poderes. Ademais, a experiência norte-americana permitiu a criação de um documento protetivo aos cidadãos, Constituição Americana de 1787, que serviu de modelo para outros documentos fundamentais. É nesse cenário que os direitos civis e políticos, comumente associados ao direito à liberdade, passam a ser consagrados. Estava inaugurado, pois, o constitucionalismo clássico.
Na mesma esteira, Magalhães (2007) diz que
[...] se afirmou com as revoluções burguesas na Inglaterra em 1688, nos Estados Unidos em 1776, e na França em 1789. Podemos, entretanto, encontrar o embrião desse constitucionalismo já na Magna Carta de 1215. Não que a Magna Carta [tenha sido] a primeira Constituição moderna, mas nela já [estavam] presentes os elementos essenciais deste moderno constitucionalismo como limitação do poder do Estado e a declaração dos Direitos fundamentais da pessoa humana, o que a tornou uma referência histórica para alguns pesquisadores. (grifado)
Em 1918, com o fim da Primeira Guerra Mundial, o constitucionalismo sofre uma forte modificação e passa a resguardar direitos sociais, tais como proteção laboral e intervenção do Estado na economia. Inicia-se o rol de direitos fundamentais que Bobbio (1992) convenciou chamar de direitos de segunda geração, intimamente relacionados aos direitos de igualdade. Estar-se-ia diante do constitucionalismo moderno.
No século XX, a Constituição se torna o cerne do Estado através da qual se garantirá que os horrores evidenciados após a Segunda Guerra Mundial não se repetirão. A dignidade da pessoa humana passa a ser o norte a ser alcançado pelas nações soberanas e surgem os direitos de terceira geração, envolvidos no espectro da fraternidade e da pluralidade.
Ainda que houvesse normatização adequada e suficiente para proteção aos direitos humanos, a exemplo das constituições nacionais e tratados humanitários, isso não foi suficiente para evitar instabilidades políticas e governos ditatoriais. Assim, hodiernamente21 , a pauta de discussão volta-se para o convívio entre dois elementos essenciais para o constitucionalismo: a democracia e o Estado de Direito. Sobre este, significa a presença não apenas da lei, mas também da observância da justiça e da legitimidade.
Neto (2006) destaca inclusive que
a democracia [...] passa a integrar o texto constitucional com a finalidade de afirmar sua dimensão substantiva: uma democracia que não é apenas a expressão da vontade da maioria sufragante, mas também a expressão respeito da vontade das minorias, ou seja, não apenas um regime que acata o consenso, mas que respeita o dissenso.
O constitucionalismo de transição, por sua vez, é resultado de negociações entre antigos integrantes do poder e novos atores que pretendem representar a mudança. E é por esta razão que Yeh; Chang (2009) afirmam que a Constituição transicional não representa um resultado das transformações políticas, mas sim a mola propulsora para tornar possível o consenso político em períodos de tamanha instabilidade bem como tem o condão de transformar valores sociais.
Tem como características: 1. a adoção de arranjos constitucionais transitórios, que facilitaram o consenso político e motivaram a novas mudanças; 2. a criação de cortes constitucionais e seu empoderamento através das revisões judiciais, cabendo ao Poder Judiciário compatibilizar os dissídios existentes entre desejado e o viável em termos de controvérsias políticas e sociais; 3. e modelos normativos ‘quase-constitucionais’, com a principal característica de serem mais facilmente aprovados em um Parlamento politicamente dividido que uma emenda constitucional.
Contudo, apesar de significarem importantes recursos para tornar possível a reconstrução social, o constitucionalismo de transição precisa enfrentar o desafio de mediar os conflitos presentes em uma sociedade novamente democrática após um período de repressão, assim como fornecer mecanismos para que haja o fortalecimento da democracia.
4. Conclusão
Conforme demonstrado, a justiça de transição e o constitucionalismo de transição não são fenômenos sinônimos. Eles surgem em momentos de instabilidade política e democrática e se fazem necessários para a concretização do Estado Democrático de Direito que se esvai em regimes de exceção e/ou ditaduras.
Tais fenômenos são equacionados em sociedades instáveis de forma orquestrada, através de acordos e negociação, ou sob a forma de ruptura, quando a antiga ordem é substituída por outra de maneira radical e extrema. Isso consegue explicar como membros de uma mesma sociedade que estavam em lados diametralmente opostos conseguem concretizar a democracia ainda que tenham intensos desacordos sobre o que é certo e aceitável em termos de reação às graves violações a direitos humanos ocorridas em tempos pretéritos não tão distantes.
Assim, pode-se supor que seja possível níveis diferentes de acordos e de desacordos em relação à fundamentação e/ou ao resultado esperado. Pode-se ainda dizer que isso é constitucionalmente estratégico, posto que o texto constitucional, por vezes, silencia ou estabelece conceitos abertos por conta do processo de acordo legislativo.
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TRIBESS, Camila. Comparação, história e transições: os casos de Brasil e Argentina entre 1979 e 1989. Revista Eletrônica de Ciência Política, vol. 1, n. 1, setembro 2010. Disponível: <http://pt.scribd.com/mobile/doc/56098637>. Acesso em 12 junho 2012.
WEICHERT, Marlon Alberto. A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a obrigação de instituir uma Comissão da Verdade. In: GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira (organizadores). Crimes da ditadura militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de direitos humanos: Argentina, Brasil, Chile, Uruguai São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
______. Suprema impunidade no julgamento da ADPF 153. In: SARMENTO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang (coordenadores). Supremo Tribunal Federal: balanço e crítica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
WESTBERG, Megan M. Rwanda’s use of transitional justice after genocide: the Gacaca courts and the ICTR. Kansas: Kansas Law Review, 2010. Disponível em: <www.stnson.com/uploadedFiles/Content/Publications?image_Files?Westberg_KULaw_Rwanda.pdf>. Acesso em 20 janeiro 2012.
YEH, Jiunn-Rong; CHANG, Wen-Chen. The changing landscape of modern constitutionalism: transitional perspective. Taiwan: National Taiwan University Law Review, 2009. Disponível em: <http://ssrn.com;abstract=1482863>. Acesso em 20 março 2012.
1 No artigo Transitional justice genealogy, Ruti G. Teitel (2002) levanta a hipótese de que a volta à democracia deu-se nesse período em diversas partes do globo (Leste Europeu, África e América Latina), em grande motivo, por conta do pós-Guerra Fria. Ante a inexistência de bipolarização, os governos tiranos, antes apoiados por potências como os Estados unidos da América e a antiga União Soviética, não conseguiram manter-se no poder, gerando assim uma transformação nas conjunturas políticas. E sobre o contexto político de violações de direitos humanos e seus locais de incidência, HUMPHREY (2008), LANGA (2006), SOOKA (2006) e WESTBERG (2010) trazem exemplos.
2 Variados mecanismos podem ser utilizados pelos Estados que necessitam transitar da antiga ordem ditatorial para a recém-nascida democracia. A literatura diverge sobre a quantidade exata de elementos utilizáveis e as combinações são inúmeras. Porém, em qualquer circunstância, há que se adequar o meio transicional à realidade local tendo em conta o reconhecimento estatal de que foram cometidos crimes e que o Estado é obrigado a reparar tais celeumas. Cuya (2011, p. 40) e Abrão; Torelly (2010, pp. 28 e 29) advogam que há quatro pilares que sustentam a justiça de transição: a justiça, a verdade, a reforma e a reparação. O primeiro através da aplicação de penas, respaldada no devido processo legal nacional, internacional ou misto, aos responsáveis por violarem os direitos humanos. O segundo, com fito em esclarecer os crimes cometidos durante o terrorismo estatal e construir a memória da época. O terceiro aspecto visa a readequação da estrutura estatal para que corresponda ao Estado Democrático de Direito que se pretende (re)estabelecer. Por fim, a adoção de reparação material e/ou moral para as vítimas. Já Boraine (2006) traça 5 pilares da justiça de transição. São eles: prestação de contas, resgate da verdade, reconciliação, reforma institucional e reparações.
3 Obstacles may also be political or related to security issues; some new regimes face the risk that the perpetrators of these crimes will react violently to attempts to punish them. Thus, states are not simply choosing between justice and peace, rather, the choices are much more complicated. (SRIRAM, 2005, p. 507)
4 Por ser um processo complexo que implica em esforços conjuntos dos três Poderes, Arão; Torelly (2010, p. 29) comentam também até a academia parece não saber qual a melhor postura a ser adotada já que “as divisões disciplinares típicas dos arquétipos acadêmicos [são] pouco hábeis para lidar com fatores que, em situações usuais, seriam tratados de modo isolado” (ABRÃO e TORELLY, 2010, p. 29).
5 WESTBERG (2011, pp. 335 e 336) dá notícia de que no primeiro momento de normalização institucional em Ruanda, 120.000 pessoas foram presas, suspeitas de envolvimento no genocídio de 1994; até o ano de 2004, só 10.026 casos tinham sido efetivamente enfrentados pela justiça local.
6 Tribess, por exemplo, ao comparar os modelos argentino e brasileiro, percebe que “no primeiro caso [houve] uma queda brusca do regime, já no segundo caso a transição [foi] controlada pela elite do regime e [ocorreu] de forma gradual.” (TRIBESS, 2010, p. 102)
7 Para maiores detalhes, ver obra de Yasmin Sooka (2006).
8 Torpey apud Sriram (pp. 507 e 508, 2005) não utiliza a expressão justiça de transição. Em seu lugar, cria o silogismo “transitologia” distinguindo-a de “justiça reparadora”. Aquela seria “o termo usado para caracterizar os campos acadêmico e político em desenvolvimento para a justiça de transição, que enfatiza em casos históricos, tipologias específicas e ferramentas políticas” e esta “foca nos males do passado além daqueles tipicamente previstos numa justiça de transição.” Segundo o autor, a citada ciência englobaria uma expressiva literatura de interesse dos cientistas políticos e dos legisladores ao criar tipologias, fazer considerações sobre a viabilidade da transição e a possibilidade de efeitos colaterais e também construir ferramentas apropriadas para a contenção das atrocidades cometidas.
9 Santos (2010) elenca também os momentos pós-guerra, pós-violência ou pós-conflito.
10 Por sua vez, Humphrey (2008, p. 3) destaca que só haverá justiça de transição quando “crimes contra a humanidade tiverem ocorrido como resultado de um conflito político interno”, afastando assim a hipótese de aplicação da expressão em casos pós-guerra.
11 A expressão é de Cuya (2011).
12 “The term ‘transitional justice’ […] describes a combination of both backward and forward-looking elements” (WESTBERG, p. 332, 2010)
13 Imediatamente após a Primeira Grande Guerra, houve proposta para que mecanismos de justiça de transição fossem normatizados. Contudo a Liga das Nações não logrou êxito ante a resistência dos vencidos e vencedores em aplicar a persecução penal.
14 Westberg (2010), ao se debruçar sobre o genocídio que atingiu Ruanda, concluiu que os tribunais lá instalados tiveram maior grau de sucesso que o tribunal instalado pela ONU para o mesmo fim. E, entre os seus argumentos, evidencia que as cortes locais têm maior percepção de aspectos econômicos, psicológicos, sociológicos e culturais que a similar internacional. Isso denota que há que se ter uma preocupação local posto que, ainda que haja uma instância internacional competente para julgar casos de violações de direitos humanos durante um regime de exceção, esta mesma corte não terá o condão de reconciliar os cidadãos de um local devastado, ou parcialmente atingidos, pelo terrorismo do Estado.
15 Para uma visão pormenorizada do assunto, é recomendável a leitura do artigo de Teitel mencionado na nota I.
16 No original, “all of this suggests that while criminal justice is extremely important, societies in transition need other instruments and other models in order to supplement one form of justice. Transitional justice does not conflict with criminal justice. In fact, advocating a holistic approach to transitional justice, which attempts to complement retributive justice with restorative justice, is of considerable benefit in the establishment of a just society.”
17 ABRÃO; TORELLY, 2010, p. 29.
18 Pormenores desse processo histórico podem ser encontrados em Barroso (2009).
19 Converge o pensamento de Magalhães (2007) quando diz que “[ele] se afirmou com as revoluções burguesas na Inglaterra em 1688, nos Estados Unidos em 1776, e na França em 1789. Podemos, entretanto, encontrar o embrião desse constitucionalismo já na Magna Carta de 1215. Não que a Magna Carta seja a primeira Constituição moderna, mas nela já estão presentes os elementos essenciais deste moderno constitucionalismo como limitação do poder do Estado e a declaração dos Direitos fundamentais da pessoa humana, o que a tornou uma referência histórica para alguns pesquisadores.”
20 Na obra The changing landscape of modern constitutionalism: transitional perspective, Yeh; Chang (2009) ponderam que o papel dado à Constituição no constitucionalismo tradicional era o de restringir os poderes dos governantes através da separação dos poderes, de sistemas de pesos e contrapesos (checks and balances) e de revisões judiciais. Sobre o mesmo assunto, salutar é a ponderação de Barroso (2009) ao informar que as limitações eram de ordem material (onde alguns valores básicos e fundamentais são sempre preservados), orgânica (onde estruturas independentes e harmônicas de poder agem distintamente e ao mesmo tempo exercem controle mútuo) e processual (com respeito à lei e aos procedimentos).
21 Barroso (2009) sugere que o constitucionalismo democrático vivencia a complexidade “da conciliação entre soberania popular e direitos fundamentais.”
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