Antonio Henrique Maia Lima (CV)
João Alberto Mendonça Silva (CV)
Heitor Romero Marques (CV)
Universidade Católica Dom Bosco
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RESUMO
Objetivou-se verificar a imagem do morador de rua/mendigo do ponto de vista dos comerciantes na região do Polígono Central de Campo Grande - MS. O método utilizado para análise foi o dedutivo, utilizando-se de bibliografias pertinentes ao assunto, coleta e análise de dados junto aos envolvidos na pesquisa (objeto de estudo e beneficiários), não descartando eventuais constatações baseadas no modelo empírico de observação. O constante conflito percebido e noticiado entre os comerciantes da região central da capital sul-mato-grossense, além, da dinâmica econômica e política do campo da pesquisa serviram como fomentadores da questão norteadora do estudo, qual seja: porque o conflito ocorre e como os comerciantes enxergam os moradores de rua? Utilizou-se de entrevistas semiestruturadas para coleta de dados in loco. Serviram como referencial teórico base, a bibliografia disponível sobre Lévinas e seu conceito de Alteridade, aplicado à realidade estudada, além de conceitos típicos do Desenvolvimento Em Escala Humana, como solidariedade ativa e humanização.
PALAVRAS CHAVES: Mendicância, Alteridade, Solidariedade, Humanização, Dignidade.
Image of the homeless from the perspective of traders in Central Polygon of Campo Grande - Mato Grosso do Sul and its correlations with the Local Development in Human Scale
ABSTRACT
Purpose of this article is check the image of homeless / beggar from the point of view of traders in the Central Polygon area of Campo Grande – Mato Grosso do Sul. The method used for analysis was deductive, through the relevant subject bibliographies, collection and analysis of data from those involved in the research (study object and beneficiaries thereof), not discarding any findings based on empirical observation mode. The constant conflict between the perceived and reported marketers downtown area, in addition to its economic and political dynamics have served as a basis for guiding question of the study, namely: why the conflict occurs and how traders they see the homeless? Semi-structured interviews to collect data on the spot were used. Served as a basic theoretical framework, the literature available on Levinas and his concept of Otherness, applied to the reality studied, as well as traditional concepts of Human Development at Scale, such as Active Solidarity and Humanization.
KEYWORDS: Begging. Otherness. Solidarity. Humanization. Dignity.
Para citar este artículo puede uitlizar el siguiente formato:
Antonio Henrique Maia Lima, João Alberto Mendonça Silva y Heitor Romero Marques (2015): “A imagem do morador de rua sob a perspectiva dos comerciantes no polígono central de Campo Grande – Mato Grosso do Sul e suas correlações com o desenvolvimento local em escala humana”, Revista Observatorio de la Economía Latinoamericana, Brasil, (febrero 2015). En línea: http://www.eumed.net/cursecon/ecolat/br/2015/solidariedade.html
1 POLÍGONO CENTRAL DE CAMPO GRANDE – MATO GROSSO DO SUL: BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO GEOTERRITORIAL.
É importante deixar claro que se elegeu como território ou área da pesquisa a região denominada Polígono Central da cidade de Campo Grande – MS. Salientando-se que existem variadas delimitações desse Polígono. A pesquisa aqui relatada valeu-se das delimitações explicitadas no mapa abaixo.
A região delimitada como polígono central mescla o eixo econômico e o eixo cultural da capital sul-mato-grossense, estendendo-se a partir do coração da cidade, o encontro das Avenidas Afonso Pena e Ernesto Geisel (também conhecida como Norte-Sul) para leste e chegando ao Mercadão Municipal e ao Camelódromo e seus entornos. Em sentido Norte para a antiga Rodoviária Municipal (hoje um prédio praticamente em desuso) localizada entre as ruas Vasconcelos Fernandes, Dom Aquino, Barão do Rio Branco e Joaquim Nabuco.
Os três principais pontos de coleta de dados por meio de entrevistas foram justamente o entorno do Mercadão Municipal, da antiga rodoviária e na esquina das duas grandes avenidas. Salienta-se que a região é bastante conhecida localmente pela presença de grande número de moradores de rua, usuários de drogas, etc. Há também ao lado do Mercadão Municipal uma feira fixa destinada aos produtos indígenas, na qual, os próprios indígenas vêm vender os excedentes de sua produção agrícola e artesanal.
A área de incidência dos moradores de rua é muito maior, porém, a presença dos mesmos concentra-se no Polígono Central, pois, há intensa atividade comercial, dada a presença do camelódromo, do Mercado Municipal Antônio Valente (o Mercadão), além de duas das principais avenidas: Avenida Afonso Pena e Avenida Presidente Ernesto Geisel. A presença dos moradores de rua também é reflexo do intenso fluxo de pessoas, inclusive turistas, devido a presença de museus nas redondezas e da turística Morada dos Baís. Esse prédio, talvez, seja o prédio mais conhecido da cidade, que serve também, como ponto de partida de ônibus turísticos denominados “City Tour” que dão ao visitante a possibilidade de viajar a céu aberto pelos principais atrativos turísticos e culturais da cidade.
Registra-se também que a sucatização do prédio da antiga rodoviária fez da região um reduto de populações marginalizadas, moradores de rua, usuários de drogas, prostitutas(os), etc., o que serviu para intensificar ainda mais o fluxo dessas populações por todo o centro da cidade. Existe uma intensa mobilização dos comerciantes locais para “recuperar” a região que outrora foi ponto de referência para a população não só da cidade, mas de todo os estado de Mato Grosso do Sul.
2 O FENÔMENO DA MENDICÂNCIA NA REGIÃO ESTUDADA
O fenômeno da mendicância em Campo Grande será aqui abordado baseando-se, primeiramente, no estudo de Moro (2009) que evidenciou o desenvolvimento das chamadas “pessoas comuns” (forma utilizada por ele para expor o ser dos mendigos e habitantes das favelas), bem como a deturpação da imagem destas. Posteriormente, minudenciando a imagem das pessoas em situação de rua, Rozendo e Rozendo (2011) fornecem, em uma pesquisa por eles realizada, a nova face dessa população em Campo Grande. Tal intento propiciou a maior contextualização deste fenômeno da mendicância e suas atuais causas, firmando um aspecto basilar quando da ponderação posterior a ser realizada.
Durante o período de urbanização da cidade de Campo Grande, a elite agropecuária, na maioria detentores dos cargos políticos ou consultivos, não dava muita importância à população moradora de rua existente. Esta era pouco numerosa e representada, em suma, por pessoas detentoras de empregos informais, como: mascates, empregados temporários e ambulantes. Durante esse período, por volta da década de 1930, a elite local fazia até questão de ter essa população consigo para poder demonstrar, a si e aos outros, que o poder aquisitivo possuído era tanto que sobrava para dar aos que não tinham (MORO, 2009).
A imagem do morador de rua começa a se modificar a partir das décadas de 1960-70. Com as discussões sobre a possível divisão do Estado de Mato Grosso a elite campo-grandense buscou demonstrar, frente ao cenário federal, ser esta a cidade digna de conquistar o vulto de capital do estado nascente. Porém, um imbróglio impedia o desenvolvimento, ou como se dizia, o “progresso” da cidade: o aumento das “pessoas comuns”.
Com o fenômeno da migração em alta, Campo Grande tornou-se um polo à população migrante. Segundo Moro (2009) os que cá residiam, em 1960, eram 72.249 pessoas; em 1980, 291.777, sendo apenas 33% os residentes na zona rural. Porém, com a chegada cada vez mais constante de pessoas advindas dos mais diversos lugares, estas não possuíam, em grande parte, uma habitação digna. Moro (2009) atesta terem sido dois os locais mais escolhidos por essa população para se estabelecerem: às margens do córrego Segredo e nas próprias ruas da cidade. Contudo, a elite local possuía uma percepção diversa desta ocupação, principalmente a das ruas. Sobre isso, têm-se:
[...] muitos acabaram por ficar no próprio centro urbano e comercial da cidade de Campo Grande: foram representados como sujeitos que meneavam e denegriam a imagem citadina de Campo Grande frente aos que visitavam o espaço do centro e aos moradores que nele residiam. [...] Esses que ficavam no espaço urbano e faziam-no também de espaço privado foram representados como sendo os piores denegridores da “Cidade Morena” (MORO, 2009, p. 130-131).
A situação começou a piorar quando a elite e o restante da população residente levaram a cabo os planos de higienização do espaço público, desapropriando a então favela do Segredo, levando-a para uma região mais longínqua (na Vila Piratininga), e recolhendo a população de rua para devolver a decência dos espaços públicos. Estas medidas foram tomadas embasando-se na ideologia de diferenciação dos espaços particulares (entenda-se íntimos) com os de cunho público, algo ignorado pelas “pessoas comuns” e de real incômodo à “elite da boa imagem”. Sobre isso, Moro (2009, p.143) atesta:
[...] a elite concebia o espaço público como um local extremamente distinto do espaço privado, pensando-o como um local de práticas da família, do indivíduo, da intimidade, do particular, ou seja, pensava a organização dos espaços público e privado por meio de uma “cerrada rede de auto restrições”. [...] Entretanto, o “povo comum” não participava de uma “cerrada rede de auto restrições” de que a elite citadina de Campo Grande tanto fazia gosto de praticar .
O intento referido não surtiu o efeito desejado, pois o fluxo de migrantes aumentava e, junto a ele, o da população moradora de rua. Destarte, a questão das pessoas em situação de rua sempre foi algo considerado como violador da moral social campo-grandense, mas nunca levado a cabo algo que, factualmente, solucionasse tal questão.
Com o desenvolvimento da cidade e sua aquisição do patamar de capital, Campo Grande passou por um fenômeno social no que se refere a essa população, aqui em específico. De migrantes, pessoas advindas do interior devido ao êxodo rural impulsionado pela “modernização da fronteira agrícola” no Estado durante a época da Divisão, a população em situação de rua passou a ser representada por usuários de drogas lícitas e/ou ilícitas. Sobre isso, Rozendo e Rozendo (2011, p.109) afirmam:
[...] a bebida, a droga e a vida desregrada são fatores que pesam na escolha por esta opção de vida [morar na rua] [...]. As drogas mais consumidas pelos moradores de rua de Campo Grande são o cigarro, a cachaça, a maconha e a pasta base. [Quando perguntados sobre as drogas] eles abordam o tema com naturalidade.
Em suma, os autores apresentam que essa população não deseja retornar para suas casas de origem. Mas o dado que abrilhanta aos olhos é o fato de muitos já terem passado por casas de recuperação de dependência, visto que, por serem usuários de entorpecentes, sua situação converte-se numa questão de saúde pública. O desejo de não retorno a tais clínicas, sejam as governamentais, sejam as filantrópicas ligadas à sociedade civil ou às entidades religiosas, é constante, visto que os mesmos afirmam serem lá os locais onde não se encontravam consigo mesmos, permanecendo, em suma, mais entorpecidos com os remédios do que com a droga que costumeiramente utilizam (ROZENDO E ROZENDO, 2011).
Vítimas da própria licenciosidade de suas vidas, os moradores de rua, ainda hoje, sofrem com a violência nas mais diversas faces da realidade. Seja pela sociedade civil, em sua repulsa e visão destes como não-humanos, seja pelas autoridades de segurança, que os enxerga como possíveis delatores do tráfico de drogas. Herança da visão de denegridores e subversores da ordem moral e social da cidade, estes demonstram que, dos anos de 1960-70 à atualidade, houve uma mudança na sua composição: de migrantes e sem habitação têm-se hoje usuários de entorpecentes que não querem retornar para suas casas.
Em consectário, a população que não partilha dessa realidade ainda não sabe lidar com a nova situação, dando, em muitos casos, a solução cabível aos migrantes à população usuária, ou preferindo as táticas repressivas e pejorativas à sua própria condição de seres humanos. Depreendendo tais considerações, passa-se ao foco deste intento, sendo a demonstração dos resultados obtidos na inquirição realizada, bem como as elucubrações alcançadas quando da interpretação do material recolhido.
3 ALTERIDADE E HUMANIZAÇÃO: A VISÃO DO COMERCIANTE SOBRE OS MORADORES DE RUA
Diante de todas as reflexões, tem-se a necessidade de explicitar algumas percepções sobre os conceitos de alteridade e humanização. Isso se faz necessário para que haja uma real compreensão do olhar dado pelos comerciantes aos moradores de rua na região alvo da pesquisa e evidenciar a disparidade entre os dados coletados e os referidos conceitos.
Primeiramente, deve-se deixar claro que o conceito de alteridade utilizado no presente artigo é o formulado por Emmanuel Lévinas (2004). Isso significa que a carga que tal termo agrega neste autor embasa-se na percepção e concepção do Outro frente ao Eu. É dizer que a alteridade significa uma quebra-unitária dentro do próprio Ser dos entes. Tal afirmação pode parecer paradoxal, mas traz uma hermenêutica sobre o tempo e a existência deste mesmo Ser frente aos outros Seres que o rodeiam.
Essa quebra é induzida dentro do paradoxo Eu e Ser, ou seja, entre pessoalidade e impessoalidade. Inobstante a isso o Ser se autoafirma a si mesmo de modo que ele é o que é em conluio à existência do Outro, do diferente de si. O exercício da alteridade, sob as lições de Lévinas deve ser a ética primeira do homem, logo, todo comportamento, todo hábito, toda ação do ser humano embasado no seu próprio julgamento e não nas impostações sócio-legislativas deve caminhar para a valorização e manutenção da figura do Outro, do diferente, isto para que a figura do próprio Eu, do próprio Ser individual, possa de fato ser percebida e existente.
Caminhar por uma ética da alteridade eleva a existência social dos indivíduos humanos a uma categoria discrepante da percebia hoje. Por quê? Essa pergunta é, em si, parte da espinha dorsal deste intento e, por isso, deve ser compreendida como um dos requisitos para o processo de solidariedade ativa. A percepção de alteridade que fora adquirida quando da análise dos dados coletados é que não há uma alteridade nos objetos de pesquisa, frente ao alvo das perguntas realizadas, os moradores de rua.
A respeito da humanização, pode-se dizer que, sob a perspectiva de Paulo Freire (1981) é compreendida como a busca de “Ser mais”. Essa expressão é compreendida como uma tentativa de retomar “ontologicamente” o Ser do indivíduo humano que foi oprimido dentro de um processo sociohistorico, no qual, o mesmo não pôde ou não lhe foram outorgadas as possibilidades de defesa.
Continuando o pensamento de Paulo Freire, existe uma tentativa de humanização versus a desumanização1 . O processo de humanização deve caminhar sempre em contraponto à reificação (a transformação dos seres em objetos ou em “ser-menos”); este processo acaba gerando indivíduos com uma dignidade inferior aos demais que acabam, na maioria das vezes, marginalizados e/ou tratados como a escória da sociedade capitalista.
Quanto a isso, Latouche (2009) afirma que os processos de crescimento social acabam desenvolvendo realidades perceptíveis sobre os seres humanos que leva uma parcela da sociedade a desconsiderar outra parcela por não ser produtiva. Há ainda, a desqualificação dos indivíduos, nessa mesma linha de pensamento, que inferioriza aqueles que não contribuem no processo linear de geração e de produtos de consumo ou ainda aqueles que simplesmente não possuem bens materiais.
Balandier (1997) em outra perspectiva demonstra sobre a necessidade da existência de marcas de desordem dentro da sociedade. Tais marcas de desordem podem ser percebidas na figura do Outro-social, ou seja, de todos aqueles que não participam da “normalidade” do sistema, isto é, os desempregados, os moradores de rua, os dependentes químicos, etc. Estes podem ser comparados a uma espécie de “banco de reservas” que de uma forma alegórica representam a possibilidade de substituição social ou de manutenção da própria ordem social, de modo a continuar o fluxo.
A entrevista se embasou em três perguntas que procuraram, simultaneamente, trazer a percepção da mendicância pelos comerciantes da região abordada, confrontando-as com os pré-conceitos e juízos de valor detidos por estes e, ao final, por meio de sugestões, apresentar soluções para a questão da mendicância. Tais sugestões permitem a dedução do grau de alteridade existente entre a amostragem e o objetivo do questionário.
Feitos tais esclarecimentos, percebeu-se que, dentre os entrevistados, apenas uma pequena parcela entende o fato da existência de moradores de rua na região como um efeito da mendicância ou pobreza extrema. A maioria, por sua vez, associa o fato da existência de moradores de rua na região aos entorpecentes, sejam eles lícitos ou ilícitos.
Curiosamente, verificou-se que a população dos moradores de rua na região do polígono central de Campo Grande – MS constitui-se de pessoas de diversas proveniências, sejam étnicas ou socioeconômicas. Existem indígenas num grau merecedor de especial atenção por parte de toda a sociedade nesta região, conforme se pôde perceber na contextualização geoterritorial da pesquisa, isso é devido à existência de uma feira indígena na localidade.
Ao elaborar o questionário pretendeu-se, por intermédio de sua primeira questão, trazer à tona, três elementos chave, quais sejam: a mendicância, a percepção do Outro pelos comerciantes e o Outro, propriamente dito, isto é, o morador de rua. Em relação ao primeiro elemento, a mendicância, buscou-se identificar o que realmente é (se é) a mendicância no território observado segundo as concepções dos entrevistados. No que diz respeito à percepção do Outro, pretendeu-se descobrir se estes em algum momento de suas vidas refletiram sobre o porquê da existência daquelas pessoas na rua, isto é, colocar-se no lugar do Outro com o fim de melhor entender os fatos antes de formar juízos.
Analisando mais profundamente as perguntas realizadas no questionário aplicado, perguntou-se aos comerciantes, primeiramente: de que forma eles enxergavam a presença de moradores de rua na região. As respostas obtidas não foram muito variadas, sendo que, aproximadamente, 70% dos entrevistados não veem os moradores de rua como mendigos, mas sim como dependentes químicos. Dessa porcentagem pode-se ressaltar a seguinte resposta obtida. E1: “Não são mendigos! São usuários de drogas. Eles pedem dinheiro para uso de drogas. Meninas menores se prostituem, inclusive, para comprar drogas”. Dos 30% que os enxergam como mendigos, associam-lhes a pessoas não miseráveis e que estão na rua por motivos outros, como, por exemplo, familiares. E2: “Os mendigos saem dos bairros, vem para o centro para pedir no semáforo. São pessoas sem perspectiva já sem vínculo com a família. Eu tenho uma casa para ir depois do trabalho, eles não!”.
No segundo momento da entrevista, almejou-se conceber a raiz dos pré-conceitos dos entrevistados, caso houvesse. Da mesma forma, compreender a origem de juízos de valores e se os mesmos expusessem as suas necessidades frente a essas prerrogativas.
Ao se questionar se a presença de moradores de rua influi negativamente, de alguma forma, para o desenvolvimento da atividade comercial, obteve-se dois tipos básicos de respostas: sim (3/4) e não (1/4). Dentre aqueles que responderam “sim”, percebeu-se que cerca de metade teme que os fregueses, os clientes, se afastem do recinto pela “feia imagem” que os moradores de rua proporcionam. Associam sua presença a: sujeira, drogas, prostituição, promiscuidade e violência, dentre outras significações pejorativas, dando a impressão de que o ambiente está degradado. E1: “Sim, a região é desvalorizada por conta da insegurança que a presença deles traz. Isso acontece porque eles fazem abordagens nos clientes, seja para pedir dinheiro, seja para pedir comida. Já vi, inclusive, tentarem vender droga”.
A outra metade das respostas afirmativas divide-se, primeiramente, numa pequena parcela de entrevistados que afirmaram ser a presença dos moradores de rua incômoda simplesmente por eles serem “feios e fedidos”. E3: “Eles são feios, bêbados; dá até dó!”. O restante dos que afirmaram sobre a presença atrapalhar, deram como a causa disso o fato deles invadirem o estabelecimento, raramente para roubar, ou permanecerem, constantemente, na porta dos mesmos, afastando os clientes. E4: “Atrapalham, eles invadem a loja para comprar bebida, além da maioria ser usuário de drogas.” E3: “[...] o estabelecimento2 tem duas portas: na da direita, um joga o papelão e dorme o dia todo; na da esquerda tem dois homens, um rapaz e um senhor, que ficam se ‘pegando’ no ponto de ônibus como um casal apaixonado, dando até nojo”.
No universo dos entrevistados que responderam que a presença dos moradores de rua não atrapalha nas suas práticas comerciais, absolutamente todos associam isso ao fato daqueles não permanecerem por perto de seu estabelecimento necessariamente. E2: “Não atrapalha, pois os mendigos não ficam na porta. Quando eles vêm, peço para que voltem à tarde que darei marmita para eles”.
Finalizando-se o questionário, buscou-se perceber o nível de solidariedade e humanização que a amostragem possui frente aos moradores de rua, levando-se em considerações preceitos de dignidade da pessoa humana e da comunidade.
Na terceira pergunta propôs-se a amostragem que sugerisse medidas para a amenização ou fim da presença de moradores de rua na região. De início, uma parcela de 25% dos entrevistados manifestaram-se a favor da intervenção policial de modo que estes deem “um jeito” nesse problema. E6: “Falta policiamento nessa região [...] eles têm que vir aqui e dar um jeito nas coisas. A gente liga lá e eles demoram muito para vir; chegam quando não tem mais nada acontecendo”.
A minoria das respostas sugeriu a criação de empregos voltados propriamente para os moradores de rua, dentre os quais: gari, varredor de rua etc.; ou, para compensar o mal que essa população faz à região, que os mesmos recuperem-na limpando, restaurando e realizando a manutenção dela. E7: “[...] criar lugares para os mendigos irem, bem como empregá-los em alguma coisa, como: varredores de rua, por exemplo, para eles saírem dessa situação e terem dinheiro para si”.
A terceira resposta, representando a parcela mais pungente, sugeriu a internação compulsória, criação de redutos próprios, como: clínicas de recuperação, albergues, asilos etc. E4: “O poder público tem que tomar alguma providência e construir abrigos e fornecer tratamento”. E1: “Criar albergues, asilos, casas de repouso”.
Diante do cenário que foi apresentado, percebe-se que, apesar da diversidade das respostas, a grande maioria dos entrevistados compreende a presença de moradores de rua na região como um verdadeiro problema a ser solucionado pelo poder público. Tal problemática assume diferentes facetas ao longo das respostas, travestindo-se como problemas de saúde pública, de ordem social, de ordem psíquica ou, até mesmo, de ordem espiritual. E8: “Eles são Eguns, são ‘espíritos não evoluídos’ que ficam vagando por aí. Devido à sua ignorância são muito incomodados espiritualmente e atrapalham muito por causa disso”.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: CORRELAÇÕES COM O DESENVOLVIMENTO LOCAL EM ESCALA HUMANA
Em face de todo o exposto, a primeira reflexão a se fazer diz respeito àquilo que os comerciantes compreendem como mendicância. Sobre isso, os entrevistados direcionam que os moradores de rua do polígono central de Campo Grande – MS não devem ser tratados como mendigos, pois, o fato de serem usuários de drogas, sejam lícitas ou ilícitas os deslegitimam da mendicância, uma vez que, o requisito apontado pela amostragem para ser considerado mendigo é a total miséria material. O fato dos moradores de rua da região contarem com apoio, ainda que a distância da família ou um ponto de referência ou refúgio faz com que os entrevistados os desqualifiquem a tal ponto que, numa hierarquia de valores estes se situam abaixo dos verdadeiros mendigos, por eles compreendidos.
Outro aspecto importante a ser evidenciado é que o indígena, associado sempre ao alcoolismo e não aos entorpecentes ilícitos, enquadra-se em outra categoria de morador de rua na região abordada. Isto porque, a amostragem não os enxergam como moradores de rua, uma vez que, o próprio fenótipo indígena não se enquadra no estereótipo percebido. O indígena acaba sendo uma figura à parte, descontextualizada, marginalizada na própria região de marginalização em razão do imaginário que se têm: E10 “[...] lugar de índio é na aldeia [...] índio na cidade é índio bêbado”.
As expressões acima são uma forma representativa do senso comum vigente na região da pesquisa, onde, a feira indígena é vista como tentativa do sistema de governo de “integrar” aquela população, transformando-a numa espécie de “coringa” político, no sentido de fazer da feira uma obra a se recorrer sempre que indagado sobre, por exemplo, a negligência generalizada em relação às nações indígenas e sua integração com o restante da sociedade ou ainda com a mudança de olhares dessa sociedade em relação aos mesmos.
Valendo-se das lições de Lévinas (2004) sobre alteridade, pode-se afirmar que o grupo formado pelos comerciantes do polígono central de Campo Grande – MS enxergam os moradores de rua de uma forma não só apática, mas também, antipática, como pessoas não merecedoras de dignidade se permanecerem nessa condição.
Toda a carga de responsabilidade da situação dos moradores de rua é jogada pela amostra exclusivamente aos órgãos de governo, despindo-se a si próprios de qualquer tipo de responsabilização pela situação daquelas pessoas. Isso, juntamente com o discurso da “falsa solidariedade”, um verdadeiro “dósismo” exacerbado, comprova que aquela população não tem a empatia, a visão levinasiana do Outro, despidos de qualquer tipo de humanidade. A amostragem não se vê como seres possíveis de mudança, de transformação social.
A resposta apresentada como exemplo, sintetiza muito bem o debatido sobre a “falsa solidariedade”, uma vez que, a marmita oferecida aos moradores de rua é dada em troca do não incômodo ao estabelecimento, do temor de retaliações no período em que o estabelecimento se encontra fechado. A solidariedade torna-se nesse cenário, moeda de troca, uma vez que, certas violências foram atribuídas aos moradores de rua pelo entrevistado.
Note-se que não se pretende aqui defender a possível conduta do morador de rua, porém, a essência da solidariedade ativa ou orgânica, é que ela não seja embasada no interesse, mas pela real alteridade, quando uma pessoa se vê na figura do Outro, em si mesma, em toda sua condição de miserabilidade solidarizando-se e realizando ações concretas pelo Outro.
Assim sendo, conclui-se que, a imagem dos moradores de rua sob o olhar dos comerciantes do polígono central de Campo Grande – MS é altamente negativa, sinonimizando morador de rua com drogado, bêbado, desocupado, etc. Indo de encontro com o discurso da teoria do Desenvolvimento em Escala Humana preconizada pela humanização, pela solidariedade ativa e pelo protagonismo do homem enquanto ser dotado de dignidade.
REFERÊNCIAS
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LATOUCHE, Serge. Pequeno tratado de decrescimento sereno. Tradução de Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
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MORO, Nataniél Dal. Representações da elite sobre o “Povo Comum” na cidade de Campo Grande (décadas de 1960-70). Fronteiras. Dourados–MS, v. 11, n. 20, p. 123-149, jul./dez. 2009.
ROZENDO, Suzana da Silva. ROZENDO, Adriano da Silva. Vida de rua: experiências, caminhos e desvios. Revista de Psicologia da UNESP. São Paulo-SP, n. 10, p. 106-119, 2011.
2 A palavra estabelecimento foi utilizada em itálico, pois o entrevistado disse o nome do local em que trabalha na entrevista. Por isso, para preservar os termos de anonimato firmados, optou-se por tal modificação.
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