AS COMUNIDADES LOCAIS, OS TERRITÓRIOS POLÍTICOS E AS FRONTEIRAS CONTEMPORÂNEAS – REFLEXÃO A PROPÓSITO DO FILME THE VILLAGE (2004), DE M. NIGHT SHYAMALAN
Departamento de Geografia e Turismo/CEGOT
Universidade de Coimbra (Portugal)
Resumo:
Neste texto, The Village é analisado como metáfora do mundo contemporâneo, uma oportunidade para discutir temas como as comunidades locais, as fronteiras, as territorialidades, o poder e a liberdade. Este trabalho de Shyamalan leva-nos a refletir sobre a relatividade das fronteiras e dos limites e sobre a forma como se constroem e exaltam as diferenças entre quem está dos dois lados da barreira. Para além disso, mostra-nos como o medo, a perceção de insegurança e a visão estereotipada do outro justificam a supressão das liberdades essenciais. The Village foi realizado num determinado contexto– todo o ambiente securitário do pós 9/11. Ainda assim, enquanto olhar político, mantém toda a atualidade.
Palavras-chave: Comunidade local, Comunidade fechada, Insegurança, Território, Fronteira.
Abstract:
In this paper, The Village is considered as a metaphor of the contemporary world, an opportunity to discuss issues such as local communities, borders, territoriality, power and freedom. This movie leads us to reflect on the relativity of borders and boundaries, on how differences between the two sides are exalted. Moreover, it shows us how fear, perception of insecurity and the stereotypical view of the other justify the suppression of basic freedoms. The Village was carried out in a particular context – the global insecurity environment post 9/11. However, as a political representation, this movie is still updated.
Keywords: Local community, Gated community, Insecurity, Territory, Frontier
1 – Breve nota introdutória
A contemporaneidade, pelos avanços na mobilidade espacial, pelo encurtamento das distâncias, pela compressão espaço-tempo que a tem caraterizado (Harvey, 2002), deu-nos a ilusão utópica da serenidade e da partilha de valores, da difusão das ideias de um património comum da humanidade, da progressiva construção de uma sociedade global coesa e equilibrada e de um mundo mais solidário, plano e interconetado (Friedman, 2005).
Contudo, esta globalização benigna e uniformizadora é uma parte da realidade, constitui apenas uma das faces de uma dinâmica mais complexa que não eliminou as rugosidades socio-espaciais de um planeta contemporâneo que resiste na sua heterogeneidade e diversidade, um mundo de geometria variável no qual o medo, a insegurança e a desconfiança ainda persistem (Blij, 2009). Nesta sociedade de risco (Beck, 1992), são muitas as estratégias defensivas, muitos os muros levantados (Jones, 2012; Haesbaert, 2014), aqueles que se julgava existirem apenas na memória e nas listas de património classificado. É verdade que muitas fronteiras fazem parte de um passado de fragmentações e confrontos e que muitas dessas barreiras são agora classificadas como bens de valor superlativo para que a humanidade, pelo seu património comum, não esqueça estas querelas e as projete num futuro de comunhão e partilha.
Ainda assim, a queda de alguns muros é acompanhada pelo levantamento de outros, numa estratégia autodefensiva de afastamento face ao Outro que estará para além desse limite e pode ameaçar a tranquilidade de uma certa ordem. Por isso se voltam a enfatizar, com cercas de madeira, betão ou arame farpado, algumas fronteiras que separam Estados. Por isso mesmo persistem velhos muros antes traçados nalgumas cidades, ao mesmo tempo que noutras se levantam novas paliçadas urbanas (Calame e Charlesworth, 2009; Haesbaert, 2014).
O filme The Village deve ser lido, interpretado e refletido neste contexto atemorizado de receios e desconfianças face a um mundo percebido como inseguro, que as comunidades locais não regulam nem controlam.
2 - The Village – os espaços, os tempos e os acontecimentos de uma narrativa política
O filme The Village, realizado por M. Night Shyamalan, acompanha o confinamento territorial de uma comunidade na aldeia de Covington Woods, localizada algures no tempo e no espaço. Remetendo-nos para um ambiente próprio de comunidades utópicas dos EUA como os amish (Peterson, 2005), trata-se de um lugar isolado e de um grupo humano organizado como uma ilha separada do resto do mundo (Jordan e Haladyn, 2010).
Este espaço é regulado por uma autoridade hierarquizada e inflexível aplicada pelo grupo de anciãos que fundou a comunidade. Zelosos da manutenção da ordem e da disciplina, este poder exerce um domínio conservador que assume como legítimo na defesa dos superiores interesses de um grupo que parece cristalizado no tempo e afastado de outros e de um exterior que poderia perturbar a realidade estabelecida.
Em Covington Woods, o quotidiano é repetitivo e bucólico. Num quadro novecentista, a população dedica-se à agricultura, criação de gado e tarefas domésticas. As casas são construídas de madeira e pedra, as vivências recordam uma pré-modernidade de tecnologia fruste e elevada mortalidade infantil, sem eletricidade nem medicamentos. Esta é uma comunidade religiosa, autossustentável e endogâmica que vai consolidando a sua coesão interna através de rituais, danças e banquetes, mas também por meio da supressão do que existe para além dos seus limites. O mundo destes habitantes é pequeno e as distâncias são curtas. Há uma cristalização do tempo e uma compressão do espaço.
Por isso, em Covington Woods não se vêm transportes, porque a mobilidade espacial se encolhe a um perímetro familiar demarcado, uma clareira no interior de uma floresta que constitui uma fronteira, um obstáculo e, segundo os poderosos locais, uma ameaça.
Esta Village de Shyamalan é uma aldeia muralhada, confinada pelas paredes da floresta e pelo primeiro alinhamento de árvores. Esta é uma fronteira percorrida por guardas, vigiada por uma torre de controlo e por um sino que dará o alerta sempre que as ameaças se aproximem. A fronteira noturna deve estar visível. O escuro da noite pode esconder as árvores mas é preciso afastar os riscos e demarcar os limites que não se podem atravessar. Por isso se acendem archotes e se levanta uma barreira de fogo e luz numa fronteira que é também cromática.
Para os anciãos, a cor de laranja significa alguma segurança ou, pelo menos, uma ameaça menor. O vermelho corresponde ao mundo exterior que intimida o grupo. Por isso, em Covington Woods, se elimina o que é vermelho e se pune quem o transporta. Essa heresia sinaliza quem atravessou a fronteira e não respeitou o tabu e o juramento de nunca abandonar a aldeia.
Esta é também uma fronteira sonora. Como noutros filmes de terror, primeiro escutam-se sons de intimidação e medo e só depois se vê (Fowkes, 2010). Também neste caso, as ameaças vindas do outro lado, do que está para além da barreira, começam por se ouvir. Antes que se vejam, os inimigos mostram-se por sons guturais e gemidos ameaçadores.
Nesta aldeia, existem outras fronteiras, barreiras recuadas que funcionarão sempre que a muralha exterior seja violada. A casa/habitação é uma fortaleza e a porta fecha-se quando o medo aumenta. Dentro do espaço familiar, há uma outra barreira, um alçapão que se abre para um esconderijo, esperança última em caso de ataque.
As paredes dos espaços domésticos poderão ser eficazes perante os sustos que virão de fora, mas são permeáveis ao poder exercido no contexto do grupo. A ordem familiar, aquela que ocorre dentro de portas e nos espaços da intimidade, é regulada pelo exterior, pelos anciãos que exercem o poder. A comunidade é um conjunto de famílias, mas a regulação e a disciplina são coletivas. Perante o poder comunitário, de pouco servem as paredes e a porta de cada domicílio num contexto no qual o espaço público se confunde com o privado.
No passado, os anciãos fizeram um juramento: nunca abandonar a aldeia, não permitir contactos com o exterior, mesmo que esse isolamento implicasse custos elevados, como a falta de medicamentos e assistência médica que pode levar à morte - o plano inicial do filme mostra o funeral de uma criança; ou a problemas permanentes de saúde - como a cegueira de Ivy, uma das protagonistas da narrativa.
Este é um sacrifício que tem que ser feito (Jordan e Haladyn, 2010), um custo que tem que ser assumido, em nome do bem estar de todos e da garantia de futuro de uma comunidade que se auto-excluiu de um mundo ao qual teme.
Na verdade, esse temor é a fronteira mais eficaz. O medo imposto é a principal barreira que une a comunidade neste confinamento espácio-temporal, um medo que se sedimentou em torno das narrativas e das histórias que os mais velhos vão contando aos jovens e crianças. O que se passa na floresta, e nos espaços para lá desta, é violento, agressivo, atemorizador.
A floresta dos outros (“Those We Do Not Speak Of”), dos gemidos e dos monstros de garras e fatos vermelhos, é apenas o começo. Mais longe, mais para além, estão as cidades, está um mundo urbano-industrial mau, violento e proibido.
Como referem Jordan e Haladyn (2010), o múltiplo sistema defensivo criado pelos anciãos, apenas se justificará, e será eficaz, se os mais jovens e as crianças acreditarem que o exterior é uma ameaça malévola. Só assim se assegurará a coesão interna garantida pelo medo e pela existência de inimigos comuns. Só assim também, com narrativas credíveis, se manterá o tabu do não atravessamento da fronteira, da não transgressão dos limites, que será sempre punida pelos outros, “Those We Do Not Speak Of”.
Para Shyamalan este não é um mundo de geometria perfeita. O poder exercido será contestado e a fobia imposta pode criar resistências. Desde logo, pelo jovem doente mental que é indiferente aos uivos e à barreira que não pode ser transposta. Numa ocasião, Noah, ao mesmo tempo que todos se assustam, ri-se dos sons assustadores vindos da floresta. Noutra ocasião, entra em território proibido e recolhe uma flor vermelha, a cor do inimigo.
Noah é um dos vértices do triângulo constituído também por Ivy – a rapariga cega, e Lucius, o noivo desta. Por ciúmes de Ivy, Noah apunhala Lucius que já antes havia desafiado os anciãos – é preciso viajar até às cidades para buscar medicamentos e curar as doenças da aldeia.
Lucius está agora ferido e os dilemas morais regressam. O juramento vale mais que as vidas humanas? Afinal, porque não se atravessa a barreira? O que justifica, na realidade, este encarceramento que coloca vidas humanas em causa?
O líder da comunidade confessa a Ivy, sua filha, que as ameaças vindas do exterior são um misto de encenação e realidade. Os anciãos viveram, de facto, experiências agressivas nas cidades, numa sociedade dominada pelo dinheiro e pela ganância. Todos perderam familiares, assassinados em diferentes ciurcunstâncias. Depois disso, cruzaram-se numa terapia de grupo e decidiram afastar-se e alhear-se daquele mundo sem inocência.
Ainda assim, os monstros da floresta, as ameaças e os ataques, os uivos, tudo faz parte de uma encenação, uma enfabulação credível que procura manter o grupo unido e a comunidade coesa, em nome do futuro e da inocência que se quer preservar.
Para buscar os medicamentos que evitarão a morte de Lucius, é Ivy quem passa a fronteira e viaja até ao exterior, até à cidade. O atravessamento da floresta é lento, difícil e penoso, arriscado e cheio de obstáculos numa natureza também ela alheada do ser humano, uma natureza caótica de humidade, solos lamacentos e troncos velhos e caídos. Mas Ivy lá chega, a uma estrada cascalhenta e, depois desta, a um novo muro, uma muralha de dois metros de altura. Afinal, Covington Woods é um enclave, um perímetro fechado dentro de um outro perímetro – a Walker Nature Preserve. Só aqui, neste no man’s land, neste único espaço sombra de uma sociedade urbana hipervigilante (esta área classificada é também um território protegido que não se pode sobrevoar), poderia sobreviver uma aldeia como aquela que Ivy deixou para trás, e para onde vai regressar em breve.
Da mesma forma que as barreiras de Covington Woods afastam a comunidade relativamente às cidades (e às sociedades) materialistas e sem valores, este muro da Walker Nature Preserve protege a natureza dos assédios do mundo urbano-industrial. Talvez reflexo de um olhar crítico de Shyamalan face à atitude cornucopiana de uma cidade/sociedade sem limites, haverá aqui uma dupla fronteira: aquela que protege os Homens e a que protege a natureza.
Entretanto, Ivy vence esse novo obstáculo, o muro da área protegida. Para o espetador, talvez para a própria Ivy, esta não é apenas uma passagem no espaço, é uma viagem no tempo. É aqui que se vence um anacronismo: a aldeia novecentista é, afinal, contemporânea. A encenação de Covington Woods não é apenas espacial, mas é também temporal.
Ivy entra no mundo exterior, regressa ao século XXI e encontra um guarda da área protegida - um homem bom que desconstrói a ideia dos monstros que estão para lá da barreira que os anciãos construíram.
3 - O filme The Village: uma metáfora sobre as comunidades locais, as fronteiras e as tensões políticas da contemporaneidade
“The Village is the darkest and most cynical of Shyamalan’s films. (...) The Village is a movie that attempts to reconcile the existence of violence, horror, and tragedy in day-to-day existence with some sense of purpose or direction to the universe”
(Weinstock, 2010. p.XX).
Mais que um filme de terror, The Village é uma obra política. Ainda assim, tem uma atmosfera e uma paisagem de medo e ameaça, muito próxima do que ocorre nalguns clássicos do género. Como se verifica em Bell (1997) e Fernandes (2001), muitos destes filmes exploram, de forma dualista, os contrastes e a fronteira entre o rural e o urbano. A variedade é grande e não é fácil encontrar um padrão. Contudo, são muitos os exemplos vindos do cinema de terror que representam o urbano como um território de segurança e modernidade e o rural como o oposto, um espaço geográfico em ruínas, ameaçador e violento. Assim ocorre em The Texas Chainsaw Massacre, realizado por Tobe Hooper, em 1974; ou em The Fear, de Vincent Robert, de 1995.
Nestas representações, sair da cidade significa abandonar o conforto e entrar em território de risco. Em Shyamalan, a narrativa é diferente. O contexto ideológico do filme também o será e nada pode ser lido de forma linear, sem atender aos simbolismos e às linguagens metafóricas. M. Night Shyamalan não trabalhou o contraste urbano /rural. Não terá sido esse o seu propósito. Ainda assim, em The Village, o rural é o refúgio, o urbano não é o conforto seguro que se viu nos filmes de Hooper e Robert. A cidade é o território da violência e da fuga, pois foi do modelo urbano-industrial que a comunidade de Covington Woods fugiu e foi desse mundo que as autoridades locais tentaram proteger os mais novos, aqueles que iriam perpetuar a aldeia e o grupo.
Para Jordan e Haladyn (2010, pp.175-176), este perímetro protegido é uma simulação do passado, uma higienização, um regresso à origem dos tempos seguros, confortáveis e inocentes:
“The elders construct a fictional existence of innocence within a romanticized simulation of the past to escape the predations of the contemporary world. Unable to view the outside world as anything but evil, the elders construct Covington Woods as a means of establishing a community meant to preserve and safeguard the innocence that was lost to the violent events of their past—a task that they accomplish through terrorizing the community with a simulated evil”.
Como refere Weinstock (2010), este é um dos mais ideológicos filmes de Shyamalan, pois discute a forma como uma narrativa de medo e insegurança pode ser um instrumento de controlo dos menos pelos mais poderosos. No entanto, para Katherine A. Fowkes (2010), os monstros inventados pelas autoridades de Covington Woods, mais que riscos externos, poderão simbolizar os males e as ameaças existentes dentro de cada comunidade. Como refere esta autora (2010, p.85), o reconhecimento do mal existente, não apenas no exterior, mas dentro de cada grupo, é uma outra forma de supressão da liberdade:
“The Village was never really about monsters. It is, at heart, a morality tale with a sad irony and a bittersweet conclusion. While the audience learns that the monsters are an illusion created by the elders, the elders learn that monsters external to themselves are also an illusion and that the monster is within. No matter how isolated they may be, the villagers will never be safe from pain, violence, and death”.
Este ponto de vista coloca em causa a eficácia de uma fronteira que pouco mais será que uma ilusão e um similacro de confiança numa segurança que, afinal, não se pode garantir: não só porque o mal estará entre eles, mas porque a impermeabilização dos limites é uma utopia1 .
Ainda assim, entre estes dois mundos, a aldeia que se quer manter presa algures na História e o presente que está para lá da cerca da Walker Nature Preserve, levanta-se uma fronteira que separa velocidades diferentes.
Ivy viaja a partir de um mundo lento e sem meios de transporte. A travessia da floresta pode representar a rugosidade dos espaços que ainda persistem nesta globalização de ritmos diferenciados. No seu percurso, à medida que ultrapassa obstáculos, a velocidade vivida e sentida por Ivy vai aumentando. Depois da floresta, encontra uma estrada mais aberta. É uma estrada de cascalho mas que, comparando com o solo lamacento da área florestal, lhe permite acelerar o passo. Para lá do muro da reserva natural, Ivy encontra uma via alcatroada e um veículo motorizado, o único que se vê em qualquer um dos planos desta narrativa.
Este filme de M. Night Shyamalan é também uma reflexão sobre as comunidades locais e o papel que estas podem ter enquanto resposta possível a um mundo condicionado pela limitada e insuficiente regulação dos fluxos e dos contextos socioeconómicos, culturais e políticos. Esta obra questiona-nos se a resposta a esse sistema urbano-industrial agressivo e nefasto pode estar no retorno ao passado e a uma vida simples e despojada, a uma territorialidade confinada e sem contactos, a um quotidiano de encarceramento entre muros, porque o exterior não é controlável nem nos dará garantias de futuro.
Mais que um caminho possível, Shyamalan deixa-nos uma obra distópica, um futuro ameaçado por respostas extremas se o sistema do qual fugiu a comunidade de Covington Woods não se repensar e reequilibrar em termos de práticas, valores e confiança.
Ainda assim, The Village conduz o debate para a temática das comunidades locais e do seu papel enquanto refúgio perante as ameaças. Nesse ponto de vista, esta obra está em linha com o pensamento de geógrafos como Milton Santos (2000). Para este autor, é sobretudo nestas vivências de vizinhança que deveremos procurar a resposta aos efeitos mais negativos da globalização: as desigualdades económicas e políticas, a delapidação de recursos, as externalidades ecológicas, os novos riscos sociais, tecnológicos e ambientais. Será através destas, por processos ascendentes e participados, que se pode contestar um sistema de pensamento único e organizar modelos de vida mais equilibrados e sustentáveis.
Esta perspetiva é confirmada por autores como Zygmunt Bauman (2003, p. 7), para quem as comunidades locais têm, como porto de abrigo e uma reserva de bem-estar, uma conotação positiva:
“As palavras têm significado: algumas delas, porém, guardam sensações. A palavra ‘comunidade’ é uma dessas. Ela sugere uma coisa boa: o que quer que ‘comunidade’ signifique, é bom ‘ter uma comunidade’, ‘estar numa comunidade’. Se alguém se afasta do caminho certo, freqüentemente explicamos sua conduta reprovável dizendo que ‘anda em má companhia’. Se alguém se sente miserável, sofre muito e se vê persistentemente privado de uma vida digna, logo acusamos a sociedade — o modo como está organizada e como funciona. As companhias ou a sociedade podem ser más; mas não a comunidade. Comunidade, sentimos, é sempre uma coisa boa”.
Com amplo debate nas ciências sociais, às relações de proximidade está reservado um olhar benigno, a ideia de uma fortaleza face ao caos, de uma ilha de laços afetivos e solidariedade que garantam a segurança perante a barbárie das relações desfiliadas. Por isso, os mais recentes paradigmas de desenvolvimento e planeamento estratégico apontam para a centralidade das comunidades locais. Estas devem discutir e decidir, ganhar poder de intervenção, participar e assumir protagonismo na definição do seu próprio destino, nas áreas rurais mas também nos espaços urbanos (Ferreira, 2007; Seixas, 2013).
A propósito da cidade, Schmidt, Seixas e Baixinho (2014, p.15), referem que “(...) as novas funcionalidades da vida urbana, do trabalho, da mobilidade e do consumo”, os “(...) novos contextos informacionais e tecnológicos, passando pela crise do estado providência e da própria política”, requerem uma resposta localizada. Para estes autores, “São, estes novos tempos, tempos de fascínio mas igualmente de ansiedade ou mesmo de rutura, que recolocam em cima da mesa a importância — ou o aumento da importância —, na ação pública e governativa, da proximidade”.
A metáfora de Covington Woods, tal como Shyamalan a filma, está muito longe desta confiança de proximidade idealizada. Esta aldeia ficcionada garantia a coesão social através de estratégias abusivas de encenação, enfabulação e coação. Mesmo nas sociedades contemporâneas, aquelas que se vivem fora do cinema, essa comunidade local coesa é um valor ameaçado.
Os atuais processos de globalização vão exercendo pressão e, de certo modo, desconstruindo esse sentido de pertença e filiação de vizinhança. Desde logo, pelo movimento, pelas trocas e pela mobilidade espacial, tudo o que os anciãos de Covington Woods negaram e tentaram suprimir. O denominado progresso é sustentado pelas entradas e pelas saídas.
As comumidades locais são desafiadas por fatores como a permeabilidade e flexibilidade dos sistemas económicos, a inovação em áreas como a indústria e os serviços, as territorialidades que acompanham setores como o turismo, que rompem e perturbam todas as lógicas de endogeneização dos processos sociais, económicos, culturais e políticos.
A privatização de recursos como a água e os solos aráveis; em muitos casos, o despovoamento rural e o sobrepovoamento urbano; intervenções privadas e públicas e a construção de infraestruturas como estradas rápidas e barragens, tudo pode reduzir as solidariedades locais e contribuir para a pulverização dessa ideia cristalizada de comunidade coesa e estável que gravitaria, algures, em torno de um quotidiano equilibrado e sustentável. É também por isso que a aldeia de Shyamalan é um anacronismo apenas mantido pela força da supressão das liberdades.
The Village projeta-nos também noutras escalas geográficas. O cineasta filma um grupo local, mas a mensagem simbólica projeta-se noutros espaços e em territórios mais amplos.
Este encerramento detrás de barreiras e fronteiras que separam o nós dos outros, remete-nos para modelos políticos atuais que, desta ou de outra forma, seguiram a estratégia de coesão pela supressão das liberdades. Estão neste grupo, exemplos como a Coreia do Norte, o regime talibã no Afeganistão ou o mais recente Estado Islâmico/ISIS, sinais de um mundo de velhos e novos muros que hoje rasgam o planeta e tornam a superfície terrestre rugosa, através de fatores de inércia e obstáculos ao movimento (Jones, 2012).
A aldeia de identidades cristalizadas de Shyamalan, mas também os territórios do ISIS/Daesh que hoje se estendem entre a Síria e o Iraque, personalizam aquilo que Amartya Sen (2007, p.39), denominou como “encarceramento civilizacional”. Estas são as identidades que Amin Mallouf (1999) entendeu como assassinas, identidades unidimensionais violentas e agressivas cimentadas pela religião e por uma ideologia monolítica face à multidimensionalidade das perspetivas mais abertas, dinâmicas e, de certo modo, individualizadas na relação de cada um com o mundo que o rodeia.
Enclausuramentos e exercícios territoriais de poder como os verificados em Covington Woods ou nos territórios do Daesh, assentam naquilo que Mark Granovetter (1973) classificou como laços fortes/strenght ties – filiações que unem o grupo e o encerram face ao exterior, pontes entre o que se assume como igual, numa semelhança muitas das vezes construída e forçada para que, segundo Bauman (2015), se justifique o levantamento destas barreiras de separação perante o outro, aquele que fica para além do muro, o inimigo, “Those We Do Not Speak Of”.
Para Burdeau (2010), o filme de M. Night Shyamalan será também uma alegoria do isolacionismo americano durante a administração de George W. Bush e das enfabulações sobre a posse de armas de destruição de massas, informação que terá justificado a invasão do Iraque e a deposição de Saddam Hussein.
Segundo Jordan e Haladyn (2010), os temores que regulam o ambiente social e geográfico de Covington Woods traduzem os medos e os alarmes que ficaram depois dos ataques terroristas do 9/11, em Nova Iorque. A comunidade enclausurada entre paredes múltiplas na Walker Nature Preserve é a representação do encerramento dos EUA perante um mundo exterior agressivo. Ainda para Jordan e Haladyn (2010), a expressão “Those We Do Not Speak Of” é a identificação vaga de um inimigo, a mesma que se aplica ao terrorismo, uma ameaça difusa que pode estar em qualquer lugar e deflagrar em qualquer momento, sem aviso prévio. É neste mundo dualista e maniqueísta que se levantam muros de segurança, proteção e higienização.
Para Jordan e Haladyn (2010), a lógica aplicada em Covington Woods – o agressor é uma entidade vaga e hostil que ameaça a partir do exterior, traduz a política da Administração Bush que, à difusa ideia de terrorismo, acrescentou a etiqueta do inimigo como o eixo do mal.
Prosseguindo com a análise de Jordan e Haladyn (2010), as cores às quais Shyamalan recorre en Covington Woods refletem esse ambiente político e securitário dos EUA. O Homeland Security Advisory System representa a vermelho o risco máximo de ataque terrorista e a laranja um ataque moderado. Entrar na floresta de Covington, implica o aumento da vulnerabilidade perante um ataque iminente. Ficar na aldeia diminui essa possibilidade, mas não a elimina.
Considerando a paranóia securitária como uma vitória do terrorismo e um modo de supressão da liberdade daqueles que se pretendem defender (Baudrillard e Turner, 2002): “The Village can be seen as Shyamalan’s critique of the current political environment of the United States in which the extreme measures that have been and are still being instituted to safeguard innocence against terrorists have become a perverse form of unpredictable terrorism for the American population (...)” (Jordan e Haladyn, 2010, p. 179).
Mais que geográfico, porque The Village pode ser uma metáfora, esta obra de Shyamalan é um exercício político atual e uma distopia de alerta. A atualidade desde filme deve ser enquadrada em desafios da contemporaneidade como os riscos de inseguraça, alguns focos pontuais de tensão territorial, o aumento das mobilidades espaciais, os fluxos de refugiados, as barreiras e as fronteiras que agora se (re)erguem.
Para além dos muros de betão ou de cercas eletrificadas, esta é também uma época de muros imateriais, de linha invisíveis que promovem mais uma multiculturalidade de gueto e menos uma verdadeira interculturalidade assente em laços fracos/weak ties criativos, laços que se estabeleçam entre atores diferentes mas dispostos e abertos ao diálogo e à troca (Granovetter, 1973; André, 2012).
O filme de Shyamalan tinha uma dimensão política em 2004 e continua a tê-la em 2015. Nesta distopia, a que Shyamalan nos mostrou, mas a que, nalguns aspetos, se vive na atualidade, colocar o outro por detrás de um muro, implica desconhecê-lo, alimentar estereótipos e reforçar os olhares e as perceções extremas e enviesadas. Porventura, esconder refugiados detrás de muros terá esse efeito, ainda que, como ocorreu com Ivy, o atravessamento dessa barreira possa depois contradizer esse receio.
Shyamalan também nos mostra que os desequilíbrios da sociedade contemporânea podem suscitar respostas extremas. A falta de valores e referências pode levar ao regresso da barbárie pré-moderna; conduzir a um retrocesso civilizacional de supressão de comunicações; induzir a procura de modelos locais de organização territorial e social agressivos e limitadores de liberdades essenciais.
Esta distopia de Covington Woods é reforçada pela construção autoritária de um sentimento topofílico, não apenas pela clareira onde a comunidade vive, mas por um forte sentido de pertença a um grupo social de laços fortes, que se deve manter coeso e impoluto.
É certo que a topofilia de Tuan (1980) remete para um elevado grau de filiação afetiva a um lugar, mas é também verdade que esta pode ser construída na mobilidade, na fluidez e na construção de identidades compostas, híbridas e multiterritoriais (André, 2012; Sen, 2007; Haesbaert, 2004; Maalouf, 1999).
Em Origens (2004), Amin Maalouf opõe as raízes às estradas. As primeiras correspondem às filiações fechadas de enclausuramento identitário e, porventura, espacial. As segundas, as estradas que partem e se cruzam com outras, dizem respeito ao movimento, à troca criativa e ao hibridismo composto: “Não gosto da palavra ‘raízes’ (...). As raízes enfiam-se na terra, contorcem-se na lama, crescem nas trevas; mantêm a árvore cativa desde o seu nascimento e alimentam-na graças a uma chantagem: ‘se te libertas, morres!’” (Maalouf, 2004, p.9).
João André (2012, p.95) concilia estas duas perspetivas, afirmando que os “fluxos das viagens não excluem a memória das raízes”. Ainda assim, nesta metáfora de Maalouf (2004), e na ótica do ser humano, enquanto os enraizamentos fecham e imobilizam, as estradas abrem e libertam.
É esta libertação que a viagem de Ivy alcança, não aquela que os anciãos - as autoridades das ‘raízes’, condenam, mas aquela que se faz na estrada, no contacto com o outro (o guarda da área protegida) que, afinal, não era o tal monstro que o passado induziu no mapa mental de Ivy e dos restantes habitantes da aldeia fechada.
O final da narrativa de Shyamalan não é claro. O filme não o esclarece. Não se sabe se Covington Woods resiste na sua estratégia de encerramento, mas isso pouco importa. Independentemente do fim da história, enquanto documento de reflexão crítica sobre os riscos da contemporaneidade, The Village é sobretudo um alerta perante os extremismos políticos que vão emergindo neste primeiro quartel do século XXI.
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