Francivaldo Alves Nunes
Universidade Federal Fluminense
francivaldonunes@yahoo.com.brResumo: Os debates que envolviam o “valor” da terra na Amazônia e as dificuldades de mão-de-obra para atuar na lavoura e extração, nas décadas de 1870-1880, é o nosso objeto de análise. Assim, optamos pelo entendimento desta questão na heterogeneidade das interpretações que se apresentavam nos discursos presentes em documentos e pronunciamentos oficiais, principalmente os presidentes de províncias. Indagamos sobre os elementos que apontavam para a definição do valor da terra como não associado apenas sobre o ponto de vista monetário, mas também relacionado à importância social do uso e ocupação do solo, o que direcionavam as falas dos que viam na agricultura a possibilidade de fixar o homem amazônico a terra, assegurando a posse e a constituição de propriedades rurais.
Palavras-chave: Terra, Trabalho, Amazônia.
Abstract: Discussions involving the "value" of the land in the Amazon and the difficulties of hand labor to work in the plantation and extraction, in the decades of 1870-1880, is our object of analysis. Thus, we opted for this issue understanding the heterogeneity of interpretations that were presented in the discourses present in official documents and pronouncements, especially the presidents of provinces. We inquired about the elements that pointed to the definition of land value as not only associated on the monetary point of view, but also related to the social importance of the use and occupation of the soil, that direct the lines of what they saw in agriculture the possibility of fix the Amazonian man to earth, ensuring ownership and the establishment of rural properties.
Keywords: Earth; work; Amazon
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Francivaldo Alves Nunes (2015): “Mercado de terra e trabalho rural no pará nas últimas décadas do império”, Revista Caribeña de Ciencias Sociales (agosto 2015). En línea: https://www.eumed.net/rev/caribe/2015/08/terra.html
Neste texto propomos analisar as concepções construídas por autoridades provinciais, intelectuais, naturalistas e viajantes que defendiam o trabalho agrícola e a agricultura não apenas sob o ponto de vista dos possíveis lucros com a comercialização de seus produtos, mas também, por ser pensada como atividade capaz de assegurar a valoração da terra a partir da superação do extrativismo como principal atividade econômica das províncias do Pará e Amazonas.
Estamos trabalhando, no entanto, com a compreensão de que estas interpretações, a despeito de suas convergências e/ou divergências, expressam um conflito fundamentado pelos interesses dos diversos agentes envolvidos. Assim, a compreensão é de que estas concepções em torno da agricultura adotam e expressam a carga histórica dos temas e questões sobre os quais tratam. 1 Se constituem, portanto, como evento social, não se caracterizando como um acontecimento contido em uma lingüística abstrata, nem algo originado da consciência subjetiva do enunciador. O enunciado concreto é resultado de um processo de interação com o meio social.2
Importante destacar que o que fazemos, ao registrar estas concepções, também é um exercício de interpretação, pautado não apenas no que foi dito pelos agentes produtores desses discursos, mas como resultante de debates que geraram essas idéias. São textos que evidenciam, entre outras coisas, embates entre grupos políticos, propiciando a análise da sociedade em questão e os interesses e prioridades daquele momento, segundo os olhares dos indivíduos responsáveis pela administração pública provincial e agentes políticos.
O valor da terra pelo trabalho de cultivo
A relação entre cultivo e valoração da terra, entendendo o termo “valor” não só apenas do ponto de vista monetário, mas também associado à importância social do uso e ocupação do solo direcionavam as falas dos que viam na agricultura a possibilidade de fixar o colono, pois se entendia que a constituição da propriedade, enquanto ato de ocupar e utilizar perenemente a terra assegurava uma produção mais consistente e menos suscetível aos condicionantes e ciclos naturais de coleta. Um caso emblemático a este respeito corresponde as constantes anotações do na época comendador Manuel Antonio Pimenta Bueno. Ocupante do cargo de gerente da Amazon Steam Navigation Company, destacou-se em 1882, por chamar atenção do governo paraense sobre a falta de perspectivas para o futuro da indústria extrativa da borracha e a importância em se estimular a produção agrícola.
Para Pimenta Bueno era tempo de fazer cessar “a vida ambulante das populações do interior da província”, assim como extinguir o que chamava de “regime do primi capientis”, que teria sido a regra de exploração das “imensas, mas não inesgotáveis riquezas” presentes em território amazônico. 3 No caso, fazia referência direta ao que chamava de “patrimônio dos seringais”, que não estaria sendo aproveitado, mas dissipado pelo trabalho irregular dos seringueiros. Mostrava-se, portanto, um crítico ferrenho não ao extrativismo enquanto prática econômica importante no enriquecimento de uma região, mas das técnicas utilizadas pelos extratores em território amazônico, principalmente quando se tratava da exploração das seringueiras.
Um exemplo do que se poderia considerar como extrativismo predatório foi citado pelo presidente do Amazonas em 1856 João Pedro Dias Vieira. 4 No caso constatou que não apenas as árvores de seringa estavam sendo abatidas pela exploração irregular, que não levava em consideração os períodos adequados para extração do látex, mas também as plantas de salsaparrilha de onde podia se extrair fibras para fabricação de vassouras, por exemplo. Sobre a salsa afirmava que esta havia quase que por completo desaparecido das matas e margens dos rios mais próximos a algumas povoações. Isto era apontado como resultante de práticas inadequadas das populações do interior, que ao retirar a salsa arrancava do solo a batata que dava sustentação a planta e que permitiria novas colheitas. A extração da estopa e do óleo de copaíba também sofria danos semelhantes, não deixando de ser objetos de observação de Dias Vieira. No caso da extração de óleo, este estava sendo retirado através de golpes de machados que danificavam o caule da planta, e não através de cortes superficiais que não destruíssem as árvores.
Ainda sobre a questão, não deixava de responsabilizar a atividade extrativa predatória pela permanente mobilidade da população amazônica. Para Pimenta Bueno era justamente este deslocamento populacional que não permitia que as terras do Pará e Amazonas adquirissem valor monetário significativo. Isto era explicado pelo comendador quando dizia que a não ocupação regular da terra impossibilitava a construção de benefícios em possíveis propriedades, pois o tempo de permanência nessas áreas estava associado aos ciclos de coleta que não duravam de quatro a seis meses, período que não compensava nem a construção de uma residência, mesmo que fosse de madeira, quanto mais a implantação de um roçado, que exigia muito mais esforços.5
O presidente do Pará em 1861 Thomaz Antonio do Amaral foi ainda mais contundente quanto à situação vivenciada pelo homem extrativista amazônico. Destacava que a experiência teria demonstrado que nas áreas em que se desenvolvem o extrativismo predominam as práticas selvagens de produção, pois os homens vagueiam em demandas por raízes e animais, assim como estariam entregues as intempéries e as moléstias que dizimavam grande parte desta população. 6
A atividade extrativista se mostrava nas falas de autoridades e agentes públicos, portanto, como um sério problema quanto à constituição de propriedades, principalmente pela constante mobilidade da população extratora, o que legitimava os discursos em defesa da superação do extrativismo pela agricultura como estratégia para garantir a ocupação regular das terras e a posterior valorização econômica dessas posses.
Diante das condições que se apresentavam as terras amazônicas o comendador Pimenta Bueno destacava a necessária reforma na Lei de 18 de setembro de 1850, que, apesar de ter motivado consideráveis “dispêndio para os cofres públicos”, não havia produzido “frutos equivalentes”. 7 Esta avaliação estava associada aos poucos resultados obtidos com a lei que procurou, enquanto instrumento jurídico, discriminar as terras públicas das privadas, além de buscar impedir o acesso à terra devoluta, a não ser via compra. 8
Os êxitos não alcançados pela legislação se deviam as algumas características específicas das províncias do Pará e Amazonas. Nesse caso, Pimenta Bueno entendia que para o extremo Norte do Império eram relativamente poucas as terras possíveis de comercialização, o domínio público não estava discriminado e os coletores de produtos nativos continuavam a invadir e a devastar a “ferro e fogo” as florestas nacionais, “esterilizando cada dia, por amor de efêmero lucro, imensa riqueza, que largos séculos acumularam”. Por outro, o preço de meio real por braça quadrada, mínimo taxado pela lei para aquisição de terras devolutas, era considerado elevado nas especiais condições da região, “onde tanto custava transformar em solo agrícola o terreno natural”.9
Como se observa, estas condições apresentadas pela região amazônica serviam de elementos de críticas quanto à criação da lei sobre terras no Brasil, isto por que se entendia que esta legislação devia, quando da sua criação, dar conta de regular a medição, demarcação, venda e uso da terra, assim como orientar a implantação das colônias nacionais e estrangeiras e a ocupação de terras devolutas, o que não havia se registrado no caso da Amazônia.
A não aplicação da lei nas terras amazônicas podia ser exemplificada na proposta de regulação do uso da terra através do manuseio das florestas e as técnicas de cultivo. Sobre a questão era previsto que os danos produzidos pela derrubada da mata e pelas queimadas seriam qualificados como crime punido com multa e pena de dois meses de prisão, conforme apontava o artigo 2º da lei. O próprio presidente Thomaz do Amaral não deixava de registrar que este artigo, que era constantemente descumprido por agricultores e extrativistas do Pará e Amazonas, nunca foi de fato aplicado para punir os infratores. 10
Outra situação não prevista pela Lei de Terras era a diferença quanto aos valores atribuídos a terra no Brasil, que devia levar em consideração as condições de cada região. Para Pimenta Bueno, na Amazônia, as terras que podiam ser postas a venda, não era de fácil aquisição, pois o seu valor era considerado de custo muito elevado. Ponderava como absurdo pensar a venda de terra no Pará e no Amazonas pelo regime da Lei de 1850, isto por que nesta região, como em boa parte do território brasileiro, onde a população era escassa e existiam vastos terrenos, “o trabalho vale tudo e o terreno quase nada”.11
Para tentar contornar esta situação, o governo teria mandado, por vezes, medir terras nas duas províncias, mas o resultado teria sido apenas o aumento das despesas públicas com estas medições, pois o que se considerava enquanto domínio nacional continuou a ser invadido, explorado e, o que seria mais preocupante, devastado. É proposto não esperar da venda o processo de ocupação e valorização dessas terras, nem tão pouco devia o governo incentivar a manutenção e desenvolvimento da produção de um gênero ligado ao extrativismo, como a borracha, cujo futuro industrial era considerado como incalculável e incerto. A perspectiva era resolver o problema, até então esquecido, de melhorar as condições econômicas e morais da população, ou seja, fixar ao solo as populações do interior da província através do “trabalho metódico e regular”, como a agricultura.
Diante dessas observações, as terras onde se registrava a presença de seringueiras, por uma questão das dificuldades e lentidão na cultura desta planta, a venda dessas áreas era quase impraticável. Isto era explicado, pois a seringueira somente aos 25 anos atingia a “exuberância da seiva”, ou seja, maior produção e produto mais consistente, e que antes disso, seja qual fosse o método empregado na extração, a sua produção era bastante diminuta. Mesmo se considerarmos que muitos extratores passavam a retirar a seiva da planta aos dez anos após o plantio, essa prática provocava uma inibição no crescimento desta árvore, na qualidade do seu produto e no tempo de duração da planta. Estas distâncias entre o tempo de plantio e colheita dificultariam, portanto, a venda dessas terras, pois, aos vendedores não receberiam pelas plantações e aos compradores precisariam aguardar por um longo tempo os resultados da primeira colheita, inviabilizando o investimento na aquisição dessas propriedades.
No caso dos meios para ligar ao solo à população do interior da província como estratégia para atribuir valor a estas posses, diversos caminhos foram apontados. Pimenta Bueno defendia a concessão de terras por aforamento, devendo o foro ser pago depois de 20 anos de posse e sempre que houvesse transmissão de propriedade. Destacava a necessidade de conceder aos foreiros o direito de remissão por quantia módica, simplificando quanto possível o mecanismo dessas operações, associando esta medida a obrigatoriedade de cultivo de certo número de seringueira. Nestas concessões defendia a necessidade de conferir aos posseiros que então ocupavam as terras a sua titularidade, evitando assim a intervenção de intermediários, a menos que se tratasse de empresas às quais o governo vendesse certa porção de terra, onde houvesse seringais. No caso das empresas, estas seriam obrigadas a demarcar terrenos e levantar as necessárias plantas, não podendo revendê-los ou fazer doações por aforamento, senão nas condições estipuladas pela concessão. 12
O engenheiro Silva Coutinho, na época diretor de Terras Públicas e Colonização na província do Amazonas, defendia que, no ato da transferência de posse dessas terras, esta devia ser efetivada perante a autoridade que o governo julgasse conveniente. A situação obrigaria o segundo possuidor a continuar no mesmo trabalho e a cultivar o dobro dos gêneros alimentícios que era o critério principal para possuir estas terras. Defendia ainda, que no ato da transferência, o primeiro possuidor pagaria ao governo uma quantia mais ou menos igual ao valor da posse, regulando-se pelo preço mínimo estabelecido na Lei de 18 de setembro de 1850. 13 Esta questão foi posteriormente combatida por Pimenta Bueno, pois, conforme apontamos, este entendia que as terras na Amazônia não podiam ter o mesmo valor que nas províncias do Sul do país.
Como proposta de regular este processo de constituição das propriedades nas áreas de seringais, Silva Coutinho apontava a necessidade da criação de um registro das posses, o qual devia conter não só o nome do posseiro, como o de seus agregados, idade e qualidade de parentesco. Neste caso, o governo nomearia um inspetor dos seringais, uma espécie de fiscal a serviço da administração da província, que seria ao mesmo tempo o juiz dos pleitos que se levantassem e dos conflitos que pudessem surgir. Este empregado visitaria anualmente os estabelecimentos, “examinando cuidadosamente se as condições eram cumpridas, e estudando pouco a pouco o melhor sistema de trabalho, dando conta de tudo ao governo”.14
O presidente do Pará Araújo Brusque, naquele mesmo ano, em 1862, defendia a conservação dos seringais através da concessão das terras devolutas e nacionais onde existissem árvores de seringa ao domínio particular, começando a sua distribuição pelas que estivessem mais próximas dos grandes mercados da província.15 Nesse aspecto, compartilhava com a perspectiva de que a concessão de terras asseguraria a conservação das seringueiras evitando a exploração predatória da planta concebida agora como propriedade do seringueiro, assim como permitia investimentos privados nestas terras, gerando benefícios a estas propriedades e sua posterior valorização. Nesse caso, o entendimento era que o extrativista por não se perceber enquanto dono da terra explicaria a não preservação das árvores de seringa. Assim sendo, seria mais fácil a fundação de estabelecimentos regulares, pois o proprietário se veria obrigado a permanecer na área, o trabalho seria mais moralizado e o trabalhador encontraria os necessários recursos, pois passaria a cultivar outros produtos, principalmente para alimentação. Estes novos hábitos destoariam, conforme apontavam as autoridades provinciais, das “passageiras feitorias” que se levantava no período de extração da borracha, e que no fim da safra desapareciam.
As informações apontadas por Araújo Brusque davam conta de que as populações que se empregavam na coleta e produção da borracha se constituíam enquanto incapazes de promover a propriedade pela dinâmica da atividade extrativa.
Ao regressar de uma viagem as cachoeiras do rio Tapajós, alguns anos depois (1872) das considerações de Araújo Brusque, os engenheiros Corrêa de Miranda e Gonçalves Tocantins relatam a maneira de viver destas populações como ilustrativo da dificuldade de sedentarizar o homem na Amazônia e a conseqüente impossibilidade de garantir a constituição de propriedades rurais que assegurassem a exploração regular dessas terras.16 Tratava-se da observação do comportamento do morador de um dos muitos povoados as margens do Tocantins. Este vinha em uma pequena canoa trazendo consigo toda sua família, que se compunha da mulher, um filho menor de cinco anos, outro de cinco e outro ainda de “peito” (poucos meses de nascido). A mulher guiava o leme, o homem à proa e o filho menor era vigiado de perto pelo maior. No fim do dia, depois de muito trabalhar, “armavam a rede na praia e dormiam tranquilamente ao relento”. Este morador havia contado aos engenheiros que trabalhara durante todo o verão, que teria extraído uma média de 10 arrobas de borracha, mas que havia entregado todo o produto ao seu patrão.
Destacando o quase nenhum lucro obtido com a borracha, os engenheiros apontavam que estes eram os resultados que as populações da Amazônia tinham com a coleta predatória e a ausência de propriedades regulares, ou seja, não asseguraria aquilo que podia ser mais importante para a região que era a constituição de propriedades regulares que conseqüentemente garantiria a sua valorização pelos benefícios que fossem desenvolvidos nestas terras como as construções e as áreas de cultivo, pois entendiam que o valor da terra, retomando discursos anteriores, estava não no solo, mas no benefício produzido pela ocupação humana e que só podia ser alcançado como uma permanente ocupação.
Para os engenheiros Corrêa de Miranda e Gonçalves Tocantins ao retornar para suas terras de origem, muito pouco de lucro levava esse trabalhador, o que inviabilizaria qualquer investimento nas suas terras. Como ocorria com muito outros, restava apenas esperar a próxima safra para fazer novas viagens em direção aos seringais, deixando suas terras em condição de abandono. Das populações que haviam abandonado o trabalho da borracha, ou resolveram desenvolver o cultivo desta planta, se observava nas falas dos engenheiros “a abundancia e o bem estar, o espírito de família [evoluiu], os filhos receberam educação mais regular e a moral reivindicavam seus direitos, sem contar que as terras ficavam permanentemente ocupadas e cultivadas”, promovendo “a renda dessas famílias e o abastecimento de povoados próximos”.17
Outras questões explicariam ainda a dificuldade de constituição de propriedades, enquanto exploração regular das terras e sua posterior valorização. Em ofício da presidência da província do Pará de 1864, relatava-se que em período de estiagem, tempo próprio para extração da borracha, os homens que se empregavam nesta atividade saíam de suas casas levando o necessário para essa longa ausência, no entanto, tinha a expectativa de voltar quando do fim da colheita, pois as terras onde desenvolviam a extração eram “impossibilitadas para habitar durante todo o ano”. Ao chegar às áreas extrativistas construíam uma casa “em forma de barraca” e abriam “estradas por meio dos terrenos alagadiços em que viviam as plantas”. Estes terrenos eram caracterizados como inóspitos, pois, em geral, estavam sujeitos “a toda sorte de febres paludiosas, especialmente as intermitentes”, conhecidas como “sezões”. Estas características das terras então ocupadas, durante a fase de extração, demonstravam a impossibilidade de constituição de propriedade nestas áreas, pois em tempo de cheias ficavam esses locais “mergulhados por muitos palmos debaixo de água”. 18
De acordo com as autoridades, os homens que se empregavam neste trabalho, boa parte da população pobre do Pará, teriam, portanto, todos os inconvenientes da vida nômade. Esta posição dava tom aos discursos desses administradores, apontando para o necessário abandono das práticas extrativas, como nos já referimos anteriormente. Assim, essas considerações eram justificadas, pois, os homens deixavam em abandono suas moradias, não tratavam de cultivar gêneros algum de produção agrícola e se acostumavam à vida de privações.
O estado predatório em que a indústria da seringueira permanecia, o escasso ganho do seringueiro, a exploração dos comerciantes e os inóspitos locais em que o trabalho de extração da goma elástica era desenvolvido criava uma dinâmica em que não existia uma população que, de fato, aderisse ao solo, construísse moradia permanente e assegurasse a exploração de outros produtos. Do ponto de vista de Henrique Strauss, observador e estudioso da região, escrevendo em 1864, “o movimento era de uma população que trabalha por seis meses, barbarizando-se em vez de civilizar-se”. 19 Situação divergente quando se tratava das vantagens do “trabalho fixo”, dizia Silva Coutinho naquele mesmo ano. Nesse caso, o homem não precisaria “andar constantemente fora de sua família”, “vivia em casa, adquirindo pouco a pouco novas comodidades, seus filhos podiam ser educados a menos quando bastem para que não percam os bons instintos, e venham a pesar depois sobre a sociedade”, “a justiça lhe assiste de perto, e não lhe fica longe a casa de Deus, onde se encontra a consolação e a felicidade espiritual”.20
No rio Madeira e no Purús, Silva Coutinho afirmava, entusiasmado, que alguns fabricantes já haviam pedido a posse de seringais, declarando que essas solicitações tinham o propósito de “conter as contestações” a que estavam submetidos alguns extratores, pois, “seguro em sua propriedade poderia desenvolver melhor a indústria”. 21 Se entendia que a experiência de muitos anos dessa população teria mostrado que sem as habitações fixas e trabalho regular nessas terras ou uma ocupação passageira do solo, não se garantia o domínio sobre essas áreas, pois, a propriedade do ponto de vista da fixação do colono não havia se constituído nessa região. A ocupação irregular das terras de seringais, portanto, não garantia a tranqüilidade pública, pois as terras eram objetos de constantes contestações, assim como não se conseguia o seu real valor.
O missionário metodista americano Daniel Kidder, em passagem pelo Pará no final da década de 1830, já apontava os mesmos problemas identificados pelo engenheiro Silva Coutinho, duas décadas depois aproximadamente, como resultantes da ausência de propriedades regulares no interior da província. Para este missionário a “insegurança da vida e da propriedade em geral” estava associada a “falta de iniciativa e energia do povo”. 22
Em visita as terras do Pinheiro, propriedade localizada a poucas léguas de Belém, seguindo pela costa da baía de Guajará, que banhava a capital do Pará, registrava o pouco valor que as terras tinham nesta região. Toda a propriedade compreendia cerca de treze acres, no entanto havia sido vendida por oito contos, ou seja, cerca de cinco mil dólares. Concluía dizendo que “por assim se poderia ter idéia do pouco valor da terra no Pará, não apenas pelo interior longínquo, mas nas vizinhanças da capital, onde, além das vantagens decorrentes do local, o solo teria uma ilimitada capacidade de produção”.
Estas observações apontavam para idéia de que o pouco valor da terra estava associado muito mais a ausência de cultivo, do que a localização dessas propriedades. De acordo com Daniel Kidder, seja no interior da província ou nas proximidades das populações, as propriedades perdiam o seu valor quando não se desenvolviam “o amanho sistemático da terra e assim, milhões e milhões de acres dos terrenos mais férteis do mundo, continuavam em estado inteiramente primitivo e quase tão inútil à humanidade quanto os áridos sertões africanos”.
Por último citaremos as observações do naturalista Henry Bates, que uma década depois, em 1848, em visita ao Pará e Amazonas identifica ainda o trato com a terra como elemento importante na constituição das propriedades na Amazônia e na valorização dessas posses. Ao visitar os terrenos próximos a cidade de Óbidos, região do Tapajós, registra os moradores como constituído na sua maioria por proprietários de fazendas de cacau “situadas nas terras baixas das vizinhanças”. Alguns eram ainda grandes criadores de gado, “possuindo muitas léguas quadradas de pastos à beira do lago grande e de outros situados no interior, perto dos vilarejos de Faro e Alenquer”. 23
Para este observador, a posse destas terras e sua valorização, no entanto, não estava constituída apenas com a ocupação dessas áreas, nem apenas com a exploração dos recursos disponibilizados nesses locais, mas dependia também dos métodos empregados no processo de exploração. Observava que na criação de gado e no plantio do cacau as técnicas desenvolvidas por esses proprietários eram “das mais primitivas e os mais empíricos que se podia imaginar”. A conseqüência, dizia o naturalista, era que esses fazendeiros, geralmente pobres, tinham propriedades bastante instáveis. Um pequeno número deles, observa, conseguiu enriquecer, usando “de um pouco de engenho e habilidade na administração de suas terras”.
Estas considerações, portanto, agregam ao debate sobre o valor da terra na Amazônia a utilização de técnicas de produção que dissociasse de antigos hábitos então empregado pelas populações nativas dessa região. A valoração da terra passava, neste aspecto, pela constituição de propriedades, possíveis através de uma ocupação regular, mas também pela adoção de outras práticas agrícolas e de extração, concebidas como modernas, sendo a idéia de moderno como superior e destoante do que até então se desenvolvia na região.
Apontamentos finais
A evocação as terras no Pará e Amazonas a partir dos recursos disponibilizados pela floresta associada a um discurso que entendia o valor da terra mediante o seu cultivo, parecem imprimir uma perspectiva de espaço a ser colonizado, ou seja, chamam atenção para a necessidade de ocupação regular dessas terras. Entenda-se essa ocupação como necessariamente populacional e tendo a agricultura como principal atividade econômica.
Não se trata de discursos que primem pela importância econômica da atividade agrícola, embora esta seja uma questão considerável nestes debates, afinal há uma preocupação com o abastecimento dos centros urbanos e a necessidade de aumento das rendas públicas pela via da exportação. No entanto, o que se observou foi um debate que paralelo às questões comerciais suscitou outras questões tão importante quanto. No caso, fazemos referência à necessidade de constituição de propriedades, o que passava pela fixação do colono a terra e ao desenvolvimento de uma atividade que favorecesse esta permanência, assim como o desenvolvimento de práticas de cultivo que melhor aproveitasse as potencialidades do solo da região e no caso do extrativismo não promovesse a dizimação das plantas.
O valor da terra na Amazônia estava, portanto, associado à sedentarização das populações interioranas, constituição de propriedades, combate ao extrativismo predador, desenvolvimento de uma moderna agricultura e o cultivo de plantas até então extrativas, como a seringueira, a salsaparrilha ou a andirobeira. Para as terras amazônicas o seu “valor”, entendendo o termo do ponto de vista econômico e social, consistia na exploração regular e moderna dos seus recursos, de forma a combater antigas práticas de cultivo e extração consideradas predatórias.
2 BRAIT, B. As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso. In: BARROS, D. L. P.; FIORIN, J. L. (Orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: EDUSP, 1999, p. 11-28.
3 BUENO, M. A. Pimenta. Indústria Extrativa. A Borracha, considerações por M. A. Pimenta Bueno. Typ. de Francisco da Costa Júnior, 1882, p. 60.
4 AMAZONAS. Relatório apresentado á Assembléia Legislativa Provincial, pelo excelentíssimo senhor doutor João Pedro Dias Vieira, digníssimo presidente desta província, no dia 8 de julho de 1856 por ocasião da primeira sessão ordinária da terceira legislatura da mesma Assembléia. Barra do Rio Negro, Typ. de F.J S. Ramos, 1856, p. 16-17. Disponível: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/64/
5 BUENO, M. A. Pimenta. Indústria Extrativa. A Borracha, considerações por M. A. Pimenta Bueno. Typ. de Francisco da Costa Júnior, 1882, p. 60.
6 PARÁ. Relatório do Exmo Sr. Angelo Thomaz do Amaral Presidente da Província do Gram-Pará ao Exmo Vice-Presidente Olyntho José Meira por ocasião de passar-lhe a administração da mesma em 04 de maio de 1861. Pará, Typ. de Santos & Irmãos, 1861, Anexo nº 13. Disponível: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1006/
7 BUENO, M. A. Pimenta. Indústria Extrativa. A Borracha, considerações por M. A. Pimenta Bueno. Typ. de Francisco da Costa Júnior, 1882, p. 60.
8 MOTTA, Márcia. Lei de Terras. In: MOTTA, Márcia (organizadora). Dicionário da Terra. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2005, p. 279.
9 BUENO, M. A. Pimenta. Indústria Extrativa. A Borracha, considerações por M. A. Pimenta Bueno. Typ. de Francisco da Costa Júnior, 1882, p. 60.
10 AMAZONAS. Relatório apresentado á Assembléia Legislativa Provincial, pelo excelentíssimo senhor doutor João Pedro Dias Vieira, digníssimo presidente desta província, no dia 8 de julho de 1856 por ocasião da primeira sessão ordinária da terceira legislatura da mesma Assembléia. Barra do Rio Negro, Typ. de F.J S. Ramos, 1856, p. 17.
11 BUENO, M. A. Pimenta. Indústria Extrativa. A Borracha, considerações por M. A. Pimenta Bueno. Typ. de Francisco da Costa Júnior, 1882, p. 61.
12 BUENO, M. A. Pimenta. Indústria Extrativa. A Borracha, considerações por M. A. Pimenta Bueno. Typ. de Francisco da Costa Júnior, 1882, p. 62.
13 BRASIL. Relatório apresentado ao Illm. Exm. Sr. Manoel Felizardo de Souza e Mello Conselheiro de Estado, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas aos 31 de março de 1862 pelo Diretor da Diretoria Comércio e Indústria José Agostinho Moreira Guimarães. Rio de Janeiro, Typographia Paula Brito, 1862, Apenso sob letra G, p. 21. Disponível: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1944/
14 Idem.
15 PARÁ. Relatório apresentado a Assembléia Legislativa da Província do Pará na Segunda Sessão da XIII Legislatura pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da Província Doutor Francisco Carlos de Araújo Brusque em 1º de novembro de 1862. Pará, Typografia de Francisco Carlos Rhossard, 1863, p. 49. Disponível: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/526/
16 PARÁ. Relatório apresentado á Assembléia Legislativa Provincial na primeira sessão da 18.a legislatura em 15 de fevereiro de 1872 pelo presidente da província, Dr. Abel Graça. Pará, Typ. do Diário do Gram-Pará, 1872, Anexo nº 1, p. 6. Disponível: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/537/
17 Idem.
18 BRASIL. Relatório do anno de 1864 apresentado a Assembléia Geral na 3ª Sessão da 12ª Legislatura pelo Ministro e Secretário dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas Jesuino Marcondes de Oliveira e Sá. Rio de Janeiro, Typographia Universal de E & H Laemmert, 1865, Anexo D, p. 2. Disponível: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1949/
19 Idem, Anexo D, p. 3.
20 Idem, Anexo O, p. 92.
21 Estas ações que assegurariam a definição dos limites das propriedades e evitaria os conflitos de terras nas áreas dos seringais, deveriam ser acompanhadas do estabelecimento de fábricas bem reguladas, quer para extração das drogas, quer para a cultura dos gêneros alimentícios. Estas ações acarretariam o desenvolvimento da navegação e comércio do interior e a fundação de povoações. BRASIL. Relatório do anno de 1864 apresentado a Assembléia Geral na 3ª Sessão da 12ª Legislatura pelo Ministro e Secretário dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas Jesuino Marcondes de Oliveira e Sá. Rio de Janeiro, Typographia Universal de E & H Laemmert, 1865, Anexo O, p. 92. Disponível: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1949/
22 KIDDER, Daniel P. Reminiscência de viagem e permanência no Brasil (Província do Norte). Compreendendo notícias históricas e geográficas do Império e das diversas províncias. São Paulo: Editora da USP, 1980, p. 190.
23 BATES, Henry Walter. Um naturalista no rio Amazonas. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1979, p. 102.
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