O COMÉRCIO DA PINTURA NO BRASIL NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX
Universidade de Évora, Portugal
Resumo:
O mercado de artes contemporânea no Brasil beneficiou-se da existência, ainda pouco estudada, da compra e venda de pinturas no início do século XIX. Embora os artistas dependessem de outras atividades para sobreviver, existia, ao contrário do que se afirma, um incipiente comércio de pintura no Rio de Janeiro. Como na Paris de meados do século XVIII, este mercado seria dominado pelos artistas, e pouco especializado. A situação política do Brasil colônia implicava fortes ligações a Portugal mas constatamos uma demanda interna por pinturas de cavalete, que viria a expandir-se no decorrer do século.
Palavras clave: mercado de arte, pintura, Brasil, século XIX.
Abstract:
The Brazilian contemporary art market has benefited from the commerce of painting in the early 19th century. Although rarely studied, its history reveals that, contrary to common statements, paintings were indeed bought and sold in colonial Rio de Janeiro. Artists still depended upon other means of income, but they would dominate this still little specialized art market – a situation similar to the one in Paris in the mid 18th century. Given the country’s political status, Brazil’s market retained strong bonds to Portugal, yet it supplied a local demand for paintings, which would only increase.
Key words: art market, painting, Brazil, 19th century
O recente destaque alcançado pela arte contemporânea brasileira no mercado internacional não resulta apenas dos esforços e do profissionalismo das galerias de arte moderna iniciadas nos últimas seis décadas1 , beneficia-se também de uma longa tradição pouco conhecida. De fato, a capacidade de artistas e intermediários reinventarem-se no decorrer do século XX, acompanhando estilos e tendências até se tornarem capazes de moldá-los, apoiou-se na história, pouco estudada, da compra e venda de pinturas no Brasil. Os escassos trabalhos acadêmicos dedicados ao assunto concentram-se no aparecimento do mercado moderno, apos a Segunda Guerra Mundial, e chegam a vincular o início da comercialização de pintura ao interesse gerado pelas exposições de arte de finais do século XIX2 . Contudo, no decorrer da investigação para a minha tese de doutoramento sobre o retrato em Portugal e no Brasil entre 1804 e 1834 constatamos que, muito antes que o esperado, existia um mercado para obras prontas de pintura, capaz de absorver não apenas a produção contemporânea local mas algumas importações da metrópole.
Em seu estudo do comércio da pintura em Paris na segunda metade do século XVIII, o historiador Patrick Michel refere três factores que, segundo ele, explicam a prosperidade e crescente profissionalização do mercado de artes parisiense: uma situação económica estável, a presença de grandes colecções privadas, e a existência de uma instituição, o Salon, que, ao tornar-se regular a partir de 1737, suscita e mantém o interesse do público pela arte contemporânea, cria o desejo de coleccionar e permite o aparição de uma literatura especializada que por sua vez reforça o interesse e o desejo. A esses factores vem somar-se o aparecimento de catálogos que divulgam as obras vendidas em leilões de arte e “curiosidade” 3.
Ora, na transição dos séculos XVIII para o XIX, não havia em Portugal nem Salon, nem colecções privadas de pintura comparáveis às do Norte da Europa, e a conjuntura política e económica, pontuada por guerras e dificuldades, revela-se profundamente instável. É justamente esse período que nos interessa, pois a transferência da corte portuguesa para o Brasil em 1807 delimita uma nova fase no desenvolvimento cultural da colónia. Neste contexto pouco propício predomina, como na França do início do Setecentos, um mercado paralelo, para nós quase invisível, em que apertos de mão e acertos entre amigos predominam sobre contratos e encomendas oficiais, leiloeiros e expositores evitam a despesa de catálogos impressos, e os quadros mudam de mão sem registo de transacções financeiras entre artistas e coleccionadores, até mesmo, às vezes, por troca 4.
É este ambiente que vemos transferido, com a corte, para o Brasil.
Trata-se contudo, dos primórdios de um mercado. Sabia-se que, em Lisboa, certos artistas “vivos” prosperavam, e vislumbravam em supostas glórias do passado a promessa de melhores dias. Escrevia-se, em 1817, sobre um artista do século XVII: “José do Avellar Rebello foi hum Pintor de tanto séquito, e adquirio tanta riqueza pela Arte, que comprando humas casas, e fabricando outras chegou a ter huma rua inteira sua, que tomou delle o nome” 5. Embora a narrativa aponte claramente para a importância de rendimentos complementares, frutos de arrendamentos e da especulação imobiliária – um tipo de investimento “seguro” que outros pintores portugueses emulariam - enfatiza-se a arte como geradora de riqueza. E alguns pintores “vivos” conseguiam de facto uma vida abastada.
A maior estrela do período era Pedro Alexandrino de Carvalho (1730-1810). Em sua Collecção de Memórias, publicada postumamente em 1823, o pintor Cirilo Volkmar Machado (1748-1823) louva a sua perícia e flexibilidade, afirmando que pintava: “com admirável facilidade a oleo, a tempera, a fresco; em grande, e em pequeno, por estampas, pelo natural, e de prática. Fez muitos painéis em carruagens ricas (...).pannos de ornar casas, e estatuas, e quadros nos Theatros”6 . Assim, “teve (...) o talento de saber agradar ao Público, de sorte que não só tinha as encommendas de quasi todos os painéis de Igreja, que se fazião de novo; mas tiravão-se muitos dos mais antigos dos seus lugares para se collocarem os delle”. Permanecia, tal como um marchand, atento às vontades da sua clientela, “fazia todos os esforços para agradar, hindo a tectos, e a toda a parte aonde achava que fazer, e não rejeitava cousa alguma por barata que fosse (...)7 ”.
Mas como nos dias de hoje, era preciso obter o aval dos connaisseurs e para isso obter um lugar de exposição permanente para algumas obras, num local de prestígio. Na falta de galerias e museus de pintura, tal lugar obtinha-se nas igrejas. Assim, até 1778: “julgava-se que os seus talentos erão limitados a objectos de galantaria” e preferiam outros pintores para quadros de maior importância; mas quando “fez o grandíssimo quadro do Salvador do Mundo, para a Sé, tudo o mais ficou de parte”8 . Rapidamente, a fama outorgada pela colocação deste painel em destaque na catedral tornou-o o mais requisitado pintor português na transição do século XVIII para o XIX9 .
Os pintores brasileiros acompanhavam a sua carreira. Em Salvador da Bahia, José Joaquim da Rocha (1737-1807)10 vendeu a própria casa para financiar a vinda para Lisboa, em 1794, do seu melhor discípulo, José Theóphilo de Jesus, para que este pudesse estudar com Pedro Alexandrino 11. Contudo, a falta de memorias de artistas, correspondência, e até de gazetas e jornais regionais, proibidas no Brasil até a chegada da família real, prejudica o nosso conhecimento do mercado em que se inseriam as suas obras de cavalete desses artistas.
Sabemos que, numa primeira etapa, os próprios pintores comercializavam as suas obras: o historiador Padre Serafim Leite refere que no Pará, o pintor Luís Correia (1712 - ?) tinha a “particularidade de querer ajudar seus pais pobres, com a venda dos próprios quadros.” Após tornar-se jesuíta em 1731, Correia fora de facto destinado à Província do Maranhão, onde trabalhou como dourador e pintor no Colégio do Pará 12. Embora seja apresentado como uma “peculiaridade” exercida apenas em benéfico de outrem, trata-se de facto de um artista interessado em vender os seus quadros, num modelo de negócio próximo aos padrões europeus - embora combatido pela Académie des Beaux Arts de Paris desde meados do século XVII13 .
Sem a existência de uma Academia, nem de exposições de pintura no modelo dos Salons franceses, onde pudessem dar a conhecer as suas obras e comercializá-las - os pintores portugueses e brasileiros controlariam o comércio da pintura por muitos anos. Seria um mercado semelhante àquele que, em Paris, teimava em escapar ao controle académico: dominado pelos próprios pintores, seus parentes e amigos mais próximos, carente de documentação escrita, visível sobretudo para aqueles directamente envolvidos em cada transacção14 . No inicio do século XIX, muitos retratistas itinerantes optavam por “cortar caminho” e anunciavam directamente o seu negocio:
Fabio Fabroni, Pintor de Miniatura, e Professor de desenho, faz saber aos conhecedores, e amadores de bellas Artes, que elle tem para vender huma Colleção de diversas miniaturas, feitas por elle, desenhos do melhor gosto das Academias Italianas, e quadros a óleo. Quem quizer comprar alguns dos referidos quadros, tomar lições de desenho, ou quizer o seu retrato em miniatura, o pode procurar em sua casa das 4 e meia às 6 horas da tarde na travessa da Victoria n.3, terceiro andar, junto à rua dos Ourives do Ouro 15
Mas o retrato em miniatura era uma arte “menor”, um objecto quase funcional que, três décadas mais tarde, a popularidade dos primeiros processos fotográficos contribuiria para exterminar.
Um pintor mais ambicioso não poderia ser tão directo – o sucesso dependia, como vimos, do aval dos poderes do reino (a Igreja, o Paço), e as altas esferas do poder sempre hesitaram um pouco em mesclar-se com a plebe. São de facto muito raros os anúncios de artistas de algum reconhecimento a oferecem as suas obras directamente a um publico anónimo. Mas então como hoje, a fama nem sempre bastava para uma vida confortável. Como vimos no caso de Pedro Alexandrino, para alcançar uma certa estabilidade financeira era preciso que os pintores se desdobrassem em outras actividades, numa curiosa dança de aproximação e lisonja aos raros coleccionadores. Lembremos que as fronteiras entre profissões ainda não estavam completamente definidas: Cirilo Volkmar Machado conta sem pudor como pintou tectos e elaborou projectos de arquitectura, e que muitos pintores, como o seu tio João Pedro Volkmar (?-1782) além de “painéis de cavalete”, fabricavam “pannos pintados a tempera para ornamento das casas” 16.
Surpreende, nesse contexto, não apenas que obras de arte prontas, de artistas vivos, circulassem além fronteiras, mas que os envios para o Brasil de alguns artistas lisboetas tivessem uma certa importância. João Pedro Volkmar, por exemplo, enviou por volta de 1740 varias remessas de quadros para o Brazil. Representavam uma renda considerável, pelo menos para aquele pintor, pois quando o seu irmão e discípulo Henrique Pedro Volkmar (? - 1769) teve desavenças com ele, retalhou huma dúzia de painéis que estavão promptos a embarcar e fugiu, prejudicando a entrega por vingança17 .
O que teria acontecido aos quadros, uma vez no Brasil, permanece por desvendar. A que porto chegaram? Teriam sido uma encomenda? Dirigir-se-iam a algum particular, ou a um comerciante?
Encontramos na imprensa periódica portuguesa anúncios referentes a “lojas de pintura”, mas a denominação corresponde, nas primeiras décadas do século XIX, apenas a lojas “de pintor”: locais onde este, talvez apenas um artesão, exercia o seu oficio. 18 Não se trata sequer de um comércio especializado em material de pintura, ponto de encontro entre artistas e amadores onde os primeiros acabam por oferecer seus quadros aos segundos, acabando por dar origem às grandes galerias de arte parisienses da Belle Époque 19. Estes começam a surgir no Rio de Janeiro na segunda década do século XIX, mas mesclam sem pudor “perfumes” e “sabões” com “tintas, pinceis, brochas, molduras”:
Gadet e Jallasson, chegados ultimamente de Paris (...) Avisão aos Senhoras [sic] Artistas, Pintores, Douradores, Arquitectos e Armadores que acharáo no seu sito armazém tudo quanto diz respeito às suas Artes: papel de toda a qualidade, tintas, pinceis, brochas, molduras &c. Igualmente acharão a singular tinta de Guyot, com hum sortimento de livros para Commercio (...); e finalmente quaesquer obras delicadas de papelaria e de torneiro. Também se achará hum grande sortimento de objectos de luxo, tudo do ultimo gosto, (...). Todas as qualidades de perfumes ao uso Francez, e Asiático, louças finas e cristaes &c. todas as qualidades de sabões, e cheiros ao uso do toncador [sic]20
No Rio de Janeiro, como em Lisboa, lojas específicas para o comércio da arte demoram a surgir. São raras as menções a vendas de pinturas, e quando surge num anúncio, como neste de 1816, o nome que – pelo volume de pinturas à venda - parece ser um negociante de quadros, nada sabemos sobre ele: “Quem quizer comprar sete quadros com molduras, douradas de 13 palmos de circunferencia com os seus vidros, que representão as ruinas de alguns soberbos Edifícios da antiga Roma, com a pintura trabalhada a pincel, procure na rua dos Ourives, n. 51, Daniel José Pereira.” 21
Talvez fosse apenas um particular? Mesmo uma loja de estampas e quadros, aberta em 1820 vendia sobretudo molduras, espelhos e papel pintado para sallas22. Até à década de 1830, pinturas que não eram vendidas directamente nos ateliers, eram-no maioritariamente em lojas que hoje chamaríamos “de decoração”:
Na rua da Cadeia armarinho n.7, acha-se à venda por preço commodo o seguinte: dúzia e meia de chicaras de porcelana pintada para chá, e huma dúzia do mesmo padrão para café, duas compoteiras de cristal, (...), hum quadro grande com o retrato de S. M. I., e dous pequenos com linda moldura dourada.23
Essa promiscuidade na venda da pintura de cavalete com objectos de decoração (sobretudo vidros, espelhos e molduras) caracterizaria o comércio da pintura no Brasil até a inauguração das primeiras galerias, por volta de 1900 24. O curioso é constatar que uma relação mais próxima entre o vendedor profissional e o artista começa a esboçar-se muito cedo. Embora os lojistas não organizassem exposições, como os galeristas actuais, as lojas de estampas do Rio de Janeiro, como as de Lisboa, não vendiam apenas gravuras e quadros prontos, mas aceitavam encomendas de pinturas e intermediavam serviços fornecidos pelos pintores: “Quem precisar de um retratista, professor de desenho para lições particulares de pintura, e perspectiva, debaixo de princípios certos, falle na loja de estampas, na rua do Arsenal, n. 27” 25
Esse tipo de intermediação, que hoje associaríamos ao papel de um marchand, parece apontar para que o comércio da pintura afastou-se mais cedo que o esperado da mera compra e venda. Mesmo assim, parte substancial do mercado de obras “prontas” no Rio de Janeiro, mesmo de artistas vivos, dedicava-se à venda de retratos reais, cujos autores os anúncios geralmente não mencionam26. Interessava, neste caso, sobretudo a figura representada, a pintura em si, a “arte” tinha importância secundária. Múltiplos anúncios, além de exemplificam essa demanda, enfatizam a comodidade da compra, pois trata-se de pinturas já emolduradas, prontas para serem colocadas na parede de seus futuros proprietários: “Na rua da Quitanda n.97, há para vender hum Retrato de S. M. I. o Senhor D. Pedro I, grande o natural, pintado a oleo, tudo prompto com sua bordadura dourada”.27
Muitas obras do género não eram sequer assinadas, contudo é preciso atenção em não sobrevalorizarmos a ausência de autoria. Não se trata de rebaixar a pintura a um mero objecto. Não dispomos ainda das moradas da maioria dos artistas em actividade no período, mas se estes dominavam o mercado, é possível que a sua indicação no anúncio bastasse para assinalar a autoria. No caso lisboeta, seria natural que em 1828, uma loja pertencente a António Rafael vendesse primordialmente os quadros de seu pai, o pintor Joaquim Rafael Rodrigues, dito Joaquim Rafael (1783-1864), nomeado “Primeiro Pintor da Corte e Camara” em 1825 , do qual foi inclusive ajudante 28:
Na loja de ornatos de casa de Antonio Rafael, ao Passeio Publico N.° 74, 75, e 76, se acha á venda por seis moedas na Lei, hum Retrato de Sua Magestade o Senhor D. Miguel I, pintado a oleo, para sala, já prompto de moldura dourada; na mesma loja se acha bum outro Retrato do mesmo Augusto Senhor, pintado em transparente, para luminarias , pela quantia de doze mil réis. Na mesma loja se promptificão encommendas de Retratos pintados a oleo, e estampados, por preços módicos. 29
Note-se que, em Portugal, as dificuldades económicas causadas pelas Guerras Liberais (1828-1834), num país já esgotado pelas invasões francesas e a longa ausência da Corte, tornava cada vez mais comum que se anunciassem os preços das obras à venda, sobretudo as mais baratas. Tal é também o caso no Brasil, onde o reconhecimento da independência do país pela metrópole - apenas em 1825 - levou-o a pagar reparações financeiras a Portugal. Este pintor em miniatura activo no Rio de Janeiro, que escolheu permanecer anónimo, reafirma – como Fábio Fabroni, em Lisboa, vinte anos antes - o quão barata era a sua obra, que ele próprio comercializava em sua casa. Contudo não apenas indica o preço, mas aponta para algum tipo de intermediação por uma outra pessoa na rua da Ajuda, talvez um comerciante:
Hum retratista que se propõe a tirar qualquer retratos em miniatura, em 6 a 8 dias, declara que qualquer pessoa que queira aproveitar-se da sua habilidade; pode dirigir-se à rua da Ajuda n. 61 para que ali seja informado da casa do mesmo retratista, o preço não excede de 30$ rs, sem medalha, dando o retratista o marfim unicamente.30
Muitos artistas estrangeiros, entre os quais alguns dos celebrados membros da “missão francesa” chegados de Paris à nova Corte de além-mar em 1816, decepcionaram-se com o limitado comércio local. Após dois anos no Rio de Janeiro, um dos seus pintores de maior prestígio, Nicolas Antoine Taunay (1755-1830) decidiu enviar parte da sua produção para a Paris. Faria ao todo três remessas de quadros a partir de 1818, sendo uma de 10 telas em 1819, por intermédio de seu filho Hippolyte, então de retorno à França. Um dos quadros enviados em 1819, pelo qual o autor desejava no mínimo 800 F, acabaria por ser vendido ao estado francês, por 3.000 F, pagos no ano seguinte31 . Era uma soma considerável para os padrões lusos, já que a pensão acordada pelo rei ao artista (800$000 por ano) equivalia a 5.000 F32 . Talvez o resultado da venda tenha encorajado a sua volta à Europa, em 1821 – mas após anos de ausência, o preço alcançado não correspondia ao seu “real” valor no mercado parisiense. Em carta de 17 de Abril de 1821, logo após o retorno do pintor, o conde de Forbin (1779-1841), que admirava o seu talento, cita Taunay como exemplo da fragilidade do sucesso: “tudo passa, mesmo as melhores coisas. Vejo-o pelo exemplo do pobre Sr. Taunay: ele volta do Brasil totalmente esquecido e não encontra um único quadro a 10 louis para fazer, está muito feliz de ter um de 200F para fazer para Fontainebleau”33 .
Uma autoria reconhecível, de um artista vivo e respeitado, não era então – como ainda não é – garantia da sua inserção num mercado. Contudo, no Rio de Janeiro, melhorava aos poucos a percepção da importância de um pintor, como indica o anuncio a seguir: “Acha-se para vender hum grande, e rico Quadro pintura a óleo feito por hum dos melhores auctores na rua Direita n. 175, primeiro andar.”34 Ainda não sabemos de quem se trata mas, talvez por influência das primeiras exposições publicas de pintura realizadas no Rio de Janeiro em 1827 e 1829, a autoria ganha destaque.
O panorama como um todo, tardaria a mudar. Mas o importante é constatar que por menor que fosse, existia um mercado de compra e venda de pintura décadas antes que o esperado. O crescente cosmopolitismo das elites brasileiras acabaria por abrir espaço para as artes, e o comércio carioca da pintura encontraria espaço para se especializar e crescer. Se não encontramos galerias a funcionar no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX, como já acontecia em Paris, a Belle Époque trará estabelecimentos não apenas especializados na venda de arte, mas extremamente modernos. A Galeria Jorge, inaugurada no Rio de Janeiro em 1907 ou 1908, de propriedade de Jorge de Souza Freitas, não apenas anunciava a sua loja principais revistas cariocas, apostava em novas tecnologias e estratégias de divulgação: possuía um telefone, patrocinava publicações sobre artistas do passado, e publicava catálogos de exposição de artistas contemporâneos. Curiosamente, o seu próprio sucesso terá prejudicado a sua fama. Sobreviveu, de facto, até meados dos anos 1940, chegando a ter filiais em São Paulo. Patrocinara os mais importantes artistas da jovem Republica, quando a sua pintura trazia um pouco de Paris para os longínquos trópicos. Não pode, ou não soube, acompanhar a subida das vertentes do modernismo. Com a perda de prestígio da arte académica, perdeu o apoio das elites cosmopolitas. Foi, aos poucos, esquecida, como antes dela gerações de comerciantes e artistas que lutaram para vender pintura, para suprir e ajudar a criar uma demanda em circunstancias no mínimo desafiadoras e sobre os quais ainda há muita coisa para descobrir.
Referencias Bibliográficas
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2 C. FIORAVANTE, ob.cit, p. 6.
3 P. MICHEL, Le commerce du tableau à Paris dans la seconde moitié du XVIIIe siècle. Paris, 2007, p. 21.
4 P. MICHEL, ob. cit. p. 22
5 [P. A Cravoé] “Artes, e Officios. Da Pintura, sua existência em Portugal, e seus mais distinctos Artistas”. Jornal de Bellas Artes, ou Mnémosine Lusitana. Redacção Patriótica, vol. 2, n. 3 (1817), p. 37
6 C. V. MACHADO, Collecção de Memórias, Coimbra: 1922 [1823], p. 96
7 C. V. MACHADO, op. cit, p. 95
8 C. V. MACHADO, op. cit, p. 96
9 C. V. MACHADO, op. cit, p. 97
10 Segundo Carlos Ott, Rocha também ficara famoso pelo sucesso obtido com as suas pinturas para a igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, em 1774. C. OTT, A escola bahiana de pintura 1764-1850, [Salvador], 1982, p. 47
11 C. OTT, ob. cit., p. 63
12 S. LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: 1938-1950 apud C. CAVALCANTI (org.). Dicionário Brasileiro de Artistas Plásticos, Brasília 1973, 1o vol., p. 466.
13 Data de 1648 a proibição dos membros da “Académie Royale des Beaux Arts” abrirem “lojas de pintura” ou praticar o comércio da arte - em reacção contra “um costume antigo” de ser o pintor seu próprio marchand. H. C. e C. WHITE. La Carrière des peintres au XIXème siècle. Paris, 1991, pp. 32 e 35. Uma proibição que muito terá contribuído para a especialização de intermediários neste mercado, a principio também pintores, que não pertenciam à Academia. Ver MICHEL, ob. cit.
14 P. MICHEL, ob. cit, p. 16
15 Gazeta de Lisboa,20 de Julho de 1813
16 C. V. MACHADO, ob. cit. pp. 84 e 92.
17 C. V. MACHADO. op. cit. p.
18 “Nas casas contiguas à Igreja de S. Paulo, n.º 24 estabeleceo José Ferreira Deniz huma loja de Pintura, onde se faz toda a qualidade de obra pertencente a Pintura e Dourado; e elle igualmente se offerece para exercer a sua Arte, por preços cómmodos, aonde quer que for chamado.” Gazeta de Lisboa, 1o Supplemento, 9 de Dezembro de 1808.
19 Sobre o assunto, ver H. C. e C. WHITE, ob. cit.
20 Gazeta do Rio de Janeiro, 25 de Outubro de 1817
21 Gazeta do Rio de Janeiro, 24 de Janeiro de 1816.
22 Gazeta do Rio de Janeiro, 22 de Abril de 1820
23 Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 15 de Fevereiro de 1830.
24 Parece haver consenso que a primeira galeria dedicada exclusivamente à pintura teria sido a Galeria Jorge no Rio de Janeiro, à qual voltaremos brevemente adiante.
25 Gazeta de Lisboa, 14 de Setembro de 1829
26 “Quem quizer comprar um quadro muito rico com o retrato do Rei de Portugal D. João VI dirija-se à rua Direita n. 117”. VerJornal do Commercio, Rio de Janeiro, 9 de Julho de 1828
27 Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 7 de Janeiro de 1830
28 A. ARAÚJO. Viver “da arte” ou... “no meio artístico”? O caso de António José Vieira Júnior (Porto, séc. XVIII-XIX)”. Revista da Faculdade de Letras, Ciëncias e técnicas do patrimónimo, I Série, Volume VII-VIII (2008-2009), pp. 75-92
29 Gazeta de Lisboa, 14 de Outubro de 1828.
30 Diario do Rio de Janeiro, 26 de Maio de 1834
31 C. LEBRUN-JOUVE. Nicolas Antoine Taunay (1755-1830), Paris, 2003, p. 291 e 297
32 C. LEBRUN-JOUVE. ob. cit., p. 94
33 C. LEBRUN-JOUVE. op. cit. 2003, p. 393
34 “Vendas” Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 31 de Março de 1830.